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terça-feira, 6 de março de 2018

Ser um bom internacionalista, significa conhecer o Brasil - Paulo Roberto de Almeida (2006)

Ser um bom internacionalista, nas condições atuais do Brasil significa, antes de tudo, ser um bom intérprete dos problemas do nosso próprio País

Paulo Roberto de Almeida
Alocução de paraninfo na turma de formandos 2º/2005
do curso de Relações internacionais do Uniceub, Brasília
(16 de março de 2006, 20hs, Memorial Juscelino Kubitschek)


Senhor Coordenador do Curso de RI, Professor Marco Antonio de Meneses Silva,
            aqui reoresentando todas as autoridades acadêmicas,
Senhora Patronesse homenageada, Raquel Boing Marinucci,
Senhores professores homenageados,
     Meu caro amigo e dileto colega de carreira, Professor Rodrigo de Azeredo Santos,
     Caro Professor Marcelo Gonçalves do Valle,
Senhora funcionária homenageada, Vanessa de Faria Campanella,
Senhoras e senhores pais e demais autoridades e colegas professores presentes,
Meus caríssimos alunos e agora formandos em relações internacionais,


Estou ligado a este centro universitário a bem mais tempo do que minha curta carreira de professor poderia sugerir. A despeito de ter ingressado como professor nos cursos da faculdade de Direito apenas em 2004, sob pressão do dileto amigo e coordenador, Marcelo Varella, eu já freqüentava o campus do Uniceub desde algum tempo, já que minha esposa, Carmen Lícia Palazzo, lecionou no curso de história durante vários anos. Também estou ligado a esta cidade há muitos anos, quando para cá me mudei, em 1977, ao ingressar na carreira diplomática, tendo servido ao Brasil, por mais de 28 anos, aqui e no exterior. Lembro-me, por exemplo, de, recém chegado a Brasília, ter vindo uma vez ao modesto campus do então Ceub, para ver, acompanhado de colega diplomata, um encarregado de cursos. Naquela ocasião, uma remoção precoce para o exterior impediu que eu me vinculasse à instituição, numa fase que antecede, provavelmente, ao nascimento e à idade atual da maior parte de vocês, que hoje se formam.
Mantive contato preliminar com o curso de relações internacionais do Uniceub ainda em seu estabelecimento, fazendo ali uma palestra antes de minha partida para a Embaixada em Washington, em 1999. Voltei depois em outras ocasiões, para palestras ou encontros com professores. Em todas essas oportunidades, testemunhei o empenho desta instituição em oferecer um curso de RI que se igualasse aos melhores do Brasil e que servisse, adequadamente, aos propósitos de cada um de vocês de obter a melhor formação possível, de maneira a habilitá-los a enfrentar a dura competição pelo trabalho na vida profissional ou a continuar os estudos em nível de pós-graduação.
Desejo, antes de tudo, agradecer a todos pelo honroso convite para servir de paraninfo nesta cerimônia de colação de grau. Isto se deve, aparentemente, ao fato de que eu possa ter servido como uma espécie de bibliografia ambulante, ou seja, de que alguns de meus livros possam ter eventualmente ajudado no propósito de iniciá-los nos meandros das relações internacionais, ou, melhor ainda, à chance de que vários de meus textos estejam livremente disponíveis em meu site na internet, podendo, assim, ter salvado mais de um trabalho de última hora. Foi para isso mesmo que montei, e continuo a alimentar, um site que oferece uma espécie de concorrência desleal a vários dos meus editores. Mas nenhum deles ainda protestou por isso.

Meus caros formandos,
Creio já ter oferecido, por meio de meus livros, palestras ou textos esparsos, mais de uma contribuição ao estudo e à formação na área das relações internacionais no Brasil e do Brasil. Assim, não pretendo voltar a tocar, agora, nos temas que ocuparam seus dias e noites nos últimos quatro ou cinco anos, o que faz uma boa parcela de vida. Prefiro deixar as relações internacionais de lado e ocupar-me daquilo que na verdade tem sido a minha paixão e que representa grande parte de meus desesperos no último meio século, ou quase: o próprio Brasil.
Intitulei esta alocução, ainda que vocês não possam ver este texto (mas ele já está em meu site), desta forma: “ser um bom internacionalista, nas condições atuais do Brasil, significa, antes de tudo, ser um bom intérprete dos problemas do nosso próprio País”. O que eu quero dizer com isto?
Vocês adquiriram uma formação de internacionalista ou, pelo menos, pagaram para isso. O canudo recebido, no entanto, é uma simples formalidade, pois a verdadeira formação de vocês deve ser feita no exercício profissional e no estudo constante e continuado das matérias que os ocuparam nos últimos anos e muitas outras mais. Qualquer que seja a universidade, e sua excelência relativa, ela nunca vai poder fornecer, a cada um, todos os elementos de formação de que necessitam para convertê-los em bons profissionais na vida prática. Por isso, o aperfeiçoamento constante e o estudo regular, na base do autodidatismo e das leituras auto-impostas, devem ser a norma que precisa continuar a pautar suas vidas daqui a diante. Minha primeira recomendação seria: assim que puserem o diploma na parede e enquadrarem as fotos de formatura, voltem aos estudos, em instituições ou por conta própria. Não parem, sobretudo, de se especializar e de enriquecer o currículo com novas fontes de saber e de conhecimento, adequadas à carreira que vocês pretendem seguir.
Mas o meu argumento, hoje, é o de que, independentemente da carreira que vocês vão agora perseguir ou, em alguns casos, continuar e a despeito de quaisquer projetos que vocês possam ter na área de relações internacionais, vocês são, essencial e fundamentalmente, internacionalistas brasileiros. Eu gostaria de acentuar o adjetivo, isto é, vocês são profissionais atuando a partir da realidade brasileira e possuindo uma visão global que busca, ou que pelo menos deveria buscar, interpretar o mundo a partir do Brasil, de seus problemas e de suas necessidades.

Quero dizer basicamente o seguinte: o Brasil construiu, ao longo das últimas décadas, uma economia industrial relativamente desenvolvida, sob certos aspectos até sofisticada, haja vista a capacitação tecnológica exibida em várias áreas avançadas, como na construção aeroespacial ou no agronegócio como um todo. Ele também consolidou, no decorrer das últimas duas décadas, um sistema democrático fundamentalmente estável, ainda que nossa democracia seja de baixa qualidade intrínseca e de pouca densidade institucional, na qual os direitos fundamentais do cidadão, sobretudo os mais humildes, nem sempre são respeitados. Ele conseguiu montar, igualmente, um sistema científico de inegáveis méritos ao nível da pesquisa básica, mesmo se deixando muito a desejar, ainda, no que se refere à transposição desta para o plano do desenvolvimento tecnológico.
Não obstante deficiências estruturais e sistêmicas, que dificultam um processo sustentado de crescimento econômico a ritmos desejáveis e necessários, para fins de distribuição de seus frutos, basicamente em virtude da excessiva carga tributária que caracteriza nosso país, o Brasil possui uma economia moderna e competitiva capaz de rivalizar com outros países emergentes ou, em determinados setores, com as nações mais avançadas, em termos de desenvolvimento material. Por isso mesmo, estava parcialmente correto o líder político que disse que o Brasil não é mais um país subdesenvolvido, mas um país fundamentalmente injusto, ainda que uma coisa possa não obstaculizar a outra, uma vez que a injustiça pode, também, ser revelada pelo subdesenvolvimento relativo de determinadas instituições, entre elas as educacionais, ou da própria justiça, cujas condições de morosidade e de incerteza quanto à jurisprudência podem igualmente impactar negativamente o ritmo de crescimento econômico.
Em outros termos, o Brasil já não apresenta, no plano técnico, obstáculos intransponíveis aos processos de modernização tecnológica e de aprimoramento da gestão empresarial, mas ele ostenta, sim, graves problemas distributivos e várias outras disfuncionalidades em sua organização institucional. Todos esses problemas têm uma origem essencialmente doméstica, eles são 100% “made in Brazil”, foram criados por nós mesmos e só poderão encontrar soluções, todas elas internas, a partir de nossos próprios esforços e por uma vontade nacional genuinamente auto-induzida.
Esta minha convicção se baseia em simples observação dos problemas básicos do Brasil atual. E quais são eles? Baixo crescimento econômico, insegurança e violência na vida cotidiana, déficits orçamentários e graves problemas fiscais, desequilíbrios regionais e enormes desigualdades sociais, disfuncionalidades nas instituições políticas e corrupção nos negócios públicos, má qualidade da educação, deterioração do meio ambiente, inclusive urbano, descrença, enfim, no futuro do país, de que é prova visível o crescente movimento migratório, num país que se caracterizou sempre pelo acolhimento de todo tipo de estrangeiro.
Todos esses problemas não resultam de uma alegada dominação estrangeira sobre nossos recursos naturais, de qualquer imposição imperialista quanto ao usufruto de nosso trabalho produtivo, de nenhuma compulsão exterior ao nosso próprio modo de vida, no que se refere ao funcionamento das principais instituições nacionais, de nenhum complô alienígena que visaria, supostamente, impedir nossa capacitação tecnológica ou o exercício de uma pretendida liderança natural na região.
O que tem a ver, por exemplo, uma imaginária dominação imperialista com a nossa não tão prosaica corrupção política? Em que os capitalistas estrangeiros seriam responsáveis pela má qualidade da educação brasileira, ou pela falta de segurança em nossas metrópoles, ou pelo mau estado de nossas estradas, ou pela condição calamitosa do atendimento hospitalar para as pessoas de baixa renda? Por que, em outra vertente, o FMI seria culpado pelo déficit estrutural e pelo descalabro e crise previsível do nosso sistema previdenciário? Em que sentido o sistema financeiro internacional estaria na origem dos nossos desequilíbrios orçamentários ou seria capaz de impor essas taxas de juros absurdamente altas, quando elas resultam de nossa própria compulsão para o gasto sem medida e do acúmulo contínuo de uma dívida interna que vai continuar pesando na vida dos nossos filhos e netos? Por que não conseguimos crescer adequadamente, quando o mundo se expande a taxas que são o dobro das nossas e os emergentes fazem o triplo disso?
Não vejo, sinceramente, nenhuma origem estrangeira na raiz dos nossos males principais, assim como tampouco vislumbro qualquer solução vinda de fora a todos esses e cada um dos nossos problemas mais cruciais. Por isso mesmo, quando vejo essas imensas manifestações de protesto contra o “vil imperialismo” e contra a “globalização assimétrica”, em ruidosos fóruns que nos prometem “um outro mundo possível”, mas que sempre se esquecem de comunicar a receita milagrosa desse mundo imaginário, eu fico pensando se é por ingenuidade, por desfaçatez política ou por pura desonestidade intelectual que tantas pessoas medianamente bem informadas continuam a repetir esses slogans furibundos, tão cansativos quanto enganadores. Acho, sinceramente, que todas as reações paranóicas e xenófobas, para não falar de uma certa visão conspiratória da história, são não apenas anacrônicas, mas profundamente equivocadas e ilusórias.

Meus caros formandos,
Não nos deixemos iludir: as causas dos nossos angustiantes problemas estão aqui dentro mesmo, assim como terão de ser genuinamente nacionais os diagnósticos e as soluções factíveis a cada um deles. O verdadeiro internacionalista saberia, aliás, fazer essa constatação elementar: o sistema internacional oferece, por certo, desafios e riscos a qualquer país inserido nos circuitos da globalização econômica e da interdependência planetária, mas ele não é de nenhum modo responsável pelas nossas mazelas principais ou pelas nossas deficiências mais primárias.
A velha arenga das alegadas “perdas internacionais”, ou a responsabilização da “dependência externa” pelas notórias e manifestas carências da sociedade nacional já não convencem mais ninguém, e quem ousa ainda empreender esse tipo de discurso só pode ser chamado daquilo que é, verdadeiramente: ou um demagogo ou um simples enganador. De resto, seria precisa muita ingenuidade ou muita má-fé, para atribuir a outros as raízes de todos esses problemas a que já me referi.
Dessa forma, não tenho hesitação em afirmar: a primeira condição que vejo como importante para que vocês se habilitem enquanto internacionalistas competentes e enquanto profissionais eficientes seria uma leitura apropriada dos problemas nacionais. A partir daí, vocês serão capazes de exibir uma visão igualmente correta dos dados da realidade internacional, em sua dimensão própria e em sua interação com aqueles problemas domésticos. Vocês são internacionalistas brasileiros, mas a brasilidade deve vir antes do internacionalismo. Por isso, mesmo buscando uma maior especialização em questões internacionais, não deixem de estudar o Brasil e seus problemas. O bom internacionalista é aquele que sabe, em primeiro lugar, situar corretamente o seu país no quadro das relações internacionais, a partir dos dados primários da realidade nacional.
Por isso, sejam internacionalistas conseqüentes, começando por conhecer profundamente o seu próprio País! Esta é uma regra de ouro, que sempre guardei comigo, como guia para os meus estudos e trabalho durante toda a minha vida. De resto, todos e cada um dos meus livros, independentemente do conteúdo mais ou menos “diplomático” ou de “política internacional” que eles possam conter, tratam, básica e essencialmente, de um único personagem: o Brasil!

Meus sinceros parabéns a todos vocês, a seus pais e professores e o meu ainda mais sincero reconhecimento por esta oportunidade de dirigir-me a alguns dos meus, até aqui não revelados ou ainda pouco conhecidos, leitores. Sejam felizes, junto de seus familiares, amigos e colegas, mas lembrem-se sempre: o Brasil antes de tudo!

Muito obrigado!

Paulo Roberto de Almeida
[8 de março de 2006]


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