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quinta-feira, 17 de novembro de 2016

III Jornada de Assuntos Estratégicos (2) - Paulo Roberto de Almeida

Meu segundo texto preparado, que será usado:

Soldados e diplomatas: uma relação ambígua

Paulo Roberto de Almeida
[Alocução no painel sobre “os centros de estudos político-estratégicos e os think tanks no Brasil”, da III Jornada de Estudos Estratégicos da Defesa, Comando Militar do Planalto, 17 de novembro de 2016, 16:10hs.] 


A relação entre soldados e diplomatas, segundo os conceitos utilizados no clássico de Raymond Aron sobre a paz e a guerra entre as nações, está definida neste ensaio como “ambígua”, o que representaria, numa abordagem prima facie, algum tipo de indefinição quanto aos papeis respectivos desses dois atores essenciais de qualquer Estado organizado no âmbito de suas relações internacionais. Ela pode, numa situação de caráter geral, representar tanto uma interação cooperativa, ou convergente com os interesses essenciais de um Estado qualquer, quanto uma situação de conflito de posições, quando esses interesses aparecem ameaçados e os dirigentes precisam decidir quanto ao uso da força ou quanto à contemporização diplomática numa conjuntura de crise externa. A guerra é, para ambos atores, o último recurso, a solução extrema para uma diferença fundamental entre duas soberanias exclusivas e excludentes, mas o grau pelo qual essa ameaça entra na equação diplomática ex-ante pode variar em função das percepções que cada um dos atores possui sobre o processo em curso de avaliação de como aqueles interesses fundamentais vem sendo defendidos (ou ameaçados).
Uma discussão abstrata, ou de caráter puramente conceitual, sobre a relação em causa pode interessar a um teórico das relações internacionais, ou a um filósofo político, mas não aos próprios soldados ou diplomatas, o que recomendaria que essa questão seja examinada de uma perspectiva mais prática, como pode ser o caso, por exemplo, do exame dessa relação ao longo da história brasileira, ainda que em traços gerais, sem recorrer a metodologia específica de um verdadeiro ensaio historiográfico. Minha intenção é a de percorrer essa história em seus momentos mais decisivos, sem, no entanto, adotar qualquer preferência filosófica por minha própria corporação, adotando, para tanto, uma perspectiva puramente histórico-sociológica. 

1. Nas origens: uma unidade inclusive institucional
Portugal foi, num certo sentido, o primeiro Estado moderno na Europa medieval, enviando representantes diplomáticos para outras cortes ainda em plena Idade Média, a começar pela própria Santa Sé, que foi o agente essencial de seu reconhecimento como nação independente, por meio de uma bula papal. O Vaticano era, então, uma espécie de ONU avant la lettre – e antes de Westfália – concedendo legitimidade aos novos soberanos e intermediando, quando necessário, suas relações internacionais. Não obstante essa centralidade da Santa Sé para que príncipes e condotieri obtivessem odevido reconhecimento de reinos estabelecidos e de novas posses territoriais, adquiridas por conquista ou por “descoberta”, o fato é que foi novamente Portugal quem provocou uma mudança fundamental no modus operandidas relações internacionais, tal como conduzidas pelo Vaticano. A ruptura com a aceitação inquestionada das bulas papais como selo de legitimidade das relações entre os Estados cristãos se deu justamente no retorno de Colombo das novas terras descobertas a oeste do mundo conhecido até então.
O fato é que o rei português recusou-se a aceitar a bula imediatamente concedida em favor dos espanhóis pelo papa Alexandre VI, um Bórgia, ou seja, um castelhano de origem, e ameaçou Fernando e Isabel de guerra, se eles não consentissem em renegociar os títulos de posse que eles haviam adquirido unilateralmente daquele papa corrupto. O resultado foi o tratado de Tordesilhas, o primeiro tratado bilateral que prescindiu da sanção papal para garantir sua legitimidade, e cuja amplitude se estendia, de certo modo, ao mundo inteiro, ou seja, as terras conhecidas estavam sendo divididas exclusivamente entre os dois reinos ibéricos. Em outros termos, nossos dois atores foram mobilizados, precocemente, para garantir, de uma forma ou de outra, direitos e interesses, os diplomatas em primeiro lugar, e se estes falhassem, os soldados entrariam em ação. E assim foi pelo resto da história não só na própria Ibéria, como no resto da Europa, e em qualquer parte do mundo organizado sob a forma de estados soberanos.
Independentemente do que pudessem ter pensado os demais soberanos europeus sobre aquele tratado arrogantemente universal, cabe refletir sobre o significado de Tordesilhas nos albores da era moderna: não apenas ele foi o primeiro tratado bilateral com alcance mundial, pelo menos virtualmente, mas ele também representou, de certa forma, um equivalente ao que significou Ialta no início de nossa própria era: uma divisão do mundo discutida por diplomatas, ou pelos próprios soberanos, devidamente apoiados por forças militares, para garantir que o que estava sendo desenhado no mapa já estava assegurado no terreno por forças militares, ou podia sê-lo legitimamente, caso necessário, ou em caso de dúvidas. Stalin, provavelmente, não tinha nenhuma dúvida quanto aos territórios que lhe cabia, por la razón o por la fuerza, na Europa central e oriental. Churchill, tão cínico e realista quanto o líder soviético, não tinha condições de objetar, inclusive por que carecia dos meios militares para obter resultados alternativos.
Mas Portugal foi também precoce na definição de sua forma de atuação como uma combinação desses dois atores fundamentais, quando se tratou de organizar novamente o seu Estado, na era mercantilista. Foi no reinado de D. João V, em 1736, que foi criada a Secretaria dos Negócios Estrangeiros e da Guerra, um mélange de funções que permaneceu inalterado inclusive quando das crises criadas pelas guerras napoleônicas e que redundaram, em última instância, na partida da corte para o Brasil e sua instalação no Rio de Janeiro. D. Rodrigo de Souza Coutinho, o futuro conde de Linhares, foi um ator essencial, mas diplomata, nessa transferência, já membro do chamado “partido inglês” na corte portuguesa, e consciente das possibilidades do Brasil como um grande centro do poder ultramarino de Portugal. 
Mas a unidade de propósitos entre soldados e diplomatas era assegurada pelo próprio príncipe D. João, não tão néscio como o descrevem certas caricaturas, e que tão pronto chegado ao Brasil se decide pela invasão de Caiena, como para compensar os malfeitos franceses na metrópole e certamente para barganhar, mais adiante, discussões sobre posses e direitos quando a guerra amainasse. Carente de soldados, mas dispondo de bons diplomatas, Portugal sempre se apoiou na marinha britânica para sustentar alguns de seus interesses na Europa e no Novo Mundo. Aliás, os primeiros tratados diplomáticos no sentido moderno da palavra – de certa forma ainda em vigor, já que nunca foram denunciados foram justamente aqueles negociados entre os soberanos português e inglês, um antes mesmo da descoberta do Brasil e outro logo após a restauração de 1640. Eles eram, sintomaticamente, de amizade e defesa, o que prova que a diplomacia estava unida à segurança nas palavras e nos fatos. 
Soldados e diplomatas continuaram, de certa forma, unidos por essa peculiar organização ministerial quando da criação do Reino Unido, e até na independência, pois que a Secretaria de Estado dos Negócios Estrangeiros e da Guerra foi mantida nos primeiros tempos do novo Estado, tendo José Bonifácio desempenhado o papel crucial nesse período, como o primeiro chanceler do Brasil, aliás determinando que um serviço se desentranhasse do outro, quando da organização dos primeiros ministérios no reinado do imperador Pedro. Foi difícil essa separação, obtida mais rapidamente no papel do que na prática, como a provar, mais uma vez, que soldados e diplomatas podem, a despeito de opiniões em contrário, conviver mais ou menos harmoniosamente. Mas, a verdade que não tínhamos praticamente nenhuma força de Guerra – salvo mercenários rapidamente contratados para determinados objetivos no Prata – e o outro ministério realmente importante era o da Marinha, a força mais tradicional dentre as instituições castrenses. A construção de uma Secretaria dos Negócios Estrangeiros operacional e eficaz foi um empreendimento de longa duração, que atravessa todo o Primeiro Reinado e as regências, até se estabilizar no Segundo Império. 

2. Na consolidação: uma unidade operacional
O fato é que os “pais fundadores” do Império, os próceres da Independência e os construtores do Estado, naquele período essencial do se pode chamar de Nation Building e de State consolidationnão faziam nenhuma diferença entre uma ferramenta e outra na mobilização de meios para afirmar os interesses da nação no âmbito regional e até na defesa da dignidade da nação contra os prepotentes e arrogantes britânicos (mas podiam ser outros estrangeiros também). Depois de Hipólito da Costa, que pode ser considerado o primeiro estadista da nação, semna verdade jamais ter nela vivido– mas que pensou estrategicamente sobre a segurança de sua pátria de origem, nas páginas do Correio Braziliense, inclusive porque repercutiu todas as guerras napoleônicas e todo o movimento das independências latino-americanas , oprimeiro pensador geopolítico do Brasil, ainda que avant la lettrefoi Varnhagen, um militar que se tornou diplomata, e que formulou recomendações que ainda possuem certa atualidade para a defesa e a construção do país, desde que precocemente formulou um projeto integral de reforma e de modernização do país em seu Memorial Orgânico, de 1849. O instrumento militar ou o recurso à diplomacia, em meados do século 19, eramutilizados alternadamente, concorrentemente ou simultaneamente, cada vez que se tratava de defender osinteresses nacionais em contextos específicos do nosso entorno geográfico, e o próprio Varnhagen, um diplomata meio desastrado, chegou a sugerir a reincorporação da Cisplatina ao Império quando dos conflitos platinos dessa época. Quando a ferramenta militar encontrava certos limites, ou quando a diplomacia não podia se exercer plenamente, os dirigentes políticos recorriam a outros meios – como uma certa diplomacia do patacão, por exemplo, conduzida por homens como Mauá, no Uruguai  que completavam as duas primeiras. O Brasil, que era um tomador recorrente de recursos externos durante todo o período, também chegou a ser credor externo naquela conjuntura histórica.
Os líderes da única monarquia existente no hemisfério – com a exceção de algumas efêmeras, no México ou no Haiti – sempre souberam combinar as duas ferramentas para assegurar que os objetivos do novo Estado fossem adequadamente atingidos. Depois da frustração da Cisplatina, e do armistício intermediado pelos britânicos em 1828, pode-se dizer que a interação entre soldados e diplomatas se desenvolveu de forma adequada, mesmo na ausência de um forte exército de terra. Homens como Paulino Soares de Souza, Honório Hermeto Carneiro Leão ou José Maria da Silva Paranhos, o futuro visconde do Rio Branco, entre vários outros, representaram a vertente diplomática de uma razoável interação bem sucedida que foi feita com chefes militares como Tamandaré e Caxias, assegurando o pleno atingimento dos objetivos nacionais, primeiro contra Rosas, no Prata, depois contra Solano Lopes, no Paraguai.

3. Um estranhamento relativo, por fatores marcadamente políticos
Esse entendimento talvez não tenha ocorrido de forma plenamente satisfatória mais para o final do Império, quando o Exército se consolida como a principal força política da nação, podendo até provocar aquilo que os americanos chamam de regime change, primeiro, claro, em alguns países vizinhos, depois no próprio Brasil, com a substituição, talvez não plenamente consciente em todos os seus setores, da monarquia pela república, uma mudança talvez cosmética, do ponto de vista da economia, mas tremendamente relevante para o futuro do sistema político brasileiro nos noventa anos seguintes. A Marinha ainda expressou suas veleidades monárquicas nos episódios confusos da revolta da Armada, ao início da República, provocando, aliás, incidentes diplomáticos que tiveram de ser equacionados pelos companheiros da corporação, com o menor custo externo possível (a despeito das bravatas do Marechal de Ferro contra eventuais intervenções estrangeiras). Foi aliás esse mesmo Marechal que ocupava, enquanto vice-presidente, o Palácio que depois viria a ser a sede do novo ministério das Relações Exteriores, cuja Secretaria de Estado passou justamente a ser conhecido pelo seu nome, Itamaraty. Mas na República os diplomatas talvez não tenham gozado do mesmo prestígio de que desfrutavam sob o Império, talvez por manias aristocráticas.
Os diplomatas da República provavelmente se entendiam melhor com os seus amigos marinheiros, uma força tão tradicional quanto o seu próprio serviço, do que com a força ascendente na política nacional, os soldados da Pátria. Essa preferência, aliás até compreensível numa época em que a principal força dissuasora, mas tambémofensiva, era representada pelas canhoneiras de aço, o fator decisivo de projeção de poder na era imperial. O filho do visconde, o barão do Rio Branco, encarnou à perfeição esse novo entendimento entre militares e diplomatas ao apoiar o programa de aparelhamento naval que gozava de toda a sua simpatia e que correspondia ao seu pensamento estratégico muito bem ponderado, numa época de transição de hegemonias e de alterações nas relações de força em nível mundial. O Barão viu longe, e de forma acurada.
Tendo vivido muitos anos na Inglaterra, passado longas temporadas na França, feito estadas nos Estados Unidos e na Suíça, enquanto preparava as posições do Brasil nos arranjos arbitrais sobre Palmas e o Oiapoque, e iniciado sua vida diplomática pela Legação em Berlim, o Barão estava plenamente habilitado a mensurar o poder relativo do Brasil na avaliação da combinação exata de ferramentas diplomáticas ou militares quando se tratava de afirmar os interesses brasileiros no equilíbrio de forças regionais. Tanto assim que ele preferiu preservar uma boa relação com a Argentina na decisão final sobre o tamanho da dissuasão naval do Brasil, em lugar de atiçar um conflito potencial com o poderoso vizinho, que poderia converter-se em perigo real, se a corda fosse estendida até o limite da confiança recíproca (ou falta de). Mas ele também soube responder de maneira adequada, depois que o general Pando mandou deslocar forças militares para o território do Acre ocupado por brasileiros, ordenando movimento similar por parte das forças do Exército brasileiro, uma manobra algo arriscada, na medida em que subsistiam muitas dúvidas sobre a capacidade operacional de nossas forças num ambiente totalmente desconhecido, e dispondo de meios limitados. 
Essa conjuntura histórica, a era do Barão, talvez tenha sido o ponto máximo do entendimento e cooperação entre soldados e diplomatas durante toda a República velha, uma situação que provavelmente não voltou a ocorrer nem mesmo durante as missões militares estrangeiras que foram chamadas a auxiliar na modernização de nossas forças armadas, muito sob o impulso dado por Pandiá Calógeras, o único civil a ter jamais exercido o cargo de ministro da Guerra, se minhas informações estão corretas. Em diversas ocasiões da República velha registrou-se um nítido estranhamento entre alguns militares e os diplomatas, provavelmente pelos preconceitos nascidos na primeira fase da República jacobina, prolongados na ascensão dos “milicos” ao teatro da política – como observado, por exemplo, nas campanhas civilistas de Rui Barbosa, apoiadas ardorosamente por um diplomata também dotado de pensamento estratégico, como Oliveira Lima  e não afastados, ao contrário reforçados, quando dos levantes seguidos de jovens tenentes nos anos 1920, que arriscavam converter o Brasil num espelho daquilo que os diplomatas mais desprezavam: a anarquia recorrente das republiquetas latino-americanas, sempre às voltas com as aventuras rocambolescas de caudilhos e de militares protagonistas de golpes sucessivos de Estado e de revoluções sangrentas. 
Durante esse período, o Exército se torna a força central da ferramenta militar, e também uma força decisiva na política nacional, sendo aproximado pelosdiferentes grupos políticos disputando o poder a partir de bases regionais, eventualmente em regiões relativamente periféricas, como o Rio Grande do Sul, mas neste caso absolutamente relevante em se tratando da mobilização do instrumento armado para atingir finalidades políticas, como já escrevia Clausewitz, relembrado por Raymond Aron. Muitos aqui invocarão a figura de Getúlio Vargas, o caudilho positivista dos pampas, mas eu prefiro referir-me à personalidade de Oswaldo Aranha, um advogado com treinamento e experiência militares, e que se tornou o mais diplomático de todos os nossos políticos, mas também um estadista com uma compreensão perfeita da alavanca militar como fator preponderante no progresso da nação e na defesa dos seus interesses mais essenciais. 

4. A ascensão dos milicos e a modernização do Brasil
Os cinquenta anos seguintes à Revolução de Outubro são provavelmente os mais importantes de toda a história brasileira em termos de modernização econômica e de avanços tecnológicos, ambos processos associados estreitamente às forças militares, mas com aportes menos relevantes por parte dos diplomatas, ainda que estes tenham continuado a marcar as relações exteriores de forma quase autônoma, em virtude da reduzida educação em temas internacionais por parte de nossas elites políticas. Os militares, mais do que se imiscuir nas relações exteriores, se imiscuíram com gosto e até por obrigação nas disputas políticas, uma vez que as elites civis não logravam construir um consenso razoável em torno das reformas mais importantes que os líderes militares julgavam indispensáveis à defesa da nação e sua segurança permanente. 
Esse consenso talvez tenha existido, precisamente, entre diplomatas e militares, ambos conscientes de que os destinos da nação eram inevitavelmente dependentes de um vigoroso processo de industrialização substitutiva, a ser eventualmente alcançado com aportes estrangeiros, mas com um controle nacional absoluto, numa demonstração de nacionalismo algo ingênuo que continuou a marcar os planos de desenvolvimento até a atualidade. A obsessão de soldados e diplomatas passou a ser o desenvolvimento, que tornou-se a verdadeira, e única, ideologia nacional, à exclusão de alguns experimentos frustrados, e temporários, com certo fascismo tropical – na verdade um modelo de Revolutionvon Oben, ao estilo prussiano  e de raríssimas tentativas de se ensaiar um projeto liberal, dotado aliás de inexistentes fundamentos teóricos e de quaisquer precedentes históricos. Quando isso se deu, no famoso debate econômico entre Eugênio Gudin e Roberto Simonsen, em 1944-45, o vencedor teórico foi indiscutivelmente Gudin, mas o vencedor prático foi Simonsen, inclusive porque líderes empresariais, militares, políticos e os burocratas do Estado todos ansiavam por planejamento, por dirigismo, por subsídios, por proteção, como aliás foi a nossa história comercial desde a libertação da “tarifa inglesa” pelo visconde de Caravelas em 1844, bastante reforçada pela lei do similar nacional do início da República.
Mas antes disso, o entendimento entre militares e diplomatas, ainda que difícil, manifestou-se novamente por ocasião dos desafios nazifascistas à hegemonia das potências democráticas ocidentais, com o gigante soviético testando um ou outro lado da balança de poder segundo suas conveniências puramente paranoicas. O grande líder nessa fase não foi tampouco Getúlio, mas novamente Oswaldo Aranha, que soube amarrar o Brasil do lado das nações aliadas, mesmo quando certos líderes militares se inclinavam ostensivamente para o aparente triunfo das forças totalitárias do fascismo. Tendo vivido nos Estados Unidos como embaixador entre 1934 e 1937, e feito amizade com o próprio Roosevelt, Aranha soube vencer suas restrições em servir o regime ditatorial do Estado Novo – ao início do qual desligou-se, justamente, de suas funções diplomáticas, para colocar-se a serviço da nação. Foi ele quem soube dirimir as muitas diferenças entre posições diplomáticas e preocupações castrenses, costurando a aliança e a assistência militar dos Estados Unidos ao Brasil, no momento provavelmente mais decisivo da história política do século 20, quando o mundo parecia prestes a submeter-se às forças avassaladoras do totalitarismo europeu. 
Foi realmente uma pena que Oswaldo Aranha não tenha ascendido à mais alta posição no comando da nação, pois tenho absoluta certeza de que o Brasil atual seria um país muito diferente do que foi, nos últimos 50 ou 60 anos, se Aranha tivesse galgado, em algum momento entre meados dos anos 1930 e meados dos 50, as escarpas da presidência. Alijado por Vargas do encontro com Roosevelt em Natal, em janeiro de 1943, proibido novamente de encontrar-se pessoalmente com o mesmo Roosevelt em meados de 1944, quando estavam sendo discutidas as bases da ordem política mundial a ser implantada sob a liderança dos Estados Unidos no pós-guerra, Aranha acabou se demitindo, humilhado pelo maquiavelismo soturno do ditador, sem poder influenciar como deveria os destinos do Brasil naqueles anos cruciais para a nossa inserção internacional no mundo contemporâneo. Ainda assim ele nos legou um documento precioso, a carta de sugestões feitas a Vargas para o encontro com Roosevelt, que, mais do que uma simples lista de demandas associadas à condução da guerra e o envolvimento do Brasil no terreno bélico, constituiu um programa completo de reformas e de modernização do Brasil, com auxilio americano mas soberania nacional.
Esta foi uma das muitas oportunidades em que o Brasil perdeu uma grande oportunidade, como diria mais tarde, e muitas vezes, o diplomata e economista Roberto Campos, um tecnocrata não muito apreciado por algunssetores das Forças Armadas, em virtude de sua irrecusável adesão a um programa de desenvolvimento nacional feito justamente em adesão a valores e princípios que se identificavam plenamente com o ideário americano, o que também era partilhado pelo mesmo Oswaldo Aranha. Campos também foi um estrategista, talvez mais geoeconômico, do que geopolítico, mas ele constituiu, junto com Golbery do Couto e Silva, um dos intelectos mais poderosos a pensar a modernização do Brasil em estreita associação com o que então se chamava de mundo ocidental. 

5. Ascensão e declínio (relativo?) de militares e diplomatas
Os anos 1950 foram de grande instabilidade no Brasilfeito de um enorme protagonismo político dos militares, certamente mais os milicos do que os aviadores ou os marinheiros, e de algum protagonismo diplomático, revelado essencialmente nas grandes conferências do imediato pós-guerra e na construção progressiva de um pensamento “progressista”, certamente desenvolvimentista, que encontrava grandes ecos entre os militares, em princípio em função da defesa acirrada da soberania e da autonomia nacionais, que também era um sagrado princípio da corporação militar. Ambos estamentos eram protecionistas, industrializantes, dirigistas, avessos a muita penetração estrangeira na economia nacional, e bastante modernos em seus projetos de capacitação tecnológica pela via de uma associação controlada com parceiros das grandes potências ocidentaisA miragem nuclear talvez tenha unificado ainda mais os dois establishments, o que foi reforçado ainda mais nos anos 1960 e 1970, com a recusa do TNP e a impulsão de um programa nuclear – duplo, o oficial e o secreto  que se desenvolveu com os percalços que se conhece pelas três décadas seguintes. 
Ao assumir, dessa vez de maneira completa, os destinos da nação em meados dos anos 1960, os militares já tinha desenhado um programa completo de impulsão industrializadora e de modernização tecnológica que não apenas completou o processo substitutivo iniciados nos anos 1930, mas que também empurrou decisivamente para a frente um processo paralelo de substituição de importações nas áreas acadêmicas e científicas, com amplos recursos concedidos à pós-graduação. Coerentemente com seus instintos autonomistas, quase autárquicos, os militares preferiram moldar o processo de acabamento da base industrial preservando o controle nacional sobre os setores ditos estratégicos da economia – os chamados commanding heights do tecido produtivo –com tal exacerbação do potencial doméstico dos mercados de oferta e demanda que eles chegaram a praticar o equivalente histórico, ou funcional, do stalinismo industrial, ou seja, a construção do capitalismo num só país, como Stalin construía o seu socialismo.
Do ponto de vista dos diplomatas talvez tenha sido o melhor período de sua história corporativa, sem qualquer ironia indevida. Depois do estranhamento causado pelo alinhamento americano dos anos Castelo Branco – com os diplomatas lamentando a perda das glórias imaginadas da Política Externa Independente  a política externa voltou a ser, sem o nome, o que ela tinha sido no final dos anos 1950 e início dos 60: imaginativa, criativa, dinâmica, expansiva. Pela primeira vez na história da diplomacia profissional, também, diplomatas foram chamados a dirigir a sua Secretaria de Estado, a chancelaria, a poder designar sozinhos embaixadores quase exclusivamente diplomatas. O alto grau de entendimento e de respeito entre as duas corporações revelou-se em quase todas as áreas da política externa, com exceção daquelas áreas tabu para os militares: Cuba, União Soviética, China comunista, enfim, os adversários do Ocidente, os representantes do movimento comunista internacional, inimigos oficiais do Estado brasileiro mesmo antes de 1935 e da Intentona, mas declaradamente depois dessa loucura da III Internacional e daquele caudilho positivista, e trapalhão, chamado Luiz Carlos Prestes. 
Os diplomatas eram, em sua maioria, progressistas e levemente inclinados à esquerda, mas souberam conviver bastante bem com os militares, que os respeitavam como corporação, e por exibirem os mesmos traços de caráter e de devotamento à causa da nação que possuem todos os grandes mandarins do Estado. Durante todo o regime militar os diplomatas foram provavelmente mais livres, para exercerem seus talentos – na diplomacia comercial, nas negociações regionais e multilaterais, em várias outras esferas de atividade, inclusive servindo na Presidência da República e em diversos outros órgãos do governo  do que jamais o foram em outras épocas, inclusive, e principalmente, sob o reinado catastrófico dos companheiros, durante a hegemonia recente do partido totalitário e neobolchevique que desgovernou o país a ponto de ter provocado a Grande Destruição, a mais profunda recessão de toda a nossa história. 
Houve provavelmente exageros nas doses aplicadas de políticas econômicas introvertidas, o que redundou em excesso de endividamento, acelerações inflacionárias renitentes e tensões excessivas no ambiente político que acabaram redundando no cansaço da nação em relação ao regime militar. O país, e os diplomatas estavam prontos para dar início ao um novo processo de crescimento em novas bases, e de distensão política real, não aquela tutelada pelos militares, e que resultaram em diversas deformações do sistema político que ainda hoje pesam terrivelmente em termos de possibilidade de reformas políticos e de novos equilíbrios federativos. Datam da época militar distorções profundas na proporcionalidade da representação, privilégios inaceitáveis para diversas corporações do Estado, inclusive o famoso foro especial para políticos e autoridades, uma centralização tributária ainda não totalmente corrigida, a despeito do rearranjo constitucional – aliás esquizofrênico do ponto de vista econômico  e um estatismo quase socialista e um nacionalismo tosco que dificultam, mesmo hoje, nossa plena inserção na economia internacional. Para demérito dos diplomatas, diga-se que eles partilham de muitos dos equívocos econômicos dos militares, fruto dos anos de desenvolvimentismo ingênuo, uma mistura de cepalianismo protecionista e falsamente keynesiano, de unctadianismo exacerbado, que sempre nos alinha automaticamente com o grupo dos países em desenvolvimento, e dotado de certa hostilidade em relação ao “clube dos ricos”, a OCDE, traços de caráter e inclinações ideológicas que, levados ao exagero, nos conduziram, na era dos companheiros, a esse keynesianismo de botequim que mergulhou o Brasil no abismo de uma profunda crise recessiva, inteiramente feita no Brasil. Com efeito, à diferença de todas as demais crises anteriores, que sempre tiveram um componente cambial, de dívida externa, ou de balanço de pagamentos, o que redunda o mesmo, a atual crise é totalmente “made in Brasil”, um descalabro fiscal para nenhum economista, nem mesmo um keynesiano, botar defeito. 

6. O reino dos companheiros, ou o Brasil gramsciano
Depois do longo período militar, e das frustrações econômicas (e políticas) da democratização, o Brasil conseguiu, finalmente, se sair bem sucedido de um dos seus inúmeros programas de estabilização, mas isso ao cabo de acelerações inflacionárias de dimensões astronômicas e de seis trocas sucessivas de moedas em menos de oito anos, que se acrescentaram a duas trocas anteriores, certamente um recorde na história monetária mundial. Os militares se retraíram – inclusive porque passaram a ser objetos de acusação por todos os males da República  e os diplomatas conseguiram se soltar um pouco, inclusive porque, mesmo com a volta a padrões políticos não muito diversos da República de 1946, conseguiram controlar, e dominar, a sua própria instituição, passando até a reinar soberanamente sobre as relações exteriores e a política externa da nação, continuando a fornecer quadros para outros órgãos e até influenciar a diplomacia presidencial. Foram os seus melhores anos, talvez, até o advento dos companheiros, que passaram a subverter todos os princípios de funcionamento de uma República digna desse nome. Hoje não há quem não reconheça que o Brasil foi assaltado, a partir de 2003, por uma organização criminosa, aliás conectada a governos estrangeiros nas antípodas do que pretendiam os militares na sua sanha anticomunista dos anos 1930 aos 80. Os companheiros subiram sob o slogan da ética na política e se converteram na mais formidável máquina de corrupção de que se tem notícia no hemisfério ocidental.
Os diplomatas, durante todo o reinado companheiro, permaneceram, como os militares aliás, profissionalmente submissos, disciplinados, obedientes, coonestando, talvez, iniciativas equivocadas em matéria de política internacional do Brasil, que jamais teriam sido tomadas se, como na era militar, subsistisse um perfeito entendimento entre a tecnocracia diplomática e as lideranças governamentais, em torno dos bons fundamentos de uma política externa defensora da soberania nacional (como gostam os militares, e como partilham disso os companheiros), mas estabelecida com base numa avaliação essencialmente técnica, isenta de ranços ideológicos, não essa a que assistimos nos últimos anos, uma mistura de esquerdismo anacrônico, de anti-imperialismo infantil, de terceiro-mundismo requentado e de outras coisas que sequer sabemos quais foram, em razão do secretismo traidor dos nossos bolivarianos. 
Já escrevi muito sobre a diplomacia do lulopetismo, particularmente em meu mais recente livro publicado – Nunca Antes na Diplomacia  para me alongar muito mais sobre a verdadeira esquizofrenia diplomática que vivemos nos últimos treze anos. Quem percorrer as páginas de meu site, ou de meu blog, ou os meus arquivos na plataforma Academia.edu, terá uma amostra representativa do que eu penso, todo o mal que penso, da diplomacia lulopetista, atitude aliás perfeitamente reciprocada pelos companheiros, pois que me deixaram na geladeira, ou no deserto, durante toda a extensão do seu longo reinado criminoso. Acredito que, doravante, libertos dessa doença de pele, ou talvez doença mental para os acadêmicos gramscianos, diplomatas e militares possam novamente unir esforços na tarefa de identificação dos grandes desafios colocados a nação nesta fase de transição entre um presente desastroso e um futuro ainda incerto, mas que certamente não será mais como os últimos treze anos. Com a exceção de algum novo demagogo nos anos à frente, diplomatas e militares poderão dar o melhor de suas capacidades pessoais em favor de um programa de reconstrução da nação, em novas bases, sem o estatismo exagerado dos militares do passado, sem o soberanismoexacerbado dos diplomatas convencionais, sem muitos dos equívocos que cometemos por excesso de tecnocracia e insuficiência de modéstia na avaliação de nossas possibilidades reais.
Podemos, talvez, trilhar caminhos conhecidos no passado, mas minha aspiração sincera, tendo vindo do marxismo estatizante para um liberalismo racional e focado em resultados na minha maturidade, seria que o Brasil possa abandonar os atavismos do dirigismo, do protecionismo, do intervencionismo estatal, em favor de uma economia de mercados livres, liberando aliás as forças criadoras de um povo essencialmente plástico, multirracial, aberto a todas as modernidades. Não padecemos de tantos atrasos materiais – a despeito de uma infraestrutura miserável, e de uma indústria sucateada – quanto sofremos terrivelmente o mal do atraso mental de nossas elites, terrivelmente exacerbado entre os acadêmicos gramscianos e essas esquerdas anacrônicas. Já nos livramos dos companheiros: a cidadania ativa e consciente, precisa agora limpar o cenário político dos sacripantas que nos representam, e partir novamente para itinerários que já percorremos no passado e que, infelizmente, se perderam em certos caminhos erráticos que tomamos inadvertidamente. Acho que já aprendemos bastante com os muitos anos de destruição companheira. Vamos em frente.

Paulo Roberto de Almeida 
Brasília, 17 de novembro de 2016