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terça-feira, 28 de novembro de 2017

Depois da diplomacia companheira: o que vem pela frente? - Paulo Roberto de Almeida

Meu mais recente artigo:

3197. “Depois da diplomacia companheira: o que vem pela frente?”, Brasília, 26 novembro 2017, 3 p. Colaboração à seção de “artigos de opinião”, do jornal Gazeta do Povo, seção Debates. Publicado na Gazeta do Povo (28/11/2017, link: http://www.gazetadopovo.com.br/opiniao/artigos/depois-da-diplomacia-companheira-o-que-vem-pela-frente-di5ffopc0ywu56cc29s8s5hsr). Relação de Publicados n. 1273.

 
Depois da diplomacia companheira: o que vem pela frente?

Paulo Roberto de Almeida 

Todo diplomata que pretenda escapar das áreas literárias – contos, romances, poesia, ou seja, os produtos habituais da literatura – e que queira se dedicar ao seu objeto próprio de trabalho, precisa passar pelo controle político da instituição. Ele se defronta, nesse caso, com dois instrumentos regulatórios (e com dois problemas de consciência) sobre o que ele teria a dizer no terreno da diplomacia: um deles é a Lei do Serviço Exterior, que disciplina o comportamento do autor que pretenda discorrer sobre os temas que podem integrar a agenda de trabalho da instituição; o outro é a chamada “Lei da Mordaça”, uma circular restritiva emitida em 2001 para reforçar os controles existentes no primeiro instrumento, controlando mais restritivamente qualquer manifestação pública e introduzindo o que se poderia chamar de censura prévia.
O que isto significa? Qualquer manifestação pública sobre temas correntes da política externa – às vezes até determinados assuntos “históricos” – obriga o diplomata a requerer preventivamente a devida autorização para publicar textos ou conceder qualquer entrevista identificada aos meios de comunicação. E quanto ao problema de consciência? Trata-se, reconhecidamente, de um terreno mais “pantanoso”, pois que o diplomata acadêmico – o que é exatamente o meu caso –, aquele que se dedica a pesquisar, dar aulas, escrever e publicar sobre temas de relações internacionais e de política externa corrente, pode se encontrar cingido por certas normas suficientemente vagas no terreno aqui referido, para constranger sua pluma e sua palavra nas análises que possa empreender e divulgar. As autorizações tardam a vir, e como o trabalho acaba sendo conduzido por algum assessor júnior dos gabinetes, a tendência é a de se efetuar cortes e pedidos de mudança numa escala e escopos bem mais amplos do que seria desejável ou útil, para a discussão de algum problema concreto.
Digo isto porque já enfrentei esse tipo de situação diversas vezes, com alguns cortes de parágrafos em meus livros, ou mesmo advertências a posteriori quando da publicação de algum artigo ou entrevista julgados não conformes ao espírito da política oficial. Já acumulei duas ou três sanções formais durante o “antigo regime” neoliberal que, com a assunção do regime companheiro, foram agravadas por meio da vedação virtual a qualquer cargo na Secretaria de Estado no decorrer dos 13 anos de lulopetismo diplomático, quando meus artigos certamente dissentiam fortemente da linha do “comitê central” do partido neobolchevique. Sobrevivi ao período, não sem um alto preço pago em termos de evolução funcional e perdas financeiras, mas estou de novo incorporado ao trabalho corrente, embora num cargo de tipo acadêmico.
A Lei do Serviço Exterior se resume basicamente a dois dispositivos: não se pronunciar sobre a política externa oficial sem a devida autorização e conhecimento superior; não utilizar expedientes de ofício para outras finalidades que não o próprio trabalho de chancelaria. As punições que recebi, sob a forma de comunicações formais, se deram a propósito de pronunciamentos gerais que efetuei sobre política internacional, e mais especificamente sobre temas do comércio internacional. Mas isto se deu quando o Brasil ainda não tinha sido dominado pelo pensamento único dos companheiros e por suas preferências ideológicas, inclusive em matéria de política externa. Nesta, como todos se recordam, fomos bafejados por uma “diplomacia ativa e altiva”, e também “soberana”, como lembravam a todo instante seus principais promotores. Como eu nunca fui de aderir a modismos, ou de me curvar às verdades do momento, continuei a fazer minhas análises, que sempre entendi objetivas e de espírito puramente acadêmico, e a publicar, ocasionalmente, artigos em revistas e ensaios em livros, que nunca sofreram, cabe esclarecer, qualquer sanção formal no regime companheiro.
A sanção, na verdade, veio sob outra forma: um veto não declarado, mas real e mesquinho, a qualquer trabalho na Secretaria de Estado, o que significou, na prática, uma longa travessia no deserto funcional, que redundou em ostracismo administrativo e total bloqueio na carreira. Esse foi o preço pago por ousar desafiar o adesismo em vigor, uma situação patética na qual todo o Itamaraty foi colocado a serviço do “guia genial dos povos”, e suas preferências políticas orientadas pelos apparatchiks do partido e seus mestres em outras esferas. Durante esse longo período, publiquei algumas matérias de atualidade, e até alguns livros de pesquisa, mas deixei muitas outros trabalhos – que poderiam, eventualmente se enquadrar na esfera da Lei do Serviço Exterior – dormindo em pastas de “trabalhos a terminar”, entregues à “crítica roedora dos ratos”, como declarou em tempos recuados um desses dissidentes das verdades oficiais.
Parece que esse tempo finalmente passou. O Brasil, nesta fase de transição para um novo governo, a partir de 2019, retornou a uma política externa que corresponde, de modo mais adequado, a padrões tradicionais, ou seja, a uma diplomacia não partidária, voltada de maneira consensual para os interesses nacionais de uma forma não sectária, como foi o caso durante o regime companheiro, aliado voluntário de ditaduras na região e em outros continentes. Num momento em que se abre um novo período eleitoral, ao abrigo do qual serão discutidas opções fundamentais de políticas públicas, econômicas e setoriais – entre elas a própria política externa –, é importante que diplomatas também participem de um debate nacional no qual eles possam oferecer ao menos o testemunho de sua experiência e o seu conhecimento especializado numa das principais interfaces de relacionamento do Brasil com o mundo.
Poderei, neste caso, retornar às minhas pastas de trabalhos inconclusos, onde se encontram muitos registros de meu combate silencioso, durante a década e meia que se passou, em prol de uma diplomacia menos ideológica e de uma política externa mais conforme o interesse nacional.


[Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 26 de novembro de 2017, 3 p.
Artigo de opinião; colaboração a periódico]

segunda-feira, 27 de novembro de 2017

Mister Bolsonaro goes to Washington? Not yet - debate at George Washington University


OCDE: debate sobre a adesao do Brasil - CEBRI

A Agenda e os Desafios da Adesão do Brasil à OCDE 
 
PAULO AFONSO VELASCO JR. - SENIOR FELLOW DO CEBRI E PROFESSOR DE POLÍTICA INTERNACIONAL DA UERJ

http://midias.cebri.org/arquivo/BreakingNews9.pdf
Breaking News CEBRI, agosto de 2017

Nesta edição, o CEBRI Breaking News aborda o tema “A Agenda e os Desafios da Adesão do Brasil à OCDE”, debate que ocorreu no dia 25 de agosto, na Casa das Garças, no Rio de Janeiro. Na ocasião, as discussões englobaram os desafios da adesão brasileira à OCDE, bem como diversas implicações e possíveis benefícios daí resultantes. 

Aproveitamos a oportunidade para agradecer aos palestrantes pela participação: Embaixador Carlos Márcio Cozendey (Subsecretário-geral de Assuntos Econômicos e Financeiros do MRE), Marcello de Moura Estevão Filho (Secretário de Assuntos Internacionais do Ministério da Fazenda), José Augusto Fernandes (Diretor de Políticas e Estratégia da CNI) e Sandra Polónia Rios (Senior Fellow do CEBRI e Diretora do CINDES). Destacamos e agradecemos, ainda, a Casa das Garças e o CINDES pela parceria com o CEBRI para a realização do debate. 

O Brasil na OCDE
O governo brasileiro notificou a adoção de 31 novos instrumentos jurídicos da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE).
Brasil adota novos instrumentos jurídicos da OCDE

5 coisas que aprendi dando aula numa universidade publica brasileira - Paulo Roberto de Almeida


5 coisas que aprendi dando aula numa universidade pública brasileira

Paulo Roberto de Almeida


Em uma vida erraticamente nômade, ao longo de quase 40 anos de carreira diplomática (metade da qual passada no exterior), e de atividades acadêmicas bastante diversificadas, desenvolvidas ao longo de um período ainda maior em universidades públicas e privadas, do Brasil e do exterior, mesmo se de forma intermitente, aprendi algumas coisas, boas e más, que cabe reportar agora aos leitores com vistas a cumprir um duplo objetivo: de um lado, uma pequena instrução em direção das almas cândidas (ou seja, todos aqueles alheios ao universo mental e material das instituições de ensino superior), de outro, um exercício de avaliação das IPES – as instituições públicas de ensino superior, basicamente federais e estaduais –, que não ignoram as críticas que, contra elas, pretendo dirigir (com a melhor das intenções).
Nos últimos treze anos tenho sido professor de um centro universitário privado, o que não me eximiu de continuar a conviver, e de aprofundar o meu conhecimento do funcionamento (precário, cabe dizer desde logo) das IPES, uma vez que sou convidado regularmente a participar de bancas (de mestrado, de doutorado e de seleção de novos professores), de seminários, de colóquios e mesas redondas, a proferir palestras, a emitir pareceres a artigos apresentados a periódicos, sem esquecer as dezenas de conferências e congressos (de relações internacionais, de história econômica, de estudos de defesa, ou quaisquer outros temas afins) vinculados a associações de que faço parte ou que me estendem convites para integrar mesas. Mas já fui professor convidado ou temporário de IPES, em alguns estados, e posso dizer, assim, que conheço as “entranhas do monstro”, como diria o patriota cubano José Marti a propósito do imperialismo.
Quando digo “monstro” não é com qualquer atitude depreciativa ou agressiva, embora algumas IPES mereçam, provavelmente, esse sentido negativo, pelo que tenho registrado como bizarrices e idiossincrasias em várias delas. Quero dizer que as IPES cresceram razoavelmente desde quando o sistema de ensino superior público foi reorganizado, logo no início do regime militar, para dar conta da enorme pressão da classe média em prol dessa poderosa alavanca de ascensão social rigorosamente colocada a serviço dos estratos mais privilegiados da sociedade, com alguma abertura aos egressos das classes populares. Ao crescer, não desmesuradamente, elas passaram a absorver uma fração significativa dos orçamentos públicos do setor educacional, em total desproporção com a cobertura correspondente dos estratos etários suscetíveis de serem acolhidos pelo ensino público nos dois primeiros níveis. Elas são “monstros” porque são responsáveis por uma apropriação de recursos mais do que inversa, na verdade aberrantemente desigual, em relação ao recrutamento operado nas faixas etárias que corresponderiam às respectivas taxas de matrícula (aquilo que os americanos chamam de “enrollment rate”). Numa palavra, as IPES “coletam” da sociedade quase dez vezes mais por aluno universitário (e o que gravita em volta) do que o que é alocado aos estudantes dos níveis precedentes do ensino público. Ou seja, existe uma pirâmide de gastos totalmente invertida com respeito ao número de beneficiários, estreitamente ridícula na sua base minúscula e extremamente generosa com o punhado de jovens entre 18 e 24 anos que frequentam as IPES.
A injustiça social e as bases empíricas da desigualdade de oportunidades já nascem desse fato simplório (?!), mas não é disso que pretendo falar, pois suponho que esse tipo de escândalo seja razoavelmente conhecido da comunidade universitária, pública ou privada, que vive, gravita e sobrevive nesse universo de iniquidades educacionais tipicamente jabuticabal. Minha intenção é a de chamar a atenção para algumas de peculiaridades das IPES, por imaginar que a maior parte do público não universitário não tenha delas um conhecimento suficiente, e que continua a considerar que elas são parte importante, necessária e indispensável, do processo brasileiro de desenvolvimento, quando elas podem, na verdade, estar contribuindo para dificultar esse processo, ao consagrar um rol de bizarrices do qual cumpre dar cabo.
De minha experiência como professor de algumas delas – não preciso dizer quais – retirei certas constatações, que passo agora a expor e desenvolver.

1) A oferta universitária pública não corresponde necessariamente à demanda
Uma regra básica de qualquer provimento de bens – públicos ou privados, não importa muito aqui distinguir um ou outro – é a de que essa oferta deve atender a uma necessidade percebida, real, pré-existente, por parte da “clientela” consumidora desses bens e serviços; a educação é um serviço de natureza especializada que atende a uma demanda real existente na sociedade, qual seja, a formação e capacitação de mão-de-obra, para fins úteis, públicos ou privados. Em princípio, as IPES deveriam ser objeto de debate legislativo, de ordenamento de recursos apropriados por parte de órgãos de governo (planejamento, educação, saúde, trabalho, etc.) e de contínua avaliação da adequação desse provimento às necessidades sempre cambiantes de uma economia dinâmica, aberta à concorrência e competição entre sistemas públicos e privados (pois assim reza a Constituição).
Não é segredo para ninguém que as IPES funcionam em bases razoavelmente “privadas”, isto é, eles são reservadas essencialmente para uma clientela relativamente rica (classes A, B+, BB, e um pouco B-, com alguns merecedores representantes da classe C), que se apropria dos impostos daqueles que nunca terão seus filhos nesses templos da benemerência pública. Na verdade, essa clientela é a parte menos importante do grande show da universidade pública, que vive basicamente para si mesma, numa confirmação plena do velho adágio da “torre de marfim”. Não se trata exatamente de marfim, e sim de uma redoma auto e retroalimentada pela sua própria transpiração, com alguma inspiração (mas não exatamente nas humanidades e ciências sociais). A Capes e o CNPq, ademais do próprio MEC-Sesu, asseguram uma confortável manutenção dos aparelhos que mantém esse corpo quase inerme em respiração assistida, ainda que com falhas de assistência técnica, por carência eventual de soro financeiro.
Nessa estrutura relativamente autista, a definição das matérias, disciplinas e linhas de pesquisa a serem oferecidas a essa distinta clientela não depende do que essa clientela pensa ou deseja, e sim da vontade unilateral dos próprios guardiães do templo, ou seja, os professores, inamovíveis desde o concurso inicial, independentemente da produção subsequente. A UNE, os diretórios estudantis, os avaliadores do Estado, os financiadores intermediários (planejamento, Congresso, órgãos de controle) e últimos de toda essa arquitetura educacional (isto é, toda a sociedade) e, sobretudo, os alunos não possuem nenhum poder na definição da grade curricular, no estabelecimento dos horários, na determinação dos conteúdos, na escolha da bibliografia, no seguimento do curso, no acompanhamento do desempenho dos alunos, enfim, no desenvolvimento do aprendizado, na empregabilidade futura da “clientela”, que fica entregue à sua própria sorte. Sucessos e fracasso são mero detalhe nesse itinerário autocentrado, que não cabe aos professores, às IPES, ao MEC responder pelos resultados obtidos (ou não), que de resto são, também, uma parte relativamente desimportante de todo o processo.
O Brasil vive, supostamente, em regime capitalista – cum grano salis, ou com toneladas de sal – mas as IPES estão num ambiente pré-medieval, numa certa anomia organizacional que permite a qualquer escolástica gótica sobreviver em meio a ventos e marés, sem qualquer punição de mercado, que é o critério básico sob o qual vivem todos os capitalistas ofertantes de bens e serviços para uma clientela ciosa de boa qualidade a preços razoáveis. Na universidade, esses critérios são irrelevantes, pois aquele elemento do cálculo racional, a relação entre insumo e produto, a linha de montagem e o produto final, tudo isso não tem a menor importância, inclusive para o que, ou para quem, serve o “produto” das forjas acadêmicas. Não que a universidade pública, as IPES necessitem funcionar segundo os princípios e requerimentos do capitalismo de mercado – parece uma redundância, mas é que existe o capitalismo de Estado, e o Brasil sabe disso –, ainda que as privadas sejam em grande medida obrigadas a isso. Mas essa coisa da “tirania dos consumidores” – que segundo Mises condiciona as economias de mercado – não se aplica ao universo metafísico das IPES, que pairam no espaço sideral sem precisar se reabastecer na Terra (ou apenas em poucos movimentos rápidos).
Isso pode mudar algum dia? Dificilmente. Só se as universidades públicas forem obrigadas a trabalhar em regime de “market-like arrangements”, ou seja, se elas apenas receberem um subsídio básico do Estado – ou seja, de todos nós – e tiverem de suprir todas as demais necessidades atendendo a uma clientela exigente, de “consumidores” ciosos das mensalidade que terão de consentir pagar – uma vez terminada a ficção constitucional de que “o ensino é direito do cidadão e dever do Estado” –, clientes que só consentirão alimentar o “mensalão” universitário se tiverem certeza de que aquela gororoba que lhes é servida em sala de aula serve para alguma coisa no mundo real.

2) Ausência de qualquer vínculo entre orçamentos e resultados
Não basta apontar a já citada desigualdade orçamentária, monstruosa, entre os três níveis de ensino; é preciso referir o aumento contínuo dos orçamentos universitários em total desproporção à sua contribuição para o desenvolvimento educacional de quem paga os salários de professores e funcionários das IPES, inclusive daqueles que não são, nunca serão, beneficiários da prebenda universitária. Sem qualquer consulta documental ou acesso a dados específicos, é possível afirmar, sem medo de errar, que as IPES – se computadas em seus gastos totais – gastam a maior parte de suas dotações com pessoal e encargos associados a isso. Pode até não aparecer na planilha das próprias instituições, uma vez que professores e funcionários – estáveis como seria de se esperar – recebem diretamente do governo federal (ou estaduais, conforme o caso), o que não torna menos verdadeira a total dissociação entre esses gastos ou despesas e a produção que as IPES deveriam retribuir à sociedade pelos salários garantidos, independentemente do retorno que a sociedade estaria no direito de exigir. Os próprios acadêmicos não veem qualquer relação entre seus salários, ou vencimentos, e os impostos pagos pela sociedade.
Esses acadêmicos, sobretudo os da área de humanidades, devem achar que a sociedade não tem nada a lhes cobrar, cabendo-lhe apenas sustentar os “produtores de ciência”. Nessa concepção, eles estão, ou estariam, fazendo um grande favor pelo simples fato de existirem, como acadêmicos descompromissados com qualquer aspecto material, em especial aqueles ligados ao mercado, sempre visto com desconfiança nesses meios. A sociedade deveria ser-lhes grata apenas por constituir um espaço livre de qualquer contaminação mercantil.
Independentemente do fomento à pesquisa, dos fundos setoriais e de todas as demandas por financiamento público às suas atividades, as IPES possuem, entranhado em seu DNA, um estatismo secular e renitente, o que seria compreensível em vista o papel cumprido no passado em favor do desenvolvimento nacional via Estado, se essa característica não tivesse, hoje, efeitos nefastos sobre o crescimento econômico. Vários estudos empíricos já demonstraram a existência de uma correlação negativa, direta e linear, entre os níveis de gastos governamentais e a taxa de crescimento econômico. As evidências são tão gritantes que o tema não merece maiores desenvolvimentos a não ser uma remissão à bibliografia pertinente (remeto a uma simples consulta aos trabalhos de James Gwartney, nos relatórios anuais do Economic Freedom of the World). Bastaria agregar que as IPES também têm falhado em demonstrar – com poucas exceções em alguns departamentos de economia – que o Estado brasileiro converteu-se, de antigo promotor, em atual obstrutor, de fato, do processo de desenvolvimento, aspecto geralmente negligenciado na maior parte dos estudos acadêmicos.

3) Produtividade é um conceito exótico, um ser estranho na galáxia universitária
Que as IPES sejam contumazes e notórias campeãs em improdutividade acadêmica tampouco deveria constituir um segredo para os que ousam se aproximar das estatísticas relativas à produção registrada sob a forma de patentes ou outros títulos de propriedade. Existem poucos reflexos de sua “produção” no mundo real. Depois de terem se beneficiado – e supostamente beneficiado a sociedade – com a construção de um sistema universitário relativamente completo, e aparentemente eficiente, com a formação de recursos humanos de melhor qualidade que aqueles previamente existentes, as IPES deram início a um processo de introversão autocentrada, o que as levou a se isolarem da sociedade e a desenvolver comportamentos entrópicos e autistas que, ao fim e ao cabo, redundaram numa quase completa desconexão em relação ao mundo real, em especial com o universo daqueles que lhes fornecem os recursos de sua subsistência, os únicos produtores de riqueza na sociedade, que são os empresários e trabalhadores. Mesmo professores de economia não sentem necessidade de estudar microeconomia na prática, ou seja, frequentando empresas e visitando unidades produtoras: para que, se tudo já se encontra apresentado, de forma limpa e clara, nos manuais universitários?
Existe, por certo, um “produtivismo” aparente, que são as pontuações requeridas para a classificação dos cursos e para a aferição da “produção” dos acadêmicos, tal como presentes nos formulários e plataformas administrados pela Capes ou CNPq. Mas esse “quantitativismo” primário é seguidamente criticado pelos acadêmicos, que não admitem terem de apresentar números para suas doutas elucubrações. Produtividade – que aliás só aparece na Constituição de 1988 para garantir ganhos correspondentes a determinadas categorias de trabalhadores, sem qualquer aferição dos resultados reais – é algo que não deveria se aplicar a esse mundo impoluto; pareceria até uma ofensa aos acadêmicos cobrar-lhes resultados efetivos segundo alguma definição prévia de metas e objetivos. A produtividade – junto com a qualidade do ensino público – é o problema básico do Brasil, agora e pelas décadas seguintes, mas não parece haver consciência dessa tragédia entre acadêmicos, ou na sociedade em geral.

4) As sinecuras acadêmicas são mais importantes do que os alunos
O papel primordial da universidade sempre foi o da formação de mestres e pesquisadores, algo que no Brasil teve início tardiamente pela formação de quadros de elite para o Estado, sem que tivessem sido desenvolvidas as atividades formadoras básicas nos dois ciclos precedentes. Quando a universidade se instalou, ela o fez de forma superestrutural, cuidando basicamente do terceiro ciclo, sem olhar para os dois ciclos anteriores. O descomprometimento com os dois ciclos iniciais de estudo ainda continua a marcar a atitude geral da academia em relação ao problema educacional brasileiro, em que pese a atuação de alguns dos seus mestres renomados e atuantes nos diversos processos de reforma do ensino básico. A universidade brasileira deveria voltar bem mais os olhos para a realidade educacional brasileira como um todo.
Quer seja no que se refere à formação de quadros para os ciclos precedentes, quer seja no retorno à sociedade de suas atividades de pesquisa, financiadas com recursos da sociedade, a universidade brasileira tem deixado a desejar ao longo de sua existência consolidada. Embora a maior parte dos cursos “científicos” e “tecnológicos” isolados – que depois vieram a integrar a universidade – tenha se constituído tendo em vista o provimento de soluções e respostas práticas aos problemas colocados pelo mundo da agricultura e da indústria, a atenção prioritária da universidade esteve mais concentrada na própria universidade, não necessariamente numa agenda percebida de problemas nacionais básicos. Como é também o caso da burocracia pública, as IPES servem prioritariamente para servir a si mesmas.
Pode-se argumentar que formação de professores nunca foi pensada como sendo a função básica da universidade brasileira, mas caberia aí reconhecer um desvio de origem, não um plano de trabalho que possua legitimidade social. O viés superestrutural fica mais uma vez evidente. Quanto à pesquisa, parece evidente, igualmente, seu alheamento do setor produtivo, ao lado de outros comportamentos ainda mais nefastos, como uma persistente cultura anti-patentes e uma renitente, embora decrescente, postura antimercado. Os cursos de humanidades representam, obviamente, o padrão típico desse tipo de comportamento, ao qual, contudo, não estão isentos mesmo as áreas vinculadas aos estudos tecnológicos e de hard sciences.
O problema vai muito além do que já tinha constatado, desde 1985, Edmundo Campos Coelho, em seu aclamado (e pouco lido) livro A sinecura acadêmica: a ética universitária em questão (São Paulo: Vértice, 1985), já que atingindo bem mais do que bancas de seleção de professores, cargos comissionados, apoios financeiros e prebendas institucionais de modo geral. Ele transformou-se num problema sine cura, alcançando o próprio núcleo do sistema de produção acadêmica, ou seja, sua própria substância, que é a capacidade de produzir obras originais, em linguagem acessível a um público mais vasto, mas dentro de rigorosos padrões acadêmicos de qualidade.

5) Reitores não são gestores, mas amigos da corporação “isonômica”
A despeito de certos progressos, a universidade pública continua resistindo à meritocracia, à competição e à eficiência. Ela concede estabilidade no ponto de entrada, não como retribuição por serviços prestados ao longo do tempo, aferidos de modo objetivo. Ela premia a dedicação exclusiva, como esta se fosse o critério definidor da excelência na pesquisa, ou como se ela fosse de fato exclusiva. Ela tende a coibir a “osmose” com o setor privado, mas parece fechar os olhos à promiscuidade com grupos político-partidários ou com movimentos ditos sociais. Ela pretende à autonomia operacional, mas gostaria de dispor de orçamentos elásticos, cujo aprovisionamento fosse assegurado de maneira automática pelos poderes públicos. Ela aspira à eficiência na gestão, mas insiste em escolher os seus próprios dirigentes, numa espécie de conluio “democratista” que conspira contra a própria ideia de eficiência e de administração por resultados. Ela diz privilegiar o mérito e a competência individual, mas acaba deslizando para um socialismo de guilda, quando não resvalando num corporativismo exacerbado, que funciona em circuito fechado.
Tudo isso aparece, de uma forma mais do que exacerbada, na “eleição”, e depois na “escolha”, dos seus respectivos “reitores”, que não deveriam merecer esse nome, pois regem pouca coisa, preferindo seguir, por um lado, o que recomenda o Conselho Universitário – totalmente fechado sobre si mesmo – e, por outro, o que “mandam as ruas”, no caso, os sindicatos de professores e funcionários. Algumas IPES chegaram inclusive a conceder o direito de voto igualitário a professores, alunos e funcionários, uma espécie de assembleísmo que é o contrário da própria noção de democracia, se aplicada a uma instituição não igualitária como dever ser a universidade.
Com todos os desvios acumulados ao longo dos anos, a universidade pública tornou-se parte do problema do desenvolvimento nacional, sem necessariamente apresentar-se como parte da solução desse problema. O problema básico do país não se situa tanto na universidade pública, e sim no ciclo universal de ensino, mas ela não tem feito o suficiente para diagnosticar esse problema e encaminhá-lo de forma satisfatória. Ela poderia dizer, por exemplo, que o sistema nacional de ensino requer um pouco menos de pedagogos no MEC e mais administradores nas escolas, gestores sensatos, dotados de ideias simples como boa gestão dos recursos públicos e a fixação de metas precisas, para atingir resultados escolares satisfatórios.
Os reitores das IPES, aliás, deveriam ser basicamente administradores não vinculados aos clãs e seitas da própria universidade, preferencialmente recrutado por meio de anúncios de jornal – por exemplo, na Economist – só podendo ser escolhidos se apresentarem um plano de metas a ser cumprido em dois anos, podendo ser renovado se tiverem sucesso. O Conselho Universitário não pode ser uma ação entre companheiros, e sim integrado por membros da comunidade, sobretudo por homens de negócios, em paridade com os professores (se não em maior número). As dotações públicas deveriam atender ao seu funcionamento essencial, cabendo o financiamento de projetos ser objeto de prospecção feita junto à comunidade local, ou a quaisquer empresas interessadas, de qualquer nacionalidade e área de trabalho. Professores reitores acabam se tornando reféns dos colegas ou de grupos de interesse, e o resultado é geralmente o investimento nos meios, não nos fins. As melhores universidades do país, mesmo aquelas que dispõem de recursos pré-alocados – como cotas em determinados impostos ou taxas, por exemplo – acabam inapelavelmente descambando para a inadimplência e a falência.

Back to basics: para evitar o afundamento completo da educação brasileira
A educação brasileira vem sendo “afundada” devido a uma combinação involuntária de fatores perversos que ultrapassam a capacidade da universidade de corrigi-los, mas aos quais ela não deveria estar alheia, uma vez que a degradação do ensino básico e do secundário vem se refletindo cada vez mais na mediocrização da graduação universitária, com possível contaminação dos cursos de pós. Quando a universidade não se posiciona claramente contra suas próprias deformações, evidentes neste ensaio perfunctório, ela contribui para a deterioração geral dos padrões de ensino e pesquisa. Ao não reagir claramente contra regimes de cotas, contra a politização demagógica de suas estruturas de funcionamento, a universidade sanciona a tendência declinante da educação pré-graduada e com isso compromete a qualidade dos seus próprios cursos. Nunca é tarde para que a universidade retifique algumas tendências ao autismo acadêmico e participe de modo mais afirmado dos diagnósticos e soluções aos mais graves problemas brasileiros de desenvolvimento. Ela já o fez no passado, pelo menos de modo parcial, e pode certamente voltar a dar sua contribuição na presente fase de impasses e de lento estrangulamento do processo de crescimento econômico. Esperemos que ela o faça, para o seu próprio bem...

Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 2 de outubro de 2017

Por que escrevo (2) - Paulo Roberto de Almeida

Continuidade da postagem anterior:

Este texto é para ser lido no imediato seguimento do anterior, Por que escrevo? (1), neste link: http://diplomatizzando.blogspot.com.br/2016/01/por-que-escrevo-1-retomando-minhas.html
 
Por que escrevo? (2)

Paulo Roberto de Almeida

Retomo a discussão suscitada pela questão do título, confessadamente inspirada em ensaio de título análogo (mas sem o sinal de interrogação) de George Orwell, em um texto elaborado em 1946, quando ele já tinha se tornado um escritor profissional, mas ainda enfrentando condições de vida bastante modestas, pois Animal Farm não havia conseguido encontrar, até aquele momento, algum editor disposto a desafiar o Big Brother soviético, e o próprio escritor ainda ruminava a possibilidade de escrever sobre o verdadeiro grande irmão, no romance que lhe trouxe fama universal: 1984. Em “Why I write”, Orwell dizia que existem quatro grandes motivos para escrever e estipulava que eles diferem em graus variados de escritor a escritor, sendo que, em cada um deles, os motivos assumem proporções variáveis ao longo do tempo, segundo a atmosfera na qual os escritores vivem. Vejamos quais são eles, e meus comentários sobre cada um.

(1) Egoísmo puro. O escritor, segundo Orwell, quer parecer inteligente, ser reconhecido como tal, objeto de comentários dos contemporâneos e ser relembrado após a morte. “Seria desonestidade não reconhecer que esse é um forte motivo”, disse ele, terminando esse tópico por um comentário vinculado às duas condições: “Escritores sérios... são, no conjunto, mais vãos e autocentrados do que os jornalistas, ainda que menos interessados em dinheiro” (p. 312, de A Collection of Essays, edição Harbrace, impressa nos EUA, em 1953). Não tenho certeza de que escritores estejam menos interessados em dinheiro do que os jornalistas; provavelmente o contrário, pois estes, supostamente, trabalham geralmente para algum veículo de comunicações, e dispõem de um rendimento regular, enquanto assalariados, ao passo que os primeiros são talvez um pouco como os artistas: só ganham dinheiro quando obtêm sucesso de mercado e quando conseguem vender suas obras em grande número, ou a preços altos.
De minha parte, ainda que os motivos de orgulho e de reconhecimento pessoais possam ter contado em algumas fases de minha atividade de escrevinhador – jamais de escritor – não foi isso que essencialmente me levou a me dedicar à palavra escrita, tanto porque quase nunca pensei em publicar o que escrevo, até quando já não dependia em nada desses parcos rendimentos de uma atividade irregular. Obviamente, fama e glória só existem quando se é publicado – contra ganhos ou não, e no meu caso raramente a primeira hipótese esteve em jogo – e, do total de meus escritos, apenas uma ínfima parte encontrou o caminho da divulgação pública. A proporção cresceu, está claro, na era digital, quando o custo associado à divulgação eletrônica se tornou ínfimo, comparado às edições comerciais para o mercado de massa, mas ainda assim não posso dizer que escrevo com o objetivo de ser lido para obter reconhecimento público, ou em nome do egoísmo (ou vaidade) de que falava George Orwell.

(2) Entusiasmo estético, ou seja, percepção da beleza das palavras, de seu impacto no mundo circundante, ou desejo de expressar e partilhar uma experiência que é considerada relevante para si próprio e eventualmente para os demais. “O motivo estético”, reconhece Orwell, “é bastante fraco em muitos escritores, mas mesmo um panfletário, ou um autor de livros-texto, terá palavras ou frases que lhe são preferidas por razões não utilitárias; (...) Além do nível de um guia de trens, nenhum livro está desprovido verdadeiramente de considerações estéticas” (idem, p. 312)
Acho que, sob esse critério, eu devo ser um desastre, pois meu estilo é pesado, prolixo, no mais das vezes descuidado na forma e desengonçado na composição das palavras, com uma redação tortuosa e torturada, que apenas reflete minha rebeldia inicial e constante em me dedicar às boas regras da gramática e à redação bem cuidada. Sou tão atento às palavras, pelo seu significado e conteúdo substantivo, quanto sou desatento à forma pela qual elas devem ser ordenadas no texto, sua correção formal: as frases se sucedem, longuíssimas. Trata-se de um defeito grave, eu sei, mas é um pecado original do qual nunca soube me desfazer quando realmente comecei a me dedicar de modo mais sistemático à palavra escrita, um refúgio ao qual recorremos quando estamos longe do ambiente natural em que nos movimentamos desde as primeiras letras.
Essa fase correspondeu ao meu autoexílio voluntário, a partir dos 21 anos (e durante mais de sete anos), quando passei a ler, a estudar e a escrever em outras línguas, numa notável confusão de regras e de estilos. Minha língua de trabalho passou a ser preferencialmente o francês – que não difere muito, no estilo ou na gramática, do português, mas é altamente mais exigente no plano formal – mas também me exerci bastante em espanhol, com intensas leituras paralelas em inglês e em italiano, e breves incursões pelo alemão. Por outro lado, não creio que textos de natureza política, sejam especialmente favoráveis a um domínio erudito da palavra escrita, perdendo de longe, por exemplo, para a boa literatura, da qual estive infelizmente afastado, justamente em função de uma dedicação doentia às questões políticas. Tenho plena consciência de que minha estética das palavras é horrível, e não cultivo nenhum entusiasmo por isso.

(3) Impulso histórico, que é o mais curto dos motivos elencados por Orwell. Ele escreve apenas isto: “Desejo de ver as coisas como elas são, de descobrir os fatos verdadeiros e de guardá-los para uso da posteridade” (p. 312). Parece, dito assim, a mais desprendida das motivações, uma escrita voltada unicamente para a preservação dos eventos, vistos, ouvidos ou lidos, algo como uma vocação à la Ranke: contar os fatos como eles efetivamente aconteceram (wie es eigentlich Gewesen). Ainda que eu tenha sempre cultivado a história como a mais saborosa das literaturas, e a considere como a “mãe de todas as ciências”, como reza o famoso dístico – não sei se desde Heródoto ou Tucídides – não me dedico especialmente à escrita da história, tanto porque não possuo a necessária preparação metodológica para fazê-lo. Mas todos os meus trabalhos possuem forte inclinação histórica, no sentido em que procuro contextualizar os fatos ou eventos analisados em suas causas originais, em seu ambiente de formação e ulterior desenvolvimento, pois tudo se torna mais compreensível quando recolocamos quaisquer fatos ou processos históricos no ambiente que os viu nascer, levando em conta os vetores que os moldaram e as forças que continuaram influenciando seu itinerário.
Espíritos simplórios, e burocracias sem memória, tendem a considerar tais fatos ou processos apenas como eventos ad hoc, como se eles surgissem de repente, e fossem originais ou inéditos. Não se poupam, assim, de cometer os mesmos erros ou equívocos a que estão condenados, segundo Santayanna (ou algum outro filósofo antes dele), todos aqueles que ignoram a história. É certo que a história nunca se repete, mas os espíritos despreparados tendem a cometer os mesmos erros que já ocorreram anos, décadas ou séculos antes, ainda que em circunstâncias diferentes. Não existe nenhuma novidade nas bolhas financeiras, nas valorizações exageradas das bolsas, na especulação com metais ou imóveis, mas aparentemente as gerações sucessivas acabam incorrendo nos mesmos desvios de comportamento que vitimaram os holandeses das tulipas, os franceses de John Law ou, modernamente, os deslumbrados das “ponto.com”.
Mas eu também me desvio do principal nesta questão: escrever com finalidades ou propósitos históricos ou simplesmente pelo prazer da escrita. Creio ter esse impulso da escrita, e também o espírito histórico, o que torna essa escrita mais empiricamente fundamentada, mesmo sem pretender ser um fiel cronista dos eventos correntes. Deixo a história para os profissionais, mas não hesito em penetrar em seu território e roubar algumas de suas técnicas de investigação, questionando documentos de arquivos e consultando relatos de contemporâneos, tanto quanto lendo os historiadores que vieram depois, e que podem iluminar novos aspectos de eventos e processos passados.
Minha escrita é histórica: não tenho nenhuma dúvida quanto a isso, e tal característica só se aprofunda com o tempo. Uma das vantagens de envelhecer – se é que se trata de uma “vantagem” – é a de poder escrever sobre fatos que nos foram contemporâneos, por assim dizer, eventos que depois se tornaram “históricos” e aos quais assistimos com os nossos olhos, ou que estiveram nas páginas de jornais que líamos todos os dias, hoje bem mais a televisão e a internet do que o papel impresso. Atualmente, posso falar com total domínio sobre o último meio século, e talvez até um pouco mais, dado que os livros “contemporâneos” do último meio século falam com grande domínio sobre o meio século precedente.
Assim, o “breve” impulso histórico de Orwell pode ser lido de várias maneiras, ele que foi um homem profundamente marcado pelas tragédias dos anos 1930 e pela Segunda Guerra Mundial. Um de seus textos começa exatamente assim: “Enquanto eu escrevo, seres humanos altamente civilizados estão voando sobre minha cabeça, tentando matar-me” (p. 252 de A Collection of Essays). Se tratava do ensaio “England Your England”, escrito em 1941, quando o pico dos ataques aéreos nazistas contra a Inglaterra já tinha passado, mas a Luftwaffe ainda continuava a fazer incursões ocasionais sobre Londres, tentando quebrar a moral dos ingleses (bem antes que os americanos fossem obrigados a finalmente se envolver na guerra).
O que mais marcou Orwell, entretanto, foi o totalitarismo dos regimes soviético e nazista, o que está muito evidente tanto em Animal Farm quanto em 1984. No mesmo ensaio que serviu de inspiração a este aqui, ele escreveu: “Cada linha de trabalho sério que eu escrevi desde 1936 [quando ele esteve na Espanha da guerra civil, do lado republicano, experiência relatada em Hommage to Catalonia] foi escrita, direta ou indiretamente, contra o totalitarismo e a favor do socialismo democrático, tal como eu o entendo” (p. 314, ênfases no original). É bastante provável que, se não tivesse morrido precocemente, Orwell continuasse um socialista democrático, na Grã-Bretanha dos anos 1950 e 1960, mas é altamente improvável que ele assistisse indiferente à decadência britânica que esse mesmo socialismo ajudou a aprofundar logo em seguida, até culminar nos imensos retrocessos sociais e industrial da fase imediatamente anterior à eleição de Margaret Thatcher. Mesmo continuando um socialista, e inimigo dos conservadores, Orwell provavelmente não discordaria das orientações libertárias dos novos tories, já que, entre sindicalistas estatizantes e defensores das liberdades individuais, ele sempre ficaria com estes últimos, contra o controle das vontades pelos novos totalitários. A história sempre tem algo a ensinar aos espíritos abertos como ele (eu também).

(4) Objetivo político: Orwell usa o termo político no seu sentido mais amplo, como ele mesmo explica, complementando ao início de sua longa explicação sobre a motivação especificamente política dos escritores: “nenhum livro é genuinamente destituído de algum viés político. A opinião de que a arte não deve ter nada com a política é, ela mesma, uma atitude política” (p. 313). Concordo inteiramente, mas a dificuldade, aqui, está justamente em aceitar que nossas opiniões políticas constituem o reflexo de nossas leituras e experiência de vida anteriores, que refletimos o estado do debate político na sociedade e que podemos, e devemos aprofundar esse debate, e assumir novas posturas, à medida que aprendemos com o tempo, com as leituras, com pessoas mais experientes, com a observação honesta e objetiva da realidade.
Por observação objetiva da realidade, como condição inseparável da honestidade intelectual, eu quero me referir à minha própria trajetória política, iniciada sob o domínio do marxismo teórico e do leninismo prático, continuada sob o signo do socialismo democrático nos anos 1970 e 1980 – como Orwell, ao contemplar as misérias do nazismo e do stalinismo nos anos 1930 e 1940 –, e chegando a uma espécie de contrarianismo libertário nos tempos presentes, certamente mais liberal no seu conteúdo econômico, do que nos tempos socialistas, e mais anarquista nos domínios cultural e político. A migração não foi instantânea, nem desprovida de racionalizações justificativas, mas a recusa do totalitarismo bolchevique foi, sim, imediata, uma vez feito o confronto com a realidade.
Ao sair do Brasil, nos tempos mais obscuros dos chamados anos de chumbo da repressão política (e violenta) do regime militar contra os grupos de luta armada, eu fui direto para o coração do socialismo real, na Tchecoslováquia pós-invasão soviética, quando o socialismo à face humana de Dubcek estava sendo definitivamente enterrado pelas forças brejnevistas do sovietismo esclerosado. Mais do que a miséria material, imediatamente perceptível pelas estantes e prateleiras vazias das lojas e armazéns, o que mais me chocou foi constatar a miséria humana, moral e espiritual do socialismo, que também era perceptível pelo ambiente de vigilância policial, de autocensura mental, de contenção nas palavras e nas atitudes. O totalitarismo não era uma invenção da CIA, da revista Seleções (Reader’s Digest), nem da ciência política ocidental; ele era uma realidade perceptível nos olhares e nos gestos, nas pequenas misérias cotidianas que iam muito além da falta de carne ou de frutas nos mercados, de jornais nos quiosques, e se manifestava diretamente no vocabulário, que Orwell chamou de novilingua em 1984.
Obviamente eu não dominava o tcheco para conversar com a população, mas podia conversar em francês com as senhoras idosas que frequentavam a biblioteca da Alliance Française, onde eu ia para ler o Le Monde – a única fonte de informação que eu tinha no socialismo real – e onde elas iam para se aquecer no inverno, já que o carvão custava caro e talvez fosse extremamente difícil subir tantos sacos em muitos lances de escada, em suas antigas casas patrícias transformadas em residências coletivas para seis ou sete famílias operárias. Aquelas senhoras vinham do capitalismo liberal e da Tchecoslováquia independente dos anos de entre-guerras, e ressentiam intensamente o descenso social que experimentaram a partir de 1948, mas sobretudo estavam profundamente deprimidas pelo clima de repressão policial e de controles do partido sobre a vida dos cidadãos, situação temporariamente flexibilizada durante os anos de Alexander Dubcek à frente do comité central do Partido Comunista. Foi apenas uma primavera, logo interrompida pelos tanques soviéticos e do Pacto de Varsóvia.
Essa foi a miséria do socialismo que me foi dada contemplar nos curtos três meses que passei do outro lado da “cortina de ferro”. Logo em seguida fui trabalhar e estudar no capitalismo explorador, e me senti inteiramente à vontade com livrarias, bibliotecas, olhares desprovidos de medo, bem mais do que com as estantes cheias e a abundância dos supermercados. A partir desse momento, eu reforcei minha vocação de escritor político, profundamente político, sem qualquer resquício do fundamentalismo ideológico que me tinha aprisionado no pensamento único dos neobolcheviques nos anos anteriores. Orwell tinha razão: nenhum escritor, nenhum livro é desprovido de um viés político determinado.
Como ele escreveu, mais para o final de “Why I Write”: “Animal Farm foi o primeiro livro no qual eu tentei, com plena consciência do que estava fazendo, fundir o objetivo político e o objetivo artístico em um único conjunto. (...) Todos os escritores são vãos, egoístas e preguiçosos e, bem no fundo de suas motivações, reside um mistério. (...) Eu não posso dizer com certeza quais das motivações são as mais fortes, mas eu sei quais delas merecem ser seguidas. E olhando retrospectivamente minha obra, eu vejo que foi invariavelmente quando eu não tinha uma motivação política que eu escrevi livros sem vida e fui traído por passagens obscuras, sentenças sem significado, adjetivos decorativos e, em geral, desonestidade” (p. 316).
 Cabe aos que cultivam um mínimo de honestidade intelectual ter consciência desse tipo de viés, inevitável na literatura política, passando então a imprimir o máximo de objetividade observadora, de fidelidade à realidade que nos cerca, e tratar de traduzir uma clara percepção dessa realidade nos escritos que produzimos. É o que eu tento fazer cada vez e sempre que busco um livro na estante, que seleciono minhas leituras de pesquisa, de estudo ou de lazer, e que tomo da pluma, ou que me sento em face do computador, para escrever alguma coisa, qualquer coisa, como esta agora, por exemplo. Sempre...

Hartford, 7 de Junho de 2014

Por que escrevo (1) - Paulo Roberto de Almeida

Recentemente fui requisitado por um pesquisador da UnB que mantém um site interessante, Como Eu Escrevo (https://comoeuescrevo.com/), a preencher um questionário muito amplo (neste link), que se aplica bem mais a escritores literários, do que a escrevinhadores de ciências humanas, como é o meu caso. Respondi dizendo que não tinha tempo para responder neste momento, mas lembrei-me de um antigo trabalho que corresponde a uma parte, apenas, das demandas efetuadas.
Transcrevo nesta postagem, e na próxima, esse trabalho de três anos atrás, sobre as razões de minha produção "literária".
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 27 de novembro de 2017


Paulo Roberto de Almeida

A pergunta do título poderia, hipoteticamente, sugerir aos leitores deste texto que eu estaria me considerando um escritor, o que não é absolutamente verdade, nem pela suposição implícita, nem, muito menos, pela condição efetiva. Escritor é aquele que faz do ofício da escrita sua atividade principal e que, portanto, vive disso (a menos que seja um milionário despreocupado, ou um proustiano que vive de ar e madeleines). Eu não ganho minha vida escrevendo, muito pelo contrário: até devo perder algum dinheiro (às vezes muito, pela compra de livros), e provavelmente também porque meus textos publicados não constituem exatamente ativos em minha vida profissional (eles podem até ter contribuído para alguns dissabores ao longo da carreira, pelo fato de não aderir às doutrinas oficiais, e possivelmente também na vida acadêmica, onde o desfilar de vaidades é uma constante e as lutas tribais inevitáveis).
Então, retomando a pergunta do título, por que escrevo? Poderia dizer, muito diretamente, assim: por necessidade interior. Ou então, simplesmente, porque me dá prazer. Com efeito, faço da escrita uma segunda natureza (talvez a primeira, junto com a leitura, e não imagino nenhuma outra tão absorvente quanto essas duas; sim tem outras, mas não é o caso aqui de entrar em detalhes). Mas confesso que estou escrevendo este pequeno ensaio por sugestão indireta, em todo caso póstuma, de uma terceira pessoa, ela sim um escritor consumado, deliberado, definitivo, um dos meus preferidos, desde muitos anos, desde quando, ainda na adolescência, li Animal Farm (A Revolução dos Bichos). Sim, Eric Blair, aliás mais conhecido pelo seu nom de plume, George Orwell.
Acabo de receber um livrinho usado, que comprei por pouco mais de quatro dólares (frete incluído) da Thriftbooks (via Abebooks), chamado simplesmente de A Collection of Essays (Harbrace, copyright de 1946 pelo próprio George Orwell e, em vários outros anos, por Sonia Brownell Orwell). A despeito de conter ensaios altamente convidativos – vários dos quais eu já conhecia por outras edições de suas obras – como, por exemplo Shooting an Elephant, Politics and the English Language, Looking Back on the Spanish Civil War – fui direto ao último texto, de 1946, que exibe exatamente o título deste meu pequeno ensaio: Why I write (sem ponto de interrogação). Devo um pequeno copyright ao estate de George Orwell, portanto, ou se não para pagar seus legal rights, pelo menos registro aqui seu moral right quanto ao título e a inspiração.
Volto à questão da escrita por necessidade, pois ela é real e verdadeira, se me permitem a redundância. E isso não tem nada a ver com as características de escritor de George Orwell, que informa, nesse seu ensaio, que já sabia que queria ser escritor na tenra idade de cinco ou seis anos, quando recitou um poema para que sua mãe escrevesse, provavelmente inspirado – ou plagiado, como ele escreve – num poema de Blake, “Tiger, Tiger”. Em todo caso, já aos onze anos, quando começou a Grande Guerra, ele escreveu um poema patriótico publicado num jornal local. Ele começou assim, escrevendo vers d’occasion, ascendendo numa carreira que enveredou pelo jornalismo, pelo ensaísmo e que chegou até o famoso romance distópico que ainda hoje é referência, tanto na literatura dessa área, quanto para o pensamento político dirigido para a condição humana e a organização das sociedades, naquele tom pessimista que sabemos lhe ter sido precocemente inspirado pelo conhecimento direto do stalinismo, primeiro na Espanha, depois ao tomar conhecimento dos processos de Moscou.
No meu caso, não foi nada disso, nem versos de ocasião, nem experiência traumática em alguma guerra, embora possa reconhecer que o golpe militar de 1964 me despertou também precocemente para a política e para o estudo sistemáticos dos problemas sociais e econômicos do Brasil. Mas, a essa altura, eu já era um escritor não confirmado, mas provavelmente improvisado, mas já totalmente dedicado às artes altamente suspeitas da leitura obsessiva e da escrita compulsiva, talvez um pouco como Orwell. Não que eu pretenda me igualar ao grande escritor, longe disso, mas é que, como no seu caso – e suspeito que isso eu possa compartilhar com ele – eu nunca escrevi nada, absolutamente nada, que não tivesse vontade de escrever, e nunca escrevi qualquer coisa que violasse minha própria consciência quanto ao conteúdo mesmo que estava sendo transposto para o papel, mais tarde para as telas de computador. Jamais. Como Orwell, possivelmente, só escrevi aquilo que motivava minha vontade, que atiçava meu cérebro, que correspondia a algum impulso interior, e que brotava naturalmente da pluma, ou do teclado, segundo alguma reflexão própria, jamais ditada por alguma força externa.
Obviamente, ao longo da carreira profissional fui levado a escrever textos para terceiros, geralmente chefes na hierarquia vaticana do Itamaraty, mas não me lembro de jamais ter recorrido ao diplomatês insosso, no estilo bullshit habitual nesse meio, àquela langue-de-bois (ou chapa branca) que sempre me horrorizou sobremaneira. Sempre escrevi o que queria, e se algum chefe, ou gabinete, quisesse mudar depois, isso não mais me interessava. Nenhum desses escritos entrou na minha lista de trabalhos (só um ou outro cuja estrutura, conteúdo e forma foram preservados, mas de toda forma apenas para fins de registro, não como trabalhos que eu pudesse considerar como sendo meus).
À diferença de Orwell, comecei a escrever tarde, mas talvez não muito mais tarde do que ele mesmo. As primeiras lembranças da fase de aprendizagem da leitura e da escrita, me remetem ao livro de alfabetização – estilo “Ivo viu a uva” – e ao caderno de caligrafia, com suas três linhas, a superior reservada às maiúsculas iniciais e aos nomes próprios, mas que jamais poderia ser ultrapassada. As ferramentas eram o lápis, o apontador, a borracha e a caneta de pluma de ferro, com o tinteiro de marca americana, creio que Parker, que também era o nome de uma famosa caneta tinteiro que nunca cheguei a possuir. Mais adiante, talvez no terceiro ano do primário, já se trocou a caneta de pluma de ferro – também cheguei a experimentar pluma de ganso, apontada – por uma caneta tinteiro, dessas de bomba de borracha, que costumam fazer a maior sujeira, se manejadas sem cuidado (quantos cadernos e livros estragados com uma ou outra vazão exagerada de tinta...).
Depois do bê-á-bá, os primeiros escritos foram apenas as respostas às perguntas da professora, copiadas da lousa, a mesma para os quatro anos do primário, e que dava todas as aulas das quatro ou cinco disciplinas obrigatórias (e aplicava os corretivos, quando fosse necessário). Havia também os corretivos em casa, quando o boletim ou o caderno vinha com notas vergonhosas, o que era raro, mas em todo caso servia para incutir um alto senso de responsabilidade nos deveres escolares de todo mundo (algo que aparentemente parece ter sido perdido atualmente, ainda mais com a tal de “lei da palmada”). Os casos mais graves de comportamento eram resolvidos no chinelo ou na cinta, mas jamais para deveres escolares, inclusive porque a escola era disciplinadora.
Mas eu me perco no roteiro deste ensaio: por que escrevo? Bem, comecei com trabalhos escolares, mas jamais respondendo apenas o estritamente necessário, de forma lacônica: sempre passeando pelo Egito antigo, pela Grécia clássica, pela Roma dos tribunos e dos imperadores aloprados, inclusive porque era isso o que eu aprendia nos livros, nas versões infantis das histórias de Monteiro Lobato, dos clássicos de Swift, Cervantes, Hans Staden, Defoe, nos romances de Karl May, Emilio Salgari e muitos outros. O gosto pela história veio muito cedo, na adaptação feita por Lobato da História do Mundo para as Crianças, cujo autor me escapa completamente agora.
Tudo isso eu tinha à minha disposição na fabulosa Biblioteca Infantil Municipal Anne Frank, no bairro do Itaim-Bibi, que eu frequentava antes mesmo de aprender a ler, o que só fiz na tardia idade de sete anos. No ano seguinte, já me debrucei sobre coisas mais “complicadas”. Cheguei a decorar os nomes de faraós de várias dinastias egípcias, e sabia perfeitamente distinguir quem foram e o que fizeram os gregos mais famosos, filósofos, dirigentes políticos ou líderes militares. Não sei se foi isso que me levou à incontinência da pena, provavelmente não: esse foi apenas o caminho para a loucura gentil da leitura obsessiva, embora a escrita caminhasse junto, pois era dessa forma que eu realmente absorvia cada livro lido, pelos resumos efetuados a cada vez, e que infelizmente se perderam na passagem da infância para a adolescência.
Chegada essa fase, minhas preocupações eram outras, não mais puramente históricas, e muito menos literárias, o que nunca foi o meu forte, até hoje (o que, aliás, explica inúmeros defeitos de escrita, inclusive porque nunca cuidei da forma, muito menos da gramática ou do estilo). Elas se tornaram sociais e políticas, sobretudo porque eu procurava entender porque eu e minha família éramos tão pobres, tão desprovidos de coisas básicas (telefone, televisão, carro, ou livros, em casa), em face de tantos colegas da escola, de roupas vistosas e hábitos “burgueses” (sim, aprendi muito cedo o significado desse conceito essencialmente marxista).
A percepção, real, cruel, dolorosa, da pobreza, da desigualdade social, da carência de meios me impactou desde cedo, e isso porque desde muito cedo fui levado a trabalhar para suplementar o magérrimo orçamento familiar: meu pai era motorista, minha mãe lavava roupas para fora, ambos com primário incompleto, e meu destino, desde o primário, e provavelmente mesmo antes, foi suprir a falta de dinheiro com todos os expedientes aceitáveis então podendo ser desempenhados por um garoto pobre: recolhimento de sucata metálica nos fundos de uma fábrica, pegador de bolas de tênis no clube da vizinhança e empacotador não registrado de supermercado, ganhando apenas gorjetas, portanto. Mais adiante fui ser “office-boy”, que era como se chamavam os contínuos antigamente. Fiz um pouco de tudo, inclusive e principalmente refletir sobre a miséria material da nossa existência.
Daí que, salvo alguns pequenos textos de juventude, para os jornais escolares, meus primeiros escritos tenham sido precocemente impregnados de revolta, logo impulsionada pela leitura de obras como Germinal, de Émile Zola e outros livros dessa mesma feitura. Da revolta instintiva para a “consciência social” foi um passo muito curto, que devo ter ultrapassado antes mesmo do golpe militar de 1964, aos 14 anos, portanto. Antes disso eu já vinha me politizando, com a leitura de jornais, de Seleções (versão brasileira do Reader’s Digest), e de quaisquer outros materiais que viessem às mãos. Depois do Quarto Centenário da cidade de São Paulo, em 1954, e da Copa do Mundo de 1958, na Suécia, o que provavelmente mais marcou minha infância foi a campanha vitoriosa de Jânio Quadros, em 1960, sua renúncia, a seis meses do exercício do cargo (quando minha mãe foi me buscar na escola, talvez temendo uma guerra civil, ou pelo menos distúrbios nas ruas, como quando do suicídio de Getúlio), e a crise dos mísseis soviéticos em Cuba, no ano seguinte. Foram episódios momentosos na vida do país e do mundo, que me levaram às páginas dos jornais, quando eu então passei a usar do meu pouco dinheiro para comprar o grosso Estadão de domingo, onde se podia aprender de tudo, naquela linguagem complicada para um garoto de doze anos.
Nessa altura eu já estava fazendo resenhas de livros para jornais escolares, e produzindo alguns textos “góticos” sobre o Brasil e o mundo, que se perderam todos, com uma ou outra exceção. No ginásio (Vocacional Oswaldo Aranha, entre 1962 e 1965) eu colaborar com “A Pequena Nação”, que tinha como dístico a seguinte frase, altamente pretensiosa: “um jornal que diz bem porque pensa no que diz” (sic). Sobraram como colaborações minhas um elogio pela vitoriosa conquista num torneio feminino de handball, e um poema chamado A Jangada, provavelmente inspirado nas leituras obrigatórias que tínhamos de fazer (nesse caso, José de Alencar, talvez). Mas o golpe militar, logo em seguida, me levou diretamente às leituras políticas, aos escritos na linha do marxismo e ao meu engajamento na “luta contra a ditadura”. A partir daí nunca mais deixei de escrever, compulsivamente, intensamente, aliás muita coisa sob algum nom-de-plume, que no caso era mais exatamente um nom-de-guerre. Mas esta já é outra história que pretendo contar um outro dia...
Termino respondendo à pergunta inicial: escrevo por necessidade. Em primeiro lugar para tentar explicar a mim mesmo as razões da desigualdade, e do nosso estatuto social inferior, e para os outros tentando convencê-lo de que é preciso mudar o país e mudar o mundo, para torná-lo mais justo para aqueles, como eu, que vieram de uma condição inferior e queriam ter acesso às bondades da sociedade de consumo. Quando comecei, a intenção era mais bem a destruir a sociedade capitalista e o mundo burguês, como ocorria com muitos jovens em minha época, e provavelmente de condição social bem superior: líamos Marx e Engels, obviamente, mas também Lênin, Marcuse, e toda a literatura especializada nos problemas sociais brasileiros, inclusive clássicos da teoria social, da história e do desenvolvimento econômico que só seriam recomendados vários anos mais tarde, já na Faculdade.
Depois de muitas aventuras, viagens, leituras e um itinerário de aprendizados constantes eu aprendi que era preciso transformar o mundo, não necessariamente no sentido pretendido na juventude, mas de uma forma mais racional, mais ponderada, menos radical, e certamente mais democrática e tolerante em relação às diversas orientações doutrinárias, políticas e econômicas. Mas, tudo isso foi sendo absorvido ao longo da vida, aos poucos, como acontece com todo mundo aliás.
O que nunca deixei de fazer, sempre, foi ler e escrever, escrever e ler, e pensar, naturalmente. Ainda tenho cadernos e mais cadernos de notas de leituras e de trabalhos esquematizados. Continuo fazendo isso, agora guardando em pastas no computador.
Por que eu escrevo? Por isso mesmo, por absoluta necessidade. Não creio que venha a mudar significativamente esse meu estilo de vida daqui para a frente, mas seria bom um pouco mais de organização: tenho dezenas de trabalhos e muitos livros para terminar. Paro por aqui, pois tenho outras coisas para escrever, no meu caos habitual...

Hartford, 6 de Junho de 2014