Minha homenagem a um mestre do Direito, uma vez que não poderei comparecer à esta sessão de hoje à noite:
3152. “Geraldo Eulalio do
Nascimento e Silva: um exegeta diplomático”, Brasília, 17 agosto 2017, 4 p. Texto
de homenagem ao grande jurista para ser lido pelo prof. Paulo Borba Casella,
por ocasião do lançamento do livro: Paulo Borba Casella, Raphael Carvalho de
Vasconcelos, e Ely Caetano Xavier Junior (orgs.): Direito Ambiental: o legado de Geraldo Eulálio do Nascimento e Silva (Brasília:
Funag, 2017, 492 p.; ISBN: 978-85-7631-673-2), na Faculdade de Direito da USP,
em 22 de agosto de 2017, 19hs.
Geraldo Eulalio do Nascimento e Silva: um exegeta diplomático
Paulo Roberto de Almeida
[Homenagem ao jurista, professor e diplomata, por
ocasião do lançamento de seu livro “Direito Ambiental: o legado de GENS”; Faculdade
de Direito da USP: 22/08/2017]
Exegese, segundo as mais
simples definições, é um comentário ou dissertação que tem por objetivo
esclarecer ou interpretar minuciosamente um texto, uma palavra, ou ainda, uma
interpretação de obra literária, artística ou outra qualquer. Em dicionários
mais elaborados, a exegese se refere, etimologicamente, à interpretação ou
explicação crítica de textos religiosos; tradicionalmente esteve associada a
comentários bíblicos. Ela teve um papel preeminente no processo civilizatório
que levou à conformação do mundo moderno, aliás desde antes dos descobrimentos,
vindo da antiguidade greco-romana, passando pela Idade Média, para chegar à era
contemporânea.
De fato, um dos mais poderosos fatores do progresso
das sociedades ocidentais pode ser atribuído à faculdade que sempre tiveram
seus estudiosos, na antiga tradição judaico-cristã, continuando nas fragmentações
católica-ortodoxa e protestante, de se dedicar, mais ou menos livremente, à
discussão da palavra divina, isto é, sua capacidade de interpretar os textos
sagrados. Essa característica explica, em certa medida, a preeminência
ocidental sobre outros povos e nações nos últimos cinco séculos, uma vez que tal
liberdade deu amplo espaço a elaborações artísticas, científicas e filosóficas,
que se refletiram, por sua vez, nos progressos tecnológicos e materiais da Europa
ocidental, comparativamente a outras sociedades menos abertas à interpretação
de livros sagrados.
Geraldo Eulálio podia ser considerado um exegeta, mas
seus “livros sagrados” eram os tratados, as convenções e os atos internacionais
no domínio do Direito. Como estudioso e intérprete das “tábuas da lei” do Direito,
seu infatigável esforço exegético possuía
várias dimensões: bibliográfica, didática, doutrinal, diplomática, intelectual,
humana simplesmente. Uma pesquisa no catálogo da biblioteca do Itamaraty retorna
enorme lista de dezenas de obras: sua importante contribuição ao direito diplomático
brasileiro é comparável a de outros grandes mestres de nossa tradição jurídica
e política.
Seu
papel como professor, como instrutor, como sistematizador didático dos grandes
temas do direito internacional encontra poucos paralelos, tanto na academia,
quanto no cenáculo do próprio Itamaraty, onde ingressou em plena Segunda
Guerra, tendo imediatamente se tornado membro (mais tarde presidente) da
Sociedade Brasileira de Direito Internacional, assumindo depois a cadeira de
Direito Internacional no Instituto Rio Branco, do qual também foi
diretor-geral. Em meados dos anos 1950 ele coletou e publicou os primeiros
pareceres dos consultores jurídicos do Itamaraty sob a República. Mas ele foi,
sobretudo e principalmente, um exegeta e um sistematizador do direito
internacional, retomando o bastão antes empunhado por Hildebrando Accioly. O
manual de Direito Internacional Público,
que leva o nome dos dois juristas nas muitas edições que teve até o começo do
milênio, passou a partir daí a ser publicado sob a responsabilidade do
professor Paulo Borba Casella. Trata-se de manual que nenhum candidato à
carreira diplomática pode se permitir ignorar, uma vez que os primeiros autores
viviam imersos, por assim dizer, na própria matéria prima do livro, que era o
trabalho diplomático do qual se ocupavam tanto Accioly quanto Geraldo Eulalio.
O
livro póstumo sobre Direito Ambiental
constitui uma assemblagem dos seus muitos textos que, desde antes da
Conferência de Estocolmo de 1972 sobre o meio ambiente, foram compostos a
partir dos debates mais importantes em curso na comunidade internacional sobre
esse tema emergente (não para ele) da diplomacia mundial. Essa compilação,
devida aos esforços dos professores Paulo Borba Casella, Raphael Carvalho de
Vasconcelos e Ely Caetano Xavier, e disponível na Biblioteca Digital da Funag (http://funag.gov.br/loja/download/1196-DIREITO-AMBIENTAL_25_08_V_FINAL.pdf), é tanto de caráter
didático e jornalístico, embora de alto nível – o que os franceses chamam de haute vulgarisation –, quanto exegética,
embora eu prefira, nesse vertente, seus grandes livros interpretativos sobre as
duas grandes convenções de Viena sobre relações diplomáticas e consulares.
Mas, antes mesmo de se dedicar a esses dois grandes
instrumentos das relações internacionais contemporâneas, de corpo e alma, se
ouso dizer – uma vez que ele participou da construção, e depois escreveu sobre
eles – Geraldo já tinha uma noção precisa sobre a forma e o conteúdo
substantivo dessas relações, simplesmente por ser um protagonista histórico dos
grandes eventos e processos que moldaram o mundo atual, desde o período do
entre-guerras, sobretudo para quem, como ele, era nascido na França em 1917, e
tinha contemplado a ascensão aos extremos na Europa do entre guerras. Em seu
livro Diplomacia e Protocolo (1969), Geraldo Eulalio
acentua as grandes diferenças entre as atividades diplomáticas praticadas no
período 1919-1939, ou seja, anteriores à Segunda Guerra Mundial, e aquelas do
pós-guerra. Como ele próprio sublinha no prefácio a esse livro:
Mesmo antes do término da guerra, a necessidade de
serem encontrados métodos mais eficientes visando a soluções imediatas, em que
negociações prolongadas pudessem ser evitadas, provocaram uma quase
institucionalização da diplomacia em alto nível, isto é, entre chefes de Estado
e de Governo ou entre os respectivos ministros das Relações Exteriores. (p. 11)
Ele
se refere, então, a reuniões de cúpula como a do Pacto do Atlântico (entre
Roosevelt e Churchill em 1941), e as subsequentes, em Moscou, Teerã, Cairo e
Ialta, para mais adiante referir-se à Convenção de Viena sobre Relações
Diplomáticas, que ele chama de “Carta Magna para as relações diplomáticas”, e
da qual ele veio a tornar-se o grande intérprete, divulgador e defensor, em
seus inúmeros trabalhos e livros a respeito nas décadas seguintes. Aliás, ele
menciona igualmente o Regulamento de Viena, de 1815, sobre o problema da
precedência, ou seja, um dos principais elementos das questões de protocolo e
cerimonial, que podem adquirir uma importância crucial no relacionamento
jurídico e político entre Estados soberanos.
Tendo
participado da elaboração da Convenção de Viena de 1961 sobre relações
diplomáticas, Geraldo Eulalio sistematizou e expos seu conhecimento sobre esse
grande instrumento da vida diplomática contemporânea, do qual ele fez um exame detalhado
de cada um dos 53 artigos dessas “tábuas da lei” do direito internacional. Seu
trabalho de exegese da Convenção desce a detalhes raramente encontrados nas
demais obras explicativas dos seus dispositivos, consistindo numa verdadeira
anatomia etimológica desse ato fundamental na vida internacional das nações, já
que regulando as relações bilaterais e seus direitos e obrigações com respeito
aos enviados. Em cada um dos capítulos, ele relata como se desenvolveram os
trabalhos para se alcançar um texto consensual em cada um desses dispositivos,
referindo-se às posições dos diferentes delegados dos países ali representados.
Aliás,
em sua longa introdução explicativa, não deixa de mencionar o protesto do
delegado soviético quanto à ausência das demais repúblicas socialistas (a China
comunista, a Alemanha oriental, a Coreia do Norte, a Mongólia e o Vietnã), o
que para ele, Geraldo Eulálio, “representava uma violação do princípio da
igualdade jurídica dos Estados” – como teria gostado de lembrar Rui Barbosa, se
ali estivesse – e um obstáculo a que “a Convenção pudesse ser aceita e aplicada
universalmente” (Convenção de Viena sobre relações diplomáticas. 3a. ed.; Brasília-Rio de Janeiro: Funag-Forense, 1989, p. 4). Ele se refere,
igualmente, nesse texto e nos diferentes capítulos, às muitas emendas
apresentadas pela delegação brasileira, mencionando a si mesmo na terceira
pessoa – “intervenção em Plenário, de Nascimento e Silva” – como tendo, por
exemplo, apresentado “uma fórmula que, com ligeira modificação de forma, seria
acolhida” (p. 10). Ou seja, ele não só esteve “presente na criação” – para usar
o título das memórias de Dean Acheson – de um dos mais importantes pilares das
relações diplomáticas contemporâneas, como pode ser considerado, sem qualquer
desdouro para os demais delegados, como um dos “pais da criança”, da qual ele pode
legitimamente se orgulhar. O mesmo estilo exegético foi igualmente mobilizado
no caso da convenção sobre as relações consulares, de 1963, e também no do
tratado sobre o direito dos tratados, de 1969, ambos instrumentos submetidas ao
sua poderoso bisturi analítico.
Assim
procedia o jurista exegeta Geraldo Eulalio, um dos mais importantes mestres do
direito internacional do Brasil e no Brasil. A amplitude de suas publicações em
outras línguas, sobretudo em espanhol, inglês e francês, também o converte num publicista
de alcance mundial, cuja memória vem sendo doravante mantida por seus discípulos
nos mais diversos ambientes do direito nacional.
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 17 de agosto de 2017
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