O GLOBO, Domingo, 4 de Maio de 2014
RIO E BRASÍLIA — Dez anos e mais de 30 mil militares depois, as
motivações do envolvimento do Brasil na Minustah continuam em debate. Ao longo
desta década, a articulação por uma cadeira permanente no Conselho de Segurança
da ONU e uma diplomacia pautada por princípios humanistas foram alguns dos
motivos comumente levantados na discussão sobre o engajamento brasileiro no
Haiti. Mas, para Ricardo Seitenfus, ex-representante da Organização dos Estados
Americanos (OEA) no país caribenho e professor de Direito Internacional da
Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), a participação brasileira se deve,
em parte, a uma ruptura político-partidária que terminou por contradizer o não
intervencionismo previsto na Constituição de 1988.
Em artigo apresentado nesta semana na Universidade George
Washington, na capital americana, Seitenfus defende que no centro das posturas
brasileiras estão posições adotadas pelo Foro de São Paulo — organização que
congrega partidos de esquerda da América Latina, entre eles o PT — antes da
aprovação da Minustah pela ONU, em 30 de abril de 2004. Aliado nos anos 1990 do
presidente haitiano Jean-Bertrand Aristide — que cai em fevereiro de 2004,
desencadeando o surgimento da Minustah —, o Foro rompe com o político e seu
partido, a Família Lavalas, em paralelo às contestadas eleições parlamentares
de 2000 no Haiti.
Então, a recém-criada Convergência Democrática, uma coalizão
oposicionista liderada por Gérard Pierre-Charles, ex-aliado de Aristide,
boicota o pleito legislativo e a eleição presidencial daquele ano por
considerar que há irregularidades. Aristide acaba chegando à presidência com
mais de 90% dos votos. Daí em diante, o Foro de São Paulo passa a denunciar o
governo de Aristide, considerado populista, personalista e antidemocrático em
documentos públicos do grupo e citados no artigo de Seitenfus. Ao mesmo tempo,
endossa a Organização do Povo em Luta (OPL), partido liderado por
Pierre-Charles, integrante da Convergência Democrática.
O distanciamento entre o Foro e Aristide culmina em uma resolução
publicada pela organização em 17 de fevereiro de 2004, na qual afirma que a
crise política haitiana “surge do flagrante desconhecimento das instituições
democráticas” pelo governo de Aristide e expressa seu “amplo respaldo político”
à OPL num momento em que a Convergência Democrática já defendia a renúncia do
presidente haitiano.
— Quando Lula ganha as eleições em 2002, o então
secretário-executivo do Foro (Marco Aurélio Garcia) vira seu conselheiro
diplomático, e leva para o Palácio do Planalto a posição do Foro. A decisão (da
presença brasileira no Haiti) foi tomada no palácio sem sequer consultar (o
hoje ministro da Defesa e então chanceler Celso) Amorim, contrariando a postura
histórica do Brasil de não intervenção — afirma o professor. — Confesso que
participo disso. Eu fui enviado pelo governo brasileiro (foi mediador político
em 2004), e agora me dou conta que havia isso antes.
Em seu artigo, Seitenfus faz uma cronologia do que chama de
“surpreendente e impensável reviravolta” do governo brasileiro nos dias em
torno da saída de Aristide, em 29 de fevereiro de 2004. O professor resgata o
comunicado do Grupo do Rio — organização que precede a Comunidade dos Estados
Latino-Americanos e Caribenhos (Celac) — publicado em 25 de fevereiro de 2004,
em que os países-membros “manifestam seu apoio ao Presidente
constitucionalmente eleito daquele país, Jean-Bertrand Aristide.” No dia 29,
Aristide cai. Em 4 de março, o Brasil comunica que está à disposição da ONU
para o envio de militares e o comando das tropas de paz no Haiti.
— O que acontece entre o dia 25 de fevereiro e o dia 4 de março é
uma pergunta que ninguém responde — diz o professor, também autor do livro
“Haiti: dilemas e fracassos internacionais”, que sai este mês pela editora
Unijuí.
Tropas estrangeiras cedem lugar à polícia local
O Brasil sempre teve o contingente militar mais numeroso da
Minustah e, com isso, desde o início lidera as forças de paz da missão. Mas, ao
mesmo tempo em que o Brasil se apresenta aos haitianos quase sempre de farda e
capacete azul, busca cooperar com o Haiti em áreas civis. O resultado, para
Seitenfus, é a prisão do Brasil numa contradição.
— Outros países sempre defenderam que, se há uma operação de paz,
deve haver imposição da paz. O Brasil sempre lutou para atacar não só as
consequências da instabilidade, mas as raízes dos males, sem muito sucesso.
Esse foi um dilema que o Brasil carregou ao longo de todo esse período e em
outras operações de paz também, como no Timor Leste — diz o professor.
Para o pastor batista André Bahia, que vive no Haiti desde 2012, a
Minustah tem buscado um enfoque mais civil neste últimos dois anos, ao mesmo
tempo em que a Polícia Nacional Haitiana (PNH) gradativamente assume funções
antes a cargo de militares brasileiros e de outros países.
— Em 2012, ainda era possível ver ações do tipo polícia realizada
por militares estrangeiros. Os próprios brasileiros, que são responsáveis pela
maior parte da capital, realizavam blitzes e patrulhas mais ostensivas. Mas, isso
mudou. Vimos o 2º Batalhão Brasileiro da Força de Paz da ONU se despedir da
missão realizando uma megaoperação conjunta entre vários órgãos de polícia da
ONU e do Haiti, e ao mesmo tempo, do outro lado da rua, apoiando com meios e
profissionais uma grande ação humanitária com médicos, educadores, esportistas
e capelães voluntários brasileiros, haitianos civis e militares — conta Bahia.
— Contudo, ainda há locais que sabidamente a PNH não entra.
Por outro lado, o nome do Brasil também está colado, às vezes, a
iniciativas problemáticas. Omar Ribeiro Thomaz, professor de Antropologia da
Unicamp e pesquisador do Haiti há 16 anos, cita as dez Unidades de Pronto
Atendimento (UPA) prometidas pelo governo brasileiro dias após o terremoto de
janeiro de 2010 — nenhuma saiu do papel. Thomaz também menciona falhas no
projeto Pró-Haiti, criado com o objetivo anunciado de trazer até 500 estudantes
haitianos para universidades públicas brasileiras. Até hoje, vieram 78.
Intenções não concretizadas
A promessa das UPAs deu lugar à construção de três hospitais
comunitários de referência, um instituto destinado à reabilitação de pessoas
com deficiência e de um laboratório de órteses e próteses. Em nota, o
Ministério da Saúde informou que a decisão foi tomada em conjunto com o governo
haitiano, com base na realidade do país, “que possui carência de
estabelecimentos de saúde para atender à população, em especial em média
complexidade”.
A inauguração dos hospitais chegou a ser anunciada para meados de
2013, mas o primeiro deles, assim como o instituto de reabilitação serão
inaugurados amanhã, segundo o ministério. Os outros dois estabelecimentos devem
começar a funcionar ainda neste semestre. “A mudança de data se deu em função
das dificuldades enfrentadas pelo país no início do seu processo de
reestruturação após o terremoto, que acabou causando um atraso inicial na
liberação dos terrenos cedidos para as obras”, alega o ministério. O governo
brasileiro colocou US$ 67,5 milhões na cooperação em saúde com o Haiti,
destinados à construção e manutenção dos hospitais, formação de mil agentes
comunitários e reforma de laboratórios, entre outras atividades.
Já segundo o Ministério da Educação, a vinda de 500 bolsistas
seria para a realização de graduação sanduíche no Brasil, mas este tipo de
bolsa “se mostrou inviável”, disse o ministério, em nota. Com isso, “foi
acordada a troca de modalidade de bolsa, e os alunos que já estavam aqui foram
migrados para a graduação plena”.
Para outros acadêmicos brasileiros que conhecem o Haiti, como o
sociólogo Antônio Jorge Ramalho, professor de Relações Internacionais na
Universidade de Brasília (UnB), o Brasil tem méritos em seu desempenho no
Haiti.
— O Brasil projetou sua imagem e bandeira e mostrou capacidade de
ação, que é muito relevante. Essa atuação coloca o Brasil como um país
respeitado quando se cita operações das Nações Unidas. Não é casual que a ONU,
na República Democrática do Congo, onde, pela primeira vez, haverá uma brigada
de intervenção, escolheu um general brasileiro (Carlos Alberto dos Santos Cruz,
que comandou as tropas da Minustah entre 2006 e 2009). Ele terá autorização
para usar a força para impor a paz. Um brasileiro vai comandar essa brigada
graças ao bom desempenho do Brasil no Haiti — disse Ramalho, que viveu um ano e
meio no Haiti na década passada.
Seitenfus, por sua vez, vê com preocupação um desgaste da imagem
do Brasil com a prolongada atuação no Haiti e faz ressalvas à relevância da
presença brasileira para o futuro do país caribenho.
— Cada dia que passa com a nossa presença com a cara militar,
desgasta mais. Um capital imenso de reconhecimento, respeitabilidade, gastá-lo
como nós estamos gastando no Haiti... — diz. — A formação da PNH é
exclusividade dos EUA e do Canadá. Eles sabem que quando a ONU for embora, o
poder será da PNH. A participação do Brasil nesse processo é muito marginal.
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