Lula e FH cooperaram para mudar visão americana sobre PT
Sigla, junto com PSDB, dialogou com EUA antes da posse, aponta livro
Alexandre Rodrigues
O Globo, 30/06/2014
Quando Luiz Inácio Lula da Silva (PT) venceu a primeira eleição para a Presidência da República, em 2002, deputados americanos do Partido Republicano alertaram o então presidente dos Estados Unidos, George W. Bush. Temiam a formação de um "eixo do mal" na América Latina, com a combinação de Lula com o venezuelano Hugo Chávez e o cubano Fidel Castro. Os argumentos alimentavam especulações de calote no mercado financeiro. Assim que as urnas foram apuradas no Brasil, a futura relação de Lula e Bush foi desenganada por políticos, analistas e a imprensa internacional diante de perfis políticos tão distintos: um ex-sindicalista e um conservador. Os anos seguintes mostraram o contrário: os dois conduziram o melhor momento das relações entre os dois países. Os Estados Unidos mudaram o status da sua relação com o Brasil, passando a reconhecê-lo como uma potência emergente.
Essa inversão de expectativas só foi possível por causa de 18 dias intensos de uma ofensiva diplomática comandada, sem alarde, por Lula e pelo então presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB) nos bastidores da transição entre os dois governos. A inusitada cooperação entre tucanos e petistas, sob a liderança de dois presidentes, é contada no livro "18 Dias", de Matias Spektor, que será lançado nos próximos dias pela Objetiva.
Doutor em Relações Internacionais por Oxford (Inglaterra) e professor de Relações Internacionais da Fundação Getulio Vargas, Spektor pesquisou arquivos como os do Itamaraty e do Departamento de Estado americano por quatro anos para reconstituir os passos da força-tarefa entre o telefonema que Lula recebeu de Bush no dia seguinte à sua eleição e o convite oficial para uma visita à Casa Branca, que aconteceu em 10 de dezembro de 2012.
Spektor também entrevistou diplomatas e altos funcionários dos dois países, além de Lula e FH. Ele ouviu ainda a ex-secretária de Estado americana Condoleezza Rice, que na época era assessora de segurança nacional de Bush.
Faltavam na Casa Branca especialistas sobre o Brasil para preparar Bush para lidar com Lula. A equipe de Condoleezza então aplicou para o país o mesmo modelo que havia acabado de montar para uma nova relação com a Índia, cujo diálogo com os Estados Unidos também era considerado problemático. A partir dessa analogia, conta Spektor, o Brasil passou a ser visto pelos americanos como um aliado preferencial, um país-chave do mundo emergente, ainda antes da institucionalização dos Brics (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul).
Lula foi considerado ousado pelos diplomatas dos dois países ao pedir diretamente a Bush, ao telefone, um encontro ainda antes da posse. Ele tinha pressa em convencer que não era o bicho-papão pintado pelos republicanos. O desafio era atrair a atenção de Bush, mais envolvido com o terrorismo e as ações militares no Oriente Médio, para reduzir as desconfianças do mercado, que apostava forte contra a moeda brasileira. A desvalorização do real ameaçava o legado que Fernando Henrique tinha a deixar para Lula e sua biografia. O tucano colocou seus ministros e embaixadores para abrir caminho para os petistas no governo americano. Foi o medo de uma crise econômica mais grave que uniu os dois rivais em torno de um objetivo comum: mudar radicalmente a visão dos Estados Unidos sobre Lula. Deu certo.
'Bush facilitou a ascensão brasileira'
Entrevista / Matias Spektor
O Globo, 30/06/2014
Para especialista da FGV, petista foi o presidente que mais se aproximou dos Estados Unidos; já Dilma acumula dificuldades com Barack Obama
Seu livro mostra Lula e FH trabalhando juntos para mudar a percepção dos EUA sobre o PT. No que essa união beneficiou a política externa brasileira?
Eles tiveram êxito ao mudar a percepção negativa dos EUA sobre Lula. Bush apostou no novo governo brasileiro, acalmou o mercado e espalhou a imagem de Lula como reformista moderado. Tucanos e petistas não gostam de ouvir isso, mas Lula se aproximou dos Estados Unidos mais do que qualquer outro presidente, inclusive FH. Bush queria interlocução na região e encontrou em Lula o melhor companheiro.
O governo Lula soube aproveitar essa situação?
No início, sim. Graças ao apoio americano, Lula conseguiu elevar o poder, o prestígio e a influência do Brasil no mundo. Bush facilitou a ascensão brasileira. Mas o esquema durou pouco, porque dependia das personalidades dos dois presidentes.
Hoje, o diálogo entre Dilma e Obama está abalado pelas denúncias de espionagem. Ela pode abrir mão dessa relação?
Uma diferença brutal é que, em 2002, Bush estava fortalecido pela vitória nas eleições parlamentares. O PT entendeu e se adaptou às condições com destreza. Hoje, a Casa Branca não tem tração porque Obama é um "pato manco". Quem tem coragem de patrocinar uma aproximação para valer (com ele)?
Como avalia a política externa de Dilma, que teve uma transição de continuidade em 2010?
Em política externa, Dilma não representa continuidade em relação a Lula. Seu governo marca o fim de um ciclo. Pela primeira vez em 20 anos, a trajetória diplomática não é ascendente. Isso não é culpa exclusiva do Planalto, apesar dos vários equívocos. O mundo ficou menos maleável, e o Brasil atravessou mudanças que nem o governo entendeu direito. A partir de 2015, precisaremos de um projeto de inserção internacional que leve em conta esta nova realidade, com uma vitória da oposição ou de Dilma. Ela tem dado todos os sinais de que pretende restaurar a relação com os EUA. O desafio agora é achar uma maneira de fazê-lo superando a crise da espionagem.
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