O que é este blog?

Este blog trata basicamente de ideias, se possível inteligentes, para pessoas inteligentes. Ele também se ocupa de ideias aplicadas à política, em especial à política econômica. Ele constitui uma tentativa de manter um pensamento crítico e independente sobre livros, sobre questões culturais em geral, focando numa discussão bem informada sobre temas de relações internacionais e de política externa do Brasil. Para meus livros e ensaios ver o website: www.pralmeida.org. Para a maior parte de meus textos, ver minha página na plataforma Academia.edu, link: https://itamaraty.academia.edu/PauloRobertodeAlmeida.

sábado, 4 de janeiro de 2020

Revisando a Carta ao Povo Brasileiro de Lula (2002): novas revelações

Então a "Carta ao Povo Brasileiro", que Lula divulgou em meados de 2002 era, na verdade, dirigida a um "povo especial"? 
Quero dizer, ela se dirigia mais aos grandes capitalistas que iriam sustentar o "governo popular" do carismático líder sindicalista do que propriamente ao povinho miúdo das políticas assistencialistas?
É o que transparece desta matéria, que promete revisar algumas das suposições que tínhamos, em 2002, a respeito desse importante documento que praticamente carimbou a vitória de Lula nas eleições de outubro de 2002.
Lembro-me perfeitamente de grandes banqueiros e capitalistas brasileiros, reunidos para um daqueles grandes encontros de plutocratas nos EUA – eu estava então servindo na embaixada em Washington –, e que praticamente selaram a vitória de Lula: eles passaram o tempo todo, numa reunião em New York em agosto de 2002, fazendo elogios a Lula, ignorando totalmente o candidato Serra, do PSDB, e convencendo seus interlocutores americanos, preocupados com a vitória de um "esquerdista socialista" nas eleições de outubro, que Lula não era nada daquilo que diziam, e que ele seria um bom candidato e um presidente perfeitamente aceitável para a plutocracia americana.
Esta matéria deixa a entender porque.
Eu sempre fiquei intrigado pela súbita, total e completa conversão da plutocracia brasileira – grandes capitalistas e banqueiros conhecidos – ao candidato "socialista" e procurei explicar essa conversão num texto que escrevi praticamente no imediato seguimento da divulgação dessa Carta, e muito antes da vitória de Lula, mas que só desvendei muito anos depois: 
“Lula e as relações internacionais do Brasil”, Washington, 24 junho 2002, 6 pp. Comentários aos aspectos de relações internacionais da “Carta ao Povo Brasileiro”, apresentada como resultado da conferência nacional sobre programa do PT, pelo candidato Luis Inácio Lula da Silva. Divulgado no blog Diplomatizzando (22/10/2017; link: https://diplomatizzando.blogspot.com.br/2017/10/carta-ao-povo-brasileiro-lula-2002.html).
Num texto de abril de 2004, e jamais divulgado, eu fazia um comentário à Carta e às novas posições econômicas de Lula, que divulgo agora, ao final desta postagem.
Pouco depois, ao se completarem dois anos desde a divulgação da Carta ao Povo Brasileiro, eu fazia uma análise daquele "documento de ruptura" num artigo que foi, sim, publicado em meu nome, e novamente divulgado em 2016, como registro abaixo: 


1294. “Dois anos de ‘Carta ao Povo Brasileiro’: De volta a um documento de ruptura”, Brasília, 27 junho 2004, 16 p. Análise do discurso argumentativo desse documento de campanha do candidato Lula (06/2002), com base em sua lógica intrínseca, sem tentativa de balanço em relação ao conteúdo efetivo. Publicado no Espaço Acadêmico (n. 38, jul. 2004). Relação de Publicados n. 474. Postado novamente no blog Diplomatizzando, em 4/04/2016 (link: http://diplomatizzando.blogspot.com.br/2016/04/a-carta-ao-povo-brasileiro-de-2002.html); disseminado no Facebook (https://www.facebook.com/paulobooks/posts/1126550154075100).

Creio que a história revisitada sempre nos traz algumas precisões sobre o passado.
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 4 de janeiro de 2020

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LAVA-JATO

O dedo de Emilio Odebrecht na carta mais importante de Lula

Por Lauro Jardim
02/01/2020 • 08:03

Lula e Emílio Odebrecht
A reportagem de capa da revista piauí que chega amanhã às bancas, "História de uma amizade — como Emílio Odebrecht se aproximou de Lula e o que aconteceu depois", escrita por Malu Gaspar, traz uma revelação sobre a célebre "Carta ao povo brasileiro": o texto com o qual Lula pretendeu acalmar o establishment econômico na eleição de 2002 teve o dedo do pai de Marcelo Odebrecht. Escreve Malu:
— Em meio a intenções genéricas, um item em particular indicava a digital da Odebrecht: a criação de uma secretaria de Comércio Exterior, ligada diretamente à Presidência da República, com a intenção de facilitar o financiamento a obras de infraestrutura e exportação de serviços. 
A capa de piauí é um trecho inédito do livro que a autora do excepcional "Tudo ou Nada — a verdadeira história do grupo X" está escrevendo sobre a Odebrecht e que será lançado em meados do ano pela Companhia das Letras.


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Comentário PRA, de abril de 2004, inédito até o momento: 

Puxando pela memória

Paulo Roberto de Almeida
7 de abril de 2004

Nosso povo constata com pesar e indignação que a economia não cresceu e está muito mais vulnerável, a soberania do país ficou em grande parte comprometida, a corrupção continua alta e, principalmente, a crise social e a insegurança tornaram-se assustadoras.” Triste quadro, não é? Mas a frase não tem, ou não tinha, a intenção de descrever a atual situação de incertezas e de baixo crescimento.
Ela data de 22 de junho de 2002 e visava o governo de FHC. Seu autor?: Luiz Inácio Lula da Silva, na “Carta ao Povo Brasileiro”. Que voltas que o mundo dá, não é?
O povo brasileiro quer mudar para valer. Quer trilhar o caminho da redução de nossa vulnerabilidade externa pelo esforço conjugado de exportar mais e de criar um amplo mercado interno de consumo de massas.” Mudou para valer? Estamos menos vulveráveis? Sim, aumentamos nossas exportações, mas nisso o governo atual leva pouco crédito: depois da desvalorização provocada pelo pânico eleitoral, o câmbio valorizou-se em 2003, sendo a boa situação da economia mundial e a crescente demanda chinesa por importações os reais responsáveis pelo bom desempenho exportador. A dívida externa aumentou e a interna seguiu atrás. Quanto ao amplo mercado interno, só se for para calmantes e anti-depressivos, pois a massa real de rendimentos caiu 7,3% em 2003.
O nervosismo dos mercados e a especulação não nascem das eleições. Nascem, sim, da graves vulnerabilidades estruturais da economia apresentadas pelo governo, de modo totalitário, como o único caminho possível para o Brasil. Na verdade, há diversos países estáveis e competitivos no mundo que adotaram outras alternativas.” Parece que foi hoje, não é mesmo? Pois o governo do PT se eximiu, em 2002 ou atualmente, de dizer, concretamente, quais eram esses caminhos alternativos, sob risco de pensarmos que a carta-compromisso era mera demagogia. Quais seriam esses países? Índia, China, Rússia? Eles estão mesmo melhor do que o Brasil? Ou será que Lula queria se referir aos Estados Unidos, à Inglaterra, à França, democracias avançadas, com bem estar pleno para suas populações? Mas esses países são neoliberais, para dizer o minimo.
Será que é a esse modelo a que Lula se referia? Eu, por mim, penso que sim, e a política do Dr. Palocci é totalmente consistente com as receitas do G7 em matéria de responsabilidade econômica. Então, a alternativa do “new” PT é o neoliberalismo? Essa orientação não casa muito bem com a política externa terceiro-mundista que ele vem conduzindo, para alegria e satisfação do “old” PT, que ainda não se converteu ao sensato realismo da equipe econômica. Falando de política externa, eis o que Lula dizia em 2002:
“Nossa política externa deve ser reorientada para esse imenso desafio de promover nossos interesses comerciais e remover graves obstáculos impostos pelos países mais ricos às nações em desenvolvimento.” Não parece, pois que ela desdenha os mercados e os investimentos americanos, parecendo preferir os dos ultra-protecionistas europeus, que só nos compram produtos primários.
E o que Lula propunha na frente interna? “Superando a nossa vulnerabilidade externa, poderemos reduzir de forma sustentada a taxa de juros. Poderemos recuperar a capacidade de investimento público tão importante para alavancar o crescimento econômico.” Não ocorreu a redução e os investimentos, portanto, não foram sustentados, o que deixou o crescimento irrealizado. Mas aqui ocorreu um erro de avaliação. A taxa de juros depende das necessidades de financiamento do setor público, que se abastece no mercado interno. Se Lula quisesse mesmo reduzir a vulnerabilidade externa, deveria começar propondo um superávit primário de 5 ou 6% do PIB, isto é, o governo não precisaria ficar tomando dinheiro no mercado e faria com que os banqueiros deixassem de ser “gigolôs” do Estado. Os juros baixariam rapidamente. Ele pode fazer isso?
Lula tinha consciência, em 2002, de que pelo menos deveria manter a política de responsabilidade fiscal de FHC, mas à sua maneira: “Queremos equilíbrio fiscal para crescer e não apenas para prestar contas aos nossos credores.” Excelente: é o que todo mundo quer. Mas o PT tem a receita mágica do equilíbrio fiscal com crescimento? Se tem, já estava na hora de dizer, pois estamos há anos atolados no desequilíbrio e no baixo crescimento e, até aqui, prestando contas aos credores externos. Onde estão os gênios econômicos do PT? Escondidos de vergonha? Assim fica dificil ganhar as próximas eleições e as de 2006: se eles guardam suas receitas geniais para depois, correm o risco de serem acusados de demagogia eleitoreira e de inconsistência governamental.
Precisamos de uma nova “Carta ao Povo Brasileiro”, que reafirme as bases do crescimento responsável e que diga que a política econômica é essa mesma que está aí. O Dr. Palocci agradece. Nós também, pois saberemos que o PT adotou um novo manual de economia política, que nos livrará, finalmente, de novas promessas de rupturas…

1229. “Puxando pela memória”, Brasília, 20 março 2004, 3 p. Comentário sobre a Carta ao Povo Brasileiro, emitida por Lula em junho de 2002. Inédito.






sexta-feira, 3 de janeiro de 2020

Previsões imprevisíveis de Pai Dudu

Não confundir com as minhas “Previsões Imprevidentes”, que são uma especialidade minha há quase 20 anos (vejam sob esses conceitos em meu blog Diplomatizando).
Estas são apenas “imprevisíveis”, mas na verdade todas elas muito previsíveis, e até esperadas
Paulo Roberto de Almeida

O texto é do Eduardo Affonso

"Há mais de uma década, meu alter ego, o Pai Dudu, vem tendo êxito com suas previsões de ano novo. Elas consistem em sutis variações em torno dos mesmos temas, com margem de erro desprezível. Porque o que muda é o ano, não o mundo, o Brasil ou o ser humano.

Haverá um escândalo na família real britânica. Vazarão nudes de uma subcelebridade. Alguém famoso morrerá de overdose. Um político será flagrado com a boca na botija. A Justiça soltará um político flagrado com a boca na botija. Uma chuva atípica inundará o Rio de Janeiro. O prefeito do Rio de Janeiro combaterá os efeitos da chuva atípica aumentando os gastos com publicidade.

Teremos protestos na França, greves na Itália, terremotos no Japão, crise humanitária na África, furacões e denúncias de assédio nos Estados Unidos. Ivete Sangalo fará uma propaganda. Gerson Camarotti começará um comentário dizendo “Você tem aí...”. Luana Piovani criará um caso. Contraventores circularão livremente pelo Sambódromo. Um casal famoso, que vive expondo sua privacidade na mídia, vai se separar e exigir que a mídia respeite sua privacidade.

Para 2020, Pai Dudu vislumbra em sua bola de policarbonato que o presidente dará uma declaração desastrada e romperá com um (já então ex) aliado. Isso uma vez por semana. Alguém da família presidencial afirmará estar sofrendo perseguição por parte da PM, do MP, da PF, da FSP, do PSL ou de qualquer outra combinação alfabética. Presidente e prole só não estarão gerando uma crise atrás da outra quando estiverem gerando crises simultâneas. O governo atacará a imprensa, que fará um editorial contra o governo, que retaliará a imprensa, que fará outro editorial — em loop.

Haverá troca de tiros em favelas, com a bala perdida saindo inevitavelmente da arma de um policial. O ministro da Educação cometerá erros de grafia, propriedade vocabular, acentuação, pontuação, colocação pronominal, concordâncias verbal e nominal, crase e regência. Até perder o cargo — mas não por esse motivo.

Os progressistas se perguntarão, atônitos, como conviver no carnaval com o tiozão que se veste de mulher (uma forma de perpetuar violências simbólicas contra o gênero feminino), com a tia do zap que se fantasia de melindrosa (eternizando paradigmas arcaicos de feminilidade) e até com a prima tatuada que bota perna de pau e sai num bloco descolado (ignorando o quanto isso possa ser ofensivo aos amputados).

Alguém da área cultural do governo denunciará a ideologização das festas juninas, que tentam solapar as bases da família cristã com o incentivo à troca de casais, implícito no “changez de dame”. A esquerda, por seu lado, verá nas quadrilhas uma crítica ao seu modo de fazer política, no “anarriê” um bordão integralista e na própria festa uma apropriação da cultura caipira.

A economia irá bem, porém abaixo do prometido pelos liberais — o que equivale a ir mal, porém acima da catástrofe sonhada pela esquerda. Líderes impopulares serão eleitos pelo voto popular. Forças conservadoras pedirão o boicote a uma nova novela (se esquecendo de que o controle remoto existe é pra isso mesmo), e a novela boicotada vai bombar. Ministros e máscaras cairão. Os preços e a pressão subirão. Os votos dos ministros do STF continuarão mastodônticos, supervacâneos, adiáforos e indeslindáveis.

Os militantes de esquerda terão dificuldade para conviver com a família na praia no feriadão da Semana Santa, na fazenda no feriadão de Tiradentes, na serra no feriadão de Corpus Christi, e no cemitério no feriadão de Finados. Empresariado fascista e militância finalmente estarão do mesmo lado, reclamando dos feriadões, que atrapalham a economia e envenenam os relacionamentos.

Gente que jamais criticou a corrupção terá olhos de lince para detectar qualquer desvio ético do governo. Gente que não se cansou de detectar desvios éticos dos últimos governos fará vista grossa para os novos casos de corrupção.

No Natal, o Porta dos Fundos fará um vídeo polêmico, possivelmente com Nossa Senhora lésbica, o Espírito Santo trans e Deus ateu. Haverá uma reação desproporcional, e o vídeo será um sucesso.

Com ajustes mínimos, já estão prontas as previsões imprevisíveis do Pai Dudu para 2021 e 2022. 2023 ainda está meio embaçado."

Gertrude Himmelfarb: The Last Victorian Sage - Myron Magnet (City Journal)

The Last Victorian Sage

Gertrude Himmelfarb, 1922–2019

The City Journal, January 3, 2020

Gertrude Himmelfarb, our foremost historian of ideas and one of the nation’s greatest historians of any stamp, died Monday at 97. Though a Washingtonian for the last decades of her long and productive life, the Brooklyn-born Himmelfarb was among the last of a storied band of New York Jewish intellectuals—the “Family,” they called themselves—who joined scholarly erudition to wide-ranging social, political, cultural, and ethical concerns far transcending the merely academic. They wrote for an educated general audience eager for the acuity with which they brought the wisdom and experience of the past to bear on the problems of present-day life. Through much reflection and debate, they’d mostly thought their way through the Trotskyist political correctness that prevailed in their student days to arrive at a liberal Americanism that, in time, metamorphosed into their own brand of conservativism. Now, with wonks and pundits, pedants and ideologues, taking their places, and with the “educated general reader” going extinct, today’s intellectuals seem shallow and dull by contrast.
Acerbic in her impatience with foolishness, Himmelfarb particularly scorned the Marxoid view that people’s beliefs and ideals have no independent reality but are just reflections of the material conditions around them. She rejected social-policy theories that give short shrift to cultural life, ignoring what goes on in people’s minds and hearts as a mere reflection of the real reality—the economic reality that should be the focus of our attention. According to this viewpoint, what people think can’t possibly alter the large forces that shape their lives. What determines individual behavior is the environment, not the content of the mind and spirit of the individual—as in, for example, the belief that crime springs from a lack of opportunity. She wasn’t much more sympathetic to social-policy thinkers who consider individuals the authors of their own actions and fates only to the extent that they choose rationally among various economic incentives—a welfare check versus a minimum-wage job, say. To her, this was just another way of saying that individuals merely respond mechanically to the environment: they don’t shape it.
As she saw it, beliefs shape behavior and transform the environment, rather than only vice-versa. The ideals that a culture transmits to its citizens affect whether they will be victims or masters of circumstance. In the introduction to her 1986 book, Marriage and Morals Among the Victorians, she remarked that the essays in that volume had what she called an almost obsessively unifying theme—the theme of the moral imagination, in the phrase of Lionel Trilling and, before him, Edmund Burke—a phrase that she also used as the title of a 2006 collection of essays. This theme unifies all her extraordinary works, beginning with her first book, on Lord Acton, subtitled “A Study in Conscience and Politics,” and including her magisterial Poverty and Compassion, subtitled “The Moral Imagination of the Late Victorians.” Far larger than everyday propriety, the moral imagination refers, as Himmelfarb puts it, to “the morality that dignifies and civilizes human beings, removing us from our natural brutish state.” It is the specifically human faculty that converts a mere featherless biped, as the Victorian sage Thomas Carlyle liked to say, into a creature of intelligence and a man.
Central to Himmelfarb’s thought was the relation between the moral imagination and poverty—the moral imagination of the larger society and of the poor themselves. Nowhere does she explicate this theme more profoundly than in The De-moralization of Society, published in 1995. How was it, she asks, that over the course of the nineteenth century, all of Britain’s key indicators of social pathology markedly improved? The illegitimacy rate, 7 percent in 1845, plunged below 4 percent by century’s end. Between 1857 and 1901, the crime rate fell by half, so that even while the population soared from 19 million to 33 million, the absolute number of serious crimes decreased. The prostitutes and drunks common at midcentury had become so scarce by 1900 that they no longer seemed a pressing social ill.
All this happened amid urbanization and industrialization that some theorists held should have produced social disintegration, not social improvement. But a much stronger force swept all before it: Victorian culture in general, and Victorian morality in particular, with its emphasis on virtue, respectability, work, self-help, sobriety, cleanliness, and family. The great Victorian achievement, as Himmelfarb saw it, was a “moral reformation” that allowed Britain “to attain a degree of civility and humaneness that was the envy of the rest of the world.”
It was a deeply self-conscious reformation, sparked by such value-laden institutions as Sunday schools and the temperance movement, by the “cult of respectability” and allegiance to duty even when belief in God and immortality began to falter, by the factory acts and great sanitation projects by which the propertied classes set out to improve the lives of the poor. It was a profoundly democratic reformation, too, Himmelfarb explains. “In attributing to everyone the same virtues—potentially at least, if not in actuality—[the Victorians] assumed a common human nature and thus a moral (although not a political or an economic) equality.” Just look at how the idea of a gentleman changed over the nineteenth century from a class term to a mainly moral term, so that such virtues as “integrity, honesty, generosity, courage, graciousness, politeness, [or] consideration for others” could distinguish a middle-class Victorian—even sometimes a laborer—as a gentleman.
Key to the reformation was the family. To the Victorians, the family home was “a sacred place”; family and home together, says Himmelfarb, “constituted something like a civic religion.” The foundation of the social order, families were universally recognized as the great schools of citizenship and civilization. If Victorian families didn’t grant women the freedom we moderns demand, married women’s lives were much more fulfilled than jeering critics, from Lytton Strachey onward, have contended. Even as Victorian family values embodied the comfortable middle-class ethic, they were democratized to include working-class families as well: far from feeling victims of class and patriarchal oppression, working-class wives overwhelmingly reported themselves satisfied and fulfilled by their lot.
The reformation succeeded so well also because it extended below the working class, to the poorest of the poor. Victorian welfare policy, embodied in the 1834 Poor Law, rested on a single moral proposition: that the conditions of life on relief for the able-bodied poor should be “less eligible”—less attractive—than those of the meanest wage earner’s life The goal: to make welfare less appealing than work and to honor effort by making sure that its rewards always surpassed the wages of idleness.
The result was the system of workhouses Dickens excoriated in Oliver Twist: welfare came at the cost of giving up your liberty and bearing a stigma. However harsh, the system worked: welfare expenditure, £8 million in 1817, remained at that figure in 1871—though the population had doubled. As Himmelfarb judges: “[S]tigmas are the corollaries of values. If work, independence, responsibility, respectability are valued, then their converse must be devalued, seen as disreputable.“ Accordingly, hand-in-hand with harshness toward the “undeserving” poor went benevolent philanthropy toward the “deserving” poor, ranging from organized efforts to educate them and improve their working and living conditions to individual acts of charity to help them through hard times.
To Himmelfarb, poverty is as much a matter of the mind and spirit as of the pocket. Perhaps today’s prevalence of illegitimacy, welfare dependency, crime, school failure, drug use, and the like among the intergenerational poor has much to do with our culture’s push to remove the stigma from these things at the same time that it has devalued middle-class—Victorian—virtues and traditional family life, not just for the poor but for us all. To cure it, social policymakers will need to take a larger view of human freedom than the shrunken one that has left society so demoralized, in both senses of the word.
Himmelfarb and her husband, Irving Kristol—she was Bea Kristol in private life—were beloved friends and precious mentors to me. When they still lived in New York, one of the great treats of my wife’s and my life was their periodic invitation to Sunday lunch, where we might meet a congressman or an ambassador (Bibi Netanyahu, as it happened), and where Bea taught me how to make horseradish sauce. Even before I met her, an essay of Bea’s on Burke in her 1968 Victorian Minds had helped nudge me down the road to conservatism. As for the civic religion of family, nothing demonstrated to me the truth of our mutual friend Daniel Bell’s judgment that the Kristols’ marriage was the happiest of their generation as much as a disagreement they once had at our dinner table—a long and intense dispute about whether President Ronald Reagan should visit a military cemetery in Bitburg, Germany, to commemorate the 40th anniversary of the end of World War II in Europe and to show that our former enemies were now our ever-closer friends and allies in the Cold War. Trouble was, as the White House learned after accepting the invitation, Waffen–SS officers were buried in that graveyard, so the president’s wreath would appear to honor among the very worst of Nazi murderers.
Irving, who had advised Reagan to go, contended that the visit was pure realpolitik, and that canceling the ceremony now, instead of demonstrating that bygones were bygones, would inflame mutual hostility. Bea maintained that morality was morality: that the Holocaust was pure evil and could not in any way be papered over, much less honored. The two went at this for half an hour, my wife and I egging Bea on. Our other guests uttered scarcely a word, one couple out of fascination, the other out of fear of saying the wrong thing. But it wasfascinating, because, in all this time, Irving, though clearly getting the worst of the discussion, never lost his characteristic unruffled, benevolent sweetness, and Bea—with her delicate bones, sharp features, energetic animation, and keen, all-observant eye, resembling some rare, small, royal falcon—never argued but only debated, though with every so often a characteristic, “Oh, Irving!” A model and an inspiration.
I remember Irving speaking at his 60th birthday party of his thankfulness for all that America had bestowed on him. “I never imagined I’d have a color TV set,” he said, “or a washing machine.”
“Oh, Irving!” said Bea. “We don’t have a washing machine. It’s a dishwasher.”
They were both truly thankful for all that America had given them. When they resided in New York, Bea’s mother lived with them for a time. She would stand for hours at their big window looking north over Central Park, puzzling out what to make of all the joggers. Perhaps with memories of the Russian pogroms her family had fled in her childhood, she would say to herself: “I don’t understand. What are they running from?” That was the beauty of America, Bea and Irving knew. They didn’t have to run away from anything.

Myron Magnet, a National Humanities Medal laureate, is the author of Dickens and the Social Order  and Clarence Thomas and the Lost Constitution.

A barata que se tornou primeiro-ministro - Ian McEwan (OESP)

A BARATA DEFENSORA DO BREXIT

Ian McEwan
Em ‘A Barata’, McEwan transforma um inseto no primeiro-ministro do Reino Unido.
O Estado de S. Paulo, 22/12/2020
Uma barata desperta dentro do corpo de um homem que, não por acaso, é o primeiro-ministro do Reino Unido. Seu gabinete, aliás, é formado na maioria por baratas com forma humana, insetos que semeiam a discórdia, sob pretexto de patriotismo. Esse é o ponto de partida de A Barata, romance satírico em que o escritor britânico Ian McEwan reflete sobre o Brexit, a controversa saída do Reino Unido da União Europeia. Com lançamento previsto para o final de janeiro pela Companhia das Letras, A Barata ironiza homens habituados a cortejar a insensatez. Leia, a seguir, um trecho inédito da tradução brasileira, assinada por Jorio Dauster.
“Nas suas condições incomuns, deitado numa cama nada familiar, parecia incrível que se recordasse de tais detalhes. Bom saber que seu cérebro, sua mente, não tinha se alterado em nada. Apesar de tudo, em essência ele continuava a ser o que era antes. Foi a surpreendente presença de um gato que o obrigou a correr não em direção aos rodapés, mas às escadas. Subiu três degraus e olhou para trás. O gato, com malhas brancas e marrons, não o tinha visto, porém Jim considerou perigoso descer. Por isso iniciou a longa subida. No primeiro andar havia muita gente andando de um lado para outro, entrando e saindo dos aposentos. Mais possibilidades de morrer pisoteado. Uma hora depois, quando chegou ao segundo andar, os tapetes estavam sendo vigorosamente atacados por um aspirador de pó. Conhecia muitas almas que haviam se perdido daquela forma, sugadas para um além-mundo poeirento. Nenhuma alternativa senão continuar a subir até… Mas então, repentinamente, ali no sótão, todos os seus pensamentos foram obliterados pelo tilintar ríspido de um dos telefones na mesinha de cabeceira. Muito embora ele tivesse descoberto que era capaz ao menos de mover um dos membros, o braço, decidiu não se mexer. Não confiava em sua voz. E, mesmo que confiasse, o que iria dizer? Não sou quem você pensa que eu sou? Depois de quatro toques, o telefone ficou em silêncio.
Ele se recostou e deixou que seu trepidante coração se acalmasse. Testou mexer as pernas. Pelo menos elas saíram do lugar. Mas poucos centímetros. Tentou outra vez um braço, e o ergueu até ficar bem acima da cabeça. Então, de volta à história. Ele se esforçou para vencer o derradeiro degrau e chegou sem fôlego ao último andar. Enfiou-se por baixo da porta mais próxima e entrou num pequeno apartamento. Em condições normais, iria direto para a cozinha, mas em vez disso escalou um pé da cama e, totalmente exausto, se arrastou para baixo de um travesseiro. Deve ter caído em um sono profundo por… Mas, naquele momento, que merda, ouviu sons de batidas leves e, antes que pudesse reagir, a porta do quarto estava sendo aberta. Uma mulher ainda jovem, vestida com um terninho bege, se postou na soleira e fez um aceno rápido com a cabeça antes de entrar.
“Tentei telefonar, mas achei melhor subir. Primeiro-ministro, são quase sete e meia.”
Ele não conseguia pensar no que dizer.
A mulher, sem dúvida uma espécie de assistente, entrou no quarto e pegou a garrafa vazia. O jeito dela era demasiado informal.
“Que noite, hem?”
Não seria possível permanecer em silêncio por mais tempo. Da cama, tentou emitir um som inarticulado, algo entre um gemido e um coaxar. Nada mau. Mais agudo do que desejaria, com um quê de chilreio, mas suficientemente plausível.
A assistente gesticulava em direção à mesa grande, para as pastas vermelhas. “Imagino que não tenha tido a oportunidade de…”
Ele se manteve na defensiva, emitindo o mesmo som outra vez, agora em tom mais baixo.
“Talvez, depois do café da manhã, o senhor poderia dar uma… Não custa lembrá-lo. Hoje é quarta-feira. Reunião ministerial às nove. Prioridades para o governo e PPM ao meio-dia.”
Perguntas ao primeiro-ministro. Quantas daquelas sessões ele já tinha ouvido, fascinado e agachado atrás dos lambris apodrecidos na companhia de uns poucos milhares de distintos companheiros? Conhecia perfeitamente as perguntas que o líder da oposição formulava aos gritos, as brilhantes respostas falaciosas, as vaias festivas e as imitações de balidos. Seria a realização de um sonho desempenhar o papel de primo uomo na opereta semanal. Mas estaria ele devidamente preparado? Sem dúvida não menos que qualquer outra pessoa. Sobretudo depois de dar uma olhadela nos papéis. Como muitos de sua espécie, ele saberia se mover rápido, muito embora só contasse agora com duas pernas.
No lugar onde antes exibia uma bela mandíbula, o insalubre pedaço de tecido denso se agitou e produziu a primeira palavra humana.
“Correto.”
“Vou providenciar o café lá embaixo.”
Muitas vezes ele havia bebericado café altas horas da noite no piso do salão de chá. Isso costumava fazê-lo ficar acordado durante o dia, mas ele apreciava o sabor e o preferia com leite e quatro cubinhos de açúcar. Supunha que seu pessoal soubesse disso.
Tão logo a assistente saiu do quarto, ele se livrou das cobertas e por fim conseguiu girar as pernas tubulares para pisar no tapete. Pela primeira vez se pôs de pé, oscilando um pouco ao atingir aquela altura vertiginosa, e voltou a gemer, com as mãos pálidas e macias apertadas contra a testa. Minutos depois, caminhando trôpego para o banheiro, as mesmas mãos começaram a remover o pijama com agilidade. Libertou-se dele e se postou sobre os ladrilhos agradavelmente aquecidos. Divertiu-se ao urinar de forma ensurdecedora num recipiente de cerâmica preparado especialmente para aquilo, e então se sentiu mais animado. Mas, ao se virar para confrontar o espelho acima da pia, seu estado de espírito voltou a se turvar. Repugnou-o o disco oval de um rosto com a barba por fazer, mal equilibrado em cima de um caule grosso e rosado que servia de pescoço. Os olhos pequeninos o chocaram. Enojou-o a dobra de carne mais gorda e mais escura que emoldurava uma série de dentes que nem brancos eram. Mas, como estou aqui por uma causa gloriosa, a tudo suportarei, ele se tranquilizou, enquanto observava as mãos abrirem a torneira e se dirigirem ao pincel e à espuma de barbear.

Ian McEwan nasceu em 1948 em Aldershot, na Inglaterra. Escritor prolífico, foi inúmeras vezes indicado ao Man Booker Prize (hoje Booker Prize) e ganhou o prêmio, considerado o mais prestigioso em língua inglesa, em 1998, com Amsterdã. Seu livro Reparação foi adaptado para o cinema em 2007 e indicado ao Oscar de melhor filme. Outras novelas de sua autoria também foram adaptadas para as telas