Paulo Roberto de Almeida
Retomo a discussão
suscitada pela questão do título, confessadamente inspirada em ensaio de título
análogo (mas sem o sinal de interrogação) de George Orwell, em um texto elaborado
em 1946, quando ele já tinha se tornado um escritor profissional, mas ainda
enfrentando condições de vida bastante modestas, pois Animal Farm não havia conseguido encontrar, até aquele momento, algum
editor disposto a desafiar o Big Brother soviético, e o próprio escritor ainda
ruminava a possibilidade de escrever sobre o verdadeiro grande irmão, no
romance que lhe trouxe fama universal: 1984.
Em “Why I write”, Orwell dizia que existem quatro grandes motivos para escrever
e estipulava que eles diferem em graus variados de escritor a escritor, sendo
que, em cada um deles, os motivos assumem proporções variáveis ao longo do
tempo, segundo a atmosfera na qual os escritores vivem. Vejamos quais são eles,
e meus comentários sobre cada um.
(1) Egoísmo puro. O escritor, segundo Orwell, quer parecer inteligente,
ser reconhecido como tal, objeto de comentários dos contemporâneos e ser
relembrado após a morte. “Seria desonestidade não reconhecer que esse é um
forte motivo”, disse ele, terminando esse tópico por um comentário vinculado às
duas condições: “Escritores sérios... são, no conjunto, mais vãos e
autocentrados do que os jornalistas, ainda que menos interessados em dinheiro”
(p. 312, de A Collection of Essays,
edição Harbrace, impressa nos EUA, em 1953). Não tenho certeza de que
escritores estejam menos interessados em dinheiro do que os jornalistas;
provavelmente o contrário, pois estes, supostamente, trabalham geralmente para
algum veículo de comunicações, e dispõem de um rendimento regular, enquanto
assalariados, ao passo que os primeiros são talvez um pouco como os artistas:
só ganham dinheiro quando obtêm sucesso de mercado e quando conseguem vender
suas obras em grande número, ou a preços altos.
De minha parte, ainda que
os motivos de orgulho e de reconhecimento pessoais possam ter contado em
algumas fases de minha atividade de escrevinhador – jamais de escritor – não
foi isso que essencialmente me levou a me dedicar à palavra escrita, tanto
porque quase nunca pensei em publicar o que escrevo, até quando já não dependia
em nada desses parcos rendimentos de uma atividade irregular. Obviamente, fama
e glória só existem quando se é publicado – contra ganhos ou não, e no meu caso
raramente a primeira hipótese esteve em jogo – e, do total de meus escritos,
apenas uma ínfima parte encontrou o caminho da divulgação pública. A proporção
cresceu, está claro, na era digital, quando o custo associado à divulgação eletrônica
se tornou ínfimo, comparado às edições comerciais para o mercado de massa, mas
ainda assim não posso dizer que escrevo com o objetivo de ser lido para obter
reconhecimento público, ou em nome do egoísmo (ou vaidade) de que falava George
Orwell.
(2) Entusiasmo estético, ou seja, percepção da beleza das palavras, de
seu impacto no mundo circundante, ou desejo de expressar e partilhar uma
experiência que é considerada relevante para si próprio e eventualmente para os
demais. “O motivo estético”, reconhece Orwell, “é bastante fraco em muitos
escritores, mas mesmo um panfletário, ou um autor de livros-texto, terá
palavras ou frases que lhe são preferidas por razões não utilitárias; (...)
Além do nível de um guia de trens, nenhum livro está desprovido verdadeiramente
de considerações estéticas” (idem, p. 312)
Acho que, sob esse critério,
eu devo ser um desastre, pois meu estilo é pesado, prolixo, no mais das vezes
descuidado na forma e desengonçado na composição das palavras, com uma redação
tortuosa e torturada, que apenas reflete minha rebeldia inicial e constante em
me dedicar às boas regras da gramática e à redação bem cuidada. Sou tão atento
às palavras, pelo seu significado e conteúdo substantivo, quanto sou desatento
à forma pela qual elas devem ser ordenadas no texto, sua correção formal: as
frases se sucedem, longuíssimas. Trata-se de um defeito grave, eu sei, mas é um
pecado original do qual nunca soube me desfazer quando realmente comecei a me
dedicar de modo mais sistemático à palavra escrita, um refúgio ao qual
recorremos quando estamos longe do ambiente natural em que nos movimentamos desde
as primeiras letras.
Essa fase correspondeu ao
meu autoexílio voluntário, a partir dos 21 anos (e durante mais de sete anos),
quando passei a ler, a estudar e a escrever em outras línguas, numa notável confusão
de regras e de estilos. Minha língua de trabalho passou a ser preferencialmente
o francês – que não difere muito, no estilo ou na gramática, do português, mas
é altamente mais exigente no plano formal – mas também me exerci bastante em
espanhol, com intensas leituras paralelas em inglês e em italiano, e breves
incursões pelo alemão. Por outro lado, não creio que textos de natureza
política, sejam especialmente favoráveis a um domínio erudito da palavra
escrita, perdendo de longe, por exemplo, para a boa literatura, da qual estive
infelizmente afastado, justamente em função de uma dedicação doentia às
questões políticas. Tenho plena consciência de que minha estética das palavras
é horrível, e não cultivo nenhum entusiasmo por isso.
(3) Impulso histórico, que é o mais curto dos motivos elencados por
Orwell. Ele escreve apenas isto: “Desejo de ver as coisas como elas são, de
descobrir os fatos verdadeiros e de guardá-los para uso da posteridade” (p.
312). Parece, dito assim, a mais desprendida das motivações, uma escrita
voltada unicamente para a preservação dos eventos, vistos, ouvidos ou lidos,
algo como uma vocação à la Ranke:
contar os fatos como eles efetivamente aconteceram (wie es eigentlich Gewesen). Ainda que eu tenha sempre cultivado a
história como a mais saborosa das literaturas, e a considere como a “mãe de
todas as ciências”, como reza o famoso dístico – não sei se desde Heródoto ou
Tucídides – não me dedico especialmente à escrita da história, tanto porque não
possuo a necessária preparação metodológica para fazê-lo. Mas todos os meus
trabalhos possuem forte inclinação histórica, no sentido em que procuro
contextualizar os fatos ou eventos analisados em suas causas originais, em seu
ambiente de formação e ulterior desenvolvimento, pois tudo se torna mais
compreensível quando recolocamos quaisquer fatos ou processos históricos no
ambiente que os viu nascer, levando em conta os vetores que os moldaram e as
forças que continuaram influenciando seu itinerário.
Espíritos simplórios, e
burocracias sem memória, tendem a considerar tais fatos ou processos apenas
como eventos ad hoc, como se eles surgissem de repente, e fossem originais ou
inéditos. Não se poupam, assim, de cometer os mesmos erros ou equívocos a que
estão condenados, segundo Santayanna (ou algum outro filósofo antes dele), todos
aqueles que ignoram a história. É certo que a história nunca se repete, mas os
espíritos despreparados tendem a cometer os mesmos erros que já ocorreram anos,
décadas ou séculos antes, ainda que em circunstâncias diferentes. Não existe
nenhuma novidade nas bolhas financeiras, nas valorizações exageradas das
bolsas, na especulação com metais ou imóveis, mas aparentemente as gerações
sucessivas acabam incorrendo nos mesmos desvios de comportamento que vitimaram
os holandeses das tulipas, os franceses de John Law ou, modernamente, os
deslumbrados das “ponto.com”.
Mas eu também me desvio do
principal nesta questão: escrever com finalidades ou propósitos históricos ou
simplesmente pelo prazer da escrita. Creio ter esse impulso da escrita, e
também o espírito histórico, o que torna essa escrita mais empiricamente
fundamentada, mesmo sem pretender ser um fiel cronista dos eventos correntes.
Deixo a história para os profissionais, mas não hesito em penetrar em seu
território e roubar algumas de suas técnicas de investigação, questionando
documentos de arquivos e consultando relatos de contemporâneos, tanto quanto lendo
os historiadores que vieram depois, e que podem iluminar novos aspectos de
eventos e processos passados.
Minha escrita é histórica:
não tenho nenhuma dúvida quanto a isso, e tal característica só se aprofunda
com o tempo. Uma das vantagens de envelhecer – se é que se trata de uma
“vantagem” – é a de poder escrever sobre fatos que nos foram contemporâneos, por
assim dizer, eventos que depois se tornaram “históricos” e aos quais assistimos
com os nossos olhos, ou que estiveram nas páginas de jornais que líamos todos
os dias, hoje bem mais a televisão e a internet do que o papel impresso. Atualmente,
posso falar com total domínio sobre o último meio século, e talvez até um pouco
mais, dado que os livros “contemporâneos” do último meio século falam com
grande domínio sobre o meio século precedente.
Assim, o “breve” impulso
histórico de Orwell pode ser lido de várias maneiras, ele que foi um homem
profundamente marcado pelas tragédias dos anos 1930 e pela Segunda Guerra
Mundial. Um de seus textos começa exatamente assim: “Enquanto eu escrevo, seres
humanos altamente civilizados estão voando sobre minha cabeça, tentando
matar-me” (p. 252 de A Collection of
Essays). Se tratava do ensaio “England Your England”, escrito em 1941,
quando o pico dos ataques aéreos nazistas contra a Inglaterra já tinha passado,
mas a Luftwaffe ainda continuava a fazer incursões ocasionais sobre Londres,
tentando quebrar a moral dos ingleses (bem antes que os americanos fossem
obrigados a finalmente se envolver na guerra).
O que mais marcou Orwell,
entretanto, foi o totalitarismo dos regimes soviético e nazista, o que está
muito evidente tanto em Animal Farm
quanto em 1984. No mesmo ensaio que
serviu de inspiração a este aqui, ele escreveu: “Cada linha de trabalho sério
que eu escrevi desde 1936 [quando ele esteve na Espanha da guerra civil, do
lado republicano, experiência relatada em Hommage
to Catalonia] foi escrita, direta ou indiretamente, contra o totalitarismo e a
favor do socialismo democrático, tal como eu o entendo” (p. 314, ênfases no
original). É bastante provável que, se não tivesse morrido precocemente, Orwell
continuasse um socialista democrático, na Grã-Bretanha dos anos 1950 e 1960,
mas é altamente improvável que ele assistisse indiferente à decadência
britânica que esse mesmo socialismo ajudou a aprofundar logo em seguida, até
culminar nos imensos retrocessos sociais e industrial da fase imediatamente
anterior à eleição de Margaret Thatcher. Mesmo continuando um socialista, e
inimigo dos conservadores, Orwell provavelmente não discordaria das orientações
libertárias dos novos tories, já que,
entre sindicalistas estatizantes e defensores das liberdades individuais, ele
sempre ficaria com estes últimos, contra o controle das vontades pelos novos
totalitários. A história sempre tem algo a ensinar aos espíritos abertos como
ele (eu também).
(4) Objetivo político: Orwell usa o termo político no seu sentido mais
amplo, como ele mesmo explica, complementando ao início de sua longa explicação
sobre a motivação especificamente política dos escritores: “nenhum livro é
genuinamente destituído de algum viés político. A opinião de que a arte não
deve ter nada com a política é, ela mesma, uma atitude política” (p. 313). Concordo
inteiramente, mas a dificuldade, aqui, está justamente em aceitar que nossas
opiniões políticas constituem o reflexo de nossas leituras e experiência de
vida anteriores, que refletimos o estado do debate político na sociedade e que
podemos, e devemos aprofundar esse debate, e assumir novas posturas, à medida
que aprendemos com o tempo, com as leituras, com pessoas mais experientes, com
a observação honesta e objetiva da realidade.
Por observação objetiva da
realidade, como condição inseparável da honestidade intelectual, eu quero me
referir à minha própria trajetória política, iniciada sob o domínio do marxismo
teórico e do leninismo prático, continuada sob o signo do socialismo
democrático nos anos 1970 e 1980 – como Orwell, ao contemplar as misérias do
nazismo e do stalinismo nos anos 1930 e 1940 –, e chegando a uma espécie de
contrarianismo libertário nos tempos presentes, certamente mais liberal no seu
conteúdo econômico, do que nos tempos socialistas, e mais anarquista nos
domínios cultural e político. A migração não foi instantânea, nem desprovida de
racionalizações justificativas, mas a recusa do totalitarismo bolchevique foi,
sim, imediata, uma vez feito o confronto com a realidade.
Ao sair do Brasil, nos
tempos mais obscuros dos chamados anos de chumbo da repressão política (e
violenta) do regime militar contra os grupos de luta armada, eu fui direto para
o coração do socialismo real, na Tchecoslováquia pós-invasão soviética, quando
o socialismo à face humana de Dubcek estava sendo definitivamente enterrado
pelas forças brejnevistas do sovietismo esclerosado. Mais do que a miséria
material, imediatamente perceptível pelas estantes e prateleiras vazias das
lojas e armazéns, o que mais me chocou foi constatar a miséria humana, moral e
espiritual do socialismo, que também era perceptível pelo ambiente de
vigilância policial, de autocensura mental, de contenção nas palavras e nas
atitudes. O totalitarismo não era uma invenção da CIA, da revista Seleções (Reader’s Digest), nem da ciência política ocidental; ele era uma
realidade perceptível nos olhares e nos gestos, nas pequenas misérias
cotidianas que iam muito além da falta de carne ou de frutas nos mercados, de
jornais nos quiosques, e se manifestava diretamente no vocabulário, que Orwell
chamou de novilingua em 1984.
Obviamente eu não dominava
o tcheco para conversar com a população, mas podia conversar em francês com as
senhoras idosas que frequentavam a biblioteca da Alliance Française, onde eu ia
para ler o Le Monde – a única fonte de informação que eu tinha no socialismo
real – e onde elas iam para se aquecer no inverno, já que o carvão custava caro
e talvez fosse extremamente difícil subir tantos sacos em muitos lances de
escada, em suas antigas casas patrícias transformadas em residências coletivas
para seis ou sete famílias operárias. Aquelas senhoras vinham do capitalismo
liberal e da Tchecoslováquia independente dos anos de entre-guerras, e
ressentiam intensamente o descenso social que experimentaram a partir de 1948,
mas sobretudo estavam profundamente deprimidas pelo clima de repressão policial
e de controles do partido sobre a vida dos cidadãos, situação temporariamente
flexibilizada durante os anos de Alexander Dubcek à frente do comité central do
Partido Comunista. Foi apenas uma primavera, logo interrompida pelos tanques
soviéticos e do Pacto de Varsóvia.
Essa foi a miséria do
socialismo que me foi dada contemplar nos curtos três meses que passei do outro
lado da “cortina de ferro”. Logo em seguida fui trabalhar e estudar no
capitalismo explorador, e me senti inteiramente à vontade com livrarias,
bibliotecas, olhares desprovidos de medo, bem mais do que com as estantes
cheias e a abundância dos supermercados. A partir desse momento, eu reforcei
minha vocação de escritor político, profundamente político, sem qualquer
resquício do fundamentalismo ideológico que me tinha aprisionado no pensamento
único dos neobolcheviques nos anos anteriores. Orwell tinha razão: nenhum
escritor, nenhum livro é desprovido de um viés político determinado.
Como ele escreveu, mais
para o final de “Why I Write”: “Animal
Farm foi o primeiro livro no qual eu tentei, com plena consciência do que
estava fazendo, fundir o objetivo político e o objetivo artístico em um único
conjunto. (...) Todos os escritores são vãos, egoístas e preguiçosos e, bem no
fundo de suas motivações, reside um mistério. (...) Eu não posso dizer com
certeza quais das motivações são as mais fortes, mas eu sei quais delas merecem
ser seguidas. E olhando retrospectivamente minha obra, eu vejo que foi
invariavelmente quando eu não tinha uma motivação política que eu escrevi livros sem vida e fui traído por passagens obscuras,
sentenças sem significado, adjetivos decorativos e, em geral, desonestidade”
(p. 316).
Cabe aos que cultivam um mínimo de honestidade
intelectual ter consciência desse tipo de viés, inevitável na literatura política,
passando então a imprimir o máximo de objetividade observadora, de fidelidade à
realidade que nos cerca, e tratar de traduzir uma clara percepção dessa
realidade nos escritos que produzimos. É o que eu tento fazer cada vez e sempre
que busco um livro na estante, que seleciono minhas leituras de pesquisa, de
estudo ou de lazer, e que tomo da pluma, ou que me sento em face do computador,
para escrever alguma coisa, qualquer coisa, como esta agora, por exemplo. Sempre...
Hartford, 7 de Junho de 2014
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