Conselhos de um
contrarianista a jovens internacionalistas
Paulo
Roberto de Almeida
Alocução de patrono na
XI turma (2º semestre de 2004) de
Relações
internacionais da Universidade Católica de Brasília
(10 de março de 2005,
20hs, Auditório S. João Batista de La Salle)
Senhora representante da Magnífica Reitora da
Universidade Católica,
Senhor Paraninfo, Geraldo Magela,
Senhores professores homenageados,
Senhoras e senhores demais membros da mesa e
autoridades presentes,
Meus caríssimos alunos e agora formandos em
relações internacionais,
Confesso que quando a Comissão de
Formatura desta turma de relações internacionais da Universidade Católica me
procurou, cerca de dois meses atrás, para formular este honroso convite de
“patrono” de sua formatura, me senti verdadeiramente orgulhoso de tê-lo feito
por merecer. Já lá se vai mais de um quarto de século que me exerço nas lides da
diplomacia profissional, com uma dedicação paralela às “coisas internacionais”.
Por “coisas”, vão aqui compreendidas a pesquisa, geralmente solitária, o
ensino, sempre voluntário e irregular, ao sabor de uma vida nômade a serviço do
Brasil, e a redação e publicação de textos de caráter didático em torno das
questões das relações internacionais, da história diplomática e, sobretudo, da
inserção internacional do Brasil. No entanto, ao longo desse tempo todo, não
havia tido ainda a satisfação de receber um convite como este que vocês me
fizeram, o que me desvaneceu, de verdade.
Minhas primeiras palavras, portanto,
são de agradecimento sincero a todos vocês pela lembrança, pelo gesto simpático
e pelo carinho demonstrados. Isso me incita a continuar retribuindo, nos anos
que ainda tenho de exercício profissional e acadêmico, produzindo de forma ainda
mais intensa no campo das relações internacionais, sempre com sentido didático.
Isso nada mais representa, afinal de contas, do que uma modesta retribuição de
minha parte à sociedade brasileira, por tudo que ela me deu em termos de
formação educacional nos quadros do ensino público.
Vocês também me prestaram a
homenagem de transcrever no convite, ainda que de forma abreviada e livremente
adaptadas, mas muito bem resumidas, as dez novas regras de diplomacia que eu
havia elaborado, em agosto de 2001, a partir da leitura de um velho livro do
século XIX sobre quatro regras de diplomacia, para justamente ilustrar as
reflexões contemporâneas de meus jovens colegas diplomatas e outros tantos
candidatos à carreira. Esse gesto me incita a retomar algumas delas e tentar
elaborar, nesta noite, alguns poucos conselhos que um velho contrarianista do
século XX, como eu, poderia dar a jovens internacionalistas do século XXI, como
vocês.
Digo “contrarianista” sem qualquer
espírito opositor ou anarquista, ainda que estes sentimentos sejam igualmente
legítimos em sociedades plenamente democráticas, como pretende ser a nossa. Meu
espírito contrarianista deriva do fato de que eu nunca quis ou pretendi me
submeter ao argumento da autoridade, mas sim aceito, com prazer e
voluntariamente, a autoridade do argumento. Num cenário de diálogo socrático e
de dedicação honesta à busca da verdade, como deve ser o ambiente acadêmico,
desejo reformular algumas dessas regras, para melhor iluminar o que me parecem
ser qualidades essenciais ao jovem internacionalista de nossos tempos.
Inicialmente, eu destacaria a última
regra e, agora, a colocaria em primeiro lugar. Não se deve fazer da carreira
profissional, seja no campo da diplomacia ou em outras atividades ligadas de
perto ou de longe com as questões internacionais, o foco exclusivo de sua vida
e, sobretudo, não se deve passar a carreira à frente da família, dos amigos e
das pessoas com quem convivemos no ambiente familiar ou de trabalho.
A carreira profissional, qualquer
que seja ela, é importante, mas as pessoas, sobretudo os indivíduos que nos são
caros, são ainda mais importantes do que ela. Podemos, por certo, mudar de
carreira, uma ou várias vezes na vida, podemos até mudar nossos relacionamentos
individuais, mas os familiares e nossos amigos mais chegados estarão sempre lá para
nos ajudar nas horas difíceis, para nos confortar em determinados momentos,
para nos trazer alegrias em várias ocasiões.
Por isso, meus caros formandos, contrariem
o carreirismo e sejam, antes de mais nada, profissionais que vêem nas pessoas,
de fato, o centro da vida.
Eu diria, em segundo lugar, que algo
se ganha ao contrariar o próprio princípio da autoridade, desde que, é claro,
vocês tenham absoluta certeza sobre a fundamentação da posição de vocês sobre
um assunto qualquer. Regras hierárquicas e disciplina são boas de serem
cumpridas na execução de tarefas que exigem uma linha de comando definida,
inquestionável, em função da implementação de uma decisão maduramente refletida
e alcançada graças a um processo decisório bem estruturado e solidamente bem
estabelecido.
Mas, a hierarquia e a disciplina não
podem entravar a liberdade de pensamento, em especial a defesa de posições de
maior valor agregado, que conseguem realizar uma otimização “paretiana” dos
recursos e meios disponíveis para a tomada de ação. A contestação, pelo simples
prazer de contrariar, não me parece levar a resultados ótimos, mas sim pode-se
e deve-se praticar o questionamento honesto, o ceticismo sadio, a desconfiança
metodológica em relação às verdades reveladas, por mais que elas tenham sido
formuladas por alguma autoridade imbuída do seu poder autocrático.
Por isso, não tenham medo de expor e
de defender com firmeza suas opiniões, se elas refletem, efetivamente, um
conhecimento fundamentado do problema em pauta, e isso mesmo que uma
“autoridade superior” ostente uma opinião diversa da de vocês.
Por esse motivo, e aqui vai minha
terceira regra, contrariem o desejo, ainda que compreensível, de aposentar os
livros e deixar os estudos de lado, agora que vocês têm um canudo na mão e algumas
idéias na cabeça. Ao contrário, sejam opositores sistemáticos da aposentadoria
precoce nos estudos, e voltem imediatamente às leituras, às bibliotecas, às
livrarias, às pesquisas de internet.
Não parem de estudar, em nenhum
momento da vida. Aliás, comecem a fazê-lo imediatamente, assim que saírem
daqui. Afinal de contas, até agora, vocês fizeram, em grande medida, aquilo que
os professores determinaram que vocês fizessem, com uma série de leituras
chatas e outras tantas obrigações impostas.
Neste momento, cabe a vocês mesmos
imporem a si mesmos um programa sistemático de estudos e de leituras que melhor
se conformar às habilidades, gostos e orientações particulares de cada um.
Sejam, portanto, contrários ao estudo dirigido e estabeleçam, vocês mesmos, um
plano regular de dedicação à formação metódica da especialidade que vocês
pretendem ter na vida.
A universidade é uma grande fonte de
generalidades e mesmo de algumas banalidades repassadas ao longo dos anos, numa
repetição por vezes aborrecida do saber acumulado. O que vocês devem fazer
agora é construir o seu próprio saber e para isso vão precisar continuar
estudando. Apenas com base num saber específico, que dê a cada um de vocês o
melhor desempenho possível numa determinada vertente profissional, vocês terão
sucesso na vida e no trabalho. Por isso, mãos à obra: coloquem o canudo de lado
e comecem a estudar de novo.
Dessa característica de estudo constante,
e totalmente dedicado à expansão contínua do saber em todos os ramos do
conhecimento humano, derivam duas outras regras que eu havia inscrito em meu
decálogo de quatro anos atrás: possuir o domínio total de cada assunto do qual
nos vamos ocupar profissionalmente, o que significa aprofundar o conhecimento
daquele tema em pesquisas paralelas e correlatas, adotando, ao mesmo tempo ou
paralelamente, uma perspectiva histórica e estrutural de cada tema, situando-o
no seu contexto próprio.
Apenas com base nesse conhecimento
suplementar, vocês saberão se opor, se for o caso, ao princípio primário da autoridade
e ter condições de manter independência de julgamento em relação às idéias
recebidas e às “verdades reveladas”. A autoridade do argumento só se sustenta
com um saber superior, solidamente embasado nos dados da realidade e apoiado em
pesquisas comparativas ou no conhecimento de outras experiências que podem ser
relevantes para um caso porventura similar.
O “ser contrário” significa, em
princípio, possuir um argumento dotado de autoridade superior, embasado em
dados mais amplos e um domínio mais seguro da realidade. Claro, podemos ser
vencidos pela força bruta, pela imposição da hierarquia ou do poder simplesmente
incontestável e incontrastável. Mas aí não estamos falando de métodos
socráticos de busca da verdade ou de formação de um consenso no processo
decisório, e sim da vontade unilateral, o que não deveria valer no ambiente
sadio da pesquisa acadêmica ou mesmo da organização burocrática racionalmente
estruturada.
A regra é esta: para vocês serem
contrários ao lugar comum, ao déjà vu,
ao habitual costumeiro, vocês precisarão construir um saber superior e expô-lo
com clareza. E isso nos faz voltar à necessidade já referida do estudo
constante, do esforço feito sob a forma da pesquisa individual e de leituras
contínuas. A geração de vocês leva uma enorme vantagem em relação àquelas que a
precederam: hoje em dia, com os recursos existentes on-line, praticamente 90%
do estoque acumulado de conhecimento produzido pela humanidade, até aqui, está
livremente disponível na internet, bastando um pouco de destreza lingüística
para desfrutar desse imenso saber.
Vocês também podem ser contrários
aos interesses político-partidários, às ideologias do momento e às conjunturas
políticas de uma dada maioria governamental, mas isto não é uma regra absoluta.
Digo isto porque várias carreiras, sobretudo aquelas fortemente dependentes de
uma determinada estruturação hierárquica que tem no seu pináculo uma autoridade
política qualquer, podem ser levadas ao fenômeno bem conhecido do “adesismo”,
ou seja, aquela aderência momentânea aos senhores da hora, às idéias
temporariamente dominantes, às situações de adequação oportunista às novas
condições do exercício do poder, que sempre vem associado às benesses e favores
distribuídos em direção daqueles que partilham, ou fingem fazê-lo, as mesmas
opiniões daqueles que justamente ocupam o poder naquele dado momento.
Não estou excluindo, por certo, que
algum partido ou agrupamento político consiga encarnar, num determinado momento
da vida da Nação, os anseios ou as aspirações da maioria, conseguindo traduzir
de modo prático aquilo que normalmente se chama de “vontade nacional”. Este é
um fato, aliás corriqueiro nas democracias. O que estou dizendo é que vocês
precisam ter absolutamente claros, para vocês e no exercício de alguma atividade
profissional, quais são os grandes princípios de atuação do país a serviço do
qual se colocam, isto é, quais são, se é que possível saber de verdade, os
chamados “interesses nacionais permanentes”.
É com base numa compreensão desse
tipo que eu formulei minha primeira regra e uma outra que dela também deriva:
servir a pátria, mais do que aos governos, e afastar ideologias ou interesses
político-partidários das considerações relativas à política externa do país,
que precisa assumir um caráter nacional abrangente, e não meramente setorial ou
corporativo.
Para que isso se faça, é preciso,
repito ainda uma vez, conhecer profundamente os interesses permanentes da nação
e do povo aos quais se serve, e por isso volto ao tema do estudo contínuo.
É preciso, da mesma forma, não
aderir a modismos em matéria de “explicações definitivas” das causas das nossas
mazelas e iniqüidades: elas são certamente muitas e provavelmente têm causas
mais complexas do que certas “racionalizações inovadoras” que pretendem deter a
chave milagrosa para a solução de todos os problemas brasileiros. O ser
contrário à subserviência ao poder político do momento é também uma atitude de
coragem moral e de honestidade intelectual, já que a razão do poder nem sempre
se coaduna com o poder da razão, mas esta é, como disse, uma regra não
absoluta.
Em resumo ‑ e terminando por aqui
este meu exercício de contrarianismo bem intencionado ‑, não pretendo que
minhas regras subjetivas, certamente derivadas de um espírito inquieto e ainda
rebelde, mas sempre aberto à causa do conhecimento, sirvam de guia absoluto na
determinação do itinerário profissional que vocês empreenderão a partir daqui.
Cada um definirá com base em sua própria experiência de vida, com o apoio e os
conselhos dos familiares, dos professores e dos amigos, qual o melhor curso a
seguir no plano profissional ou ainda da continuação dos estudos, agora em
nível de pós-graduação, o que recomendo vivamente.
O que eu pretendi inculcar em vocês
é a idéia da mente aberta, dotada de ceticismo sadio, contestadora das verdades
reveladas e orientada para a busca honesta do saber e da maior eficiência
possível no desempenho das atividades profissionais ou dos estudos futuros no
terreno da especialização. Vocês agora vão deixar para trás uma etapa da vida e
começar outra, mas devem sempre encarar os próximos desafios com toda a
modéstia que requer o enfrentamento de cada nova situação de vida: deixar a
suficiência de lado e buscar a excelência, em tudo e de todas as maneiras,
sabendo que só a dedicação plena ao estudo continuado lhes poderá abrir o
caminho para algumas rotas de sucesso profissional e pessoal.
Eu aprendi dessa maneira: vindo de
uma família modesta, como é a maioria daquelas dos que aqui se formam hoje,
consegui, à custa de muito estudo e dedicação pessoal, distinguir-me na
carreira profissional e nas atividades acadêmicas, a ponto de me fazer
merecedor da homenagem que vocês tão gentilmente quiseram me prestar nesta
data, ao me fazer patrono desta turma de relações internacionais.
Vocês podem, em primeiro lugar,
agradecer e retribuir à família e a todos aqueles que os ajudaram a conseguir o
diploma que a partir de hoje passam a ostentar. Vocês devem ter, em segundo
lugar, consciência de que o maior motivo de orgulho, não é necessariamente o
canudo certificador do mérito alcançado, mas mais precisamente o fato de que
vocês adquiram nesta escola algumas técnicas de aprendizado que devem ser
internalizadas e aproveitadas em todo e qualquer momento da vida futura. Vocês
aqui aprenderam tão simplesmente a aprender: comecem agora a estudar de
verdade, e tenham sucesso na vida profissional e pessoal. Mãos à obra, de volta
aos livros, e sejam felizes na vida.
Meus sinceros parabéns e, por esta
oportunidade que me foi dada de me dirigir a alguns dos meus, até aqui,
desconhecidos leitores, meu muito obrigado a todos vocês.
Paulo Roberto de Almeida
6-8 de março de 2005
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