Agora que vamos ter um novo governo, a partir de 2023, encerrando de vez a vergonhosa diplomacia bolsolavista, transcrevo abaixo alguns extratos do capítulo 9 do meu livro:
Apogeu e demolição da política externa: itinerários da diplomacia brasileira
(Curitiba: Appris, 2021)
Sumário e apresentação neste link:
https://diplomatizzando.blogspot.com/2021/06/apogeu-e-demolicao-da-politica-externa_18.html
9. Um exercício de planejamento estratégico para a diplomacia
Introdução: demolição e reconstrução da diplomacia brasileira
Uma avaliação sumária, e consensual, da diplomacia brasileira e da política externa governamental, desde a inauguração do governo Bolsonaro em janeiro de 2019, não poderia deixar de constatar a imensa perda de qualidade formal e substantiva desses dois vetores da projeção externa do Estado brasileiro, e do próprio Brasil, nos planos regional, hemisférico e mundial, ou até para o próprio país: a política externa deixou de refletir as necessidades e carências do processo brasileiro de desenvolvimento, assim como deixou de corresponder às expectativas que vizinhos e parceiros tradicionais mantinham sobre suas características intrínsecas e sobre as qualidades próprias do corpo diplomático profissional no bom relacionamento do país com todos esses interlocutores externos e no âmbito dos organismos internacionais dos quais o país faz parte.
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Um trabalho de reconstrução da política externa, na forma e sobretudo no conteúdo, e de restauração dos princípio e padrões elevados de trabalho da diplomacia brasileira – tal como indicado no subtítulo de meu livro anterior, Uma certa ideia do Itamaraty: a reconstrução da política externa e a restauração da diplomacia brasileira (2020) – não poderá ser iniciado antes do final da presente gestão, e não só no que se refere à chancelaria, uma vez que as principais deformações derivam da própria orientação e comando do chefe de Estado, notoriamente incapaz de se corrigir por sua vontade autônoma e que tem sob controle assessores igualmente ineptos e um chanceler manifestamente submisso às ordens dos amadores que fingem entender de diplomacia. Na ausência de uma próxima correção de todas as deformações acumuladas ao longo do período que se estende desde a sua posse, em 2019, cabe, aos próprios membros da diplomacia, assim como a personalidades vocacionadas para a área da política externa, exercer seu talento e conhecimento na formulação de algum planejamento para o futuro da ação internacional do Brasil.
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9.1. A política externa e a diplomacia no desenvolvimento nacional
A política externa e a diplomacia são coetâneas à própria construção da nação, aliás desde antes mesmo que ela assumisse o formato político de um Estado independente, como brilhantemente demonstrado pela obra que já nasceu clássica do embaixador Rubens Ricupero: A diplomacia na construção do Brasil, 1750-2016 (2017). (...)
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9.1.2. Os desafios: uma matriz dos recursos e das debilidades nacionais
Uma melhor avaliação que se adequaria, sinteticamente, às “fortalezas” e “fraquezas” do Brasil enquanto economia emergente, embora ainda carente de melhores indicadores de produtividade e de inovação, ganharia muito se auxiliada visualmente com uma estrutura tipo SWOT (sigla em inglês para os conceitos de forças, fraquezas, oportunidades e ameaças), tal como reproduzida abaixo.
Quadro SWOT para o Brasil |
Ambiente | Fatores Positivos | Fatores Negativos |
Interno | Grande território; diversidade e abundância de recursos naturais; fontes diversificadas de energia (renováveis, em grande parte); demografia favorável (bônus, alta proporção de ativos); regime democrático estável; expansão da economia de mercado dependente do extremo regulacionismo estatal; população receptiva à globalização, mas tolhida pela ação intrusiva do Estado; talentos individuais disponíveis; grande unidade cultural, mesma língua, sem conflitos religiosos; federalismo atuante, ainda que contraditório; estabilidade econômica afetada pela recessão de 2015-16, não superada ainda; riscos sociais moderados; flexibilidade adaptativa da população e grande tolerância nos costumes e modos de vida; propensão ao multirracialismo. | Exploração predatória dos recursos naturais, exacerbada por novo governo descomprometido com políticas de sustentabilidade em 2019-20; bônus demográfico diminuindo rapidamente, com crescimento acelerado do número de velhos; altos custos previdenciários e de gastos com saúde; baixa capacidade tecnológica de transformação produtiva; matriz energética “poluída” por recursos de fontes fósseis; mercado interno ainda de baixa renda; regime democrático de baixa qualidade, com altos graus de corrupção política; sistema político disfuncional e democracia de baixa qualidade; altos níveis de tributação regressiva; aumento da delinquência e dos particularismos culturais, raciais e de gênero; gastos públicos elevados; baixa produtividade por má educação; burocracia estatal ineficiente. |
Externo | Enorme capacidade para expandir a oferta de produtos básicos, sobretudo alimentares e minérios; agricultura capitalizada, produtividade garantida por P&D e administração conectada a mercados; lições das crises financeiras e da dívida externa trouxeram menor dependência e altas reservas internacionais; atração de IED, pelas oportunidades de mercado e desvalorização cambial; mão-de-obra sendo formalizada; possível grau de investimento nos próximos anos; diplomacia profissional qualificada, dependente de boa gestão política. | Uso extensivo, mais do que intensivo, dos recursos naturais; políticas setoriais (industrial e comercial) incompatíveis com aumento da oferta externa; má infraestrutura de exportação; baixo coeficiente de abertura externa; poupança interna insuficiente; oferta externa de baixo valor agregado, baixa elasticidade; mão-de-obra protegida, cara; baixa competitividade externa; inserção reativa na globalização; volatilidade das políticas econômicas externas, defensivas; política externa errática, contraditória e ineficiente desde 2019. |
Elaboração: Paulo Roberto de Almeida, 08/12/2020 |
Os traços econômicos mais relevantes do Brasil contemporâneo, tanto pelo lado de suas vantagens relativas, quanto pelo lado das limitações percebidas, estão por demais evidentes no quadro acima para merecer elaboração mais detalhada. (...)
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9.2. Campos de atuação da diplomacia e da política externa
A esfera de atuação dos governos, em geral, e o leque de interesses e de atividades abertos às instituições diplomáticas nacionais, em particular, estão sendo cada vez mais ampliados, em função, justamente, da crescente complexidade dos processos produtivos, da integração e especialização da economia mundial pelo desenvolvimento desigual e combinado das cadeias globais e regionais de valor. Tais características impõem uma sobrecarga sobre as ferramentas diplomáticas, que passam a ter de tratar de uma gama crescente de assuntos nos foros internacionais, multilaterais, regionais e plurilaterais, temas geralmente de base técnico-científica. (...)
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9.2.1. Multilateralismo, regionalismo e bilateralismo como instrumentos
Qualquer técnico médio de uma profissão manual devotado a um bom serviço para seus clientes sabe que uma caixa de ferramentas diversificada e bem guarnecida é a melhor garantia de um trabalho bem feito. As caixas do bombeiro, de mecânico, do técnico precisam ter ferramentas para todos os tipos de parafusos, porcas e roscas.
Todas as três ferramentas diplomáticas são relevantes, cada uma adaptada a circunstâncias específicas. Pretender privar-se de uma delas — do multilateralismo, por exemplo —, por puro preconceito “soberanista” e inaceitável miopia “nacionalista”, representa uma recusa irracional das simples regras de trabalho do técnico médio. Nenhum serviço diplomático digno desse nome pode pretender desempenhar bem suas funções privando-se dos instrumentos mais adequados a cada contexto negociador. (...)
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9.2.2. A política externa multilateral: interfaces políticas e econômicas
O multilateralismo é, simplesmente, o terreno mais frequente de interações entre Estados soberanos desde pouco mais de um século. A despeito de, por vezes, mais lento e mais complicado, é a melhor garantia de um ambiente sadio para a cooperação externa. Apenas grandes impérios autossuficientes têm a pretensão — mas muitas vezes ilusória — de atuar sozinhos nos foros externos e internacionais. Certamente não é o caso do Brasil; mas, mesmo sendo o maior país no âmbito regional, o Brasil teria muito mais vantagens em atuar de maneira uniforme, isto é, multilateral, com seus vizinhos.
O multilateralismo é a forma predominante da cooperação entre Estados num ambiente cada vez mais interdependente como é o nosso atualmente, mas ele não elimina a cooperação regional e a bilateral para objetivos mais específicos em temas mais sensíveis (segurança, por exemplo). No caso de Estados pequenos, ou dotados de meios modestos de defesa de seus interesses concretos, o multilateralismo pode oferecer salvaguardas relativamente eficientes para defender-se dos abusos dos poderosos. No plano econômico, é evidente que o ambiente multilateral oferece maiores oportunidades de acesso a mercados e regras uniformes do que regras específicas para alguns poucos membros ou participantes em esquemas mais restritos, regionais ou plurilaterais.
9.2.3. A geografia política e a geoeconomia global das relações exteriores
Apenas noções antiquadas de geopolítica pretendem limitar a esfera dos interesses nacionais ao âmbito de uma geografia determinada, ainda que de alcance regional ou mesmo mundial. A complexa estrutura da economia mundial contemporânea determina, quase que de modo imediato, uma imbricação necessária das economias nacionais, que de resto já funcionam em interdependência crescente, não tanto em função de determinações e escolhas governamentais, mas sobretudo em função de decisões tomadas em nível microeconômico, por parte das empresas privadas, que atuam segundo seu próprio cálculo de modo independente para uma alocação ótima de investimentos diretos. Critérios básicos nesse terreno são a abertura econômica, a criação de um ambiente favorável aos investimentos estrangeiros e a liberalização comercial de modo amplo, se possível ou necessário de modo unilateral. (...)
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9.2.4. América do Sul: eixo de um espaço econômico integrado
Durante aproximadamente um século – e a despeito de uma inclinação inicial do regime imperial, sobretudo nas Regências, por uma diplomacia sul-americana –, a referência básica da diplomacia regional brasileira apoiava-se no conceito político de América Latina, que na verdade era mais terminológico do que prático, pois nunca houve, de verdade, uma articulação concreta em torno de objetivos “latino-americanos” comuns, além da confrontação vaga com o grande vizinho do Norte. (...)
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Independentemente, dessas tribulações de antes e de agora, de avanços e recuos no eterno e recorrente projeto de integração regional, é certo que a América do Sul pertence orteguianamente à nossa circunstância, e como tal oferece ao Brasil a grande oportunidade de realizar o velho sonho da constituição de um amplo espaço econômico integrado, e isso só pode ser feito sob a liderança do Brasil, não naquele conceito de comando e controle, como costumam ser os projetos imperialistas, mas num conceito de abertura unilateral de seus mercados a todos os vizinhos sul-americanos, sem exigências de contrapartida ou reciprocidade. O Brasil seria capaz de fazer isto, pelo vigor de sua economia, pelos avanços de sua tecnologia e pela capacidade de absorver os produtos agrícolas e industriais, os serviços de todos os seus vizinhos. Mas, o Brasil será capaz de fazer isso? A resposta dependeria, obviamente de algum estadista diplomático.
9.2.5. O multilateralismo econômico: eixo da inserção global do país
Participante da conferência de Bretton Woods, em 1944 (que criou o FMI e o Banco Mundial), fundador do Gatt, em 1947 (ainda que não gostasse dele no início), participante da conferência de Havana, em 1948 (que criou uma primeira organização internacional do comércio, mas que não entrou em vigor), animador de diversas outras conferências econômicas internacionais (geralmente sobre produtos de base) e da reforma do Gatt, em 1964, quando também passou a ser um dos principais “agitadores” da Unctad e de todas as demais iniciativas de criação de uma “nova ordem econômica internacional”, debatedor ativo em praticamente todas as rodadas de negociações do Gatt e, depois, da OMC, o Brasil sempre foi, a despeito de um baixo coeficiente de abertura externa, um grande promotor de reformas no sistema multilateral de comércio e nas demais iniciativas na frente das relações econômicas internacionais, e como tal tem todo interesse em reforçar uma estrutura de normas a serem seguidas por todos os países participantes, evitando o arbítrio unilateral a que recorrem alguns sócios poderosos.
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9.2.6. Ambientalismo e sustentabilidade: eixos dos padrões produtivos
Apenas a franja lunática de céticos políticos nega as evidências de mudanças climáticas sob a ação da economia industrial e da diminuição da cobertura vegetal natural pela atividade agrícola e de criação, mudança que se faz não apenas no sentido do aquecimento global, mas também da poluição e da diminuição de espécies animais. Infelizmente este é o quadro no Brasil de Bolsonaro, sendo que tais posturas estão sendo implementadas contra os interesses do próprio Brasil, nomeadamente o seu setor do agronegócio, mas também com graves efeitos na sua imagem internacional, pois que combinadas ao negacionismo do presidente e de vários de seus ministros em várias esferas do debate internacional do meio ambiente e da cooperação científica mundial.
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9.2.7. Direitos humanos e democracia: eixos da proposta ética do país
Existem acordos, resoluções, declarações, cortes e decisões na área dos direitos humanos, a começar pela Declaração de 1948 e todos os demais instrumentos setoriais que foram sendo criados desde então nessa área crucial dos progressos civilizatórios. Com a democracia, a situação é mais fluída, pois existem menos instrumentos e meios de comprometimento com um conjunto de cláusulas básicas, de seguimento de suas poucas disposições e de monitoramento de seu cumprimento: o Compromisso Democrático da OEA, por exemplo, é bem mais abrangente e avançado do que o Protocolo Democrático do Mercosul, que só pode ser acionado se houver “ruptura democrática”: ou seja, se o eventual membro (como ocorreu com a Venezuela, quando fazia parte) tiver eleições razoavelmente legítimas, mas destruir a democracia por dentro (como aliás vem ocorrendo até em países membros da UE), pode continuar no bloco sem problemas. Nada disso impede o Brasil e sua diplomacia de serem impecáveis em matéria de direitos humanos e de respeito ao espírito e ao conteúdo mesmo dos sistemas democráticos mais avançados, o que está longe de ser o caso no Brasil atualmente. (...)
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9.2.8. Blocos e alianças estratégicas na matriz externa
Blocos e alianças estratégicas deveriam ser como esses remédios de tarja preta, que só podem ser receitados em condições especiais, depois de um bom exame do paciente, da avaliação de seus efeitos colaterais e com um bom seguimento regular por especialistas na questão. Tais agrupamentos têm sido sobre-estimados e sobretudo vendidos a um preço acima de seu valor de mercado. Ao longo da história, muitos desses grupos foram constituídos, geralmente com objetivos econômicos ou de defesa.
Os mais frequentes são os blocos de comércio, mas mesmo aqui, as variedades são muitas, desde os analgésicos das áreas de preferências tarifárias (como os acordos da Aladi, e vários outros pelo mundo, sobretudo entre países em desenvolvimento), ao fortificante das zonas de livre comércio (são centenas e centenas já registradas na OMC (como a EFTA, por exemplo, embora algumas fossem bem mais musculosas, como o antigo Nafta), à vitamina da união aduaneira (o próprio Mercosul é uma, mas parece uma colcha de retalhos, muito perfurada), à anfetamina do mercado comum (o que gostaria de ser o Mercosul, mas ainda não consegue, e que corresponde à Comunidade Europeia nos anos 1960), passando depois aos antibióticos das uniões econômicas e monetárias (só a União Europeia adentrou por essa via, não considerando os países que renunciaram a ter moeda própria), até chegar nos barbitúricos da união política (por vezes por incorporação voluntária ou consentida, em outras por absorção).
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9.2.9. Relações com parceiros bilaterais e regionais
Existem os que podem ser escolhidos, por afinidade política, por intensidade de laços humanos e econômicos, e aqueles que não podem ser escolhidos, que são dados pela natureza e pela história, por contiguidade geográfica ou por vínculos profundos, derivados da própria formação do país e seu desenvolvimento ulterior. O Brasil esteve mais vinculado a Portugal e à Europa durante a maior parte de sua história, depois teve nos Estados Unidos seu principal parceiro para quase tudo, adquirindo agora um grande parceiro comercial e provedor de investimentos e outras vantagens econômicas, numa conjuntura da história mundial em que a Ásia, e a Ásia Pacifico em especial, voltará a ser a região mais rica do mundo, como já foi no passado, superando o mundo norte-atlântico, que dominou a economia (e a política) mundial nos últimos cinco séculos.
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9.2.10. Vantagens comparativas e exploração de novas possibilidades
Vantagens comparativas, justamente, constituem a base sobre a qual se assentam os duplos fluxos, in e out, que todo país mantém com todos os demais, à base das assimetrias naturais que são as que sustentam as interações de todos os tipos. O Brasil tem inúmeras vantagens comparativas, absolutas e relativas, e uma análise prospectiva pode revelar em quais direções o país deve dirigir os seus esforços de investimento nos próximos anos, o que exige, obviamente, um governo que escape do jogo mesquinho da política corrente para visualizar os cenários futuros abertos ao engenho e arte do povo brasileiro, dos seus agentes econômicos, dos seus artistas, músicos e esportistas. O mapa diplomático brasileiro é um dos mais extensos do mundo, o que deveria facilitar um esforço de identificação de tendências de consumo e de desenvolvimento em cada um dos países nos quais temos representação. Por uma vez, caberia, sem descurar nossas vantagens baseadas em recursos naturais dos últimos 500 anos, explorar as futuras vantagens, com base na projeção do que podemos fazer no quadro da economia do conhecimento e da sustentabilidade.
9.2.11. Integração política externa e políticas de desenvolvimento
Essa integração sempre existiu, mesmo quando se tratava de defender o tráfico e a escravidão, ou a defesa dos interesses do café e da “valorização” das matérias primas de modo geral. Na fase da industrialização, a postura foi mais defensiva, na justificativa das medidas protecionistas, restritivas e de atração de investimentos. A verdade é que poucos diplomatas se distinguiram na exposição de ideias econômicas que destoassem do consenso geral das elites dominantes, do contrário o Brasil poderia ter exibido uma trajetória mais positiva de desenvolvimento econômico, o que poderia ter sido por eles registrado em alguns exemplos asiáticos que tiveram desempenho bem superior ao do conjunto da América Latina até recentemente. (...)
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9.3. O Itamaraty como força motriz da inserção global do Brasil
Não tenho certeza de que o Itamaraty possa servir de força motriz, ainda que ele deveria se esforçar para fazê-lo. Ele tem excelente quadros, gente muito bem preparada e experiente, mas a própria Casa é muito conservadora, muito recatada, quando não submissa aos dirigentes do momento. Para ser força motriz, a Casa ou seus integrantes deveriam oferecer ideias próprias, baseadas no conhecimento profundo que eles devem ter sobre o Brasil e na experiência adquirida na observação atenta de fatos e processos ocorridos na história e na trajetória recente de outros países, todos eles, os bem sucedidos e os fracassados (pois se retiram mais ensinamentos destes últimos do que dos primeiros). Os diplomatas deveriam ousar mais, se é que pensam poder oferecer subsídios a um novo processo de desenvolvimento nacional.
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9.3.1. Gestão da Casa, com base nas melhores práticas da governança
Sempre considerei que, com seus sacrossantos princípios militares da hierarquia e da disciplina, o Itamaraty sempre foi mais feudal do que weberiano, embora tenha sido também razoavelmente meritocrático. Ele consagra, em todo caso, o esforço daqueles que oferecem dedicação integral à Casa, ainda que a custa de certo compadrio e de algumas relações de vassalagem, numa burocracia de boa qualidade que deveria ser bem mais executiva do que relacional. Mas ele não é exatamente patrimonialista, uma praga que infesta várias outras administrações brasileiras, mesmo se alguns barões da Casa tenham aproveitado situações de prestígio e de certa promiscuidade com outros membros das elites do poder para circular entre bons postos no exterior e chefias na Secretaria de Estado, criando uma certa aristocracia da diplomacia. Poucos são os diplomatas de origem modesta que galgaram o cimo da carreira, mas os que o fizeram foi à custa de muito estudo, muito trabalho, bastante dedicação e algumas janelas de oportunidade que podem surgir em determinados momentos da política brasileira.
Uma gestão moderna da Casa teria de preservar as tradições e peculiaridades do serviço diplomático e combiná-las a métodos de trabalho desenhados para a gestão de uma complexa rede de postos no exterior, muito desiguais entre si, e de uma Secretaria de Estado que tampouco pode funcionar como um ministério entre outros. Um bom diagnóstico da situação presente poderia ser feito por uma dessas firmas de organização e métodos, mas isso provavelmente não seria suficiente para um novo esforço de modernização do funcionamento da Casa e dos postos no exterior. O mais provável seria mobilizar mais uma vez a competência dos diplomatas espalhados pelos grandes postos para um grande estudo comparativo sobre a estrutura burocrática e os métodos de trabalho, de comunicação e de processamento das informações com os postos no exterior desses grandes países. Mas teria de ser preciso, mais do que tudo, encontrar um diplomata com alma de burocrata, para processar tudo isso e oferecer algum diagnóstico, em grupo de trabalho, para a partir daí definir as grandes linhas da próxima reforma (elas são sempre necessárias).
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