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terça-feira, 6 de março de 2018

Conselhos de um contrarianista a jovens internacionalistas - Paulo Roberto de Almeida

Conselhos de um contrarianista a jovens internacionalistas

Paulo Roberto de Almeida
Alocução de patrono na XI turma (2º semestre de 2004) de
Relações internacionais da Universidade Católica de Brasília
(10 de março de 2005, 20hs, Auditório S. João Batista de La Salle)

Senhora representante da Magnífica Reitora da Universidade Católica,
Senhor Paraninfo, Geraldo Magela,
Senhores professores homenageados,
Senhoras e senhores demais membros da mesa e autoridades presentes,
Meus caríssimos alunos e agora formandos em relações internacionais,

Confesso que quando a Comissão de Formatura desta turma de relações internacionais da Universidade Católica me procurou, cerca de dois meses atrás, para formular este honroso convite de “patrono” de sua formatura, me senti verdadeiramente orgulhoso de tê-lo feito por merecer. Já lá se vai mais de um quarto de século que me exerço nas lides da diplomacia profissional, com uma dedicação paralela às “coisas internacionais”. Por “coisas”, vão aqui compreendidas a pesquisa, geralmente solitária, o ensino, sempre voluntário e irregular, ao sabor de uma vida nômade a serviço do Brasil, e a redação e publicação de textos de caráter didático em torno das questões das relações internacionais, da história diplomática e, sobretudo, da inserção internacional do Brasil. No entanto, ao longo desse tempo todo, não havia tido ainda a satisfação de receber um convite como este que vocês me fizeram, o que me desvaneceu, de verdade.
Minhas primeiras palavras, portanto, são de agradecimento sincero a todos vocês pela lembrança, pelo gesto simpático e pelo carinho demonstrados. Isso me incita a continuar retribuindo, nos anos que ainda tenho de exercício profissional e acadêmico, produzindo de forma ainda mais intensa no campo das relações internacionais, sempre com sentido didático. Isso nada mais representa, afinal de contas, do que uma modesta retribuição de minha parte à sociedade brasileira, por tudo que ela me deu em termos de formação educacional nos quadros do ensino público.

Vocês também me prestaram a homenagem de transcrever no convite, ainda que de forma abreviada e livremente adaptadas, mas muito bem resumidas, as dez novas regras de diplomacia que eu havia elaborado, em agosto de 2001, a partir da leitura de um velho livro do século XIX sobre quatro regras de diplomacia, para justamente ilustrar as reflexões contemporâneas de meus jovens colegas diplomatas e outros tantos candidatos à carreira. Esse gesto me incita a retomar algumas delas e tentar elaborar, nesta noite, alguns poucos conselhos que um velho contrarianista do século XX, como eu, poderia dar a jovens internacionalistas do século XXI, como vocês.
Digo “contrarianista” sem qualquer espírito opositor ou anarquista, ainda que estes sentimentos sejam igualmente legítimos em sociedades plenamente democráticas, como pretende ser a nossa. Meu espírito contrarianista deriva do fato de que eu nunca quis ou pretendi me submeter ao argumento da autoridade, mas sim aceito, com prazer e voluntariamente, a autoridade do argumento. Num cenário de diálogo socrático e de dedicação honesta à busca da verdade, como deve ser o ambiente acadêmico, desejo reformular algumas dessas regras, para melhor iluminar o que me parecem ser qualidades essenciais ao jovem internacionalista de nossos tempos.

Inicialmente, eu destacaria a última regra e, agora, a colocaria em primeiro lugar. Não se deve fazer da carreira profissional, seja no campo da diplomacia ou em outras atividades ligadas de perto ou de longe com as questões internacionais, o foco exclusivo de sua vida e, sobretudo, não se deve passar a carreira à frente da família, dos amigos e das pessoas com quem convivemos no ambiente familiar ou de trabalho.
A carreira profissional, qualquer que seja ela, é importante, mas as pessoas, sobretudo os indivíduos que nos são caros, são ainda mais importantes do que ela. Podemos, por certo, mudar de carreira, uma ou várias vezes na vida, podemos até mudar nossos relacionamentos individuais, mas os familiares e nossos amigos mais chegados estarão sempre lá para nos ajudar nas horas difíceis, para nos confortar em determinados momentos, para nos trazer alegrias em várias ocasiões.
Por isso, meus caros formandos, contrariem o carreirismo e sejam, antes de mais nada, profissionais que vêem nas pessoas, de fato, o centro da vida.

Eu diria, em segundo lugar, que algo se ganha ao contrariar o próprio princípio da autoridade, desde que, é claro, vocês tenham absoluta certeza sobre a fundamentação da posição de vocês sobre um assunto qualquer. Regras hierárquicas e disciplina são boas de serem cumpridas na execução de tarefas que exigem uma linha de comando definida, inquestionável, em função da implementação de uma decisão maduramente refletida e alcançada graças a um processo decisório bem estruturado e solidamente bem estabelecido.
Mas, a hierarquia e a disciplina não podem entravar a liberdade de pensamento, em especial a defesa de posições de maior valor agregado, que conseguem realizar uma otimização “paretiana” dos recursos e meios disponíveis para a tomada de ação. A contestação, pelo simples prazer de contrariar, não me parece levar a resultados ótimos, mas sim pode-se e deve-se praticar o questionamento honesto, o ceticismo sadio, a desconfiança metodológica em relação às verdades reveladas, por mais que elas tenham sido formuladas por alguma autoridade imbuída do seu poder autocrático.
Por isso, não tenham medo de expor e de defender com firmeza suas opiniões, se elas refletem, efetivamente, um conhecimento fundamentado do problema em pauta, e isso mesmo que uma “autoridade superior” ostente uma opinião diversa da de vocês.

Por esse motivo, e aqui vai minha terceira regra, contrariem o desejo, ainda que compreensível, de aposentar os livros e deixar os estudos de lado, agora que vocês têm um canudo na mão e algumas idéias na cabeça. Ao contrário, sejam opositores sistemáticos da aposentadoria precoce nos estudos, e voltem imediatamente às leituras, às bibliotecas, às livrarias, às pesquisas de internet.
Não parem de estudar, em nenhum momento da vida. Aliás, comecem a fazê-lo imediatamente, assim que saírem daqui. Afinal de contas, até agora, vocês fizeram, em grande medida, aquilo que os professores determinaram que vocês fizessem, com uma série de leituras chatas e outras tantas obrigações impostas.
Neste momento, cabe a vocês mesmos imporem a si mesmos um programa sistemático de estudos e de leituras que melhor se conformar às habilidades, gostos e orientações particulares de cada um. Sejam, portanto, contrários ao estudo dirigido e estabeleçam, vocês mesmos, um plano regular de dedicação à formação metódica da especialidade que vocês pretendem ter na vida.
A universidade é uma grande fonte de generalidades e mesmo de algumas banalidades repassadas ao longo dos anos, numa repetição por vezes aborrecida do saber acumulado. O que vocês devem fazer agora é construir o seu próprio saber e para isso vão precisar continuar estudando. Apenas com base num saber específico, que dê a cada um de vocês o melhor desempenho possível numa determinada vertente profissional, vocês terão sucesso na vida e no trabalho. Por isso, mãos à obra: coloquem o canudo de lado e comecem a estudar de novo.

Dessa característica de estudo constante, e totalmente dedicado à expansão contínua do saber em todos os ramos do conhecimento humano, derivam duas outras regras que eu havia inscrito em meu decálogo de quatro anos atrás: possuir o domínio total de cada assunto do qual nos vamos ocupar profissionalmente, o que significa aprofundar o conhecimento daquele tema em pesquisas paralelas e correlatas, adotando, ao mesmo tempo ou paralelamente, uma perspectiva histórica e estrutural de cada tema, situando-o no seu contexto próprio.
Apenas com base nesse conhecimento suplementar, vocês saberão se opor, se for o caso, ao princípio primário da autoridade e ter condições de manter independência de julgamento em relação às idéias recebidas e às “verdades reveladas”. A autoridade do argumento só se sustenta com um saber superior, solidamente embasado nos dados da realidade e apoiado em pesquisas comparativas ou no conhecimento de outras experiências que podem ser relevantes para um caso porventura similar.
O “ser contrário” significa, em princípio, possuir um argumento dotado de autoridade superior, embasado em dados mais amplos e um domínio mais seguro da realidade. Claro, podemos ser vencidos pela força bruta, pela imposição da hierarquia ou do poder simplesmente incontestável e incontrastável. Mas aí não estamos falando de métodos socráticos de busca da verdade ou de formação de um consenso no processo decisório, e sim da vontade unilateral, o que não deveria valer no ambiente sadio da pesquisa acadêmica ou mesmo da organização burocrática racionalmente estruturada.
A regra é esta: para vocês serem contrários ao lugar comum, ao déjà vu, ao habitual costumeiro, vocês precisarão construir um saber superior e expô-lo com clareza. E isso nos faz voltar à necessidade já referida do estudo constante, do esforço feito sob a forma da pesquisa individual e de leituras contínuas. A geração de vocês leva uma enorme vantagem em relação àquelas que a precederam: hoje em dia, com os recursos existentes on-line, praticamente 90% do estoque acumulado de conhecimento produzido pela humanidade, até aqui, está livremente disponível na internet, bastando um pouco de destreza lingüística para desfrutar desse imenso saber.

Vocês também podem ser contrários aos interesses político-partidários, às ideologias do momento e às conjunturas políticas de uma dada maioria governamental, mas isto não é uma regra absoluta. Digo isto porque várias carreiras, sobretudo aquelas fortemente dependentes de uma determinada estruturação hierárquica que tem no seu pináculo uma autoridade política qualquer, podem ser levadas ao fenômeno bem conhecido do “adesismo”, ou seja, aquela aderência momentânea aos senhores da hora, às idéias temporariamente dominantes, às situações de adequação oportunista às novas condições do exercício do poder, que sempre vem associado às benesses e favores distribuídos em direção daqueles que partilham, ou fingem fazê-lo, as mesmas opiniões daqueles que justamente ocupam o poder naquele dado momento.
Não estou excluindo, por certo, que algum partido ou agrupamento político consiga encarnar, num determinado momento da vida da Nação, os anseios ou as aspirações da maioria, conseguindo traduzir de modo prático aquilo que normalmente se chama de “vontade nacional”. Este é um fato, aliás corriqueiro nas democracias. O que estou dizendo é que vocês precisam ter absolutamente claros, para vocês e no exercício de alguma atividade profissional, quais são os grandes princípios de atuação do país a serviço do qual se colocam, isto é, quais são, se é que possível saber de verdade, os chamados “interesses nacionais permanentes”.

É com base numa compreensão desse tipo que eu formulei minha primeira regra e uma outra que dela também deriva: servir a pátria, mais do que aos governos, e afastar ideologias ou interesses político-partidários das considerações relativas à política externa do país, que precisa assumir um caráter nacional abrangente, e não meramente setorial ou corporativo.
Para que isso se faça, é preciso, repito ainda uma vez, conhecer profundamente os interesses permanentes da nação e do povo aos quais se serve, e por isso volto ao tema do estudo contínuo.
É preciso, da mesma forma, não aderir a modismos em matéria de “explicações definitivas” das causas das nossas mazelas e iniqüidades: elas são certamente muitas e provavelmente têm causas mais complexas do que certas “racionalizações inovadoras” que pretendem deter a chave milagrosa para a solução de todos os problemas brasileiros. O ser contrário à subserviência ao poder político do momento é também uma atitude de coragem moral e de honestidade intelectual, já que a razão do poder nem sempre se coaduna com o poder da razão, mas esta é, como disse, uma regra não absoluta.

Em resumo ‑ e terminando por aqui este meu exercício de contrarianismo bem intencionado ‑, não pretendo que minhas regras subjetivas, certamente derivadas de um espírito inquieto e ainda rebelde, mas sempre aberto à causa do conhecimento, sirvam de guia absoluto na determinação do itinerário profissional que vocês empreenderão a partir daqui. Cada um definirá com base em sua própria experiência de vida, com o apoio e os conselhos dos familiares, dos professores e dos amigos, qual o melhor curso a seguir no plano profissional ou ainda da continuação dos estudos, agora em nível de pós-graduação, o que recomendo vivamente.
O que eu pretendi inculcar em vocês é a idéia da mente aberta, dotada de ceticismo sadio, contestadora das verdades reveladas e orientada para a busca honesta do saber e da maior eficiência possível no desempenho das atividades profissionais ou dos estudos futuros no terreno da especialização. Vocês agora vão deixar para trás uma etapa da vida e começar outra, mas devem sempre encarar os próximos desafios com toda a modéstia que requer o enfrentamento de cada nova situação de vida: deixar a suficiência de lado e buscar a excelência, em tudo e de todas as maneiras, sabendo que só a dedicação plena ao estudo continuado lhes poderá abrir o caminho para algumas rotas de sucesso profissional e pessoal.
Eu aprendi dessa maneira: vindo de uma família modesta, como é a maioria daquelas dos que aqui se formam hoje, consegui, à custa de muito estudo e dedicação pessoal, distinguir-me na carreira profissional e nas atividades acadêmicas, a ponto de me fazer merecedor da homenagem que vocês tão gentilmente quiseram me prestar nesta data, ao me fazer patrono desta turma de relações internacionais.
Vocês podem, em primeiro lugar, agradecer e retribuir à família e a todos aqueles que os ajudaram a conseguir o diploma que a partir de hoje passam a ostentar. Vocês devem ter, em segundo lugar, consciência de que o maior motivo de orgulho, não é necessariamente o canudo certificador do mérito alcançado, mas mais precisamente o fato de que vocês adquiram nesta escola algumas técnicas de aprendizado que devem ser internalizadas e aproveitadas em todo e qualquer momento da vida futura. Vocês aqui aprenderam tão simplesmente a aprender: comecem agora a estudar de verdade, e tenham sucesso na vida profissional e pessoal. Mãos à obra, de volta aos livros, e sejam felizes na vida.
Meus sinceros parabéns e, por esta oportunidade que me foi dada de me dirigir a alguns dos meus, até aqui, desconhecidos leitores, meu muito obrigado a todos vocês.

Paulo Roberto de Almeida
6-8 de março de 2005 

domingo, 20 de agosto de 2017

Conselhos de um contrarianista a jovens internacionalistas (2005) - Paulo Roberto de Almeida


Conselhos de um contrarianista a jovens internacionalistas

Paulo Roberto de Almeida
Alocução de patrono na XI turma (2º semestre de 2004) de
Relações internacionais da Universidade Católica de Brasília
(10 de março de 2005, 20hs, Auditório S. João Batista de La Salle)

Senhora representante da Magnífica Reitora da Universidade Católica,
Senhor Paraninfo, Geraldo Magela,
Senhores professores homenageados,
Senhoras e senhores demais membros da mesa e autoridades presentes,
Meus caríssimos alunos e agora formandos em relações internacionais,

Confesso que quando a Comissão de Formatura desta turma de relações internacionais da Universidade Católica me procurou, cerca de dois meses atrás, para formular este honroso convite de “patrono” de sua formatura, me senti verdadeiramente orgulhoso de tê-lo feito por merecer. Já lá se vai mais de um quarto de século que me exerço nas lides da diplomacia profissional, com uma dedicação paralela às “coisas internacionais”. Por “coisas”, vão aqui compreendidas a pesquisa, geralmente solitária, o ensino, sempre voluntário e irregular, ao sabor de uma vida nômade a serviço do Brasil, e a redação e publicação de textos de caráter didático em torno das questões das relações internacionais, da história diplomática e, sobretudo, da inserção internacional do Brasil. No entanto, ao longo desse tempo todo, não havia tido ainda a satisfação de receber um convite como este que vocês me fizeram, o que me desvaneceu, de verdade.
Minhas primeiras palavras, portanto, são de agradecimento sincero a todos vocês pela lembrança, pelo gesto simpático e pelo carinho demonstrados. Isso me incita a continuar retribuindo, nos anos que ainda tenho de exercício profissional e acadêmico, produzindo de forma ainda mais intensa no campo das relações internacionais, sempre com sentido didático. Isso nada mais representa, afinal de contas, do que uma modesta retribuição de minha parte à sociedade brasileira, por tudo que ela me deu em termos de formação educacional nos quadros do ensino público.

Vocês também me prestaram a homenagem de transcrever no convite, ainda que de forma abreviada e livremente adaptadas, mas muito bem resumidas, as dez novas regras de diplomacia que eu havia elaborado, em agosto de 2001, a partir da leitura de um velho livro do século XIX sobre quatro regras de diplomacia, para justamente ilustrar as reflexões contemporâneas de meus jovens colegas diplomatas e outros tantos candidatos à carreira. Esse gesto me incita a retomar algumas delas e tentar elaborar, nesta noite, alguns poucos conselhos que um velho contrarianista do século XX, como eu, poderia dar a jovens internacionalistas do século XXI, como vocês.
Digo “contrarianista” sem qualquer espírito opositor ou anarquista, ainda que estes sentimentos sejam igualmente legítimos em sociedades plenamente democráticas, como pretende ser a nossa. Meu espírito contrarianista deriva do fato de que eu nunca quis ou pretendi me submeter ao argumento da autoridade, mas sim aceito, com prazer e voluntariamente, a autoridade do argumento. Num cenário de diálogo socrático e de dedicação honesta à busca da verdade, como deve ser o ambiente acadêmico, desejo reformular algumas dessas regras, para melhor iluminar o que me parecem ser qualidades essenciais ao jovem internacionalista de nossos tempos.

Inicialmente, eu destacaria a última regra e, agora, a colocaria em primeiro lugar. Não se deve fazer da carreira profissional, seja no campo da diplomacia ou em outras atividades ligadas de perto ou de longe com as questões internacionais, o foco exclusivo de sua vida e, sobretudo, não se deve passar a carreira à frente da família, dos amigos e das pessoas com quem convivemos no ambiente familiar ou de trabalho.
A carreira profissional, qualquer que seja ela, é importante, mas as pessoas, sobretudo os indivíduos que nos são caros, são ainda mais importantes do que ela. Podemos, por certo, mudar de carreira, uma ou várias vezes na vida, podemos até mudar nossos relacionamentos individuais, mas os familiares e nossos amigos mais chegados estarão sempre lá para nos ajudar nas horas difíceis, para nos confortar em determinados momentos, para nos trazer alegrias em várias ocasiões.
Por isso, meus caros formandos, contrariem o carreirismo e sejam, antes de mais nada, profissionais que vêem nas pessoas, de fato, o centro da vida.

Eu diria, em segundo lugar, que algo se ganha ao contrariar o próprio princípio da autoridade, desde que, é claro, vocês tenham absoluta certeza sobre a fundamentação da posição de vocês sobre um assunto qualquer. Regras hierárquicas e disciplina são boas de serem cumpridas na execução de tarefas que exigem uma linha de comando definida, inquestionável, em função da implementação de uma decisão maduramente refletida e alcançada graças a um processo decisório bem estruturado e solidamente bem estabelecido.
Mas, a hierarquia e a disciplina não podem entravar a liberdade de pensamento, em especial a defesa de posições de maior valor agregado, que conseguem realizar uma otimização “paretiana” dos recursos e meios disponíveis para a tomada de ação. A contestação, pelo simples prazer de contrariar, não me parece levar a resultados ótimos, mas sim pode-se e deve-se praticar o questionamento honesto, o ceticismo sadio, a desconfiança metodológica em relação às verdades reveladas, por mais que elas tenham sido formuladas por alguma autoridade imbuída do seu poder autocrático.
Por isso, não tenham medo de expor e de defender com firmeza suas opiniões, se elas refletem, efetivamente, um conhecimento fundamentado do problema em pauta, e isso mesmo que uma “autoridade superior” ostente uma opinião diversa da de vocês.

Por esse motivo, e aqui vai minha terceira regra, contrariem o desejo, ainda que compreensível, de aposentar os livros e deixar os estudos de lado, agora que vocês têm um canudo na mão e algumas idéias na cabeça. Ao contrário, sejam opositores sistemáticos da aposentadoria precoce nos estudos, e voltem imediatamente às leituras, às bibliotecas, às livrarias, às pesquisas de internet.
Não parem de estudar, em nenhum momento da vida. Aliás, comecem a fazê-lo imediatamente, assim que saírem daqui. Afinal de contas, até agora, vocês fizeram, em grande medida, aquilo que os professores determinaram que vocês fizessem, com uma série de leituras chatas e outras tantas obrigações impostas.
Neste momento, cabe a vocês mesmos imporem a si mesmos um programa sistemático de estudos e de leituras que melhor se conformar às habilidades, gostos e orientações particulares de cada um. Sejam, portanto, contrários ao estudo dirigido e estabeleçam, vocês mesmos, um plano regular de dedicação à formação metódica da especialidade que vocês pretendem ter na vida.
A universidade é uma grande fonte de generalidades e mesmo de algumas banalidades repassadas ao longo dos anos, numa repetição por vezes aborrecida do saber acumulado. O que vocês devem fazer agora é construir o seu próprio saber e para isso vão precisar continuar estudando. Apenas com base num saber específico, que dê a cada um de vocês o melhor desempenho possível numa determinada vertente profissional, vocês terão sucesso na vida e no trabalho. Por isso, mãos à obra: coloquem o canudo de lado e comecem a estudar de novo.

Dessa característica de estudo constante, e totalmente dedicado à expansão contínua do saber em todos os ramos do conhecimento humano, derivam duas outras regras que eu havia inscrito em meu decálogo de quatro anos atrás: possuir o domínio total de cada assunto do qual nos vamos ocupar profissionalmente, o que significa aprofundar o conhecimento daquele tema em pesquisas paralelas e correlatas, adotando, ao mesmo tempo ou paralelamente, uma perspectiva histórica e estrutural de cada tema, situando-o no seu contexto próprio.
Apenas com base nesse conhecimento suplementar, vocês saberão se opor, se for o caso, ao princípio primário da autoridade e ter condições de manter independência de julgamento em relação às idéias recebidas e às “verdades reveladas”. A autoridade do argumento só se sustenta com um saber superior, solidamente embasado nos dados da realidade e apoiado em pesquisas comparativas ou no conhecimento de outras experiências que podem ser relevantes para um caso porventura similar.
O “ser contrário” significa, em princípio, possuir um argumento dotado de autoridade superior, embasado em dados mais amplos e um domínio mais seguro da realidade. Claro, podemos ser vencidos pela força bruta, pela imposição da hierarquia ou do poder simplesmente incontestável e incontrastável. Mas aí não estamos falando de métodos socráticos de busca da verdade ou de formação de um consenso no processo decisório, e sim da vontade unilateral, o que não deveria valer no ambiente sadio da pesquisa acadêmica ou mesmo da organização burocrática racionalmente estruturada.
A regra é esta: para vocês serem contrários ao lugar comum, ao déjà vu, ao habitual costumeiro, vocês precisarão construir um saber superior e expô-lo com clareza. E isso nos faz voltar à necessidade já referida do estudo constante, do esforço feito sob a forma da pesquisa individual e de leituras contínuas. A geração de vocês leva uma enorme vantagem em relação àquelas que a precederam: hoje em dia, com os recursos existentes on-line, praticamente 90% do estoque acumulado de conhecimento produzido pela humanidade, até aqui, está livremente disponível na internet, bastando um pouco de destreza lingüística para desfrutar desse imenso saber.

Vocês também podem ser contrários aos interesses político-partidários, às ideologias do momento e às conjunturas políticas de uma dada maioria governamental, mas isto não é uma regra absoluta. Digo isto porque várias carreiras, sobretudo aquelas fortemente dependentes de uma determinada estruturação hierárquica que tem no seu pináculo uma autoridade política qualquer, podem ser levadas ao fenômeno bem conhecido do “adesismo”, ou seja, aquela aderência momentânea aos senhores da hora, às idéias temporariamente dominantes, às situações de adequação oportunista às novas condições do exercício do poder, que sempre vem associado às benesses e favores distribuídos em direção daqueles que partilham, ou fingem fazê-lo, as mesmas opiniões daqueles que justamente ocupam o poder naquele dado momento.
Não estou excluindo, por certo, que algum partido ou agrupamento político consiga encarnar, num determinado momento da vida da Nação, os anseios ou as aspirações da maioria, conseguindo traduzir de modo prático aquilo que normalmente se chama de “vontade nacional”. Este é um fato, aliás corriqueiro nas democracias. O que estou dizendo é que vocês precisam ter absolutamente claros, para vocês e no exercício de alguma atividade profissional, quais são os grandes princípios de atuação do país a serviço do qual se colocam, isto é, quais são, se é que possível saber de verdade, os chamados “interesses nacionais permanentes”.

É com base numa compreensão desse tipo que eu formulei minha primeira regra e uma outra que dela também deriva: servir a pátria, mais do que aos governos, e afastar ideologias ou interesses político-partidários das considerações relativas à política externa do país, que precisa assumir um caráter nacional abrangente, e não meramente setorial ou corporativo.
Para que isso se faça, é preciso, repito ainda uma vez, conhecer profundamente os interesses permanentes da nação e do povo aos quais se serve, e por isso volto ao tema do estudo contínuo.
É preciso, da mesma forma, não aderir a modismos em matéria de “explicações definitivas” das causas das nossas mazelas e iniqüidades: elas são certamente muitas e provavelmente têm causas mais complexas do que certas “racionalizações inovadoras” que pretendem deter a chave milagrosa para a solução de todos os problemas brasileiros. O ser contrário à subserviência ao poder político do momento é também uma atitude de coragem moral e de honestidade intelectual, já que a razão do poder nem sempre se coaduna com o poder da razão, mas esta é, como disse, uma regra não absoluta.

Em resumo ‑ e terminando por aqui este meu exercício de contrarianismo bem intencionado ‑, não pretendo que minhas regras subjetivas, certamente derivadas de um espírito inquieto e ainda rebelde, mas sempre aberto à causa do conhecimento, sirvam de guia absoluto na determinação do itinerário profissional que vocês empreenderão a partir daqui. Cada um definirá com base em sua própria experiência de vida, com o apoio e os conselhos dos familiares, dos professores e dos amigos, qual o melhor curso a seguir no plano profissional ou ainda da continuação dos estudos, agora em nível de pós-graduação, o que recomendo vivamente.
O que eu pretendi inculcar em vocês é a idéia da mente aberta, dotada de ceticismo sadio, contestadora das verdades reveladas e orientada para a busca honesta do saber e da maior eficiência possível no desempenho das atividades profissionais ou dos estudos futuros no terreno da especialização. Vocês agora vão deixar para trás uma etapa da vida e começar outra, mas devem sempre encarar os próximos desafios com toda a modéstia que requer o enfrentamento de cada nova situação de vida: deixar a suficiência de lado e buscar a excelência, em tudo e de todas as maneiras, sabendo que só a dedicação plena ao estudo continuado lhes poderá abrir o caminho para algumas rotas de sucesso profissional e pessoal.
Eu aprendi dessa maneira: vindo de uma família modesta, como é a maioria daquelas dos que aqui se formam hoje, consegui, à custa de muito estudo e dedicação pessoal, distinguir-me na carreira profissional e nas atividades acadêmicas, a ponto de me fazer merecedor da homenagem que vocês tão gentilmente quiseram me prestar nesta data, ao me fazer patrono desta turma de relações internacionais.
Vocês podem, em primeiro lugar, agradecer e retribuir à família e a todos aqueles que os ajudaram a conseguir o diploma que a partir de hoje passam a ostentar. Vocês devem ter, em segundo lugar, consciência de que o maior motivo de orgulho, não é necessariamente o canudo certificador do mérito alcançado, mas mais precisamente o fato de que vocês adquiram nesta escola algumas técnicas de aprendizado que devem ser internalizadas e aproveitadas em todo e qualquer momento da vida futura. Vocês aqui aprenderam tão simplesmente a aprender: comecem agora a estudar de verdade, e tenham sucesso na vida profissional e pessoal. Mãos à obra, de volta aos livros, e sejam felizes na vida.
Meus sinceros parabéns e, por esta oportunidade que me foi dada de me dirigir a alguns dos meus, até aqui, desconhecidos leitores, meu muito obrigado a todos vocês.

Paulo Roberto de Almeida
6-8 de março de 2005

Profissionalizacao em relacoes internacionais: exigencias e possibilidades (2002) - Paulo Roberto de Almeida

Um dos textos preparados para atender demandas de estudantes em RI e candidatos à carreira, e que permaneceu relativa ou totalmente inédito desde então (2002), postado agora por seu valor unicamente histórico, e residualmente atual.
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 17 de agosto de 2017


Profissionalização em relações internacionais: exigências e possibilidades

Paulo Roberto de Almeida
Doutor em Ciências Sociais. Diplomata.
Trecho retirado das “Leituras complementares”, do capítulo 11:
“A diplomacia econômica brasileira no século XX: grandes linhas evolutivas”
do livro do autor:
Os primeiros anos do século XXI: o Brasil e as relações internacionais contemporâneas
(São Paulo: Editora Paz e Terra, 2002), pp. 244-248

(…)
O estudo e a profissionalização em relações internacionais no Brasil têm avançado muito no período recente, em grande medida em função dos processos de globalização e de regionalização – tanto via Mercosul, como mediante as discussões em torno da ALCA – experimentados pelo país de forma mais intensa desde o início dos anos 1990. Pretendo abordar rapidamente alguns aspectos desta questão, utilizando-me do recurso a algumas perguntas que muitos estudantes nessa área também devem se fazer a si mesmos.

1) Quem é o profissional de relações internacionais no Brasil?
Trata-se não apenas do graduado em relações internacionais, uma vez que são ainda relativamente poucos os egressos dos parcos cursos existentes nesse nível no Brasil, muito embora a oferta tenha crescido exponencialmente nos últimos anos, em especial no setor universitário privado e em faculdades isoladas. Esse profissional, típico destes tempos de “globalização”, é mais suscetível de ter cursado uma vertente mais tradicional de estudos — ciências sociais, direito, economia e áreas afins —, dirigindo-se em seguida aos, estes sim inúmeros, cursos de pós-graduação ou mais geralmente de especialização (pós-graduação lato sensu, mestrado profissionalizante) que multiplicaram-se no Brasil no período recente. [1] Não há uma identificação formal desse profissional, uma vez que não há, nem se afigura provável haver no futuro previsível, uma regulamentação dessa carreira (já seria uma profissão?), a exemplo de outras tantas existentes no cenário trabalhista brasileiro. Considero particularmente desnecessária e mesmo indesejada tal regulação profissional, uma vez que seria uma maneira de manter a adequada flexibilidade do mercado laboral e propiciar uma demanda adaptada a um maior espectro de capacidades intelectuais e acadêmicas.

2) Como se faz a formação do profissional em relações internacionais?
Em função da já citada “precocidade” da profissão, ela é, compreensivelmente, a mais variada possível e não há, propriamente, homogeneidade didática nos cursos oferecidos, sendo portanto “normal” a qualidade muito diferenciada dos egressos desses cursos. Os resultados também variam em função da orientação e do conteúdo substantivo dos cursos disponíveis, cabendo notar uma orientação mais tradicionalmente acadêmica nas faculdades públicas e preocupações mais pragmáticas nas particulares. Com efeito, uma observação perfunctória revela uma maior ênfase em aspectos conceituais e teóricos nos cursos mantidos pelas instituições tradicionais (universidades públicas e católicas) e um cuidado bem mais acentuado com o lado prático da profissão naqueles oferecidos pelas privadas (comércio exterior e administração de negócios internacionais, por exemplo).
Essa dicotomia aparente, ainda largamente empírica nesta fase de sedimentação dos cursos especializados, não apenas é saudável do ponto de vista disciplinar, como desejável do ponto de vista das necessidades do “mercado”, mas ela deveria ser bem mais evidente na formulação e apresentação ao público interessado nesses cursos. A evolução institucional conduzirá provavelmente a um núcleo comum de requisitos disciplinares básicos, mas a diversidade programática e a “divisão do trabalho” entre “especializações mercadológicas” devem continuar manifestando-se, de maneira a assegurar a necessária flexibilidade na formação dos muitos profissionais que devem continuar a sair dessas instituições.

3) Para que serve um profissional de relações internacionais?
Ele pode ocupar-se de uma uma série crescente de atividades públicas e privadas, todas elas situadas num “nicho” cada vez mais amplo da vida da Nação: a interface entre o contexto interno e o cenário externo, seja no plano dos negócios, seja no âmbito da administração pública, seja ainda nas lides acadêmicas. Essa ponte entre o lado doméstico e as vertentes regional e internacional exige um profissional que saiba não apenas uma ou várias línguas estrangeiras, mas também comércio exterior, direito e economia internacionais e o próprio funcionamento das muitas organizações multilaterais e regionais de integração e de cooperação que permeiam a vida contemporânea das nações.
Esse profissional é antes de mais nada um “técnico especializado” a serviço de uma larga burocracia hierarquizada, se trabalhar numa empresa privada ou na administração pública, ou será uma espécie de “livre atirador” da globalização, se estiver lotado numa instituição universitária, onde a liberdade de escolha temática e a maior latitude na utilização do tempo são proverbiais. Em qualquer desses casos e mesmo nas especializações menos bem delimitadas, esse profissional serve, antes de mais nada, para processar informações, ou seja, para digerir massas de insumos “externos” e produzir volumes de “soluções” possíveis aos problemas que são colocadas às suas instituições respectivas de afiliação laboral. A qualidade do “produto final” será tanto mais relevante quanto mais pertinente ao objeto de trabalho e ao desafio colocado à instituição a que pertence esse profissional.

4) Quais são os setores preferenciais de atividades desse profissional?
As possibilidades são praticamente infinitas com a intensificação do processo de globalização, indo desde uma empresa de turismo a um clube de futebol. Podemos, contudo, destacar três grandes áreas ou setores de atuação para os especialistas em relações internacionais: (1) governo, ou setor público de modo geral, no qual se destaca em primeiro lugar a diplomacia, cujos requisitos de ingresso são (a)normalmente elevados (ver o site do Itamaraty: www.mre.gov.br/irbr), mas todos os demais ministérios (com destaque para a nova profissão de “analista de comércio exterior”, do atual MDIC) e agências públicas, bem como os governos estaduais e municipais vêm fazendo crescente apelo a tais profissionais em suas respectivas “assessorias internacionais”; (2) academia, onde as possibilidades efetivas são reconhecidamente mais limitadas, uma vez que as vagas no corpo docente não se renovam todos os dias e tendo em vista o fato de que nem todos os egressandos possuem qualidades ou vocação para a pesquisa e o ensino; (3) setor privado, no qual as chances de trabalho se multiplicam todos os dias, levando-se em conta a necessidade crescente de interagir com o cenário externo.
Nesta última área, as exigências de qualificação são bem mais “prosaicas”, mas ao mesmo tempo mais rigorosas. Uma empresa privada, normalmente, não necessita de longos textos sobre as virtudes e méritos respectivos do neorealismo ou do institucionalismo na política mundial ou sobre como funciona o Conselho de Segurança na ONU, mas, sim, precisa conhecer muito bem as regras do GATT, o perfil aduaneiro da Comunidade Andina e os acordos já feitos com o Mercosul, as obrigações contraídas internacionalmente pelo Brasil em matéria de proteção ambiental ou a evolução da padronização de regulamentos técnicos e da fixação de normas industriais “voluntárias”. Os desafios para as instituições de ensino tornam-se, portanto, muito grandes, uma vez que os professores deverão passar a conhecer não apenas Morgenthau ou Kehoane, mas também, e principalmente, a OMC, a ISO, a UIT e todas as demais organizações multilaterais e suas múltiplas convenções internacionais, sem mencionar as características técnicas precisas do processo de integração regional no Mercosul e suas dezenas de decisões e resoluções já adotadas desde 1991.

5) Que tipo de trabalho desempenha esse profissional?
As tarefas específicas dependem obviamente do entorno e do contexto laborais, mas em todas as áreas a atividade é geralmetne dominada pelo processamento da informação. Não só o diplomata, mas também o “middle manager” corporativo e o “técnico” de uma empresa globalizada têm de processar informações (inputs) que chegam todos os dias, de maneira a transformar essa “matéria bruta” externa em vantagens adaptativas para suas respectivas instituições que “competem” no ambiente internacional (seja por um produto ou serviço, seja por uma determinada disposição ou decisão em organização internacional). O diplomata, ademais, representa seu país no exterior (em embaixadas e missões) e negocia em caráter permanente ou de forma mais irregular acordos bilaterais e convenções multilaterais. Os assessores internacionais alertam para a interface e as limitações externas em suas esferas respectivas de atuação, instituições públicas ou privadas.
Todos eles, diplomatas, empresários, assessores participam, cada um a seu modo ou com distintos graus de independência (com subsídios ou mesmo determinações) do processo decisório em suas instituições de afiliação, contribuindo assim para o sucesso relativo do produto ou serviço. Sublinhei o termo independência uma vez que o diplomata obedece ao seu chanceler e este, em última instância, a um mandatário eleito, ao passo que o funcionário corporativo deve prestar contas a seu gerente imediato e este ao Conselho de Administração ou pelo menos ao CEO da empresa. O acadêmico é bem mais independente e desinvolto em suas atividades, sendo sua principal função — para o que ele é pago — a de transmitir conhecimentos ou a de realizar uma pesquisa, mas deve-se reconhecer que ele participa bem menos de processos decisórios, menos relevantes nas instituições de ensino. Ele o fará, eventualmente, e de forma indireta, se participar como consultor de um determinado projeto contratado externamente, mas para isso precisa apresentar qualificação numa determinada área especializada.
À exceção daquelas profissões regulamentadas e reservadas a um círculo profissional de especialistas registrados — advogados ou mesmo aquelas áreas indevidamente fechadas, como a de jornalista, por exemplo —, a maior parte das demais atividades que podem ser desempenhadas por um formando em ciências sociais, economia, história, comunicações ou ainda em áreas “técnicas” como operador cambial ou no mercado de futuros também podem ser ocupadas por um profissional em relações internacionais, sobretudo se ele combinar essa “especialização” a uma graduação nas vertentes mais tradicionais dos cursos universitários.

6) Quais os requisitos que se espera de um profissional de relações internacionais?
Uma trading, por exemplo, ou seja, uma empresa de comércio exterior não se dispõe a contratar um profissional apenas em virtude de um brilhante currículo acadêmico, mesmo se ele for egresso de uma conceituada faculdade pública. Ela é bem mais propensa a valorizar o conhecimento prático da nomenclatura aduaneira, da regulamentação de comércio exterior, das normas técnicas em vigor nos mercados estrangeiros. Muito embora uma boa cultura geral possa ser, igualmente, um surplus na avaliação do currículo do candidato, a experiência em matéria de regulações e normas aplicadas ao comércio internacional se afigura indispensável, assim como conhecimentos elementares de economia e de estatística. Na outra ponta, uma boa cultura humanista contribui em muito para uma boa performance do candidato nos concursos do Instituo Rio Branco, o que não dispensa contudo um contato íntimo com a atualidade mais imediata sobre as relações internacionais e a política externa do Brasil, que se adquire com a leitura diária dos principais jornais e periódicos de circulação nacional e de algumas revistas especializadas em política internacional (ver, por exemplo, a Revista Brasileira de Política Internacional, disponível em www.ibri-rbpi.org.br).
Em outros termos, as exigências feitas a um profissional de relações internacionais são tão variadas quanto são as possibilidades diversificadas de emprego hoje existentes num Brasil definitivamente inserido nos circuitos da globalização produtiva e financeira. O campo oferece, sem dúvida alguma, oportunidades crescentes aos egressandos dos cursos de graduação e de especialização, mas parece inevitável que um processo de “diluição” das e de “divisão do trabalho” entre as diferentes instituições brasileiras dedicadas à formação e à complementação educacionais desses profissionais deverá necessariamente ocorrer nos próximos anos, como forma de adequar perfis pedagógicos aos requisitos de mercado. O “profissional da globalização” é um ser multifacético, ao mesmo tempo um generalista e um perito em aspectos específicos da crescente interdependência mundial. Longa vida ao profissional em relações internacionais.

© Paulo Roberto de Almeida, 2001
Favor citar a fonte:
Paulo Roberto de Almeida:
Os primeiros anos do século XXI: o Brasil e as relações internacionais contemporâneas
(São Paulo: Editora Paz e Terra, 2002), pp. 244-248


(Outros textos de relações internacionais e de política externa do Brasil disponíveis na webpage do autor: www.pralmeida.org).



[1] Ver, a propósito, a identificação dos cursos existentes que procedi em capítulo de meu livro O estudo das relações internacionais do Brasil (São Paulo: Editora Unimarco, 1999).

segunda-feira, 29 de agosto de 2016

Quem sao, e o que fazem, os internacionalistas da AL? - Arlene B. Tickner; Carolina Cepeda; José Luiz Bernal

Recomendo a leitura:

¿Quiénes son los internacionalistas en Latinoamérica?
Arlene B. Tickner; Carolina Cepeda; José Luiz Bernal
Foreign Affairs Latinoamerica, vol. 13, n. 2, abril-junio 2013, p. 42-49
https://www.academia.edu/27928791/Quienes_son_los_internacionalistas_en_Latinoamerica

www.fal.itam.mx

sábado, 20 de agosto de 2016

Internacionalista: sou um, ou apenas um diplomata? - Entrevista Paulo Roberto de Almeida

Encontrei, numa pasta de "Recovered", com arquivos criados automaticamente em algum crash do Word, este texto de uma entrevista que concedi, mais de um ano atrás, a um estudante de uma das muitas faculdades com cursos de RI que existem pelo Brasil afora.
Devo ter colocado já neste espaço, mas não me lembro, e não sei porque acabou como "recuperado".
Em todo caso, como tem algumas menções a Copa do Mundo e Olimpíadas, acredito que possa vir à propos.
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 20/08/2016


O Internacionalista e o Diplomata
Reflexões sobre uma carreira e uma vocação

Paulo Roberto de Almeida
Diplomata de carreira; Professor de Economia no Pós-Graduação do Uniceub
Anápolis, 30 de maio de 2015

Entrevista com profissional de Relações Internacionais

1) O que o fez querer entrar para a carreira de internacionalista?
PRA: Cabe enfatizar – e isto será válido para todas as demais questões – que não sou internacionalista (“profissão” que, de resto, não existe, salvo como orientação de estudos ou designação de alguma área de trabalho), e sim um diplomata de carreira, aliás desde 1977, quando ingressei não pela via habitual dos vestibulares para o curso do Instituto Rio Branco, mas por concurso direto, que foram feitos em caráter excepcional durante alguns anos de forte expansão do Serviço Exterior brasileiro.
Respondendo diretamente à questão, dentro de minha especificidade, decidi tentar o concurso para o Itamaraty porque me parecia ser uma carreira intelectualmente interessante, para qual eu estava preparado, tendo residido durante sete anos no exterior, tempo de minha graduação, de meu mestrado e de um início de doutoramento, que foi concluído após ter entrado para a carreira.

2) Em seu ramo de atuação, a área internacional, qual você julga ser as competências e habilidades mais exigidas para ser considerado um bom profissional?
PRA: A diplomacia é uma carreira de Estado fortemente exigente e altamente seletiva no referente à formação intelectual, ou acadêmica, uma vez que os exames de entrada são normalmente rigorosos. As competências no âmbito acadêmico, ou de formação intelectual, se estendem a praticamente todas as áreas das Humanidades, no sentido amplo, ou seja, Ciências Sociais, lato senso, e Ciências Sociais aplicadas, o que cobre igualmente Economia e Direito Internacional e Constitucional. No plano das habilidades cabe lembrar o conhecimento de línguas e noções amplas, ou profundas das relações internacionais, e também um conhecimento bastante vasto da própria política externa brasileira, inclusive em suas posições relativas a integração regional, direitos humanos e organizações internacionais menos importantes, sem mencionar o lado das relações bilaterais com os mais países mais relevantes.
No plano puramente pessoal, o candidato à carreira diplomática deve estar preparado a ser nômade, ou seja, a mudar várias vezes de país, de situação, de língua, e até de conforto pessoal, uma vez que poderá ser designado para postos nos quais os indicadores de bem-estar social deixam muito a desejar, mesmo em confronto com um país dito em desenvolvimento como o Brasil.

3) Qual técnica você busca utilizar para obter êxito nas tarefas que tem de realizar diariamente em seu ambiente de trabalho?
PRA: Conhecimento dos dossiês, uma vez que em diplomacia nada parte do nada, tudo tem uma história, um precedente, um desenvolvimento no plano das relações internacionais ou bilaterais, e o principal sustentáculo de trabalho do diplomata em seu ambiente de trabalho é o registro de todos os atos e fatos que compõem a base de uma questão qualquer da agenda diplomática. Além disso, o diplomata precisa estar habilitado a contextualizar aquela questão, ou seja, um bom conhecimento da história, geral e específica da questão, é muito importante, assim como saber das próprias posições, posturas, iniciativas da outra parte, ou da comunidade internacional, no tratamento da questão, uma vez que será preciso negociar algum acordo, um ato internacional, uma iniciativa de cooperação ou qualquer outra medida que se insira naquele contexto e situação.
Não há uma técnica específica, a não ser o acompanhamento atento de uma determinada questão da agenda diplomática em todos os seus aspectos e dimensões.

4) De acordo com o papel desempenhado por você em sua função, quais são os pontos fortes e fracos que você tem a oferecer?
PRA: Dada minha formação multidisciplinar – em ciências sociais, em economia aplicada, em relações internacionais – e minha experiência da vida acadêmica, do setor empresarial, meu conhecimento do mundo e, também, last but not the least, tenho uma boa capacidade analítica, uma capacidade razoável na contextualização política, econômica, histórica de cada um dos grandes temas da agenda diplomática, e com base nisso tudo posso oferecer textos analíticos que podem ser de grande valia para a diplomacia brasileira, na preparação de seus telegramas de instruções para os postos diplomáticos no exterior, ou na elaboração de documentos de posição que podem ser levados ao conhecimento de outras áreas do governo, no âmbito de um processo decisório qualquer, e que depois se transformam, eventualmente, em informação ao presidente do país, para a decisão final quanto à posição que o Brasil deve tomar numa negociação internacional, multilateral ou bilateral.

5) Considerando-se que a inovação é algo necessário para o fortalecimento das organizações atualmente, você acredita que ela tem sido algo presente dentro da organização que atua profissionalmente?
PRA: Com alguma dificuldade, e certo atraso temporal – devido basicamente à exiguidade de recursos – o Itamaraty vai se modernizando no plano material, ou seja, instrumentos e meios (comunicações, registro e arquivo de documentos, agilização de procedimentos administrativos, etc.), para que ele possa desempenhar suas funções a contento, ou seja, implementar a política externa determinada pelo chefe de governo. Inovação também tem um componente conceitual, ou seja, arejar as ideias, adaptar-se à dinâmica sempre cambiante da economia mundial, das novas realidades que vão surgindo aqui e ali, e tudo isto significa melhorar a qualidade analítica dos seus documentos, que em última instância depende dos homens que comandam o ministério. Se eles são conservadores, apegados a velhos métodos e procedimentos, nada acontecerá; se eles são abertos, ao contrário, a novos conhecimentos e a inovações, sempre terá de haver ajustes internos, reformas nos procedimentos, modernização nos métodos de trabalho e até iniciativas que se traduzem em novos instrumentos e mecanismos para ajudar na grande tarefa de contribuir para o desenvolvimento do Brasil.

6) O que você acha que poderia ser feito pelas organizações para evitar uma possível necessidade de fechamento neste atual ambiente de crise econômica brasileira?
PRA: Depende de quais organizações se está falando: se das multilaterais, ou internacionais, ou das puramente nacionais, ou seja, ministérios e outras agências governamentais. Em ambos os casos sabemos que se trata de grandes burocracias, geralmente paquidérmicas, que acabam gastando mais com si mesmas, ou seja, com os meios, com os instrumentos, do que com os fins, ou seja, em favor dos objetivos para os quais foram criadas. Existe uma lei das burocracias que faz com que elas estejam sempre crescendo, sempre gastando mais recursos – ou seja, desviando recursos das atividades-fim para seu próprio uso, as atividades-meio – e sempre beneficiando seus próprios integrantes, os burocratas, os mandarins, alguns verdadeiros marajás, que povoam e mandam nessas organizações, tanto internacionais quanto nacionais. Esta é uma lei perversa dos modernos Estados burocráticos: eles sempre crescem mais para dentro, para o próprio benefício de seus integrantes, do que para fora, ou seja, para beneficiar os pagadores de seus salários e honorários, que somos todos nós, os contribuintes compulsórios desses recursos, via impostos, contribuições e taxas dos mais diversos tipos.
A solução seria instituir comissões absolutamente independentes, integradas EXCLUSIVAMENTE por quem paga impostos, e não tem qualquer vínculo com os Estados e com as organizações sob exame, e propor todas as medidas necessárias para que esses monstros burocráticos sejam OBRIGADOS a concentrar a maior parte dos seus recursos exclusivamente nas atividades-fim e não em si próprios, ou seja, nas atividades-meio, que os beneficiam diretamente.

7) Além de seu atual ambiente de atuação, houve alguma outra área que tenha atuado anteriormente onde também estivesse integrado no cenário internacional?
PRA: Ademais de diplomata de carreira, sou também professor universitário, com vasta experiência em temas de economia mundial, relações internacionais, integração econômica e demais temas afins, exercendo atualmente tal função no Centro Universitário de Brasília (UniCeub), onde sou professor de Economia nos programas de mestrado e doutorado em Direito, stricto sensu. Tenho muitos livros publicados e centenas de artigos em revistas do Brasil e do exterior, bem algumas dezenas de capítulos em obras coletivas, sendo ainda editor adjunto da Revista Brasileira de Política Internacional, a mais antiga revista brasileira dessa área, e membro de conselhos editoriais de muitas outras revistas acadêmicas nesse terreno.
Meu trabalho como professor, como blogueiro (diplomatizzando.blogspot) e como responsável por um site especializado nas matérias acima (pralmeida.org) talvez seja até mais importante do que como diplomata, carreira na qual sou um burocrata como muitos outros. Através de minhas aulas, palestras, participação em seminários, colóquios e simpósios, no Brasil e no exterior, e das centenas de trabalhos publicados sob diversas formas, inclusive em outras línguas, ademais dos instrumentos de comunicação social, tenho, muito provavelmente, um alcance ainda maior e uma audiência várias vezes multiplicada, o que obviamente não é o caso como burocrata do Serviço Exterior brasileiro, cujas características são bem mais reservadas e discretas do que a que se pode ter na exposição pública nos meios acadêmicos e de comunicações sociais em geral.

8) Desde a sua ingressão na universidade até hoje, qual foi a maior dificuldade enfrentada por você na trajetória profissional?
PRA: Desde meu INGRESSO na universidade, minha única dificuldade foi conseguir ler tudo o que sempre me interessou, o que compreende um amplo espectro das humanidades e das ciências sociais aplicadas: frequentei bibliotecas públicas desde antes de aprender a ler, o que me habilitou singularmente não apenas a ingressar numa universidade, mas igualmente a passar no concurso para a carreira diplomática. Livros compõem mais da metade de toda a minha vida.
Tentando responder especificamente a esta pergunta, eu diria justamente que a universidade – salvo em raros casos de cursos técnicos, muito focados numa especialidade determinada – não prepara ninguém para a plenitude do exercício profissional: elas apenas dotada os estudantes de determinadas técnicas ou métodos de aprendizado, a partir dos quais os estudantes devem buscar por seus próprios meios o aprendizado que lhes faculta desempenhar-se em uma atividade profissional qualquer. Foi assim com meus cursos universitários: li muita coisa, em muitas áreas do conhecimento, mas poucas que me habilitaram realmente a um bom desempenho profissional na diplomacia. Nesta tive de aprender no próprio trabalho, com experiência, observação, aprendizado, ensaio e erro, em todas as etapas.

9) Em sua opinião, como o Brasil vem mantendo sua imagem internacional? E qual o papel das universidades frente a isto?
PRA: A imagem internacional de um país geralmente é formada a partir de dois canais principais: de um lado, aquelas matérias puramente objetivas, dadas pelas grandes agências de comunicação (mídia) e pelas visitas de estrangeiros (turistas, jornalistas, homens de negócios, etc.), que transmitem ao mundo e às respectivas comunidades vinculadas aos meios de transmissão e de recepção de matérias objetivas e subjetivas acerca desse país; de outro, os esforços de comunicação dirigida mantidos pelo próprio governo desse país para atrair visitantes, turistas, investidores, e também no circuito formal de relações diplomáticas, onde o conteúdo é geralmente voltado apenas para os pontos positivos que esse governo pretende ressaltar: maravilhas naturais, bom ambiente de negócios, serviços convenientes aos turistas, etc.
O Brasil, como todos os demais governos, promove esse tipo de atividade, e pode ir até mesmo além do estritamente necessário, uma vez que se candidatar a grande eventos – como Copa do Mundo, Jogos Olímpicos, por exemplo – pode representar um gasto não comensurável com os retornos reais dos investimentos. A partir da Copa do Mundo de 2014, por exemplo, o Brasil “herdou”, ao custo de dezenas de bilhões de reais, estádios superdimensionados de futebol, que estão atualmente subutilizados, gerando despesas inúteis de manutenção, para um público pagante de determinadas partidas de futebol que não alcança 10% de sua capacidade em cadeiras. Trata-se obviamente de um péssimo cálculo, e de uma despesa irresponsável, tendo em vista as enormes carências do Brasil e dos brasileiros em áreas como educação, saúde e infraestrutura de transportes.
No plano especificamente das relações diplomáticas, o Brasil sempre manteve uma boa rede de representações no exterior, cobrindo os principais países e organismos internacionais objeto de nossas relações bilaterais e multilaterais mais relevantes. Desde o governo Lula, e movido por uma verdadeira obsessão pela sua própria projeção no exterior, o Brasil abriu dezenas de novos postos diplomáticos no exterior, inclusive em países de escassa relevância para nossa interface de comércio ou investimentos, o que redundou em um enorme aumento de despesas que é em parte responsável pela atual situação de absoluta penúria orçamentária no Itamaraty. Ademais, movido pela mesma obsessão de se tornar um grande líder mundial, Lula se lançou em grandes conferências, geralmente no sentido Sul-Sul (como países da América do Sul e seus contrapartes na África e no Oriente Médio), e na criação de novos organismos ou foros (tipo Ibas, Brics, Unasul, Celac etc.), quando não em certas iniciativas (paz na Palestina, programa nuclear iraniano) que representaram frustrações diplomáticas, uma vez que os recursos disponíveis ao Brasil são necessariamente limitados no plano da geopolítica mundial.
Ainda assim, tudo isso serviu para realçar enormemente a imagem e a presença internacional do Brasil, mesmo se mais por efeitos de pirotecnia diplomática, do que com base em alavancas realmente substantivas para influenciar a agenda internacional e o curso de determinados processos. Tudo isso pode ter sido destruído por duas projeções de imagem absolutamente negativas do ponto de vista da autoestima nacional: a corrupção notória que atingiu a principal empresa do país, e que inclusive motivou processos no exterior contra os dirigentes da Petrobras, e as mesmas, contínuas e constantes violações de direitos humanos que ocorrem por causa da delinquência amplamente disseminada nas principais metrópoles do país, e a própria violência policial vinculada a essa quadro de criminalidade extensa e intensa. A crise do Estado – e se trata de uma crise do Estado e não dos efeitos da crise externa sobre o Brasil – também contribui para deteriorar nossa imagem, uma vez que hoje o Brasil é devedor relapso de suas contribuições a quase todos os organismos internacionais, como também deixa de pagar simples contas de serviços utilitários (água, eletricidade, telefone) nas representações no exterior. Em outros termos, a caótica administração lulopetista alimentou artificialmente uma imagem do Brasil no exterior que não correspondia realmente à sua capacidade de pagamento, além de não corrigir os fatores internos responsáveis pela má imagem do Brasil no exterior (violência, corrupção, destruição ambiental, etc.).
A universidade tem um papel muito limitado nesse particular, uma vez que ela não é fonte de recursos (mas de despesas), apesar de poder fornecer boas ideias para que a imagem do Brasil no exterior seja melhor do que é atualmente. Mas ela não dispõe de alavancas orçamentárias para tanto, apenas de cérebros, de mentes capacitadas a conceber soluções aos problemas apontados. Ela poderia contribuir para isso através da conscientização do que anda errado no país, para então oferecer soluções aos problemas. Por exemplo: um Estado gigantesco, superdimensionado, como o brasileiro, que extrai dois quintos de tudo o que se produz anualmente no país, mas que investe muito pouco, gastando quase tudo em gastos correntes, não pode realmente resolver problema nenhum do país, internamente ou externamente. Talvez a universidade devesse se engajar nos problemas da frente doméstica – e eles são muitos, infinitamente maiores e mais complexos do que eventuais desafios na frente externa – e ajudar a melhorar o Brasil, na governança, em políticas responsáveis, na moralidade pública e na eficiência dos serviços feitos a partir dos impostos recolhidos da comunidade.

10) Você já pensou em seguir a carreira Diplomática?
PRA: Já sou diplomata, desde 1977, e um pouco do que fiz, como diplomata, e como professor, figura em minha página (www.pralmeida.org) e meu blog (http://diplomatizzando.blogspot.com).

11) Em seu ponto de vista, o que um futuro internacionalista precisa priorizar durante sua formação?
PRA: Tudo. Ele deve ler de tudo, saber de tudo, entender um pouco de tudo. O mundo é complexo e compreende questões de direito internacional (organismos internacionais, relações diplomáticas), de economia (problemas de desenvolvimento, pobreza, comércio, investimentos), de geografia humana e ambiental (em vista dos desafios ligados a alterações climáticas e morfológicas), de história (origens de conflitos entre países, ou mesmo guerras civis), de política (como os países se organizam institucionalmente na frente interna e externa), e também línguas, uma vez que só se conhece realmente os demais países quando somos capazes de ler os seus jornais e de dialogar com os seus nacionais.

12) Durante sua graduação, participou de algum intercâmbio? Tendo em mente ainda a temática do intercâmbio, quão importante você julga esta prática?
PRA: Nunca participei de nenhum intercâmbio, pela simples razão de que estudei fora, durante toda a graduação, mestrado e doutorado. Mas julgo a prática dos intercâmbios altamente positiva para a formação do candidato a uma carreira de tipo internacionalista (diplomata, acadêmico ou profissional dessa área).

13) Além do inglês, quais línguas estrangeiras você considera indispensável para quem deseja seguir a carreira internacional?
PRA: Espanhol é relevante pela circunstância geográfica do país, e pelo fato de a América do Sul ser o nosso espaço natural de projeção externa. O francês pode ser útil, na Europa e em países africanos outrora colonizados pela França. Além disso, quaisquer outras grandes línguas de expressão cultural e econômica devem ser buscadas e cultivadas como importantes instrumentos de contato, trabalho, entendimentos, cooperação, entre as quais eu colocaria o árabe, o alemão, o chinês, o russo, e possivelmente o italiano.

14) Para quem ainda está cursando faculdade de Relações Internacionais, qual concelho você daria?
PRA: Aprender corretamente o Português, em primeiro e principal lugar. Concelho com “c” se refere a uma unidade administrativa de Portugal, enquanto orientação ou aconselhamento se escreve com “s”. Aprender bem o Português é um excelente começo para qualquer internacionalista ou candidato a diplomata.
Dito isto, eu tenho como princípio ser um autodidata radical, ou seja, nunca depender de nenhum curso universitário, nunca depender de nenhum professor, mesmo os mais brilhantes. Sempre buscar mais e mais conhecimento, o que se obtém nos bons livros – tanto de literatura, quanto de estudos aplicados – e na observação atenta do mundo, o que hoje é muito fácil, tendo em vista a pletora de ferramentas de comunicação social e de informação, que temos à disposição de cada um de nós, a todo momento, a cada minuto. Ler os mais importantes jornais do mundo na internet, acompanhar os think tanks mais interessantes que existem na área (e são centenas, sobretudo em inglês, mas em outras línguas também), estudar sozinho o tempo todo, e se possível viajar para conhecer outros países, ou até outras regiões do país.
Mas estes conselhos não valem apenas para os internacionalistas, e sim para qualquer cidadão que se pretenda bem informado e que deseje acompanhar o que está acontecendo no Brasil – e estão acontecendo coisas muito ruins, atualmente, na medida em que estamos simplesmente recuando, absoluta e relativamente, dadas as políticas econômicas catastróficas de Dilma I – e que queira acompanhar a dinâmica de outros países, fazendo as comparações que se impõem. Sim, existem países que fizeram muito melhor do que nós, e eles estão aí atraindo imigrantes miseráveis dos Estados falidos, e existem países que fizeram e estão fazendo muito pior do que nós, mas estes não servem de exemplo, apenas de advertência. Não queremos nos equiparar aos piores, nem queremos apoiar ditaduras e Estados falidos – como são os socialistas e os bolivarianos – e sim mirar no exemplo dos mais bem sucedidos na escala universal do desenvolvimento humano.
Temos de fazer um enorme esforço para restabelecer as bases de uma política econômica sadia, e de instituições funcionais, não corrompidas pela incompetência e pela corrupção como ocorre hoje no Brasil.

Anápolis, 30 de maio de 2015, 10 p.