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domingo, 2 de setembro de 2018

Os companheiros e o FMI: uma obsessão mal informada - Paulo Roberto de Almeida

O FMI sempre foi o bode expiatório preferido da esquerda brasileira, desde quando JK recusou um programa de austeridade para poder construir Brasília torrando o dinheiro que não tinha (ou seja, provocando inflação). Vieram com o tal slogan FMI = Fome e Miséria Internacional.
O desconhecimento do que seja o FMI, suas funções, seus limites, era proverbial ao início do governo Lula, talvez até hoje. 
Em setembro de 2003, ainda em Washington, li um artigo no boletim Periscópio, do PT, e me dei ao trabalho de comentar exaustivamente. Nunca ficou conhecido esse meu trabalho, pois não foi publicado em lugar nenhum.
Permito-me assim transcrever em primeiro lugar o artigo publicado pela Fundação Perseu Abramo, e depois transcrevo o meu longo comentário a esse artigo.

1113. “O governo Lula, o FMI e a transição de paradigmas: comentários”, Washington, 15 setembro 2003, 4 p. Comentários breves a matéria homônima no boletim Periscópio n. 29, set. 2003, da Fundação Perseu Abramo. 

Paulo Roberto de Almeida 
Brasília, 2/09/2018

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O governo Lula, o FMI e a transição de paradigmas

Periscópio, Edição nº 29 - setembro de 2003

Ao defender publicamente que um novo acordo com o FMI, se for preciso e se for realizado, não pode obstaculizar as políticas e investimentos necessários ao crescimento do país, o governo Lula aponta de modo decisivo para o caminho de superação gradativa dos enormes constrangimentos que têm limitado a sua histórica vocação desenvolvimentista e social. 

Em uma entrevista a dez jornalistas, concedida no dia 20 de agosto, o presidente Lula afirmou “que o Brasil não precisa de um outro acordo com o FMI”. Sugeriu que só haverá um novo acordo com a instituição se os termos forem favoráveis ao país. “Pela lógica, o Brasil não precisa renovar o acordo. Assinar ou não um novo acordo depende da vontade, do acordo e das condições que forem negociadas”. Foi informado também que Lula coordenará pessoalmente a renegociação do acordo, se este se fizer necessário.

No dia 1º de agosto, o próprio ministro da Fazenda, Antonio Palocci, já dera uma declaração em sentido semelhante, afirmando que “se houver a necessidade de um acordo – é uma discussão não feita ainda – uma série de questões novas podem ser colocadas”. O jornal O Globo noticiou no dia 13 de agosto que, se depender dos ministros da Casa Civil, José Dirceu, e do Planejamento, Guido Mantega, em outubro o governo redesenhará seu acordo com o FMI. No dia seguinte, os ministros Luiz Dulci, da Secretaria Geral da Presidência, Humberto Costa, da Saúde, deram declarações na mesma direção. 

No dia 21 de agosto, como fruto de suas duas últimas reuniões, o Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social (CDES), coordenado por Tasso Genro, apresentou publicamente dez medidas voltadas para o crescimento da economia. Entre elas, a adequação da taxa de câmbio em um patamar propício ao crescimento das exportações, estímulos à aquisição de equipamentos pelas indústrias, crescimento dos investimentos públicos, hoje contingenciados. O CDES também apoia a meta do governo de chegar a 2004 com uma taxa real de juros de 8,24% e propõe reduzir de 4,25% para 4,0% o esforço fiscal do governo para o próximo ano (meta de superávit primário).

O relator do Orçamento de 2004, Jorge Bittar, indica as questões a serem renegociadas com o FMI, caso um novo acordo se faça necessário. A primeira seria a retirada do investimento das estatais da contabilidade do superávit primário. Esta reivindicação, aliás, tem sido reiterada publicamente pelo presidente do BNDES, Carlos Lessa, nos marcos do planejamento de longo prazo do país. Nos países europeus, por exemplo, é incluído como déficit público relacionado a um determinado investimento apenas a parcela do empreendimento a ser amortizada naquele ano (principal e juros) e não o valor total do projeto. Hoje, no Brasil, apenas os investimentos da Petrobrás não são incluídos no cálculo do superávit primário. Os investimentos das empresas estatais são vistos pelo governo como imprescindíveis para gerar um novo ciclo de inversões em infra-estrutura, necessária para a retomada do investimento.

A segunda questão é a da emissão dos Títulos da Dívida Agrária (TDA), fundamentais para a realização da reforma agrária. “Se são títulos de dez anos, não devo considerar grave a sua emissão para o perfil da dívida pública brasileira porque estou emitindo dívidas de longo prazo para urgências, como diminuir a tensão social no campo e desenvolver a agricultura familiar no país”, afirma o relator do Orçamento. 

A terceira questão seria a mudança na resolução do Conselho Monetário Nacional, que limita o endividamento dos municípios de todo o país em 200 milhões de reais. Trata-se, na verdade, de mais um absurdo ataque ao setor público brasileiro. Por esta resolução, empréstimos em torno de 5 bilhões a 6 bilhões de reais da Caixa Econômica Federal, essenciais por exemplo, para saneamento e habitação popular, não podem ser disponibilizados mesmo para os cerca de dois mil municípios que dispõem de equilíbrio orçamentário. Jorge Bittar referiu-se a este tipo de restrições como “entulhos monetaristas”, a serem desfeitos pelo novo governo.

A importância das relações do governo brasileiro com o FMI é certamente decisiva para a América Latina. A Argentina, em particular, em uma situação de extrema fragilidade, está em uma negociação publicamente conflituosa com o FMI. O prêmio Nobel de Economia e ex-vice presidente do Banco Mundial, Joseph Stiglitz, repete aos brasileiros, em entrevista ao jornal Valor Econômicode 12 de agosto, o conselho que deu aos argentinos: “o conselho que eu dei à Argentina a um ano e meio foi: se vocês conseguirem um bom programa com o FMI, se puderem ter algum benefício, sigam em frente. Senão, é melhor não ter nenhum programa do que ter um ruim. O que a Argentina achou é que o FMI não negociaria um programa com o país e decidiu ir em frente sem o Fundo. Eles se deram muito melhor do que com o programa do FMI, revitalizaram a economia (...) Se for um programa que estrangule a economia, então, é melhor ficar sem dinheiro a ser estrangulado.”

Três erros
Um processo de negociação com o FMI exige uma visão clara da identidade e função desta instituição, de sua evolução histórica, de sua atual coesão e legitimidade internacional. Há aqui três erros fundamentais a serem evitados. 

O primeiro deles seria o de pensar uma homologia ou convergência de interesses entre o Brasil e o FMI, como se fosse possível reduzir a dimensões técnicas ou de cálculo econômico os seus programas condicionadores de empréstimos. O FMI defitinivamente não é um hospital ou uma UTI, que primordialmente zela pela salvação e qualidade da saúde do paciente. 

Em seu livro “A globalização e seus malefícios”, Joseph Stiglitz, um keynesiano moderado e propositor de uma “globalização com rosto humano”, demonstra que o FMI é exatamente o contrário desta imagem ao mesmo tempo interessada e ingênua. A sua tese é simples: o FMI hoje reflete os interesses e a ideologia da comunidade financeira internacional, em particular de Wall Street. Esta identidade é garantida pela composição, modos de deliberação, mecanismos de proteção ao controle público e pelos interesses privilegiados nas políticas adotadas. Escreve Stiglitz: “Como já observamos, muitas das pessoas-chave no Fundo provêem da comunidade financeira, e muitas destas pessoas, tendo servido bem a estes interesses, saíram para assumir cargos bem remunerados na comunidade financeira. Stan Fischer, o vice-diretor gerente que desempenhou tal papel durante os episódios descritos neste livro, saiu diretamente do FMI para se tornar vice-presidente do conselho do Citigroup, a vasta empresa financeira norte-americana que inclui o Citibank. Um dos presidentes do conselho do Citigroup (presidente do Comitê Executivo) foi Robert Rubin, que, como Secretário do Tesouro, desempenhou um papel importante na formulação das políticas do FMI”.

O Tesouro dos Estados Unidos, no papel de maior acionista do FMI e o único com poder de veto, tem um papel preponderante na determinação das políticas do FMI, diz Stiglitz. O jornal The Economist de 18 de setembro de 1999, reconheceu que, nos anos recentes, o FMI e o Banco Mundial foram crescentemente instrumentalizados pelo seu acionista majoritário. Durante a grave crise financeira no Leste Asiático em 1997, o Japão ofereceu cem bilhões de dólares para criar um Fundo Monetário Asiático, com o objetivo de financiar ações necessárias para estimular a economia na região. O FMI e o Tesouro dos EUA posicionaram-se fortemente contrários a tal iniciativa, que acabou prosperando de forma discreta com o apoio da China. 

Stiglitz afirma, além disso, que o FMI e o Banco Mundial “têm padrões de divulgação muito menores do que os do governo em democracias como os Estados Unidos, a Suécia ou o Canadá. Eles tentam esconder relatórios importantes; é somente sua incapacidade de evitar que as informações vazem que, em geral, força a divulgação”.

Mas, sobretudo, as políticas preconizadas pelo FMI, segundo Stiglitz, visam não os interesses dos cidadãos ou das economias em seu conjunto, mas fundamentalmente os interesses dos credores. Mesmo os empréstimos de socorro, a juros mais baratos que os disponibilizados pelo mercado, visam garantir, em última instância, o pagamento das dívidas. Não são os contribuintes dos EUA que pagam a conta, responde Stiglitz à crítica dos conservadores em seu próprio país. Se uma economia nacional passar por problemas, o FMI, apoiado nos termos dos acordos assinados, é o credor preferencial, mesmo em relação a outros credores estrangeiros. E é raro que ele não receba o que emprestou. 

As reviravoltas do FMI
Um segundo erro é entender a ortodoxia do FMI como composta de verdades inabaláveis, estabilizadas no tempo e dotadas de coerência lógica. O artigo de Fernando Cardim Carvalho, “The changing role and strategies of the IMF”, publicado na Revista de Economia Política, vol. 20, nº 1, janeiro/ março de 2000, é uma excelente crítica a este entendimento. 

Como instituição nascida no contexto do pós-guerra, em plena hegemonia das correntes próximas ao keynesianismo, os princípios, objetivos e estratégias do FMI eram muito diversos dos atuais. O item 2 do seu estatuto, por exemplo, afirmava como um dos seus objetivos centrais: “facilitar a expansão e crescimento equilibrado do comércio internacional e, assim, contribuir para a promoção e manutenção de altos níveis de emprego e de rendimentos reais e para desenvolver os recursos produtivos de todos os membros como objetivos centrais de política econômica”. 

Nos seus inícios, o FMI apenas zelava pelo equilíbrio das transações correntes entre os países. A conta de capitais dizia respeito às políticas internas dos países, que podiam acertadamente impor controles sobre o fluxo de capital em casos de pressão sobre as taxas de câmbio. De fato, nos anos sessenta, os próprios EUA e a Grã-Bretanha impuseram controles ao movimento dos capitais de curto prazo. As políticas recessivas eram recomendadas pelo FMI apenas no caso de déficits crônicos nas transações correntes de bens e serviços, de molde a pretensamente diminuir a demanda agregada e, assim, diminuir as importações e elevar as exportações do país em questão.

Neste período inicial, o foco do FMI era os países chamados desenvolvidos, os últimos programas de apoio tendo sido dirigidos à Itália e à Grã-Bretanha em 1977. Mas até meados dos anos oitenta, mesmo após a bancarrota do México e do Brasil, os programas de ajuste recomendados pelo FMI não implicavam em reformas estruturais. Estas passaram a compor as condições fundamentais impostas pelo Fundo apenas nos anos noventa, tornando-se até mais importante do que o ajuste fiscal.

Foi neste contexto nos diz Cardim, que as visões do FMI sobre “o controle de capitais sofreram uma dramática reversão. De um lado, o fundo começou a duvidar tanto da eficácia como da desejabilidade do controle de capitais; de outro lado, prestou-se mais atenção à eficiência dos setores financeiros domésticos em lidar com um volume crescente de recursos”.

Frente às últimas oito crises financeiras internacionais nos últimos anos, o discurso do FMI sofreu uma nova mudança. Trata-se de reconhecer agora a inevitabilidade da liberalização dos fluxos financeiros e procurar diminuir os seus impactos negativos. Como afirma Stiglitiz, “há hoje uma consciência dos perigos dos fluxos de capital de curto prazo e da liberalização prematura do capital e do mercado financeiro, reconhecidas de tempos em tempos até mesmo pelos oficiais seniores do FMI”.

Em busca da legitimidade perdida
Um terceiro grande erro seria conceber o FMI como uma instituição coesa, respeitada em seus diagnósticos e profundamente legitimada no cenário internacional. O Secretário de Assuntos Internacionais do Ministério da Fazenda, Otaviano Canuto, lembrou recentemente em entrevista que “o Fundo é um ativo de credibilidade para a política econômica”. Será? 

A divulgação do Relatório do Independent Evaluation Office, ligado à gerência do FMI, de nome “FMI e crises recentes nas contas de capitais – Indonésia, Coréia, Brasil”, reconhecendo erros reiterados da entidade, é claramente uma tentativa de renovar a sua credibilidade após erros crassos em vários cantos do mundo onde a política do FMI teve influência. O relatório reconhece que o Fundo errou em relação à crise brasileira de 1998, ao não apontar as vulnerabilidades do Plano Real, como o alto nível de endividamento do setor público e ao não recomendar o abandono da política cambial, de super-valorização do Real, praticada pela dupla Malan/Franco. Aliás, crítica feita à época e generalizada entre os economistas brasileiros não neoliberais. Já uma análise recém divulgada pelo General Accounting Office, do Congresso norte-americano, afirma que o FMI antecipou apenas 15 das 134 recessões ocorridas em 87 países em desenvolvimento no período que vai de 1991 a 2001, o que representa 11% do total.

Um estudo do economista Walden Bello, da ONG “Focus on the global south”, “The crisis of the globalist project and the new economics of George W. Bush”, publicado em junho passado, é importante para atualizar a avaliação da ilegitimidade atual do FMI. 

De acordo com Walden Bello, o projeto globalista, cujo maior trunfo foi o estabelecimento da OMC (Organização Mundial do Comércio), encontra-se em uma crise evidente. Os três momentos deflagradores desta crise teriam sido justamente a crise financeira asiática de 1997, o impasse das negociações na OMC, em Seattle em dezembro de 1999, entre os EUA e a União Européia, e a crise gigantesca do mercado de ações norte-americanas no final da gestão de Clinton. A política unilateralista de Bush só teria aprofundado estes impasses. 

Escreve Walden Bello: “como apontou Robert Brenner, as políticas de Bill Clinton e do Secretário do Tesouro, Robert Rubin, punham ênfase na expansão da economia mundial como base da prosperidade da classe capitalista. Por exemplo, em meados dos anos noventa, eles puxaram a alta do dólar como meio de estimular a recuperação das economias japonesa e alemã, de tal modo que elas pudessem servir de mercado para as mercadorias e serviços dos EUA. Antes, a mais nacionalista gestão Reagan, havia empregado uma política do dólar fraco para reconquistar competitividade para a economia americana às expensas da japonesa e alemã. Com a gestão George W. Bush, voltamos às políticas econômicas, incluindo a do dólar fraco, voltadas para animar a economia norte-americana às custas de outras economias centrais e enfatizar os interesses da elite das empresas do país ao invés das elites globais do capitalismo”.

Ainda segundo Bello, a crise asiática teria minado a coesão do paradigma neoclássico na economia, com intelectuais chaves passando a criticá-lo publicamente. Entre eles, Jeffrey Sachs, antes conhecido por sua defesa de um “choque de livre mercado” na Europa do Leste no início dos anos noventa; o professor da Universidade de Columbia, Jagdish Bhagwadi, que conclamou à adoção de controles globais sobre o fluxo de capitais; e até mesmo Georges Soros, que tem condenado a ausência de controles sobre o sistema financeiro global, que o enriqueceu. 

O autor conclui, após longa análise da geopolítica mundial, que o poder dos EUA deve ser “saudavelmente respeitado” mas seria um grande erro superestimá-lo. 

Risco moral
O acordo atual do Brasil com o FMI é o que envolve as mais vultosas somas de empréstimo da instituição no mundo. Com a relevância geopolítica do Brasil e a projeção internacional do governo Lula, entende-se a importância que a renovação do acordo tem para a legitimidade internacional da instituição.

A primeira defesa da renovação do acordo com o FMI veio de Paulo Leme, do Banco Goldman Sachs, seguido dias depois, por Henrique Meireles, presidente do Banco Central, afirmando que, apesar de não ser uma necessidade estritamente técnica, seria recomendável a renovação.

Os argumentos de quem defende a renovação do acordo passam por dois caminhos. Um deles é o da precariedade das reservas internacionais do país, estimadas em cerca de 14 bilhões de dólares, que poderia colocar o Brasil em dificuldade diante de uma eventual conjuntura de aumento dos rendimentos dos títulos dos EUA e de deterioração do ambiente de liquidez mundial. Na verdade, há muita incerteza nestas previsões e muitas condicionalidades a serem avaliadas. 

O segundo argumento, talvez mais decisivo, e que aparece reiteradamente exposto por economistas neoliberais, dentro e fora do governo, é o papel de um novo acordo com o FMI para preservar as linhas predominantes na política econômica no primeiro período do governo Lula. Como, por exemplo, no artigo de Desmond Lachman, analista residente do American Enterprise Institute, publicado no jornal Valor Econômicode 31 de julho: “um programa sucessor pactuado entre o FMI e o Brasil daria uma grande contribuição para um substancial fortalecimento da confiança dos investidores no Brasil. Um novo programa do FMI, em continuidade de apoio ao Brasil – ao proporcionar um arcabouço de política macroeconômica de médio prazo e um roteiro para o prosseguimento de reformas estruturais – poderia assegurar aos investidores ser improvável que o presidente Lula venha a avançar num rumo mais populista em termos de política econômica”. 

O sentido muito político e ideológico da defesa da renovação do acordo com o FMI fica patente nas declarações de Joaquim Levy, Secretário do Tesouro Nacional, e Fábio Gambiagi, co-autor do livro “Finanças Públicas – Teoria e prática no Brasil”. O primeiro afirma que o obstáculo ao crescimento “não é o FMI mas o tamanho da nossa dívida”, como se as políticas recomendadas pelo FMI nada tivessem a ver com a evolução da dívida e seu cálculo. bio Gambiagi, autor de um livro texto neoliberal de uso generalizado nas faculdades de Economia, argumenta enfaticamente contra a proposta de retirar o investimento das estatais do acordo com o Fundo. “Isto seria um tiro no coração da política econômica”, diz ele, em uma retórica inflamada. No jornal Valor Econômicode 21 de agosto, o colunista propõe que se caminhe para uma nova coalizão nas eleições presidenciais de 2006, formada pelo PT, PSDB e PFL! Diz ele que “a luta fratricida entre os reformistas é uma estratégia suicida”. 

De modo sensato, o governo Lula tem evitado dar um tom dramático e espetacular às suas relações com o FMI. A sua opção clara é a de diagnosticar o acordo nem como imprescindível nem como incondicional. 

Os empréstimos do FMI são considerados mais baratos do que os das outras fontes no mercado internacional. Mas esta vantagem relativa pode ser anulada ou invertida frente aos constrangimentos impostos à política econômica.

Do ponto de vista político, um novo acordo com o FMI poderia alienar parte importante da soberania do governo em decisões chaves a maior parte de seu mandato, em anos eleitorais decisivos em que seu projeto estará em disputa. Um acordo com o FMI poderia, deste ponto de vista, congelar a transição do governo Lula a novos padrões de política econômica mais compatíveis com suas potencialidades históricas.

Mas há certamente também o risco ético-moral. De junho de 2002 até o final dos seis primeiros meses do governo Lula, segundo dados do Banco Central, o pagamento dos juros da dívida pública chegou a 142 bilhões de reais. Este valor equivale a mais de 17 vezes à soma do orçamento previsto para todos os programas sociais emergenciais em 2004. O governo Fernando Henrique sabia ser fraco com os fortes e forte, insensível, cruel e até mesmo brutal com aqueles que têm menos poder diante do mercado. Isto dizia tudo sobre a sua qualidade moral. 

A vocação ético-moral do governo Lula é outra e se alimenta do cotidiano dramático, mas cheio de esperanças do povo brasileiro.

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O governo Lula, o FMI e a transição de paradigmas: comentários

Paulo Roberto de Almeida
Washington, 15 setembro 2003, 4 p.

            A propósito do artigo “O governo Lula, o FMI e a transição de paradigmas”, publicado no boletim Periscópio(nº 29, setembro de 2003, Link: http://www.fpa.org.br/periscopio/cartas/carta02.htm), na página da Fundação Perseu Abramo, (link: http://www.fpabramo.org.br/periscopio/092003/texto01.htm). 

Li com atenção o texto em questão mas tenho sérias dúvidas sobre algumas das afirmações ali contidas.
Por exemplo, em primeiro lugar, a de que se for feito um novo acordo com o FMI este não pode obstaculizar políticas de desenvolvimento. Ora, não são os acordos com o FMI (exatamente três até aqui, talvez quatro, dentro em breve: em 1998, em 2001 e em 2002) que têm introduzido constrangimentos ao processo de desenvolvimento brasileiro. Esses constrangimentos precedem de muito os acordos com o FMI e têm sido uma constante desde os anos 80, pelo menos. Pode-se pensar, pela afirmação, que a ausência desses acordos teria sido uma situação melhor, de "liberdade" para crescer, do que sua efetivação, a pedido do Brasil. O País não é certamente obrigado a pedir ajuda ao FMI, mas se o faz, deve haver alguma razão, e ela não se prende à necessidade de crescer, mas sim a de evitar um problema maior. Não se deve olvidar que os acordos foram todos preventivos, evitando situações de default e moratória, como as que enfrenta hoje a Argentina. Esta teria sido uma melhor solução para o Brasil? Não me parece...
Parece-me, por outro lado, absolutamente caótico, para a imagem de seriedade do governo, esta situação descrita no próprio artigo com base em artigos de imprensa: “se houver a necessidade de um acordo – é uma discussão não feita ainda – uma série de questões novas podem ser colocadas. O jornal O Globonoticiou no dia 13 de agosto que, se depender dos ministros da Casa Civil, José Dirceu, e do Planejamento, Guido Mantega, em outubro o governo redesenhará seu acordo com o FMI. No dia seguinte, os ministros Luiz Dulci, da Secretaria Geral da Presidência, Humberto Costa, da Saúde, deram declarações na mesma direção.”
Isto, sem mencionar declarações de meia dúzia de parlamentares, da esquerda, da "direita" e do centro do PT, alem de outros lideres políticos de todos os quadrantes possíveis. Não creio que uma discussão pública sobre como deve ser ou não ser o futuro acordo com o FMI agregue algo em termos de esclarecimento público ou de coerência nas posições do governo. Deveria haver uma opinião de governo sobre assunto tão importante e não "achismos" individuais de pessoas não envolvidas com a administração financeira do País. A cacofonia e a dispersão de posições deveriam ser apontadas na matéria em questão como fatores de debilitamento, não de fortalecimento, da postura negociadora do Brasil.
Que o ministro encarregado do CDES, por exemplo, fique dizendo qual deve ser o patamar de juros, de superávit e de cambio, me soa totalmente surrealista, contribuindo mais uma vez para o que o PT quer mais evitar: volatilidade. Esta, ao contrário do que pensam alguns, não é um alienígena que ataca o Brasil desde o exterior, mas é criada basicamente pelas políticas e práticas internas, made in Brazil...
Mais surrealista ainda é o relator do Orçamento indicar, ele próprio, quais são as questões que devem ser renegociadas com o FMI, que ele mesmo aponta como sendo: “retirada do investimento das estatais da contabilidade do superávit primário”; “emissão dos Títulos da Dívida Agrária”; “mudança na resolução do Conselho Monetário Nacional, que limita o endividamento dos municípios”. Propriamente inacreditável. Por acaso o relator do orçamento é responsável pelas negociações com o Fundo, é o guardião da moeda? Creio que ele tem por dever, em primeiro lugar, de zelar pelo equilíbrio do orçamento que sair da Câmara, mas me parece pouco preparado para estabelecer condicionalidades sobre as quais ele não tem o mínimo envolvimento. Ele contribui assim para o aumento da volatilidade... 
            O conselho de Stiglitz aos argentinos me parece totalmente dispensável ou então ridículo: ele não é o responsável pelas contas argentinas e o melhor que teria a fazer, como economista responsável, seria ficar quieto, pois a decisão compete absolutamente aos argentinos...
O autor da “teoria dos três erros” se apóia em Stiglitz para dizer que o FMI não é um hospital. Talvez não, mas o Brasil, ou a Argentina, poderiam então tentar viver sem essa UTI, o que significa viver com meios próprios e sem esse emprestador de última instância que constitui o FMI. Que ele reflita a visão da chamada comunidade financeira internacional  é a mais absoluta verdade, mas a questão é a de saber se o Brasil pretende viver à margem dessa comunidade. Pode viver sem depender, o que depende inteiramente dele, não dessa mal-vista comunidade.
Fundos regionais, como reconhecem outros economistas tão ou mais importantes do que Stiglitz, contribuem para o que se chama de “moral hazard”, ao aumentar a exposição dos mesmos paises que normalmente iriam parar na UTI do FMI. Que este pratique confidencialidade, não é de se estranhar, na medida em que lida com dados sensíveis, comparáveis ao cadastro de um cliente privado. Ou o autor do artigo gostaria, por exemplo, que seus dados bancários e de patrimônio estivessem expostos ao conhecimento público em quaisquer circunstâncias?
Compreende-se a visão estreita do FMI em favor dos credores: condenável moralmente, mas pode-se perguntar: em caso de necessidade um país vai tomar dinheiro dos “cidadãos ou das economias em seu conjunto”, ou será que o único dinheiro disponível não é, basicamente, os dos “credores”? E estes vão pensar nos interesses dos cidadãos e da economia em geral ou nos seus próprios interesses? A indignação moral pode ser bonita como posição pública, mas resolve muito poucas dificuldades concretas de paises desequilibrados. E, ao contrario do que diz a matéria ("E é raro que ele não receba o que emprestou"), inadimplências e renegociações são muito mais freqüentes do que se pensa...

A ortodoxia do FMI não é melhor ou pior do que qualquer outra ortodoxia: pode funcionar em certas circunstâncias e não funcionar em outras. O duro é ter de depender de qualquer ortodoxia, mas ninguém é obrigado a seguir a do FMI ou a de qualquer outro parceiro externo: basta ter independência e não precisar de credito externo.
O artigo de Fernando Carvalho retrata uma realidade keynesiana que se tornou inaplicável, anacrônica e equivocada. O FMI, em seu início, meio ou fim, nunca zelou pelo “equilíbrio das transações correntes entre os países”, mas tão simplesmente pela liberalização dos pagamentos para sustentar essas transações correntes, deixando a critério dos países seus meios de financiamento (IDE, empréstimos, rendas do capital, etc). O FMI sempre interveio, antes, durante e depois desse mundo keynesiano, quando algum país em desequilíbrio necessitava de uma transfusão temporária de liquidez, apenas e tão somente isso (ele tinha o papel de guardião cambial também, mas isso acabou em 1971-73).  
Ele nunca teve foco em países desenvolvidos ou em desenvolvimento: ele está apenas a serviço de seus membros, sejam estes pobres, ricos ou remediados. Não se deve confundir situações conjunturais com mandato preferencial...
O FMI nunca sofreu reversão nenhuma quanto ao controle de capitais, pois que ele nunca teve mandato para cuidar dessa área. Quem pressionou o FMI a entrar na área foram os paises desenvolvidos, como os EUA e alguns europeus, contra a opinião de outros desenvolvidos e outros europeus. A crise asiática se encarregou de enterrar essas propostas, que não são absurdas em si, apenas talvez prematuras...

Quanto ao terceiro erro, parece que se confunde duas coisas: consistência ou inconsistência das receitas do FMI e o fato de ele ser ou não um ativo de credibilidade para o Brasil. Ele pode ser, ou não, uma ou outra coisa, mas não se pode negar que o mercado o vê como um ativo, por mais inconsistentes que possam ser suas recomendações... Às vezes a versão é mais importante do que o fato...
Contrariamente ao que se diz na matéria, o FMI recomendou SIM a desvalorização cambial para o Brasil (e para a Argentina), apenas não pretendeu ser impositivo demais com esses países, que insistiram em praticar a estabilidade cambial. E a recomendação não foi feita apenas por economistas não-neoliberais: posso apontar pelo menos meia dúzia de economistas liberais, dentro e fora do Brasil, que criticaram a política cambial e recomendaram desvalorização.
Que um economista pouco conhecido por sua obra teórica (alguma para ser citada?) diga que FMI e OMC carecem de legitimidade, não confere legitimidade a esse tipo de afirmação: ela é tão válida como a afirmação contrária, a menos que venha sustentada em argumentos sólidos e provas empíricas. O FMI tem hoje 189 membros e a OMC 148, com mais entrantes a cada vez. Isso por acaso faz delas entidades pouco legitimas? 
O economista Bello não quer a prosperidade da classe capitalista? Talvez ele devesse indicar uma classe socialista como alternativa? Ou ele está pensando nos simples cidadãos das economias capitalistas? Isso os converte em anti-capitalistas?
Belas palavras: "a crise asiática teria minado a coesão do paradigma neoclássico na economia, com intelectuais chaves passando a criticá-lo publicamente". Sim, e a partir daí? O economista Bello pretende que os paises asiáticos tenham passado a adotar um paradigma oposto e alternativo? Qual seria ele?

Por fim, apontar as fragilidades das reservas brasileiras, como o faz Paulo Leme, aparece como algo duvidoso, a ser confirmado na prática? Quanto à preservação das políticas econômicas predominantes, trata-se de uma inferência razoável a ser feita, a menos que se aponte alternativa melhor, o que me parece não foi feito na matéria em questão. 
O que me parece frágil é a simples classificação como neoliberais de dois tecnocratas típicos do Estado (Levy e Giambiagi) sem oferecer uma argumentação mais consistente para contradizer suas afirmações, que se dirigem não a rótulos, ou slogans, mas a situações concretas: fragilidade das contas publicas e do balanço de pagamentos.

Como afirmado ao início, o governo pode escapar aos constrangimentos de um acordo com o Fundo, simplesmente não fazendo. Se escolher fazer, foi porque chegou à conclusão de que seria melhor, não com base em apreciações subjetivas de duvidosa qualidade política, mas com base em uma análise objetiva da situação econômica. Os governos em geral, diferentemente de economistas acadêmicos, são muito pouco, ou nada, ideológicos, e se guiam mais pelo senso pratico...

Quanto ao risco "ético-moral", ele se prende a uma situação muito concreta: se o governo pagou “x” de juros, foi porque havia “y” de dívidas, do contrário estaria sendo ingênuo ou inconseqüente. Mas, se o autor da matéria tem uma solução melhor para a situação da divida pública, esta sendo muito ingênuo em não expô-la, para que possa ser debatida ou até adotada pelo governo. O que fica parecendo inconseqüência é criticar sem propor uma solução alternativa.
Estas são as minhas observações objetivas sobre a matéria em questão.  

Paulo Roberto de Almeida



Capital Humano Estrategico: uma proposta para o governo do PT (2003) - Paulo Roberto de Almeida

Preparando-me para partir de volta ao Brasil, depois de quatro anos em Washington, mas já com a mente fixada no trabalho em Brasília, passei a redigir o que me parecia ser uma orientação geral das iniciativas do Núcleo de Assuntos Estratégicos, menos num estilo “produtivista”, como parecia ser a orientação dos companheiros – que não escondiam sua preferência por um modelo de crescimento muito próximo daquilo que eu chamei de “stalinismo industrial” da era militar –, e mais no sentido de privilegiar a formação de capital humano. Este era o objetivo do trabalho n. 1107, que pode ser agora publicado pela primeira vez.

1107. “Capital Humano Estratégico: Proposta modesta para mudar o país via ‘indústria’ dos recursos humanos”, Washington, 7 setembro 2003, 2 p. Reflexões sobre o sentido de escolhas estratégicas para o desenvolvimento do país. Encaminhado ao chefe do NAE. 

Paulo Roberto de Almeida 
Brasília, 2/09/2018

Capital Humano Estratégico
Proposta modesta para mudar o país via “indústria” dos recursos humanos

Paulo Roberto de Almeida
Washington, 1106: 7 setembro 2003

O governo definiu, nas instâncias apropriadas (Núcleo de Assuntos Estratégicos), áreas prioritárias de trabalho para reflexão interna, consultas externas e a preparação ulterior de medidas tópicas ou políticas setoriais voltadas para a capacitação tecnológica e a competitividade da economia brasileira. Elas se situam, numa lista não extensiva, na área de biotecnologia, de nanotecnologia, de novos materiais e algumas outras áreas identificadas com as chamadas tecnologias de fronteira.
Não pretendo, nesta nota, avançar opiniões de natureza substantiva sobre tais campos de ação, mas tão simplesmente formular, por um lado, critérios de avaliação de políticas setoriais governamentais e, por outro, sugerir uma linha de ação que me parece relevante no trabalho de um governo comprometido com a mudança social.
Quanto aos métodos, em primeiro lugar, creio que a seleção e a definição de políticas específicas para setores considerados relevantes para o progresso tecnológico e industrial do Brasil deveriam considerar alguns critérios de natureza geral (ou horizontal) na formulação oportuna das políticas sugeridas. 
Esses critérios poderiam ser os seguintes: 
1) Efeitos distributivos do projeto ou política, ou o impacto social da melhoria técnica;
2) Seu impacto de mercado, ou seja, aumento da competição no sistema como um todo;
3) Eficiência governativa: transparência na utilização de recursos, participação social;
4) Maior inserção internacional resultante da implementação do projeto, ou sua adequação a um sistema aberto e interdependente.
Quanto à definição das áreas de trabalho, em segundo lugar, creio que o enfoque “produtivista” na seleção dos campos de trabalho do NAE é importante, mas talvez não seja o único, nem deva ser o exclusivo. Ele pode por exemplo significar a continuidade dos padrões de atuação do Estado brasileiro nos campos da “regulação” e “indução” econômicas nos últimos 50 anos ou mais, ou seja, o estímulo ao desenvolvimento industrial via injeções de capital ou “facilidades” de mercado (creditícias, fiscais, de tipo comercial, como tarifas, etc.) para os setores considerados “estratégicos”: antes a siderurgia, depois o complexo automobilístico, mais adiante as indústrias intermediárias e de bens de capital, agora as novas tecnologias da terceira revolução industrial. 
Ora, a manutenção dessas antigas linhas de atuação e a preservação dos mesmos mecanismos de “intervenção” do Estado na economia não necessariamente farão uma real diferença em termos de seu impacto social imediato, que é o que se espera de um governo comprometido com a transformação da situação de pobreza relativa e das desigualdades distributivas persistentes na sociedade brasileira. Os economistas parecem ter chegado a um quase consenso metodológico e substantivo sobre a importância do capital humano para o desenvolvimento econômico com distribuição de renda. 
Desejo em conseqüência argumentar em favor de uma abordagem pela via do capital humano como foco de trabalho “estratégico”. Todos os problemas de iniquidade social e de renda existentes no Brasil parecem ser derivados da baixíssima capacitação técnica e educacional da população brasileira, o que justificaria amplamente uma atenção especial nessa área. Não estou pensando, contudo, na aceleração dos programas de apoio à pesquisa e desenvolvimento ou sequer à pesquisa científica e tecnológica de modo amplo. De meu ponto de vista, não há nada mais estratégico do que educação, e quando me refiro à educação estou excluindo a universidade e privilegiando exclusivamente o setor primário público. Pode-se estender a ação ao ciclo médio e técnico-profissional, mas o essencial precisa ser mesmo feito no ciclo elementar. Uma escola pública de qualidade na fase de entrada nos estudos pode fazer a diferença em termos de melhoria dos padrões de vida assim como do perfil distributivo da população. Esse esforço deveria começar e ser continuado quase que inteiramente no plano da formação de professores e suas condições de trabalho. Pode demorar um pouco para produzir resultados, mas é a única “receita” segura para o desenvolvimento econômico e social do Brasil.
No plano mais imediato e como “expediente” para evitar ainda mais a erosão dos padrões distributivos e das condições de sociabilidade geral, recomendaria um programa ativo e direcionado para certas camadas e regiões na área de controle da natalidade, o meio mais rápido para prevenir a deterioração da situação de vida dos estratos mais pobres. A Igreja poderá não apreciar essa política, mas o governo não poderia se deixar guiar por considerações religiosas numa área de alta importância econômica e social. 

Paulo Roberto de Almeida
Washington, 7 setembro 2003

A reforma da Previdencia no primeiro ano do PT - Paulo Roberto de Almeida

No primeiro ano do governo do PT, um dos grandes temas na agenda de reformas deixadas em herança pelo governo anterior era o da Previdência. Confirmando a constatação de que o PT é o seu próprio inimigo, manifestei-me em setembro de 2003, a propósito de dissensões internas ao partido em torno da reforma da Previdência, o que resultaria, como se sabe, na expulsão dos membros opositores. Meus comentários permaneceram inéditos até hoje, razão pela qual julguei que eles merecessem ser conhecidos, como registro no trabalho n. 1105. Como se pode igualmente confirmar, ao início do governo do PT, eu estava defendendo as políticas do governo, por deduzir que elas eram necessárias, de um ponto de vista absolutamente racional, não partidário.

1105. “Reforma da Previdência: por que e a favor de quem?: Comentários às posições dos parlamentares do PT contrários à reforma”, Washington, 1 set. 2003, 10 p. Comentários à carta dos 8 parlamentares do PT punidos pela Executiva do Diretório Nacional por terem se abstido nas votações da reforma da previdência, e a artigo divulgado pelo Dep. Ivan Valente em seu site e na revista Espaço Acadêmicono qual ele se insurge contra a atual reforma da previdência (www.ivanvalente.com.br). Circulado entre os membros do Conselho Editorial da Espaço Acadêmico.

Deixo de transcrever o artigo do deputado e a carta dos oito deputados pois os argumentos já estão reproduzidos em meu artigo.
Paulo Roberto de Almeida 
Brasília, 2/09/2018

Reforma da Previdência: por que e a favor de quem?
Comentários às posições dos parlamentares do PT contrários à reforma

Paulo Roberto de Almeida
Membro do Conselho Editorial da revista Espaço Acadêmico
Washington, 1 de setembro de 2003

Introdução

Parece incrível, mas o Brasil se debate em gravíssimo problema econômico de não crescimento, com todos os seus agravantes de desigualdades sociais e desemprego, e um punhado de parlamentares do PT – apoiados por setores expressivos do funcionalismo público – se opõe à nova reforma da Previdência que o Governo Lula está empreendendo. Como puderam ler todos os colegas do Conselho Editorial da revista Espaço Acadêmico, assim como todos os seus leitores online, o deputado federal do PT Ivan Valente publicou um artigo no qual ele se insurge contra a atual reforma da previdência, e que segue, em suas grandes linhas os argumentos alinhados pelo grupo de oito parlamentares que decidiram se abster no primeiro e no segundo turnos de votação na Câmara dos Deputados (texto de carta justificativa da abstenção, divulgada por eles em 6 de agosto, figura no site pessoal do deputado: www.ivanvalente.com.br). 
Em reação, a Comissão Executiva do Diretório Nacional do PT decidiu, em 1º de setembro, aplicar aos parlamentares a punição de suspensão por 60 dias dos trabalhos do PT, fundamentando o ato no Estatuto do partido que a autoriza a agir como fez. Não pretendo, no presente texto, comentar a decisão da CE-DN do PT, uma vez que não sou filiado ao partido e não me cabe tecer considerações sobre suas decisões internas.
Mas gostaria, sim, de comentar, enquanto cidadão brasileiro, as posições dos parlamentares, uma vez que elas tocam em questões relevantes para todos nós, não apenas da governabilidade estrito senso, mas igualmente da sustentabilidade da economia brasileira e de suas possibilidades de oferecer um futuro melhor aos milhões de brasileiros que não dispõem, como nós (e os parlamentares) de condições satisfatórias de aposentadoria, ou sequer de existência. Informo, incidentalmente, mas isso não interfere em minhas posições, que sou funcionário público federal, potencialmente afetado, portanto, por qualquer mudança que se faça nas regras de aposentadoria pública.
Como os argumentos do artigo do deputado Valente se confundem, em grande medida, com as justificativas alinhadas pelos oito parlamentares, em cujo grupo ele se inclui, vou comentar preferencialmente aquele documento, com referências ocasionais ao artigo publicado na Espaço Acadêmico. Procederei da forma habitual, reproduzindo trechos do documento, aduzindo então meus próprios comentários a respeito dos pontos suscitados no texto original.

Comentários a uma carta economicamente absurda, politicamente parcial e socialmente injusta

Nós, deputados petistas que não votamos na Emenda Aglutinativa da mudança constitucional da Previdência Social, cujas alterações finais foram consideradas insuficientes inclusive pela CUT, temos plena consciência do significado político de nossa posição de ABSTENÇÃO e declaramos que:
PRA: Nada a comentar. É direito deles adotar a posição que desejarem, sendo de se congratular, porém, que o tenham feito de modo claro e explicitando suas razões, ainda que equivocadas, não em função de algum argumento de autoridade ou de disciplina partidária, mas com base na inconsistência intrínseca de suas posições, como pretendo demonstrar.

1. O verdadeiro problema estrutural da Previdência Social é a escandalosa exclusão de mais de 50% da população trabalhadora brasileira de seu âmbito. O que é necessário, além de uma vigorosa política de reforma agrária, de reforma urbana e de retomada do crescimento, é uma fiscalização governamental implacável e incorruptível e uma verdadeira política de seguridade social includente.
PRA: A exclusão previdenciária não é obra deste governo ou de qualquer governo anterior, e sim da estrutura econômica e social do país: cerca de 40% da população economicamente ativa trabalha na informalidade, o que corresponde grosso modo a esses excluídos dos regimes previdenciários oficiais. Os parlamentares têm algo a comentar a esse respeito? Para se aplicar uma “política de seguridade social includente” seria preciso que essas pessoas estivessem já incluídas no setor formal da economia, sem o que o governo não teria condições de cobrir despesas sem o correspondente aprovisionamento (que no caso correspondem às contribuições efetuadas segundo o regime da repartição, que é o nosso). As demais “vigorosas políticas” demandadas pelos deputados precisam ser implementadas com base em recursos existentes, caso contrário se estaria praticando “surrealismo econômico”, não uma gestão responsável da economia. Diga-se de passagem, aliás, que a maior parte dos problemas detectados nesta carta dos deputados decorre de uma profunda ignorância dos fundamentos e mecanismos não só de finanças públicas como de economia elementar, por isso eu recomendaria que eles tentassem se orientar melhor, consultando por exemplo algum manual de introdução à economia, desses disponíveis em qualquer curso universitário de qualidade.

2. A alteração proposta - e aprovada num dia de cerceamentos à presença popular e de aceleração da votação - não assegura essas condições; sequer é um requisito prévio, não procedendo a argumentação de que os "privilégios" dos servidores atuais e dos aposentados impedem uma expansão e direção do gasto público para beneficiar os outros trabalhadores. Ela não transfere renda através do Estado, nem através do mercado, para os setores mais empobrecidos dos trabalhadores e da população. Como política econômica, ela diminuirá a renda de significativa parcela do setor público. É também forçoso reconhecer que parte da crise econômica brasileira, e da recessão que bate às portas, deve-se ao confisco salarial perpetrado contra o funcionalismo público (um dos pilares do mercado interno) durante os últimos governos. 
PRA: A reforma da Previdência não se destina a “transferir” renda nem dentro ou fora do Estado, através ou a despeito do mercado: ela se destina, tão simplesmente a impedir que o crescimento do déficit público gerado pela fatura previdênciária, pública e geral, conduza, em primeiro lugar, à falência de todo o sistema e, em segundo lugar, estrangule de vez toda e qualquer possibilidade de crescimento econômico no País. Ela se destina, pura e simplesmente, a impedir que ocorra uma erosão maior das finanças públicas, que o déficit se agrave e comprometa outros setores da economia nacional. Estamos em face de uma situação grave, o que constitui uma verdade clara e insofismável para qualquer pessoa minimamente versada na situação das contas públicas, o que não parece ser o caso dos oito parlamentares. Se não se partir destas premissas, qualquer discussão racional sobre o problema da Previdência se torna inviável.
Digo mais: a reforma que se está alcançando agora não resolverá o problema da falência ulterior do sistema, como tampouco restabelece as condições para a retomada do crescimento. Repito, para que fique claro: ela apenas impede que o déficit continue a crescer de modo incontrolado, mas o problema continua colocado e novas reformas do sistema da Previdência serão necessárias para não apenas dar-lhe o equilíbrio desejável, mas também para converter a Previdência em uma das alavancas da poupança nacional como ela deveria ser em qualquer regime previdenciário racional. Se os deputados não sabem como andam as contas da previdências, ou os números relativos à poupança nacional (e à despoupança estatal), deveriam procurar se informar melhor. Os dados estão disponíveis no site da Previdência, em estudos efetuados por órgãos como IPEA e outras instituições públicas insuspeitas de animosidade contra os funcionários públicos. 
Comento, finalmente, os argumentos de “demanda” oferecidos nesta seção, os de que, a reforma, “[c]omo política econômica, (…) diminuirá a renda de significativa parcela do setor público. É também forçoso reconhecer que parte da crise econômica brasileira, e da recessão que bate às portas, deve-se ao confisco salarial perpetrado contra o funcionalismo público (um dos pilares do mercado interno) durante os últimos governos.”
Nada disso é correto ou consistente: (a) a reforma NÂO diminuirá a renda do setor público, pois ela se aplica (infelizmente) em direção ao futuro, não imediatamente; (b) a crise brasileira NÃO se deve a esse “confisco salarial”, cujo impacto, em termos salariais, é mínimo para impactar a demanda global, e (c) o setor público NÃO é um dos pilares do mercado interno (no máximo em Brasília), pois sua participação na PEA é marginal em termos de renda ou valor agregado. Os deputados deveriam solicitar a suas assessorias respectivas os dados reais da economia do setor público no Brasil, que não tem o peso que eles pretendem lhe atribuir, de modo totalmente desinformado e equivocado.

3. As alterações oferecidas não criam novas modalidades de Previdência Social e agridem alguns direitos jamais questionados nos programas e nos discursos de campanha do PT, como a não taxação de aposentados, a integralidade de pensões e regras justas de transição. Sua tramitação e apreciação final, a toque de caixa, não combina com o regime democrático. Toda vez que governos, para resolverem seus problemas de caixa, mexem nos direitos adquiridos, abala-se o Estado de Direito. 
PRA: O fato de que o PT tenha defendido idéias e posições equivocadas no passado não implica em que ele o tenha de fazer agora que é governo, e passou a  conhecer – já podia fazê-lo antes, pois eles estavam disponíveis, mas isso não vem ao caso agora – os números das contas públicas e seu impacto na economia real, em termos de financiamento de gastos correntes do Estado e suas incidências tributárias. Se estas idéias não foram jamais questionadas, trata-se de cegueira temporária e de miopia política que podem ser corrigidas por dados corretos e boa disposição para admitir erros passados.
O argumento dos “direitos adquiridos”, agitado em causa própria, representa uma das mais indecentes defesas das distorções acumuladas ao longo de anos e décadas de assalto aos cofres do Estado por grupos organizados dentro e fora do setor público. Como esses “direitos” não figuravam na criação do Estado ou da nacionalidade, supõe-se que eles tenham sido colocados na Constituição ou na legislação ordinária em algum momento por alguém (ou alguns): isso não lhes confere nenhuma legitimidade intrínseca, pois podem ter resultado, como de fato resultaram, de manobras ou pressões explícitas para garantir algum tipo de vantagem que não é partilhada com outras categorias. O estado de direito tem a ver com o tratamento igualitário do ponto de vista jurídico e a preservação do direito de defesa, não com disposições especiais que visam objetivos específicos. 

4. O fato de que existam notórias distorções na remuneração e benefícios das carreiras de Estado impõe aos poderes públicos a necessidade de corrigi-las, dentro do método participativo que o PT sempre defendeu e praticou. Uma primeira providência é evidentemente o estabelecimento de tetos para a remuneração de todos os servidores, enquanto o decorrer do tempo se encarregará de eliminar, dos encargos da União, dos Estados e municípios, as superaposentadorias e outras acumulações, aleijões que uma legislação patrimonialista e permissiva permitiu e incentivou. A quase totalidade do funcionalismo público na ativa e na aposentadoria, porém, não goza de nenhuma regalia. Seus direitos estão assegurados na mesma Constituição que fundou as bases para a legitimidade da alternância de poder que o governo atual confirma.
PRA: Exatamente: a quase totalidade do funcionalismo público não será atingida pela reforma em implementação, o que não impede aliás que novas regras sejam mudadas (como a do alongamento das idades mínimas de aposentadoria, por exemplo, o que corresponde a um simples fenômeno demográfico). As demais distorções podem e devem ser corrigidas em nome da justiça social. Toda a reforma previdenciária aponta nessa direção e não se compreende a oposição dos parlamentares.

5. A proposta de mudança na Previdência, além de negociada previamente com os governos estaduais mergulhados em profunda crise fiscal, foi encaminhada ao Poder Legislativo para atender a uma expectativa do Fundo Monetário Internacional, cujos resultados em outros países já mostraram sua perniciosidade. No nosso caso, um pressuposto básico foi desconsiderado: a discussão do papel do Estado e de seu tamanho para suprir as necessidades essenciais da população e do desenvolvimento social.
PRA: A reforma não se destina a atender ao FMI, mas responde a uma simples constatação de desequilíbrio crescente das finanças públicas: se ela também corresponde a observações do FMI sobre a economia brasileira é porque esse organismo, ao qual o Brasil pertence desde a sua criação, conduz regularmente exames das economias nacionais (o chamado “Artigo IV”) e como ele tem economistas, medianamente esclarecidos, estes chegaram, antes ou depois, às mesmas constatações já feitas por economistas nacionais desde os anos 1980, pelo menos. Os deputados estão atrasados no estabelecimento das coincidências. 
O pressuposto básico, desconsiderado pelos deputados, se expressa numa única progressão econômica: em dez anos, a parte arrecadada pelo Estado do PIB passou de 25% a cerca de 35%, uma progressão de 10%, sem o correspondente crescimento nos serviços oferecidos pelo Estado (ao contrário). Pode-se discutir as propostas de discussão sobre o papel do Estado apresentadas pelos deputados de duas formas: pode-se considerar que o Estado precisa arrecadar cerca de 80% do PIB, para “suprir as necessidades essenciais da população e do desenvolvimento social”, ou que sua parcela atual já é suficientemente alta e impede, de fato, a economia privada de atender às necessidades de investimento e de emprego da população como um todo. 

6. Um governo que tem o Partido dos Trabalhadores como sua coluna vertebral não pode dar margem à transferência de recursos da Previdência Social para o capital financeiro especulativo. A experiência internacional na matéria é francamente negativa. Mesmo nos casos de uma forte tradição liberal de mercado, como nos Estados Unidos da América, os prejuízos para aposentadorias e poupanças, derivados de suas ligações com o mercado de capital e os portfólios de ações empresariais , têm sido devastadores. 
PRA: A primeira frase expressa nada mais senão ignorância, profunda, abismal, incompreensivel em representantes do povo e supostamente dotados de uma assessoria esclarecida, dispondo pelo menos de nível universitário. Considerar que as contribuições do sistema previdênciário se destinem à transferência ao “capital financeiro especulativo” é de um tal absurdo que não mereceria sequer um comentário de minha parte. Trata-se de algo pior que demagogia: só posso classificar como burrice pura e simples. 
O exemplo de “experiência internacional” referido não tem absolutamente nada a ver com a administração pública de um sistema previdenciário público, mas apenas com a aplicação de fundos previdenciários fechados no mercado geral de valores e títulos. De todo modo, se teria de considerar tanto os fundos que foram bem sucedidos em suas aplicações nesse mercado, como os que tiveram prejuízos, algo que se situa inteiramente dentro das regras do jogo. Se você pretende ganho seguro, aplique em bônus do Tesouro, remunerados a 3,5%, mas se quiser ganhar mais vá para o mercado acionário ou de derivativos financeiros: os ganhos podem ser de 25%, mas os riscos são comensuráveis. 

7. A Previdência Social universal foi e é um dos mecanismos mais importantes para a redução das desigualdades, que são quase naturalmente o resultado de um sistema econômico concentrador como o capitalismo. Somente instituições que busquem exatamente fugir ao predomínio da lei do lucro conseguiram, ao longo da história do capitalismo, ajudar a reduzir as iníquas distorções econômicas e sociais.
PRA: Certamente que a previdência cumpre também essa função, no que se refere às mais baixas remunerações, várias delas, aliás (como as rurais), sem qualquer correspondência com a contribuição efetiva. Mas isso não tem nada a ver com os problemas que se pretende corrigir, que visam as pensões “desiguais” de nível incomensuravelmente mais alto, escandalosamente distanciadas do regime geral e que são, precisamente, a principal fonte de desigualdades na repartição geral do bolo previdenciário. Os deputados parecem ignorar a imensa “redistribuição de renda” que se opera em favor de estratos privilegiados e em desfavor dos mais humildes decorrente do atual sistema previdenciário, um fator objetivo de concentração de renda.
Quanto às considerações sobre o capitalismo, elas não têm, mais uma vez, nada a ver com o regime previdenciário, que funciona em bases “não-capitalistas”. Quanto aos problema da concentração e das desigualdades, uma simples constatação: os países mais avançados da Europa e da América são reconhecidamente mais capitalistas do que o Brasil; eles também são menos desiguais e menos concentradores. O suposto predomínio da “lei do lucro” é historicamente incorreto, já que o capitalismo sempre foi “amenizado” por regulações sociais que ultrapassam a capacidade “regulatória” desse modo de produção, de resto o único que sobreviveu ao teste da história com base na eficiência relativa de seu funcionamento (comparativamente, está claro, às alternativas disponíveis no “super-mercado” da história). De toda forma, o argumento dos deputados é por demais difuso e impressionista para ser discutido seriamente por pessoas interessadas em resolver um problema técnico e contábil, como é o da previdência. Sua reforma não vai fazer o Brasil ser mais ou menos capitalista, ela apenas vai impedir o Estado de implodir.

8. A Previdência Social, na forma pensada e posta em ação pelo neoliberalismo, é parte de um amplo processo de desmanche do Estado regulador. Não há crescimento e desenvolvimento econômico possível para as nações da periferia sem um Estado ativo e interventor, quando necessário, pois nossas condições de periferia não recomendam os puros automatismos do mercado. A experiência brasileira e de outras nações da periferia demonstram que não foi a posse de uma moeda própria a condição para o desenvolvimento, mas a utilização de outras formas e instituições, entre as quais a Previdência Social, que acumulou e carreou fundos para o desenvolvimento.
PRA: Os argumentos são simplesmente surrealistas e não mereceriam qualquer contestação se não fosse para lembrar os mal informados deputados de que a Previdência não apenas não “acumula” nem “carreia” recursos para o desenvolvimento brasileiro, como, ao contrário, ela está desviando recursos dessa “função” e colocando-os nas mãos de alguns grupos, apenas, de funcionários públicos. Não preciso lembrar que não foi essa entidade desconhecida e incorpórea, chamada “neoliberalismo”, que colocou em marcha a reforma da Previdência, mas um governo com cara, endereço e discursos próprios. O “desmanche” do “Estado regulador” só existe na imaginação dos deputados, que deveriam falar menos através de surrados slogans e dedicar-se ao estudo da economia. 

9. A satanização dos funcionários públicos não serve à causa republicana e democrática. Não há Estado republicano sem uma forte, preparada e adequadamente remunerada função pública, cuja impessoalidade e imparcialidade são condições sine qua non para os próprios interesses privados. Sem desconhecer as distorções e imperfeições existentes no Serviço Público, que devem ser urgentemente corrigidas, é preciso proclamar sua prevalência sobre a tradição de um Estado patrimonialista, lugar onde todas as oligarquias e burguesias predatórias têm realizado o assalto ao dinheiro público para beneficiar-se. Que o digam as espantosas dívidas do empresariado com a própria Previdência Social. 
PRA: Meus argumentos de acima também se aplicam aqui: não me cabe discutir contra argumentos surrealistas. De toda forma, não está em causa, aqui, a sociologia do setor público, e sim suas contas deficitárias. O discurso generalizante e estereotipado, à base de invectivas, não resolve em nada a situação dos miseráveis do Brasil, como aliás não ajuda em nada a própria causa de quem eles pretendem defender. Argumentos técnicos, bem embasados, permitiriam manter uma discussão racional, mas manifestos políticos se prestam mal a esse tipo de diálogo.

Fomos orientados nesta difícil decisão pelos princípios que construíram a tradição de lutas do Partido dos Trabalhadores, cuja necessária e indormida vigilância conseguiu atenuar a depredação dos direitos sociais no período de FHC. 
PRA: Trata-se de uma afirmação, que tem tanta legitimidade quanto uma afirmação contrária: a de que a ação passada e a “tradição de lutas” do PT impediu que se fizesse antes a necessária reforma da Previdência, causando portanto o agravamento do déficit público e uma “despoupança” estatal muito maior do que ocorreria se as reformas tivessem sido feitas antes, com a colaboração patriótica do PT. Equívocos passados não podem eximir determinados parlamentares de responsabilidades presentes. Se eles não estão preparados para assumi-las deve ser porque não ultrapassaram ainda a fase dos slogans e invectivas para assumirem encargos governativos, ou porque não percebem a dimensão econômica e social de seus atos. Num caso são irresponsáveis, em outro são ingênuos. 

Nosso voto reafirma a convicção de que não podemos violar a trajetória do PT na defesa dos direitos dos trabalhadores e do Serviço Público de qualidade. Ele se deu em nome da coerência com as ações e votos anteriores proferidos pelo nosso Partido em favor da Previdência Pública no Congresso Nacional.
PRA: Eles preferem violar a trajetória de milhares de trabalhadores excluídos atualmente de um emprego formal e portanto de direitos previdenciários futuros. A coerência com equivocos passados denota pelo menos inconsciência, ou uma recusa em confrontar a realidade e dela tirar conseqüências para a ação do presente. O serviço público de qualidade vem sendo colocado em risco pelas disfunções acumuladas em vários setores, entre eles o da Previdência. Não reconhecer essa realidade pode ser ingenuidade, inconsciência ou irresponsabilidade. 

A nossa abstenção simboliza nossa discordância com relação à Reforma da Previdência, não significando, entretanto, rompimento com a bancada, o partido e o governo, com quem queremos continuar dialogando, na perspectiva da construção de um governo democrático e popular em nosso país, fundamental para atender às expectativas e às esperanças de nosso povo.
PRA: Os deputados carecem de informação, de análises responsáveis, ou de um pouco de disposição para encarar certos aspectos desagradáveis da realidade brasileira, como pode ser a falência anunciada do setor público. Se pretendem diálogo, deveriam pelo menos colocar a discussão em bases técnicas, como deveria ser, não ficar alinhando argumentos que podem fazer algum sucesso em assembléisa estudantis ou em comícios sindicais. Quem se prepara para exercer o poder, como supostamente esse grupo também deveria alimentar essa perspectiva, tem a obrigação de se munir dos melhores dados para enfrentar a realidade. Esconder-se atrás de slogans é a pior das soluções administrativas, só compatível com um regime patrimonialista ou tradicional, que eles dizem abominar. 

Nosso clamor, que é o de milhares de petistas de todo o Brasil e dos nossos eleitores, é para que a agenda de mudanças reais lideradas pelo nosso governo comece de fato. Obviamente, ela não tem nada a ver com redução de verbas para a educação e saúde, precarização de direitos trabalhistas, continuidade dos exorbitantes ganhos de bancos, renovação de acordo de elevado superávit primário com o FMI, alimentos geneticamente modificados, autonomia do Banco Central e inserção subordinada na ALCA.
PRA: O “clamor” dos deputados está mal dirigido: ele deveria se exercer contra os inúmeros privilégios que ainda subsistem no setor público, a começar pelo Legislativo e no Judiciário, privilégios incompatíveis com a situação real da maior parte dos trabalhadores brasileiros. A agenda de mudanças da Previdência não tem nada a ver com o FMI, com a Alca, com os OGMs, com a autonomia do BC e outros elementos mais ou menos estapafúrdios que os deputados alinham para tentar “legitimar” uma oposição a uma reforma necessária e imprescindível. Volto a lembrar: essa reforma apenas começou e ela deve continuar, atingindo agora alguns bolsões de privilegiados dentre os militares e os membros da magistratura. 
Os deputados estão causando um desserviço ao Brasil, ao governo do PT e a si mesmos, ao se desqualificarem para um debate sério sobre a questão previdenciária e sobre os rumos do setor público. Aparentemente, eles estão se desqualificando também para outros debates, sobre o FMI, sobre a Alca, sobre os OGMs e o BC, pois não parecem estar preparados para avançar argumentos economicamente embasados sobre todas essas questões.
Parlamentares? Aderindo à paráfrase: para lamentar…

Paulo Roberto de Almeida
Washington, 1 de setembro de 2003

Um possível discurso do PR na ONU, em 2003 - Paulo Roberto de Almeida

Ao final do mês de agosto de 2003, ainda em Washington, mas já trabalhando em função de meu futuro cargo de assessor de um dos membros da troika de aconselhamento presidencial, sabedor do comparecimento do presidente, pela primeira vez, à AGNU de setembro desse ano, resolvi propor um artigo a ser assinado por ele, e destinado a ser publicado na imprensa americana (NYT ou WP). Escrevi o trabalho de n. 1100 e mandei a Brasília, mas sem qualquer ilusão de que pudesse ser aproveitado. 

1100. “Uma certa ideia do Brasil, e do mundo…”, Washington, 23 agosto 2003, 3 p. Proposta de artigo para ser publicado na imprensa americana quando da presença do presidente Luiz Inácio Lula da Silva na Assembleia da ONU, em 23 de setembro de 2003. Encaminhado ao Ministro-chefe da Secretaria de Comunicação de Governo e Gestão Estratégica. 

Transcrevo, em primeiro lugar, minha mensagem particular ao futuro chefe, e depois o artigo que escrevi, na frágil esperança de que pudesse ser aproveitado.
Paulo Roberto de Almeida 
Brasília, 2/09/2018
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Encaminhado em 24.08.03, com a nota abaixo:

Senhor Ministro-chefe da Secretaria de Comunicação de Governo e Gestão Estratégica,
    Há algum tempo eu propus ao Embaixador Rubens Barbosa que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva assinasse um artigo destinado a ser publicado na imprensa americana quando de sua presença na Assembleia da ONU, em 23 de setembro de 2003. 
    Faltando agora um mês para o evento, submeti-lhe o texto anexo, intitulado “Uma certa ideia do Brasil, e do mundo…”, que está sendo encaminhado ao Itamaraty nesta segunda-feira 25.
    Duas coisas vão ocorrer com o texto, porém: (a) ele vai cair no buraco negro do Itamaraty, onde dezenas de expedientes circulam por dia, e sua lenta caminhada em direção a uma aprovação, ministerial ou presidencial, pode portanto nos levar até as vésperas da abertura da Assembleia da ONU; (b) ele vai ser devidamente esquartejado e reempalhado, com um bocado de bullshit diplomático dentro dele: Conselho de Segurança para cá, Iraque para lá, Mercosul de um lado, Alca de outro, OMC para cima e comércio justo por baixo. Enfim, o menu prato feito no qual somos mestres...
    Eu concebi o texto como uma singela peça de natureza pessoal para "conversa" direta com o público americano, não como um manifesto de diplomacia universal para consumo de outros governos. 
    Por isso resolvi mandar o texto em sua forma original para seu exame e apreciação, antes que ele vire um espantalho cheio de diplomatices.
    Com os melhores cumprimentos do
Paulo Roberto de Almeida

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Uma certa ideia do Brasil, e do mundo…

Luiz Inácio Lula da Silva
Presidente do Brasil
(proposta de artigo para a imprensa americana:
setembro de 2003, Assembleia da ONU)
(1ª versão: 23 de agosto de 2003)

Vim a Nova York para falar na ONU. Trata-se de uma tradição: a cada ano, o Brasil abre o debate na Assembléia Geral. Já estive outras vezes em Nova York e nos Estados Unidos, inclusive visitei duas vezes, a seu convite, o presidente Bush, em Washington, mas ainda não tinha estado em Nova York investido da responsabilidade de dirigir e de representar o meu país.
Trata-se de uma dura responsabilidade: o Brasil é o quinto maior país do mundo em território e população, é a décima economia mundial, mas ele também é, infelizmente, um país pequeno nos indicadores de felicidade humana. O índice de desenvolvimento humano do Brasil é modesto, se comparado à pujança de nossa economia, e as taxas de distribuição da renda, iníquas e inaceitáveis, nos colocam, vergonhosamente, atrás de vários países africanos e latino-americanos. Eu fui eleito para mudar isso. Pretendo fazê-lo. Vou mudar a face social do Brasil. 
Minha idéia do Brasil é a de um país no qual as realizações mais modernas da indústria, da agricultura e da ciência – e o Brasil também as tem – possam contemplar igualmente imensos estratos da população hoje afastados de seus benefícios. Minha idéia do Brasil é a de um país no qual muito mais crianças saídas de lares modestos, quando não paupérrimos, como era o da minha infância, muito mais crianças nascidas em regiões pobres, como era, e ainda é, o meu Nordeste, possam ter a chance de também galgar os degraus da realização profissional e os da ascensão social e aspirar um dia, quem sabe?, a dirigir um país tão complexo e contraditório como é o Brasil. 
Nós temos de tudo: extremos de riqueza e de pobreza, os avanços da tecnologia e ainda muitos bolsões de miséria, um cultura totalmente integrada nacionalmente, mas também marcada regionalmente, absoluta tolerância de crenças e a mais ampla liberdade e diversidade religiosas, um verdadeiro cadinho (melting-pot) de raças, mas ainda muitas promessas não cumpridas para nossas minorias negras e indígenas.
Eu pretendo preservar o que o Brasil tem de bom e ajudar a corrigir o que ele tem de ruim. Fui eleito para isso e por causa disso. Os milhões de brasileiros esperançosos que me escolheram queriam isso: mudança, para melhor. Pela primeira vez em nossa história alguém saído do povo mais sofrido consegue chegar ao comando do país e pode pretender transformar, finalmente, uma grande economia e um grande povo numa grande nação, menos desigual e mais aberta às aspirações dos mais pobres. 
Essa é a minha idéia do Brasil: pretendo realizá-la. Vou precisar do concurso de todos os brasileiros, e também dos investidores estrangeiros. Os brasileiros já me conhecem, mas aos investidores quero dizer que o meu governo não pretende fazer nenhum tipo de discriminação contrária aos seus interesses legítimos e que a nossa economia está aberta ao concurso dos capitais de fora: eles serão tratados como os nacionais, e talvez até um pouco melhor, pois que podem entrar e sair quando desejarem. 
Não faremos imposições indevidas nem estabeleceremos regras inadequadas: esses capitais podem vir e também participar da grande tarefa de transformação do Brasil numa grande economia não só avançada, mas socialmente desenvolvida e bem mais equilibrada do que hoje. Contrariamente a muitos nos países em desenvolvimento, eu não acredito que os interesses de lucro dos investidores estrangeiros se oponham aos nossos interesses de desenvolvimento social, ou aos interesses de quaisquer outros países em desenvolvimento. Uma empresa estrangeira bem sucedida no Brasil é também um motivo de sucesso para seus trabalhadores e o seu povo. Esta é a minha idéia do Brasil e desejo realizá-la com a ajuda de todos. 
O Brasil também é um país aberto ao mundo e participante da construção de uma comunidade internacional mais solidária e pacífica. Em toda nossa história independente, o Brasil jamais moveu uma guerra de conquista, nunca provocou conflitos com os seus vizinhos e sempre atuou, mesmo nos momentos de maior tensão em nossa região, em prol da paz e da concórdia entre os povos. O Mercosul, antes mesmo de ser uma zona de livre comércio, um espaço econômico unificado, é uma área de paz, uma região de segurança.
A minha idéia do mundo é a de um planeta bem mais integrado do que hoje: eu quero a globalização do bem-estar, da prosperidade, da felicidade humana. O Brasil deseja e vai participar dessa globalização necessária: a dos avanços e das realizações da civilização humana em coisas materiais e espirituais, da mesma forma como pretendo fazer no plano doméstico.
O mundo precisa de paz para alcançar esses objetivos, precisa da afirmação dos princípios do direito internacional, da autoridade inquestionável da ONU como fonte de toda a legitimidade. A luta contra a intolerância e o terrorismo é um dever de todos e uma tarefa que deve unir a comunidade internacional. O Brasil está disposto a assumir sua parte de responsabilidade no processo de soerguimento moral e material da humanidade, dentro e fora do sistema das Nações Unidas.
O mundo e o Brasil se parecem um pouco: os mais modernos avanços da ciência e da tecnologia, indústrias pujantes e competitivas, inovações culturais e artísticas, mas também muita miséria residual e muito sofrimento humano. Felizmente, não temos entre nós conflitos civis ou religiosos, o estigma do terrorismo ou guerras cruéis, como as que dividem ainda vários países em outras regiões do globo. O aspecto mais paradoxal do mundo contemporâneo é que, superado o colonialismo de um passado remoto, dominação e exploração de muitos já não são mais funcionais para o progresso e o desenvolvimento material de alguns poucos. Todos podem e vão poder alcançar maior grau de bem estar e de segurança através da promoção da liberdade e da prosperidade para todos. Esta é a minha visão da globalização.
Acho sinceramente que o Brasil tem muito a ensinar ao mundo em matéria de tolerância religiosa e de boa convivência étnica, mas ele também tem muito a aprender do mundo em matéria de distribuição eqüitativa dos benefícios do progresso material e dos avanços educacionais. Eu fui eleito justamente para isso. Desejo e vou cumprir o que prometi ao povo brasileiro. E nós brasileiros, vamos também, na medida de nossas possibilidades, ajudar o mundo a ficar um lugar melhor do que ele é hoje. Esta é a minha visão do Brasil e do mundo. 

Luiz Inácio Lula da Silva.

(3 p., 1080 palavras, 6.500 caracteres com espaço)