A reflexão é necessária, entre outras razões, para ajudar a entender por que Alexander von Humboldt (1769-1859) foi fundamental no surgimento desse terceiro sentido, e também por que ele se tornou revolucionário.
Humboldt? Quem nunca ouviu falar desse naturalista alemão ou faz pouca ideia de quem ele tenha sido –a pessoa mais famosa, provavelmente, do século 19– encontrará grande auxílio na premiada biografia escrita por Andrea Wulf, "A Invenção da Natureza: A Vida e as Descobertas de Alexander von Humboldt" [trad. Renato Marques, Planeta (selo Crítica), 592 págs., R$ 99,90]. Como o título da obra já anuncia, antes de Humboldt a última acepção simplesmente não existia.
O primeiro e mais antigo dos sentidos da palavra "natureza" (physis) provém dos gregos. É a força ou o princípio que dá vida e movimento a todas as coisas e se confunde com sua finalidade ou substância. A onça é um predador; é de sua natureza predar.
Com o Renascimento e o Iluminismo, firmou-se um segundo sentido, também muito comum na linguagem corrente: a natureza como ordem e necessidade. Vista dessa maneira, ela se apresenta como a manifestação externa de disposições imutáveis e regularidades a serem explicitadas pelo espírito humano na forma de leis, por assim dizer, naturais.
É na atmosfera intelectual legada por Galileu, Copérnico e Kepler que Humboldt vem ao mundo, numa abastada família aristocrática prussiana.
O talento para observar a natureza e assimilar grandes quantidades de conhecimento fez dele um naturalista precoce, com gosto peculiar por diários de viagem, como o do capitão James Cook, que havia dado a volta ao mundo.
Estudante prodigioso, tornou-se inspetor de minas aos 22 anos. Intrigado com a "eletricidade animal" investigada pelo italiano Luigi Galvani (1737-98), planejou e executou por conta própria 4.000 experimentos "em que cortou, espetou, cutucou e eletrocutou rãs, lagartos e camundongos", conta Wulf em seu livro.
GOETHE
Durante visita ao irmão Wilhelm, em Jena, travou conhecimento com o poeta alemão Johann Wolfgang von Goethe (1749-1832), que morava na vizinha Weimar e tinha apreço especial pelas ciências da natureza. Humboldt liderava as frequentes discussões sobre zoologia, vulcões, botânica, química e galvanismo.
"Em oito dias lendo livros, uma pessoa não poderia aprender tanto quanto em uma hora de conversa com ele", resumiu Goethe, de acordo com a biografia.
Nascia ali uma amizade e uma colaboração intelectual que duraria anos. Enquanto caminhavam pelo campo ou faziam experiências, debatiam longamente sobre a "Urform", força interna que, segundo Goethe, engendrava a forma geral dos organismos.
Humboldt, naturalista obcecado com a natureza única dos espécimes coletados, além de empirista habilidoso, que tudo media em busca de regularidades, assimilou assim a ideia –tão cara ao romantismo– de que a natureza toda se organizava em consonância com um princípio unificador. As homogêneas florestas alemãs se mostravam cada vez mais acanhadas, porém, para a altitude e a latitude das ideias que fervilhavam na mente de Humboldt.
| Mauro Piva | |
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Em 1798, noutra visita ao irmão, agora residindo em Paris, ele travou conhecimento com um jovem cientista francês, Aimé Bonpland (1773-1858), também fascinado por viagens a lugares remotos. Juntos, planejaram uma viagem ao Egito, que nunca aconteceu. Frustrados, conseguiram salvo-conduto da Coroa espanhola para visitar as Filipinas e a América do Sul.
CHIMBORAZO
O alemão caprichou na bagagem. Reuniu um arsenal de 42 instrumentos científicos –entre microscópios, telescópios, bússolas e relógios– que foram acondicionados em estojos forrados de veludo. "A minha cabeça gira de alegria", escreveu Humboldt. Em julho de 1799, Bonpland e ele aportam na Nova Andaluzia, hoje Venezuela.
Em 1800, embarcam numa expedição de quatro meses e 2.750 km para explorar o rio Orinoco. Descobrem, então, o canal Cassiquiare, ligação entre essa bacia e a do rio Amazonas, que até aquele momento se acreditava separadas. Voltam e tomam um veleiro para Cuba. Dali rumam para Cartagena, hoje na Colômbia, e seguem por terra para Lima, percurso que os leva a cruzar os Andes.
Humboldt escala o Chimborazo, no Equador, considerada então a montanha mais alta do mundo, a 6.268 m acima do nível do mar (hoje se sabe que o recorde é do Everest, com 8.848 m; no entanto, por sua proximidade com a linha do Equador, onde o diâmetro da Terra é maior, o Chimborazo é o pico mais distante do centro do planeta). O vulcão equatoriano viria a desempenhar papel crucial tanto na obra do naturalista quanto na história da América do Sul.
"Quando retornaram do Chimborazo", escreve Wulf, "Humboldt estava pronto para formular sua nova visão da natureza. Nos contrafortes andinos, ele começou a esboçar a sua assim chamada 'Naturgemälde', um termo alemão intraduzível que pode significar 'pintura da natureza', mas que também implica uma ideia de unidade ou todo."
Para dar corpo a seu conceito de que a natureza é um todo vivo, de que "poderes orgânicos estão incessantemente em ação", a produzir fenômenos que só ganham importância em sua relação com o todo, Humboldt escolheu fazer um desenho de 90 cm por 60 cm. Seu objetivo era apelar à imaginação dos leitores, pois "o mundo gosta de ver" e o olho vem a ser o órgão por excelência da "Weltanschauung" (visão de mundo).
O diagrama criado pelo naturalista representa o Chimborazo com colunas à direita e à esquerda contendo informações sobre medidas de temperatura, pressão atmosférica e umidade, além de animais e plantas de cada estrato. Ali se apresenta também um esquema de todas as montanhas do mundo, várias delas indicadas por sua altitude no contorno do vulcão.
Por trás de toda a variação entre latitudes, continentes e zonas climáticas, havia um padrão a uniformizar as categorias de flora e fauna segundo clima e localização, assim como um prisma decompõe a luz do Sol, em qualquer lugar, nas mesmas bandas de cores primárias.
Surgia assim o conceito de uma natureza global, tão diversa quanto ligada por uma infinita teia de conexões –uma visão "ecológica", embora o termo ainda estivesse por ser inventado.
TIRANIAS
Após três anos na América do Sul, Humboldt parte para o México e dali para os Estados Unidos, onde se encontra, em 1804, com o presidente Thomas Jefferson (1743-1826) –outro entusiasta das ciências naturais. Falam muito sobre o México, que ainda abrigava parte do que hoje é território norte-americano e pelo qual Jefferson revelara interesse incomum.
Humboldt, adepto fervoroso de uma república mundial das ideias, transmite ao governante ianque carradas de informações geográficas, ecológicas e econômicas sobre a região dominada pela Espanha. Hoje seria considerado um espião imperialista, talvez.
Aos 35 anos, cinco depois de deixar a Europa, o alemão retorna a Paris. Leva na bagagem 60 mil plantas, na média de uma dezena de exemplares para cada uma das 6.000 espécies coletadas, das quais 2.000 eram novas para a ciência (só 6.000 estavam descritas até então).
Recebido como herói, trava contato com naturalistas como Georges Cuvier (1769-1832) e Jean-Baptiste Lamarck (1744-1829).
Outro conhecido nas rodas parisienses é um jovem sul-americano de família rica de Caracas, Simón Bolívar (1783-1830). Conversam muito sobre política e a tirania da Coroa espanhola no Novo Mundo. Humboldt discorre sem parar sobre as maravilhas sul-americanas, das corredeiras do Orinoco aos cumes dos Andes.
De regresso à Venezuela, em 1807, Bolívar passa a envolver-se mais e mais nos movimentos de independência. "Com sua pena", diria mais tarde, "Humboldt despertou a América do Sul".
O próprio Libertador, em 1822, escreve o poema "Meu Delírio no Chimborazo", no qual menciona ter seguido as pegadas de Humboldt e ouvido a invocação do Deus da Colômbia:
"Observa, me disse: aprende, conserva em tua mente o que viste, desenha aos olhos de teus semelhantes o quadro do universo físico, do universo moral; não escondas os segredos que o céu te revelou; diz a verdade aos homens".
ECOLOGIA
O naturalista passa a escrever freneticamente, em meio a seguidas viagens pela Europa. Conclui o primeiro tomo, "Ensaio sobre a Geografia das Plantas", do que viriam a ser os 34 volumes da "Viagem às Regiões Equinociais do Novo Continente". No livro estava incluída a "Naturgemälde", na forma de uma gravura dobrável colorida à mão.
Para sua biógrafa, "foi o primeiro livro sobre ecologia do mundo", pois promovia uma visão inteiramente diferente da natureza, em que as plantas apareciam agrupadas em zonas e regiões, não em unidades taxonômicas. "Humboldt entrelaçou os mundos cultural, biológico e físico e pintou um retrato de padrões globais", escreve Wulf.
Se Humboldt apelava para a imaginação dos leitores, era também porque acreditava que a ciência não precisava se apartar das emoções que o contato direto com a natureza propiciava. Contemplá-la não punha o observador –fortuito ou sistemático– diante de um sistema mecânico, mas de um organismo vivo.
"Enquanto muitos cientistas rejeitaram a 'Naturphilosophie' de [Friedrich] Schelling por ser incompatível com a investigação empírica e os métodos científicos", afirma Wulf, "Humboldt insistia que o pensamento do Iluminismo e de Schelling não eram 'polos conflitantes'. Ao contrário –a ênfase de Schelling na unidade era a forma como Humboldt também compreendia a natureza."
VISÕES
Foi por essa via que a "Naturgemälde" ganhou uma versão em prosa: "Visões da Natureza" ("Ansichten der Natur", em alemão, publicada em 1952, no Brasil, como "Quadros da Natureza"). Nas palavras de Wulf, "um livro científico que não tinha vergonha de ser lírico".
Traduzida em sete línguas, a obra de 1808 lançou Humboldt para a fama muito além do círculo dos naturalistas, com hordas de leitores a aceitar o convite para segui-lo "para dentro das matas e florestas, das incomensuráveis estepes, e sobre os cumes da cordilheira dos Andes [...] nas montanhas da liberdade".
Goethe foi um deles. "Mergulhei com você nas regiões mais indômitas", escreveu numa das cerca de 100 mil cartas recebidas por Humboldt ao longo da vida (ele próprio escreveu umas 50 mil).
Charles Darwin (1809-82) pediu ao irmão que lhe remetesse um exemplar para o Uruguai, onde aportaria a bordo do navio Beagle. Os britânicos Alfred Russel Wallace (1823-1913), Henry Walter Bates (1825-92) e Richard Spruce (1817-93) se abalariam até a Amazônia brasileira, como narra John Hemming no informativo "Naturalists in Paradise" (Thames and Hudson), na esperança de reeditar os feitos descritos na obra de Humboldt.
Henry David Thoreau (1817-62) e Ralph Waldo Emerson (1803-82), na América, e Júlio Verne (1828-1905), na França, também viriam a admirar o livro um dia. Ernst Haeckel (1834-1919), na Alemanha, foi outro humboldtiano, e cunharia o termo "ecologia" em 1866, no livro "Morfologia Geral dos Organismos".
DARWIN
Andrea Wulf considera que Humboldt foi mais importante para Darwin formular sua teoria da evolução por seleção natural do que Thomas Malthus (1766-1834) e seus escritos sobre a impossibilidade de o meio físico sustentar o crescimento indefinido da população. Para a historiadora alemã, Darwin leu a natureza da América do Sul com os olhos de Humboldt, cuja "teia da vida" ganharia com o inglês uma dimensão temporal e se converteria na "árvore da vida" –a ideia revolucionária de que todos os seres vivos ou extintos compartilham um ancestral comum.
Humboldt, assim, estaria no mesmo patamar de Charles Lyell (1797-1875), de quem Darwin absorveu a noção da imensa profundidade do tempo geológico, sem a qual a seleção natural não teria como produzir toda a biodiversidade existente na Terra. Lyell, por sua vez, relaciona o próprio Humboldt e sua visão unitária da natureza como fonte inspiradora de seu "Princípios de Geologia" (1830).
Darwin e Humboldt chegaram a se encontrar, em 1842, quando o alemão acompanhava o imperador prussiano Frederico Guilherme 4º em visita à Inglaterra. Mas só Humboldt falou, durante as três horas em que estiveram juntos, conta Wulf numa das passagens mais curiosas da biografia. Darwin se descreveria depois "atordoado" com o encontro.
Humboldt viveria ainda até 1859, perto de completar 90 anos (e poucos meses antes de ser publicado o livro "A Origem das Espécies", principal obra de Darwin). Escreveu muitos outros livros, como o monumental "Cosmos – Esboço de uma Descrição Física do Mundo", cujos cinco volumes foram editados entre 1845 e 1862 e inspirariam o título, mais de um século depois, da famosa série de TV de Carl Sagan, em 1980.
Quando da morte de Humboldt, milhares de pessoas seguiram a procissão funeral de seu apartamento na avenida Unter den Linden ("sob as tílias", em alemão) até a catedral de Berlim. Em Boston, o naturalista Louis Agassiz (1807-73) fez o obituário do alemão na Academia de Artes e Ciência dizendo que cada criança nas escolas americanas tinha tido a sorte de viver na "era de Humboldt".
Dez anos depois, em 14 de setembro de 1869, o centenário de nascimento do naturalista alemão foi festejado por toda parte, de Nova York a Berlim e da Cidade do México a Adelaide.
Nenhuma outra pessoa tem tantos lugares e coisas no mundo nomeados por ele quanto Humboldt: rios, baías, ruas, montanhas, animais, plantas, minerais. Nos Estados Unidos, há pelo menos 11 cidades e condados com esse nome.
Além de ser considerado o pai da disciplina científica da ecologia, Humboldt encarnou, com seu estudo da natureza, valores que ainda hoje embasam o pensamento ambientalista, como relaciona Wulf: o colonialismo (hoje, para muitos, o capitalismo) é desastroso para os povos e o ambiente; a sociedade colonial se baseia na desigualdade; os povos indígenas não são nem bárbaros nem selvagens, e os colonos são tão capazes de descobertas científicas, artes e habilidades quanto os europeus; o futuro da América do Sul se baseia na agricultura de pequena escala, não na monocultura nem na mineração.
ESQUECIMENTO
Ainda assim, Humboldt é um nome ausente tanto da memória do ambientalismo quanto do senso comum, embora tenha inaugurado o conceito ecológico de natureza: complexo de espécies e relações que compõem cada ecossistema, cuja exuberância pode ser usufruída seja pelas ferramentas da análise científica, seja pela comunhão com algo primordial que tantos experimentam ao se encontrar nela.
Para Wulf, Humboldt foi o último dos polímatas, alguém que viveu nos estertores de um tempo em que ainda era possível armazenar tanto conhecimento numa só cabeça. Com a crescente especialização, sua ânsia por sínteses soa algo amadora, se não mística; para piorar, ele defendia mesclar pesquisa com imaginação e emoção –algo que só poderia redundar em ciência romântica, imprestável.
Voltamos a ser cartesianos, mecanicistas contumazes. Por outro lado, quem enxerga a Terra como uma teia viva de relações entre matéria e organismos dá preferência para um holismo mistificador, à imagem e à semelhança da Gaia de James Lovelock.
De um modo ou de outro, terminamos incapazes de reconstituir a unidade da natureza só com base no conhecimento, sem recurso à metafísica e ao sobrenatural, como pretendia Humboldt.
MARCELO LEITE, 59, é repórter especial e colunista da Folha.
MAURO PIVA, 38, é artista plástico e participa da coletiva "Máquina do Mundo" na Z42 Arte, no Rio.
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