O que é este blog?

Este blog trata basicamente de ideias, se possível inteligentes, para pessoas inteligentes. Ele também se ocupa de ideias aplicadas à política, em especial à política econômica. Ele constitui uma tentativa de manter um pensamento crítico e independente sobre livros, sobre questões culturais em geral, focando numa discussão bem informada sobre temas de relações internacionais e de política externa do Brasil. Meus livros podem ser vistos nas páginas da Amazon. Outras opiniões rápidas podem ser encontradas no Facebook ou no Threads. Grande parte de meus ensaios e artigos, inclusive livros inteiros, estão disponíveis em Academia.edu: https://unb.academia.edu/PauloRobertodeAlmeida

Site pessoal: www.pralmeida.net.

domingo, 30 de março de 2025

O marxismo neoliberal da USP - Luiz Carlos Bresser Pereira (FSP)

 Introdução histórica e apresentação de Mauricio David:

Luiz Carlos Bresser Pereira, além de um grande e querido amigo, é um intelectual de primeira estatura. Tenho com êle e por êle, além de um dívida intelectual e afetiva, uma admiração sem par. Em 1990, ao ser demitido do BNDES pela turma neoliberal que tomou de assalto a importante instituição ( meu ex-colega do Departamento de Economia da PUC/RJ, o sem-caráter Eduardo Modiano, presidente nomeado pela dupla Collor e Zélia Cardoso de Melo, e o Pio Borges, como vice). Pois na ocasião o Bresser me chamou a São Paulo, onde era o Secretário de Governo do Orestes Quércia, e me disse : “Mauricio, quero fundar um Instituto voltado para o estudo da Macroeconomia, e quero que você seja o secretário-executivo deste Instituto”. Não poderei descrever o que significou este convite do Bresser para o meu ego, então estraçalhado e humilhado até o vigésimo grau (creio que nunca lhe contei isto, meu caro Luiz Carlos, mas quero que você saiba disto, ainda que muitas décadas depois...). Mas o fato é de que eu havia recebido uma bolsa da CAPES para cursar o doutorado em Paris (só no Brasil o mesmo governo demite, por um lado, e dá uma bolsa de estudos para cursar o doutorado no exterior, quase ao mesmo tempo...) – e havia decidido juntar os meus trapos e voltar a um terceiro exílio, desta vez junto a minha esposa e a meus dois filhos pequenos . Agradeci ao Bresser o convite e embarquei para Paris logo após ser candidato pelo PSDB ao Senado pelo Rio (pode parecer pouca coisa, mas eu e meu companheiro de chapa – o advogado Técio Lins e Silva- obtivemos 25% dos votos nas eleições para o Senado em 1990... Darcy Ribeiro – meu grande amigo, e que me havia convidado em 1986 para escrever a sua biografia- foi eleito, com uma grande votação (vou fazer uma confissão – eu havia combinado que votaria no nome dele, e êle no meu, como grandes amigos que éramos – e eu cumpri fielmente a minha promessa...). Anos depois, quando terminei o meu doutorado de Economia em Paris e voltei ao Brasil, o Bresser me convocou à Brasília para assumir uma das diretorias do Ministério da Administração Federal, do qual o Bresser havia sido nomeado titular pelo Fernando Henrique).

Como salientei no começo deste comentário, tenho grande admiração pelo Bresser. Eu não conhecia este livro do Fábio Mascaro que êle comenta e elogia. Vou comprá--lo de imediato, pois se o Bresser o elogia, tem que ser muito bom.

Aproveito para transcrever o artigo do Bresser e também endossar o livro. Que êle elogia e, por sua vez, recomenda.

MD

 

O marxismo neoliberal da USP

Por LUIZ CARLOS BRESSER-PEREIRA*

 

Fábio Mascaro Querido acaba de dar uma notável contribuição à história intelectual do Brasil ao publicar “Lugar periférico, ideias modernas”, no qual estuda o que ele denomina “marxismo acadêmico da USP

 

Fábio Mascaro Querido acaba de publicar Lugar periférico, ideias modernas, no qual estuda o que ele denomina “marxismo acadêmico da USP” – um grupo de intelectuais que, nos anos 1960, se aproximou do marxismo, que surgira com força na Europa no após-guerra e alcançara o Brasil. Esses intelectuais, principalmente sociólogos, criaram o “Seminário Marx” ou “Grupo do Capital” para estudar Marx, o qual, sob a liderança de Fernando Henrique Cardoso, teve duas versões, a primeira, em 1958, puramente acadêmica, e a segunda, de caráter mais político, após o golpe militar de 1964.

Quando Fernando Henrique Cardoso assumiu a Presidência da República em 1995, o seminário se tornou célebre, sempre citado pela imprensa conservadora de maneira simpática, porque os autores envolvidos já haviam abandonado há tempo o marxismo. Fábio Mascaro Querido diz que esse foi o “mito fundador” do grupo.

O núcleo do grupo – aqueles que proponho chamar de “marxistas neoliberais” – foi constituído por Fernando Henrique CardosoJosé Arthur Giannotti Francisco Weffort. Trata-se de um oximoro que se aplica bem a eles, que se encantaram com o marxismo nos anos 1960, quando ainda estava viva a esperança na revolução socialista. Tornaram esse marxismo menos contraditório e revolucionário, e definiram os dois mais importantes sociólogos dos anos 1950, Gilberto Freyre em Pernambuco e Guerreiro Ramos no Rio de Janeiro como seus adversários.

Um caso clássico de competição universitária. Concentraram seu ataque em Guerreiro Ramos porque era desenvolvimentista, como, aliás, também eram Celso Furtado, Helio Jaguaribe e Ignacio Rangel – todos do ISEB.[1] Em 1963, Fernando Henrique Cardoso defendeu sua livre-docência – um livro escrito especialmente para demonstrar que no Brasil não havia uma burguesia nacional – uma tese central dos desenvolvimentistas que defendiam uma coalizão de classes associando empresários industriais nacionalistas, os trabalhadores urbanos e a burocracia pública moderna.

No final dos anos 1960, Fernando Henrique Cardoso abandonou o marxismo e desenvolveu a “teoria da dependência associada”, que defendia a subordinação do Brasil ao Império, embora não deixasse isto claro.[2] Mas os americanos compreenderam muito bem, o que permitiu que a dependência associada lograsse repercussão internacional, embora muitos dos que a divulgavam não compreendessem seu caráter “associado”. Em síntese, no final dos anos 1960, eles supunham ser marxistas mas já eram quase liberais, e nos anos 1990 tornaram-se de vez neoliberais.  

A denominação marxismo neoliberal naturalmente não se aplica a Roberto Schwarz Chico de Oliveira, que eram do grupo, nem a Octávio Ianni Florestan Fernandes

, que não eram realmente do grupo. Florestan Fernandes foi o mestre de todos; foi o maior sociólogo que a USP já teve; inicialmente associou-se à sociologia da modernização, e depois, indignado com o que via no Brasil, tornou-se um marxista revolucionário. Fábio Mascaro Querido naturalmente não usa essa expressão porque ele era antes um admirador do que um crítico do marxismo neoliberal.

Fábio Mascaro Querido distingue Roberto Schwarz dos demais, que permaneceu marxista através dos anos, e, como afirma ele, “radicalizou a dimensão ‘negativa’ da crítica.” Como crítico literário e escritor, ele não se preocupou em propor políticas, nem fez concessões para ser aceito no seu entorno. Ao contrário do núcleo duro do grupo, Roberto Schwartz continuou nacionalista como fora antes dele seu grande mestre, Antonio Candido. E se associou a Paulo Arantes, um crítico do marxismo neoliberal. Entre todos, é o único que, no plano teórico, é reconhecido internacionalmente.[3]

Fábio Mascaro Querido usou o pensamento de Roberto Schwarz como uma referência ou fio condutor do livro e dedicou-lhe dois excelentes capítulos. Salientou o amplo papel que teve Theodor Adorno em seu pensamento, como também a crítica da modernização realizada por Robert Kurz em 1991, em um momento em que a União Soviética estava entrando em colapso.[4] Fábio Mascaro Querido deu pouca importância ao nacionalismo do crítico que contradiz a sua perspectiva negativa, mas no final do segundo ensaio citou um texto significativo: “a última palavra não pertence à nação, nem à hegemonia ideológica internacional, mas pertence ao presente conflituado que as atravessa”.[5] Este presente conflituado é o da luta de classes dos grupos de interesse específicos para este ou aquele problema.

Nos anos 1960 e 1970, o núcleo neoliberal-marxista e, mais amplamente, a esquerda antivarguista combateram o desenvolvimentismo nacionalista porque pretendiam ser revolucionários, enquanto o desenvolvimentismo implicava um compromisso da classe trabalhadora e da esquerda social-democrática com a burguesia. O núcleo acadêmico neoliberal-marxista seguiu o mesmo caminho; ao contrário da visão desenvolvimentista, pretendia não fazer concessões; acabou concedendo tudo anos 1990, quando se tornou neoliberal. E a esquerda antivarguista combateu-o porque ela definiu um “culpado interno” pela derrota: haviam sido os desenvolvimentistas, que ao invés de serem revolucionários, haviam apostado em um acordo da classe trabalhadora com a burguesia industrial intermediado pela burocracia pública.

O núcleo só passou a ter alguma relevância a partir do golpe militar de 1964 – da grande derrota da social-democracia desenvolvimentista que aconteceu então. Derrotados os adversários graças ao golpe, estava agora na hora dos sociólogos da USP assumirem o comando intelectual da esquerda. Coisa que fizeram, embora estivessem caminhando para deixar de ser de esquerda. No capítulo 2 “A Revanche dos Paulistas”, Fábio Mascaro Querido relata a nova fase. Na partida anterior, os desenvolvimentistas estavam no poder, os marxistas neoliberais estavam simplesmente fora do jogo. Em 1964, entraram no jogo, tornaram bem conhecidos, lideraram grande parte da esquerda, e esta deixou de ser nacionalista. É preciso, porém, considerar que a esquerda sempre teve dificuldade de adotar posições nacionalistas ou desenvolvimentistas, pois acreditava na possibilidade de uma revolução socialista no curto prazo.

Eles estavam fora do jogo, mas desesperados para entrar, especialmente para derrotar os dois mais importantes sociólogos dos anos 1950, Guerreiro Ramos e Gilberto Freyre. O golpe militar encarregou-se de derrotar Guerreiro ao cassar seu mandato de deputado federal e por dez anos, seu direito de se recanditar. Enquanto Celso Furtado foi exilado, ele e seus companheiros do ISEB, Jaguaribe e Rangel, foram submetidos a intenso ataque pela esquerda alienada para qual o nacional-desenvolvimentismo associado a Getúlio Vargas era inaceitável. Isto, além do ataque pela direita.

O próximo passo foi o livro de Fernando Henrique Cardoso e Enzo Faletto, Dependência e desenvolvimento na América Latina (1969),[6] no qual a dependência se torna a causa do desenvolvimento ao invés do obstáculo. Era a “teoria da dependência associada” que surgia. A nova verdade, que se espalhou rapidamente por toda a esquerda intelectual, afirmava taxativamente que uma coalizão de classes desenvolvimentista associando os empresários industriais às esquerdas e à classe trabalhadora era impossível. A burguesia não existia nem poderia existir. (Na verdade, a burguesia industrial desenvolvimentista existiu no Brasil em dois breves períodos [1950-1964 e 1967-1980]).

Mas a falta de uma burguesia nacionalista não era problema, porque o chamado Império era na verdade apenas um hegemon benevolente, suas empresas multinacionais estavam contribuindo para o desenvolvimento do país, e bastava que o Brasil se associasse a ele que se desenvolveria. Não foi isto que aconteceu: em 1990 a submissão aconteceu, em 1995, se aprofundou, e o país entrou em quase-estagnação.

Não se imagine, porém, que os intelectuais nacionalistas e desenvolvimentistas escaparam do ataque de Fernando Henrique Cardoso e Enzo Faletto, ainda que esse ataque não fosse perfeitamente claro. Em um primeiro momento, a CEPAL de Raúl Prebisch e Celso Furtado percebeu que estava sob ataque, e não quis publicar o livro através do ILPES; mais tarde, porém, ela se adaptou à crítica, acomodou-se ao Império e perdeu qualquer relevância no plano das ideias. A CEPAL somente existiu como uma ideia – a do desenvolvimentismo estruturalista clássico voltado para a industrialização – entre 1949 e 1960 sob o comando de Raúl Prebisch. Em 1964, os desenvolvimentistas foram derrotados e obrigados a ficar silenciosos. No começo dos anos 1970 a CEPAL abandonou o desenvolvimentismo.

Nos anos 1970, essa mesma esquerda, desprevenida, deixou-se envolver pelas ideias propostas por Fernando Henrique Cardoso e Enzo Faletto. No plano econômico, essas ideias foram aceitas, provavelmente porque a ideia de associação ao Império não estava clara no livro e nos trabalhos que seguiram. E porque a esquerda estava ressentida com o golpe de 1964.

Por outro lado, a versão realmente marxista da teoria da dependência, de André Gunder Frank, Ruy Mauro Marini e Theotônio dos Santos também equivocada porque contava com a revolução socialista na América Latina no curto prazo. Essa versão sofreu um ataque violento e injusto em artigo assinado por José Serra e o próprio Fernando Henrique Cardoso.[7] Creio que a iniciativa tenha sido mais de José Serra do que de Fernando Henrique, porque este é um homem da melhor qualidade cuja personalidade é incompatível com uma atitude como aquela.

Em 1970, sob a liderança de Fernando Henrique Cardoso, e com apoio da Ford Foundation, o Cebrap foi criado. Logo ele se torna o grande centro de estudos em defesa da democracia e de crítica à desigualdade. É nessa época que sou convidado a ser membro do Conselho da nova entidade de pesquisa, e me junto a eles. Eu estava isolado na Fundação Getúlio Vargas e precisava de diálogo. Percebia que minhas ideias desenvolvimentistas não eram ali bem vistas, mas fui muito bem recebido, comunguei com eles a luta contra a ditadura e pela diminuição da desigualdade, e me senti bem no Cebrap, onde além dos intelectuais já citados, estavam figuras notáveis como Chico de Oliveira e Paul Singer. Lutávamos todos contra o regime militar.

Nessa época, porém, muitas das coisas que eu estou aqui narrando não estavam claras para mim. Entre 1995 e 1999, eu participei do governo Fernando Henrique Cardoso, fui ministro da Administração Federal e Reforma do Estado e da Ciência e da Tecnologia e, sob influência das ideias que me envolviam, minhas convicções desenvolvimentistas e meu interesse pelo marxismo perderam força (mas apenas por algum tempo).  Fiquei, porém, decepcionado pelo caráter neoliberal que assumiu a direção da economia, e afinal em 2003, afinal revi minha posição em relação a meu amigo Fernando Henrique, voltei a ler seu livro com Enzo Faletto, compreendi seu caráter anti-nacional, e escrevi o ensaio “Do ISEB e da CEPAL à teoria da dependência”, publicado em 2005, cuja primeira cópia eu entreguei a ele. Não era um rompimento pessoal, mas intelectual; afinal eu havia compreendido o sentido de sua obra e de seu pensamento.

Estimulado pelo excelente livro de Fábio Mascaro Querido, decidi nesta resenha voltar agora ao tema da história intelectual. Uma resenha mais crítica do que fora o artigo de 2005 – uma crítica ao marxismo neoliberal. Afinal, eu me pergunto, qual foi a contribuição ao Brasil desse grupo de sociólogos, cientistas políticos e filósofos? Como compará-lo com a contribuição dos desenvolvimentistas social-democráticos? Os desenvolvimentistas associaram-se a Vargas, ainda que ele tenha sido um ditador entre 1937 e 1945; associaram-se porque ele foi o grande estadista que promoveu a industrialização e o grande desenvolvimento econômico do Brasil.

Os principais desenvolvimentistas tiveram uma influência significativa na realização da revolução capitalista brasileira, que aconteceu entre 1930 e 1980. Alguns deles eram socialistas, mas sabiam que a revolução socialista não era uma possibilidade realista. Enquanto isso, nossos marxistas neoliberais flertaram com a revolução sem muito empenho, e mais tarde se associaram ao Império e se tornaram neoliberais.

Na conclusão do livro, Fábio Mascaro Querido afirma que enquanto os intelectuais do ciclo nacional-desenvolvimentista-popular das décadas de 1950 e 1960 estavam interessados em um projeto de modernização nacional (anti-imperialista, eu acrescentaria), “os acadêmicos paulistas expressavam a redefinição entre intelectuais e política ocorrida na esteira das transformações pelas quais passaram tanto a sociedade quanto a universidade brasileira, a partir dos anos 1970 (p. 261)”.

Ou seja, eles lograram se adaptar à realidade social e política que os circundava, ao invés de tentar mudá-la. Algumas vezes eu vi Fernando Henrique, enquanto Presidente da República, agir procurando se adaptar ao que estava acontecendo ao invés procurar moldá-lo. Ele e seus companheiros eram mais sociólogos do que agentes republicanos. O livro de Fábio Mascaro Querido é uma notável contribuição à história intelectual do Brasil.

*Luiz Carlos Bresser-Pereira é professor Emérito da Fundação Getúlio Vargas (FGV-SP). Autor, entre outros livros, de Em busca do desenvolvimento perdido: um projeto novo-desenvolvimentista para o Brasil (Editora FGV) [https://amzn.to/4c1Nadj]

Versão ampliada de artigo publicado no jornal Folha de S. Paulo.

Referência


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Fábio Mascaro Querido. Lugar periférico, ideias modernas – aos intelectuais paulistas as batatasSão Paulo, Boitempo, 2024, 288 págs. [https://amzn.to/4loCSt4]

Notas


[1] Furtado era associado ao ISEB; os três outros parte do ISEB – o instituto que reuniu os principais intelectuais nacionalistas dos anos 1950.

[2] Não confundir a teoria da dependência associada da teoria da dependência de Andre Gunder Frank e Ruy Mauro Marini, que era realmente marxista.

[3] A teoria da dependência associada teve repercussão internacional, mas além de ser equivocada, não pode ser considerada uma teoria – é apenas uma sofisticada (e pouco clara) justificação de uma subordinação.

[4] Robert Kurz (1991 [1992]) O Colapso da Modernização, São Paulo: Paz e Terra. Original alemão, 1991.

[5] Querido, p. 246. Retirado de “Leituras em competição”, Novos Estudos Cebrap, 75, julho.

[6] Cardoso, Fernando Henrique e Enzo Faletto (1969 [1970]) Dependência e Desenvolvimento na América Latina, São Paulo: Difusão Europeia do Livro. Original em espanhol, 1969.

[7] José Serra e Fernando Henrique Cardoso (1979) “As desventuras da dialética da dependência”, Estudos CEBRAP, n°. 23.


Quem determina, de fato, a Política Externa Brasileira? - Paulo Roberto de Almeida

Quem determina, de fato, a Política Externa Brasileira?

 

Paulo Roberto de Almeida, diplomata, professor.

Nota sobre as peculiaridades atuais da ação externa do Brasil, num sentido partidário e ideológico, tomando partido nas disputas interimperiais da geopolítica em mutação.

 

        Aqueles que escrevem sobre as relações internacionais em geral, sobre a política externa do Brasil e sobre sua diplomacia em especial, ou seja, jornalistas da área, analistas acadêmicos, observadores e comentaristas ocasionais, costumam referir-se à atuação do Brasil em suas relações exteriores, nas ações nos planos bilateral, regional ou multilateral, habitualmente em termos similares a estes: “o Brasil fez isso ou mais aquilo”, “a posição do Brasil nesta ou naquela questão tem sido...”, ou “a postura do Brasil na agenda ambiental internacional mudou desde o governo anterior, assim ou assado”, o que invariavelmente me suscita fundadas contrariedades quanto à atribuição efetiva pelas políticas adotadas. Não aprecio esse tipo de designação genérica sobre as relações exteriores e a diplomacia do país, pois a determinação específica sobre uma ou outra política geralmente não cobre o processo decisório que levou a uma ou outra escolha de política ou mesmo de simples declaração, por nota oficial, sobre uma determinada questão da agenda internacional.

        Como saber se foi “o Brasil” quem adotou uma determinada política, ou o governo, isto é, o executivo, ou ainda, a própria diplomacia profissional? Pode haver, como ocorre muitas vezes, uma grande diferença entre as opções técnicas oferecidas pela diplomacia profissional, para uma questão específica colocada na agenda externa, e o posicionamento efetivamente adotado pelo governo, ou pelo chefe de Estado pessoalmente, sobre a mesma questão. Em tempos normais, costuma haver uma grande osmose, ou uma identidade mais ou menos unificada e homogênea, entre o que o corpo técnico considera ser adequado nas relações exteriores do país e a postura efetivamente seguida pelo responsável último pelas escolhas que são feitas na prática, algumas vezes de forma improvisada, no contato direto com outros chefes de governo, sem o recurso adequado ao corpo profissional encarregado de visualizar e apontar todas as implicações de certas tomadas de decisão. 

        Facilidades crescentes no campo das comunicações e transportes, o simples aumento dos contatos não presenciais entre chefes de governo e ministros das relações exteriores, a ampliação de laços mediante acordos de cooperação, regionais ou temáticos, fazem com que a chamada diplomacia presidencial, ou de cúpula, tenha se tornado corriqueira, o que acarreta ipso facto o envolvimento direto do decisor máximo na discussão e na tomada de posição em questões cuja complexidade, contexto relacional com terceiras partes, legado histórico, ou mesmo implicações constitucionais e legais, não recomendariam o tratamento direto por esses personagens já com a perspectiva da adoção de decisões de relevante magnitude. Bem mais temerária é quando essa diplomacia de cúpula passa a configurar uma espécie de diplomacia personalista, na qual o chefe de governo e/ou de Estado resolve assumir ele mesmo a responsabilidade por esse tipo de procedimento, ainda que seja apenas uma declaração pessoal sobre o caso, ainda previamente ao comprometimento formal sobre o assunto, por meio de nota oficial ou projeto de acordo a respeito.

        A política externa do Brasil conheceu desenvolvimentos tendencialmente afins a essa evolução problemática do processo decisório próprio à instituição burocrática encarregada do setor na direção de um afunilamento partidário e personalista desde a chegada do Partido dos Trabalhadores ao poder, a partir de 2003. Analisei essa contaminação problemática da agenda externa do país por considerações vinculadas às preferências ideológicas do partido em questão, o que ficou evidente desde a mudança de orientação em importante questões da agenda regional e internacional do Brasil, como detalhadamente relatado em meu primeiro livro sobre a questão: Nunca Antes na Diplomacia...: a política externa brasileira em tempos não convencionais (2014) e novamente num outro livro que completou o primeiro ciclo do lulopetismo diplomático: Contra a Corrente: Ensaios contrarianistas sobre as relações internacionais do Brasil (2014-2018) (2019). Depois de um retorno compatível com valores e princípios exibidos tradicionalmente pela diplomacia brasileira, durante o governo de Michel Temer (2016-2018), ocorreu uma nova ruptura, ainda mais dramática, com os padrões usuais da diplomacia brasileira sob o mandato do presidente Jair Bolsonaro (2019-2022), o afastamento do multilateralismo, por exemplo, o que me levou a finalizar e a publicar meu terceiro livro sobre a diplomacia e a política externa do Brasil: Apogeu e Demolição da Política Externa: Itinerários da Diplomacia Brasileira (2021), cobrindo desta vez as três décadas de relações internacionais do Brasil desde a redemocratização. Nos intervalos entre os livros impressos e distribuídos comercialmente, preparei e publiquei, via Kindle, diversos outros volumes digitais, especialmente os da série do bolsolavismo diplomático, começando com Miséria da Diplomacia: a destruição da inteligência no Itamaraty (2019), passando por O Itamaraty num Labirinto de Sombras (2020) e Uma Certa Ideia do Itamaraty (2020) até O Itamaraty Sequestrado: a destruição da diplomacia pelo bolsolavismo (2021).

        O início do terceiro mandato de Lula parecia ensejar um retorno às grandes linhas da diplomacia partidária e ideológica já ensaiada entre 2003 e 2016 – inclusive porque o conselheiro presidencial em matéria internacional, chamado de chanceler paralelo, era o mesmo apparatchik do PT atuando em nome dos comunistas cubanos na coordenação do Foro de São Paulo, uma espécie de Cominform castrista para o controle dos partidos de esquerda da América Latina –, mas o que se viu, na verdade, foi um aprofundamento do distanciamento da política externa governamental em relação aos passos cautelosos da diplomacia profissional na condução dos mais importantes dossiês da agenda geopolítica externa às preocupações imediatas do Brasil, com o desenvolvimento e a autonomia da política externa oficial no tocante às disputas interimperiais. Desta vez, o que se observou foi um alinhamento da diplomacia presidencialista e personalista de Lula com alguns dos postulados geopolíticos das duas grandes autocracias parceiras no Brics, entre eles o tal projeto da “nova ordem global multipolar”, e a própria ampliação inusitada do Brics (agora acrescido de novos associados, num Brics+), congregando novos membros escolhidos dentre regimes políticos autoritários e claramente antiocidentais. 

        Em diferentes dossiês da agenda diplomática corrente – guerra de agressão da Rússia contra a Ucrânia, novos conflitos no Oriente Médio envolvendo Israel e os movimentos palestinos, entre eles alguns terroristas, nova liderança conservadora, ou de extrema-direita nos Estados Unidos – as posições que prevalecem, de ordinário, não são exatamente as que foram recomendadas pelo corpo profissional do Itamaraty, mas a postura pessoal, e muito personalista, do próprio chefe de Estado, nem sempre armado das melhores diretrizes para administrar os desafios na frente externa. Declarações de improviso, entrevistas mal preparadas com a imprensa acabam provocando arestas com parceiros tradicionais do chamado Ocidente, bem como referências desprovidas de consistência prática, como a duvidosa existência de um Sul Global supostamente animado pelo desejo totalmente vago de também fundar uma “nova ordem global”. Outras decisões refletem diretamente a influência ideológica partidária, ou preconceitos anacrônicos dos militantes petistas, como a suspensão das negociações para a adesão do Brasil à OCDE, o clube das boas práticas macroeconômicas integrado pelas principais democracias de mercado do mundo. 

        Com base nos argumentos acima, fica mais fácil responder à questão posta no título desta nota, sobre quem determina, de fato, a política externa brasileira: o corpo profissional da diplomacia vem, provavelmente, em terceiro lugar, no processo decisório, sendo precedido pelo partido no poder e, em primeiro lugar, pelo próprio chefe de governo e de Estado. Novos desenvolvimentos sobre o conteúdo e a forma da política externa seguirão oportunamente.

 

Paulo Roberto de Almeida

Brasília, 4883, 30 março 2025, 3 p.


A animosidade contra a Justiça é definitiva e muito séria entre a direita - pesquisa de Pablo Ortellado

Uma pesquisa feita no contexto da manifestação de Bolsonaro no Rio de Janeiro (Copacabana) que reuniu um público bemmais limitado de pessoas do que comícios anteriores do agora réu da Justiça. PRA

O jornal O Globo publicou [hoje; PS: uma semana atrás] resultado de um survey que aplicamos na manifestação de Copacabana no domingo. Nossa pesquisa tentou entender a relação dos apoiadores do ex-presidente Bolsonaro com a Justiça. Os resultados são muito preocupantes, mas não foram exatamente surpreendentes. Eles reiteram posicionamentos que vemos acompanhando nos últimos anos que mostram uma desconfiança da Justiça brasileira --que está concentrada no STF e se estende, em certa medida, ao TSE.

Oferecemos aos entrevistados uma longa lista de "inimigos" (usamos essa linguagem pesada, de propósito) do campo conservador que incluía a esquerda, o presidente Lula e a agenda "woke" e pedimos para escolherem apenas um deles. 59% escolheram o STF. Se entendermos que, no ambiente polarizado, as identidades se dão por antagonismo, isso significa que os conservadores se definem mais por oposição à Justiça do que por oposição à esquerda, seus líderes ou sua pauta. Isso não é pouco.

Os motivos para o ódio ao Supremo são esclarecidos nas outras questões. 96% dos manifestantes acreditam que os excessos da Justiça fazem do Brasil uma ditadura. 92% acreditam que o decreto de Estado de sítio que Bolsonaro cogitou assinar em 2022 não configuram um golpe de Estado. 95% consideram que o julgamento de Bolsonaro no STF não seria "nada justo".

Isso tudo talvez não fosse muito grave se o fenômeno se restringisse aos ativistas que estão mobilizados em manifestações como a que estudamos. Porém, pesquisas nacionais de opinião têm mostrado que a grande maioria dos apoiadores de Bolsonaro consideram o trabalho do STF ruim ou péssimo (59% dos simpatizantes do PL consideram trabalho do STF ruim ou péssimo, segundo Datafolha de março do ano passado, enquanto 49% dos simpatizantes do PT consideram ótimo ou bom).

Tenho defendido em minhas colunas no Globo que a situação na qual o país se encontra exige da Justiça uma combinação de rigor com sobriedade. Por um lado, precisamos punir com rigor quem atentou contra a democracia, do contrário o regime democrático não sobrevive. Por outro lado, não podemos fazer isso de maneira que pareça que a Justiça tem lado e está perseguindo os conservadores. Na minha opinião, a Justiça não tem encontrado esse equilíbrio e os números da pesquisa atestam isso. Nenhuma democracia fica de pé quando metade da cidadania desconfia da Justiça.

Entrevistamos 495 manifestantes e nossa margem de erro, em um intervalo de confiança de 95%, é de 4 pontos percentuais, para mais ou para menos. A pesquisa foi uma parceria entre a More in Common e o Monitor do Debate Político do Cebrap e contou ainda com o apoio do professor José Szwako e de uma excelente equipe de estudantes da UERJ.

Estamos de volta à era das canhoneiras de um século atrás? - Paulo Roberto de Almeida

Estamos de volta à era das canhoneiras de um século atrás?

Paulo Roberto de Almeida

O colonialismo e o imperialismo na era moderna, desde a época das grandes navegações, nunca tinham registrado declarações tão claras de um dirigente político reconhecido ao proclamar a "necessidade" de dominar territórios formalmente sob controle de uma soberania estrangeira.

Trump dixit:

“For purposes of National Security and Freedom throughout the World, the United States of America feels that the ownership and control of Greenland is an absolute necessity.”


Nunca antes neste planetinha redondo, já mapeado, delimitado, cartografado e legitimado por um instrumento universal, a Carta da ONU, que parte da soberania dos países membros e do princípio da não intervenção em territórios nacionais reconhedidos, tínhamos tomado conhecimento de uma vontade deliberada de romper com o Direito Internacional de uma maneira tão arrogantemente imperialista.
Trump conseguiu superar o arbítrio de seu amigo Putin que usou o subterfúgio de populações "russas" (na verdade falando russo) para invadir a Ucrânia.
Trump pretende invadir a Groenlândia apenas porque sua condição dinamarquesa ameaça a segurança dos EUA? Provavelmente, está tentando imitar o presidente McKinley, que em 1898 invadiu e anexou o Hawai, que tinha um reino em funcionamento quase normal...
Ou já imitando Theodore Roosevelt, que primeiro se distinguiu na guerra hispano-americana, ou melhor, dos EUA contra a Espanha, para dominar metade do Caribe espanhol...
Brasília, 30/03/2025

Eleições democráticas - Paulo Roberto de Almeida

Eleições democráticas

Paulo Roberto de Almeida 

O Canadá vai votar para o próximo governo. O candidato melhor posicionado é um economista com doutorado por Oxford e que foi presidente do Bank of England. O México, “sorprevisamente”, elegeu uma física com doutorado em energia elétrica. Os EUA elegeram pela segunda vez um PhD em fraudes e trambiques imobiliários, que possui a inteligência de um nabo, segundo algums críticos radicais.

O Brasil já teve pelo menos um intelectual na presidência, com sucesso razoável, mas também já teve a chance de eleger, e quase reelegeu, um energúmeno completo, aliás admirador do nabo americano.

A democracia, segundo já desconfiavam os gregos (que a inventaram) e temia Tocqueville, permite eleger demagogos medíocres, populistas espertos, mas profundamente ignorantes, se ouso dizer. 

Creio que continuará a ser assim, pelo futuro indefinido, pois a vida é um longo aprendizado, mas alguns se perdem pelo caminho.

Paulo Roberto de Almeida 

Brasília, 30/03/2025

Ajudar um estudante ruandês a terminar seu doutorado - Lourival Sant’Ana

Um apelo de Lourival Sant’Ana

         Em outubro de 2021, pedi aqui ajuda para o estudante ruandês de história Nepomuscene Niyobyiringiro realizar seu sonho de fazer mestrado e se tornar professor de História. Com a ajuda de alguns de vocês, e depois de muitas dificuldades, Nepo, como é conhecido, ingressou no ano passado no mestrado em História da Universidade Makerere, em Uganda. Disciplinado e espartano, trabalhando como pedreiro e como guia do museu de história da cidade, sem ter conseguido bolsa, Nepo está agora na reta final do curso. 

        Com a nossa ajuda, ele pagou o primeiro ano e fez um empréstimo para pagar o segundo. Ele já fez a pesquisa de campo com as vítimas, algozes e testemunhas do Genocídio de Ruanda. Agora Nepo precisa se concentrar na redação e defesa da dissertação. 

        Nepo precisa pagar  5.613.000 shillings ugandenses (veja a segunda foto), ou R$ 8.853, para a universidade. Se puder ajudar, e quiser falar com o Nepo, por favor me mande mensagem no particular. Conheci o Nepo em 2019, em Butare, Ruanda, quando ele fazia graduação em história e estágio no museu local. Ele me deu uma aula sobre o genocídio, tema do seu trabalho de conclusão de curso. Nepo nasceu quando o genocídio estava acontecendo, em 1994. 

        Ele não conheceu o pai e sua mãe foi embora depois que ele nasceu, fugindo de uma "feitiçaria", que deixou cicatrizes no corpo dele também. A avó cuidou dele até os 5 anos de idade, quando ela morreu. Uma família o adotou, e o maltratava. Nepo fugiu e passou a viver na rua. Contando com a ajuda de pessoas caridosas, conseguiu estudar. Destacou-se na escola e recebeu uma bolsa para fazer a graduação em história (todo ensino superior é pago em Ruanda). 

        Eu o ajudei modestamente, para que ele pudesse concluir a gradução. Agora, Nepo faz mestrado sobre o genocídio, em sua busca intelectual constante do significado de sua própria história. 

        Murakoze ("obrigado" em kinyarwanda, a língua nativa do Nepo). 

Criei essa vaquinha: https://lnkd.in/db4kFyud 

O batom de Bolsonaro - Marcelo Godoy (Estadão)

O batom de Bolsonaro

Marcelo Godoy

O Estado de S. Paulo, 30/03/2025

Atentar contra as liberdades é o pior dos crimes que alguém pode cometer em uma República

Marco Mânlio Capitolino aspirou à realeza e acabou precipitado da Rocha Tarpeia. É o que Tito Lívio conta no livro VI da História de Roma – Ab urbe condita libri. A República condenou Mânlio, apesar de suas ações nobres, porque – movidas pela “vergonhosa paixão de reinar” – deixavam de motivar recompensa e glória para se tornarem odiosas.

Bolsonaro, como os antigos acusados em Roma, compareceu ao fórum. Sua presença não constrangeu os ministros – Lula não esteve lá quando o STF definiu que os condenados em 2.ª instância deviam ir para o cárcere, antes do trânsito em julgado.

Bolsonaro sabe o significado de seu gesto. É de manipular as redes e de explorar meias-verdades que o bolsonarismo é sempre acusado pelos adversários.

A última delas foi o caso da cabeleireira Débora dos Santos, que foi a Brasília se unir aos acampados em frente ao QG do Exército, onde a palavra de ordem era a sediciosa “intervenção das Forças Armadas”. O ataque às sedes dos Poderes tinha o fim de ocupá-las para obter a adesão dos militares. Tudo provado à exaustão por centenas de mensagens entre os réus. A cabeleireira tem dois filhos. Uma condenação a 14 anos resultaria em dois de cadeia antes da progressão ao semiaberto.

Aqui é preciso diferenciar dois tipos de reações: a dos que procuram corrigir os excessos de uma Justiça afrontada e pedem aos julgadores equilíbrio e respeito ao estado democrático de direito e a da miríade de oportunistas que usa o caso de Débora para atacar o dever que a Justiça tem de mandar para a cadeia os golpistas que cometeram o pior dos crimes em uma República: aspirar à tirania e atentar contra as liberdades.

Há políticos que, em vez de se preocuparem com o gangsterismo em suas cidades e Estados, resolveram “salvar” a cabeleireira. Mal conseguem esconder o verdadeiro interesse: herdar os votos de Bolsonaro, o réu que, em breve, será atirado pelo STF, não da Rocha Tarpeia, mas ao malfadado rol dos culpados.

O batom da cabeleireira é parecido com o qual a Procuradoria diz que Bolsonaro escreveu sua participação no golpe. Era chefe supremo das Forças Armadas. Tomou conhecimento da conspiração para anular as eleições. Militares puseram em execução duas operações por fora da cadeia do comando. Iniciariam a empreitada. Bolsonaro não os impediu. Como seria beneficiado, aderiu à conduta. Está no Código Penal: comete-se crime por ação ou omissão. Essa é a lei. Eis o batom de Bolsonaro.

Negar o golpe é como negar o petrolão. Há muito este país espera uma revolução: a do cumprimento das leis. É isso que os Poderes da República e cada cidadão devem ao Brasil. Quando as leis são cumpridas, nenhuma anistia é “necessária”.


O afundamento da educação básica no Brasil - Fernando José Concioni e Paulo Roberto de Almeida (e outros)

O afundamento da educação básica no Brasil

Fernando José Concioni e Paulo Roberto de Almeida (e outros) 

Li esta postagem de Fernando José Coscioni no FB e comentei (mais abaixo):

“ No meu retorno (a contragosto e por pura falta de opção profissional, esta é a verdade) à docência no ensino básico público, ocorrido há, aproximadamente, um ano, cada vez tenho estado mais convicto da inutilidade que é, na maioria dos casos, colocar dinheiro em educação escolar, afinal, entre 70 e 80 por cento dos adolescentes odeiam estudar e têm desprezo total e absoluto pelo ensino e por qualquer coisa que envolva o trabalho intelectual. 

E eu nem vou falar da insolência sistemática e da agressividade com as quais muitos desses jovens tratam os professores; em alguns casos, tais situações beiram a delinquência pura e simples (o ECA, que impede a retirada desses tipos do ambiente escolar, é uma das grandes causas do nosso infortúnio educacional, e os professores, ironicamente, não param de votar em políticos e partidos que defendem a manutenção do "imaculado" Estatuto). 

Na melhor das hipóteses, apenas o fundamental I deveria ser obrigatório. E, no fundamental II, deveria haver um filtro de acesso que selecionasse apenas aqueles alunos que têm disposição intelectual mínima, padrões decentes de comportamento e que aprenderam corretamente a ler (trabalho com fundamental II, e digo com tranquilidade: mais da metade dos estudantes não sabe ler). 

O velho exame admissional do ginásio era uma coisa muito correta, que preservava a qualidade (mínima, é verdade) da escola pública. Jamais deveria ter sido abolido. A visão atual, dominante nas nossas leis e na formação de professores, de que o papel da escola seria a "inclusão" e a busca da "justiça social", é um câncer. 

Bourdieu, quando percebeu que as classes populares, salvo exceções, têm uma relação tensa e difícil com a cultura letrada que a escola busca transmitir, e que, no limite, não veem qualquer sentido na experiência escolar, acertou em cheio. 

O problema é que nossos "educadores" (odeio essa palavra, é muito piegas) pegaram esse diagnóstico dele para justificar o nivelamento da escola pública aos padrões baixíssimos dos alunos "oprimidos" ao invés de utilizar essa constatação para aceitar uma verdade dura: educação formal de qualidade não pode ser para todo mundo, pois a maioria dos jovens (ao menos no Brasil) não possui qualquer aptidão intelectual (e ficar no blá blá blá sentimentalóide sobre as condições sociais desiguais de formação das aptidões para o trabalho intelectual só vai nos jogar mais no buraco). 

As escolas públicas deveriam concentrar tempo e investimentos apenas nos alunos minimamente capacitados, pois a presença dos insolentes, incapazes e, em muitos casos, agressivos, nas salas de aula, está inviabilizando com que os professores (que, infelizmente, são cúmplices dessas ideologias coletivistas toscas de educação como forma de "justiça social") possam trabalhar com o grupo minoritário que é capacitado. 

Sei que nada disso vai mudar. Mas eu escrevo aqui só pra descarregar mesmo. E para expor também o quão bocó é a concepção dominante que fundamenta essa excrescência ideológica, filosófica, cultural e pedagógica que é o sistema educacional brasileiro. E para não deixar escapar uma coisa: os professores reclamam, mas, no fundo, eles acreditam nessa concepção, ainda que ela seja a causa primordial da inviabilização de seu trabalho.”

(28/03/2025)

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Meu comentário (PRA):

A postagem constata um problema real e efetivo: a deterioração geral do ensino público fundamental no Brasil, o que acaba repercutindo e influenciando também na má qualidade de certo ensino privado (não todo ele; familias pagantes selecionam os sobreviventes desse darwinismo vulgar). Mas a postagem também mostra um desalento com essa situação e uma proposta, talvez involuntária, de afunilamento elitista das etapas educacionais seguintes, deixando para trás todos os fracassados da péssima qualidade do atual sistema público. Se a péssima situação não se repetisse também nos níveis seguintes, poderia talvez representar um choque nos responsáveis pela atual condição medíocre do fundamental público, o que desconfiamos que não seria e não será o caminho. Temos analfabetos funcionais que chegam ao terceiro ciclo e conseguem sobreviver até a pós-graduação.

O Brasil é um país de lento crescimento justamente pela má formação do seu capital humano, o que repercute na baixa produtividade e na mediocrização crescente da casta política. 

A solução falsa do darwinismo vulgar seria esse afunilamento já no médio, o que reduziria ainda mais as chances de desenvolvimento, pois no sistema atual um terceiro ciclo mediocre (como é o caso de muitas faculdades privadas) acaba “completando” as insuficiências dos dois ciclos anteriores, mal e porcamente é verdade, mas parece ser a única chance daqueles fracassados no fundamental público. O sistema S oferece alguns remendos para as necessidades das empresas privadas, ao passo que o sindicalismo corrupto (do sistema educacional público) vai empurrando, ladeira acima,  os despreparados para a diplomação formal. É a ilha da fantasia de um país incapaz de criar um modo inovador de produção. Ficamos na rabeira do mundo e só não descemos mais porque o setor privado vai formando seus próprios quadros. Acredito que a outrora brilhante educação pública argentina, a de Sarmiento e Mitre, foi se deteriorando no último século de decadência do país, que hoje exibe resultados do PISA piores que os do Brasil. Somos dois países fracassados, o Brasil nunca chegou a ter uma educação decente para os pobres, a Argentina pós-1930 deixou decair a sua.

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Outros comentários:

“ Você fala o que realmente ocorre na educação pública, em sua totalidade,  e na particular,  em boa parte. Na pública, é mais fácil receber dinheiro sem trabalhar, através  dos subsídios sociais, e nas particulares, onde muitos jovens, porque os pais pagam, se acham no direito de fazer qualquer coisa. Isso mostra a educação recebida em casa e a tremenda falta de respeito com e para os mestres.” (Vicente Ferrero)

“ Estou na mesma condição há um ano e meio. Durante um ano fui contratada pelo município. Achei ótimo. Agora, estou no Estado de MG desde 4 de novembro. É um caos em tudo. Não há nem pincel direito na escola, sem falar da indisciplina....” (Cintia Araújo)

“ É Fernando, cada vez te admiro mais. Disse tudo sobre a educação brasileira. É incrível que pessoal que estão na faixa dos 65+ , mesmo tendo só o primário, tenham mais aptidão cognitiva do que muitos que estão ingressando nas universidades,  independente da modalidade (presencial ou a distância). Não poder reter alunos desde a alfabetização, pois irá frustar a criança, oras, como se na vida as frustrações não fizessem parte do crescimento. E para piorar, diante do sistema educacional que temos, o aluno sabe que mesmo não estudando, a escola aprova para garantir verba. E para piorar ainda mais, no ensino médio o aluno irá receber para não estudar! Esta é a educação resultado das teorias de Paulo Freire! Uma lástima!” (Marta Bertin)

“ Como professor universitário não exagero ao dizer que analfabetos funcionais, literalmente semi analfabetos que mal conseguem escrever, estão chegando e "se formando" na Universidade.

Tentei fazer licenciatura mas o viés é ideológico na formação de novos professores é tão grande que me tirou completamente a vontade de finalizar mesmo sendo EAD.” (Diego Paz)

“ Diria que tu foi otimista com os 80%. Eu na universidade estimo que uns 90% não querem saber de nada.” (André Luzardo); seguido de comentário de Coscioni: “André Luzardo: conforme a gente havia conversado no podcast, a maior destruição que a ascensão da sociedade de massas promoveu na contemporaneidade foi na educação. Uma educação massificada, por definição, só pode ser a negação da educação.”

“ Eu não aceito essa condição. Há décadas questiono a obrigatoriedade da presença no ensino médio, por exemplo. Não é possível ensinar quem não quer aprender. E sofro pelos que querem, pois são impedidos pelos demais. Cada reunião pedagógica, para mim, é como criar estratégias para receber o Papai Noel com alegria: papo de louco, de adulto infantilizado, incapaz de ver e enfrentar a realidade. Como esses adultos mandam em mim, adoeci. Cada vez mais aumento a medicação psiquiátrica.” (Paula Rosiska)

“ Você deveria escrever um livro sobre Educação Fernando. Eu acompanho o que você escreve e sempre concordo com o que você diz. Acho que você ainda tem muita coisa a expor sobre o tema e com certeza tem muita gente disposta a ouvir.” (Luis Felipe Blanco); seguido de resposta de FJC: “ Luis Felipe Blanco eu já pensei, na verdade, em escrever um romance sobre a mutação da personalidade e das posições políticas de um professor de formação uspiana progressista após se deparar com a realidade da escola pública. Quase um "romance de formação" às avessas, não com um processo de construção da personalidade, mas de demolição (tenho pensando bastante na famosa frase de Fitzgerald sobre a vida como um "processo de demolição"), de desmantelamento da identidade (essa palavra me dá calafrios, rs) diante da implosão das fantasias intelectuais que moldaram a sua forma de ser.”

“ Verdade pura Fernando. Inegável que os estudos mais avançados são para quem gosta e tem aptidões intelectuais. Seria maravilhoso se os alunos saíssem alfabetizados do curso fundamental, bem alfabetizados e sabendo as quatro operações. Não é o que acontece, vivemos num país de idiotice ideológica.” (Celia Marinangelo)

“ A escola pública é o reflexo da sociedade, a maioria dos estudantes que passaram pela três etapas: Fundamental 1, Fundamental 2 e ensino básico, a grande maioria  sai despreparados, com deficiência em leitura, muitos leiam mal.

O governo federal gastam milhões com livros paradidaticos, a  bibliotecas é cheia de livros, a sala é vazia. É um processo histórico, a educação brasileira não é vista como ascensão social, e cultural.

As escolas públicas não têm escolhas, são obrigado matricularem alunos indisciplinados, não  respeitam os professores. Por isso a escola pública encontra-se em labirinto que não encontra saída.” (Israel Medeiros da Silva)

“ A verdade é que o Brasil tem a mania de pular etapas, passando da indigência para a melhor legislação do mundo, sem condições de suportar esse tipo inovação. Temos um ECA para Suecos, uma legislação ambiental para Noruegueses, regra de IA mais restritiva donqie os europeus, todas pensadas pelo burros letrados que nós governam.” (Julio Meireles)

“ Sou professora da rede pública de ensino. Durante 27 anos vivenciei todo tipo de humilhação, desrespeito, perseguição (direção/vice-direção), dentro da escola. Minha disciplina é sociologia. 99% e mais do alunado não gosta de estudar. Não consegue interpretar o que lê, nem transpor para escrita o que compreendeu. Esse mesmo alunado odeia o conhecimento. A educação está desmantelada, destruída. As salas de aula lotadas com mais de 40 alunos por turma. Sou vítima de piadas, risos, galhofa, zombaria, etc, enquanto tento, com muito esforço, explicar teoria social a essa clientela. As salas de aula não têm ar-condicionado. Os ventiladores velhos e de péssima qualidade. Ano passado, 15 alunos que nunca frequentaram minhas aulas foram aprovados pelo " conselho de classe " / professores. Nas reuniões de atividade complementar/AC, completamente inúteis, se discute sobre "empoderamento" feminino e "inclusão" social. O corpo docente não esboça absolutamente nada sobre o fato de a grande maioria dos alunos não conseguirem construir uma oração com sujeito, verbo e complemento. Seu brilhante texto retratou exatamente o que vem acontecendo no dia a dia do professor. No final, todos os alunos estão sendo nivelados por baixo. Na rede pública de ensino do Estado da Bahia, retiraram a quarta unidade e a média para ser aprovado é cinco.” (Paula Lopes Pontes)

Comentário final:

PRA: Essa é a maior tragédia brasileira, desde Pombal, ou melhor, desde que Pombal expulsou os jesuítas e as elites medíocres do Brasil português e independente preservaram a mediocridade, até hoje.

Infelizmente é isso, mas não se pode desistir de educar os que partem de uma condição modesta. O Brasil precisaria passar por uma revolução humboldtiana (Wilhelm) na educação, do fundamental à pós, o que sabemos não virá: continuaremos patinando na mediocridade, até uma pouco provável reforma geral do ensino.

Como disse Mario de Andrade em 1924: “Progredir, progredimos um tiquinho, que o progresso também é uma fatalidade”.

Vamos continuar na fatalidade.

Paulo Roberto de Almeida 

Brasília, 30/03/2025