A BARATA DEFENSORA DO BREXIT
Ian McEwan
Em ‘A Barata’, McEwan transforma um inseto no primeiro-ministro do Reino Unido.
O Estado de S. Paulo, 22/12/2020
Uma barata desperta dentro do corpo de um homem que, não por acaso, é o primeiro-ministro do Reino Unido. Seu gabinete, aliás, é formado na maioria por baratas com forma humana, insetos que semeiam a discórdia, sob pretexto de patriotismo. Esse é o ponto de partida de A Barata, romance satírico em que o escritor britânico Ian McEwan reflete sobre o Brexit, a controversa saída do Reino Unido da União Europeia. Com lançamento previsto para o final de janeiro pela Companhia das Letras, A Barata ironiza homens habituados a cortejar a insensatez. Leia, a seguir, um trecho inédito da tradução brasileira, assinada por Jorio Dauster.
“Nas suas condições incomuns, deitado numa cama nada familiar, parecia incrível que se recordasse de tais detalhes. Bom saber que seu cérebro, sua mente, não tinha se alterado em nada. Apesar de tudo, em essência ele continuava a ser o que era antes. Foi a surpreendente presença de um gato que o obrigou a correr não em direção aos rodapés, mas às escadas. Subiu três degraus e olhou para trás. O gato, com malhas brancas e marrons, não o tinha visto, porém Jim considerou perigoso descer. Por isso iniciou a longa subida. No primeiro andar havia muita gente andando de um lado para outro, entrando e saindo dos aposentos. Mais possibilidades de morrer pisoteado. Uma hora depois, quando chegou ao segundo andar, os tapetes estavam sendo vigorosamente atacados por um aspirador de pó. Conhecia muitas almas que haviam se perdido daquela forma, sugadas para um além-mundo poeirento. Nenhuma alternativa senão continuar a subir até… Mas então, repentinamente, ali no sótão, todos os seus pensamentos foram obliterados pelo tilintar ríspido de um dos telefones na mesinha de cabeceira. Muito embora ele tivesse descoberto que era capaz ao menos de mover um dos membros, o braço, decidiu não se mexer. Não confiava em sua voz. E, mesmo que confiasse, o que iria dizer? Não sou quem você pensa que eu sou? Depois de quatro toques, o telefone ficou em silêncio.
Ele se recostou e deixou que seu trepidante coração se acalmasse. Testou mexer as pernas. Pelo menos elas saíram do lugar. Mas poucos centímetros. Tentou outra vez um braço, e o ergueu até ficar bem acima da cabeça. Então, de volta à história. Ele se esforçou para vencer o derradeiro degrau e chegou sem fôlego ao último andar. Enfiou-se por baixo da porta mais próxima e entrou num pequeno apartamento. Em condições normais, iria direto para a cozinha, mas em vez disso escalou um pé da cama e, totalmente exausto, se arrastou para baixo de um travesseiro. Deve ter caído em um sono profundo por… Mas, naquele momento, que merda, ouviu sons de batidas leves e, antes que pudesse reagir, a porta do quarto estava sendo aberta. Uma mulher ainda jovem, vestida com um terninho bege, se postou na soleira e fez um aceno rápido com a cabeça antes de entrar.
“Tentei telefonar, mas achei melhor subir. Primeiro-ministro, são quase sete e meia.”
Ele não conseguia pensar no que dizer.
A mulher, sem dúvida uma espécie de assistente, entrou no quarto e pegou a garrafa vazia. O jeito dela era demasiado informal.
Não seria possível permanecer em silêncio por mais tempo. Da cama, tentou emitir um som inarticulado, algo entre um gemido e um coaxar. Nada mau. Mais agudo do que desejaria, com um quê de chilreio, mas suficientemente plausível.
A assistente gesticulava em direção à mesa grande, para as pastas vermelhas. “Imagino que não tenha tido a oportunidade de…”
Ele se manteve na defensiva, emitindo o mesmo som outra vez, agora em tom mais baixo.
“Talvez, depois do café da manhã, o senhor poderia dar uma… Não custa lembrá-lo. Hoje é quarta-feira. Reunião ministerial às nove. Prioridades para o governo e PPM ao meio-dia.”
Perguntas ao primeiro-ministro. Quantas daquelas sessões ele já tinha ouvido, fascinado e agachado atrás dos lambris apodrecidos na companhia de uns poucos milhares de distintos companheiros? Conhecia perfeitamente as perguntas que o líder da oposição formulava aos gritos, as brilhantes respostas falaciosas, as vaias festivas e as imitações de balidos. Seria a realização de um sonho desempenhar o papel de primo uomo na opereta semanal. Mas estaria ele devidamente preparado? Sem dúvida não menos que qualquer outra pessoa. Sobretudo depois de dar uma olhadela nos papéis. Como muitos de sua espécie, ele saberia se mover rápido, muito embora só contasse agora com duas pernas.
No lugar onde antes exibia uma bela mandíbula, o insalubre pedaço de tecido denso se agitou e produziu a primeira palavra humana.
“Vou providenciar o café lá embaixo.”
Muitas vezes ele havia bebericado café altas horas da noite no piso do salão de chá. Isso costumava fazê-lo ficar acordado durante o dia, mas ele apreciava o sabor e o preferia com leite e quatro cubinhos de açúcar. Supunha que seu pessoal soubesse disso.
Tão logo a assistente saiu do quarto, ele se livrou das cobertas e por fim conseguiu girar as pernas tubulares para pisar no tapete. Pela primeira vez se pôs de pé, oscilando um pouco ao atingir aquela altura vertiginosa, e voltou a gemer, com as mãos pálidas e macias apertadas contra a testa. Minutos depois, caminhando trôpego para o banheiro, as mesmas mãos começaram a remover o pijama com agilidade. Libertou-se dele e se postou sobre os ladrilhos agradavelmente aquecidos. Divertiu-se ao urinar de forma ensurdecedora num recipiente de cerâmica preparado especialmente para aquilo, e então se sentiu mais animado. Mas, ao se virar para confrontar o espelho acima da pia, seu estado de espírito voltou a se turvar. Repugnou-o o disco oval de um rosto com a barba por fazer, mal equilibrado em cima de um caule grosso e rosado que servia de pescoço. Os olhos pequeninos o chocaram. Enojou-o a dobra de carne mais gorda e mais escura que emoldurava uma série de dentes que nem brancos eram. Mas, como estou aqui por uma causa gloriosa, a tudo suportarei, ele se tranquilizou, enquanto observava as mãos abrirem a torneira e se dirigirem ao pincel e à espuma de barbear.
Ian McEwan nasceu em 1948 em Aldershot, na Inglaterra. Escritor prolífico, foi inúmeras vezes indicado ao Man Booker Prize (hoje Booker Prize) e ganhou o prêmio, considerado o mais prestigioso em língua inglesa, em 1998, com Amsterdã. Seu livro Reparação foi adaptado para o cinema em 2007 e indicado ao Oscar de melhor filme. Outras novelas de sua autoria também foram adaptadas para as telas