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sexta-feira, 20 de junho de 2014

Política externa brasileira, presente e futura - Paulo Roberto de Almeida


Política externa brasileira, presente e futura
Quando é que vamos parar de sustentar ditaduras miseráveis e regimes inviáveis, e nos relacionarmos normalmente com as maiores democracias de mercado, atendendo de fato ao que nos prescreve a Constituição?
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A diplomacia partidária do lulo-petismo

Toda e qualquer política pública apresenta aspectos positivos e outros menos positivos. Com as relações exteriores não deveria ser diferente. A política externa seguida nos últimos doze anos não foi exatamente aquela que o Itamaraty poderia ter concebido como diretriz própria, do contrário não teriam havido tantos editoriais críticos nos grandes jornais, levantando a questão do fim do consenso nacional em torno das opções externas adotadas pelo partido hegemônico nesse período. Os defensores da política externa do lulo-petismo acreditam que ela tenha sido legitimada unicamente em função das vitórias eleitorais em 2002, em 2006 e em 2010. O fato é que nunca houve um debate aprofundado, pré ou pós-eleitoral, em torno dessas opções, nem os eleitores seriam capazes de formular um julgamento claro sobre assuntos tão complexos como os que frequentam a agenda diplomática, apenas com base numa escolha genérica feita em torno de questões eminentemente sociais ou políticas que aparecem nas eleições.
Pode-se, portanto, questionar os rumos adotados pela política externa dos anos do lulo-petismo com base numa avaliação de suas intenções declaradas (e alguns de seus propósitos menos transparentes), tanto quanto sobre seus resultados efetivos. Parece evidente, aos olhos dos observadores mais atentos, que existe uma grande distância entre a velha (mas não superada) diplomacia conduzida pelo Itamaraty, tradicional no bom sentido da palavra, e a diplomacia do “nunca antes”, ou seja, a política externa partidária operada pelos companheiros, defensores de várias causas dúbias, muitas outras perdidas, ou que simplesmente se tornaram anacrônicas desde a queda do Muro de Berlim pelo menos (mas provavelmente desde antes também).
Em todo caso, cabe confrontar argumentos em torno de alternativas de política externa, preferencialmente em direção de uma que garanta rumos adequados ao país no plano internacional, já que a diplomacia adotada pelos companheiros nos últimos doze anos trouxe fundadas desconfianças de que não serve a um país como o Brasil, que pode ser várias coisas na economia e na política, menos bolivariano. Antes de falar do que poderia ser adequado para a política externa brasileira na próxima década, cabe começar pela simples identificação do quenão foi adequado nessa política, durante a última década. A partir daí talvez seja possível corrigir alguns dos erros, os desvios, os muitos equívocos, as deformações, enfim tudo aquilo que, antes dos companheiros chegarem ao poder, nunca tinha sido feito na área diplomática.
Se poderia começar, por exemplo, afastando qualquer retórica grandiloquente, dessas pelas quais se proclama, a altos brados, que se está defendendo a soberania nacional, lutando contra uma fantasmagórica dominação estrangeira, contra a submissão ao FMI, aos especuladores de Wall Street, aos neoliberais de Washington e tantas outras bobagens do gênero. Quem se enrola na bandeira da soberania, para enfrentar moinhos imaginários, é porque tem um sério problema psicológico, e não tem, no fundo, muita certeza de estar de fato defendendo o interesse nacional. O mais provável é que continue em campanha eleitoral e fique escondendo sua falta de imaginação com invectivas contra supostos inimigos da pátria, o que é, na verdade, uma insegurança tremenda sobre o que fazer, de fato, para defender os interesses nacionais.
Ainda recentemente, um desses iluminados do partido da soberania nacional voltou a agitar o fantasma de uma volta ao passado, referindo-se continuamente ao neoliberalismo, como se um país dirigista e estatizante como o Brasil tenha sido, algum dia, liberal. Não se sabe bem quais traidores da pátria andaram por aqui praticando as artes sempre perversas do neoliberalismo, que parece comprometido com as piores intenções possíveis, a do atraso nacional, por exemplo. Tudo isso revela muita falta de imaginação, ou falta do que falar, trazendo novamente à pauta o velho fantasma do neoliberalismo. Devia ser numa assembleia da UNE, essa organização que contribui enormemente, nos nossos dias, para o atraso mental do país.
Vamos ser diretos: a defensa dos interesses nacionais se faz com uma avaliação isenta, tecnicamente fundamentada, economicamente embasada, da agenda que cabe implementar na frente externa, sem arroubos, sem retórica vazia, sem grandes golpes de propaganda enganosa. Nos últimos dez ou doze anos, os companheiros no poder primeiro deblateraram contra quem os precedeu, inventando uma tal de herança maldita que só existiu por profunda desonestidade sub-intelectual, uma vez que a deterioração da situação econômica do Brasil, durante os meses da campanha eleitoral de 2002, só existiu porque os mercados temiam, justamente, os possíveis efeitos de uma política econômica esquizofrênica que os aprendizes de feitiçarias econômicas do partido dos companheiros tinham se encarregado de propagar durante os meses anteriores ao pleito presidencial.
Depois, eles se empenharam na implosão da Alca, o projeto americano de uma zona de livre comércio hemisférica, não porque tivessem conduzido brilhantes estudos técnicos de simulação econômica sobre os efeitos de um tal acordo para o Brasil, mas apenas porque ideologicamente eram contra tudo o que pudesse provir do gigante do norte. Em seu lugar eles esperavam maravilhas de um hipotético acordo entre a União Europeia e o Mercosul, e até chegaram a propor um acordo de livre comércio entre o bloco do Cone Sul e a China, como se esta fosse a solução para todos os problemas externos do Brasil e do Mercosul. Deve-se reconhecer que os companheiros conseguiram o seu intento, não exatamente o livre comércio com a União Europeia – uma ilusão de ingênuos e de amadores – e menos ainda tal tipo de arranjo com a China, mas obtiveram, de fato, a implosão da Alca, transformada em dragão da maldade imperialista. O que obtiveram em troca? Absolutamente nada.
Os companheiros também ficaram iludidos pela possibilidade de o Brasil ser admitido como membro permanente do Conselho de Segurança das Nações Unidas, uma verdadeira obsessão para alguns, numa outra suprema demonstração de irrealismo e de total falta de prioridades para a agenda externa do Brasil. Em nome desse objetivo, o supremo mandatário saiu pelo mundo perdoando dívidas bilaterais de ditadores do petróleo e prometendo apoio político para os mesmos inimigos das liberdades e dos direitos humanos. Aliás, fazer amizade com ditaduras parece que se converteu numa mania dos companheiros, sempre dispostos a tratar com complacência os piores perpetradores de violações aos direitos humanos e atentados aos valores democráticos no mundo. Antigamente, o Brasil apenas se abstinha quando das discussões e votos a respeito dos casos mais politizados nessas matérias nas instâncias da ONU; a partir de 2003, o país passou a votar ativamente com os violadores e inimigos da democracia ao redor do mundo. Não se está inventando nada: basta conferir os votos envolvendo alguns desses países. Um político companheiro, embaixador numa de suas ditaduras preferidas, chegou a defender o fuzilamento de simples balseiros que tentavam fugir da ilha-prisão da qual os companheiros gostam tanto (a ponto de financiá-la fartamente, por diversos meios, nos dias que correm).
Um outro comportamento inadequado do ponto de vista dos interesses do Brasil, sob qualquer critério que se julgue, foi o abandono da agenda comercial do Mercosul, em favor de uma agenda política que poucos progressos trouxe ao bloco; ao contrário, fê-lo retroceder tremendamente nos últimos dez anos. Dizer que o Mercosul não é só econômico ou não é só comercial, e que ele deve também avançar nos terrenos político ou social, não constitui apenas uma impropriedade semântica, mas representa um crime contra o bloco. O Mercosul é, antes de mais nada, um tratado de integração comercial, e se fundamenta, basicamente, na abertura econômica recíproca, na liberalização comercial e na plena integração produtiva do bloco ao resto do mundo. É isso que está escrito em seu tratado constitutivo e é essa agenda pela qual os países deveriam se bater em suas políticas comerciais e industriais. Nada disso se fez durante a lula-década, ao contrário. Durante todo esse tempo, o bloco só recuou na liberalização interna e na abertura externa, voltando a ser o avestruz temeroso que os países do Cone Sul eram nos tempos pouco gloriosos do protecionismo comercial e da introversão econômica.
Finalmente, os rumos sensatos da diplomacia profissional foram bastante afetados pelo personalismo presidencial, e tudo passou a girar em torno da figura retumbante do guia genial dos povos, o grande líder das nações oprimidas pelo imperialismo, o homem que iria comandar uma cruzada contra o unilateralismo arrogante dos países hegemônicos, até mudar a relação de forças no mundo e inaugurar uma nova geografia do comércio internacional. Em nome desses objetivos grandiloquentes, várias iniciativas de grande envergadura foram tomadas, para as quais se mobilizaram mundos e fundos, e recursos humanos em abundância, sempre com o objetivo de exaltar a figura do chefe e seus discursos de sindicalista universal.
Não se esqueça que tudo começou pela tentativa de se implantar um Fome Zero Universal, quando sequer o brasileiro deu certo – logo abandonado e substituído pela assemblagem marota de todos os programas sociais existentes desde o governo anterior, apenas rotulando-os com um novo nome e aumentando o poder de fogo do curral eleitoral então criado. Sinceramente, não sei se deveria ser motivo de orgulho nacional o fato de ter mais de um quinto da população do país numa lista oficial de assistidos por esmolas do governo, como se isso fosse um sinal de normalidade no quadro da comunidade internacional. Com isso terminamos nossa listagem de inadequações e de equívocos diplomáticos cometidos no passado recente.

Uma diplomacia simplesmente sensata e adequada ao Brasil

Cabe agora refletir sobre o que significa ter uma política externa adequada para um país que pretende se inserir plenamente nos circuitos da economia globalizada, não retrair-se defensivamente porque perde competitividade e se mostra incapaz de concorrer com outros parceiros comerciais, por não lograr ganhos de produtividade que dependem de um diagnóstico correto dos problemas reais e uma prescrição conforme as necessidades sentidas. A primeira condição para superar o estado lastimável em que se encontra o Brasil é saber traçar uma avaliação adequada dos desafios a serem enfrentados e colocar-se corajosamente na condição de propositor de novas medidas proativas, não ficar atribuindo ao ambiente externo as razões de seu baixo desempenho no contexto internacional.
Quais são os principais problemas enfrentados atualmente pelo Brasil? Eles estão, na frente interna, no baixo crescimento, no recrudescimento da inflação, na infraestrutura medíocre, na nossa insuficiente produtividade, que por sua vez se reflete, no plano externo, na perda de competitividade da economia brasileira, na chamada reprimarização da pauta exportadora – que diminuiu bastante em sua composição – e na nossa dependência de alguns grandes compradores dos produtos primários de exportação. O Brasil se tornou hoje bem mais dependente da China do que ele jamais o foi, no passado, dos Estados Unidos, país com o qual sempre mantivemos uma interface bastante diversificada, feita das exportações as mais variadas, inclusive manufaturados, e que sempre nos abasteceu de know-how, tecnologia, financiamentos, cooperação educacional, e também filmes de Hollywood e, ultimamente, iPhones e iPads.
Aparentemente, mais até do que esses problemas de ordem econômica, o Brasil parece ter perdido uma mercadoria ainda preciosa na frente internacional, uma coisa que se chama credibilidade. É isso que dá ficar apoiando ditaduras comunistas, violadores de direitos humanos, agressores de valores democráticos e outros meliantes do mesmo naipe. Vejam bem: temos consagrados na nossa Constituição alguns princípios que nos são muito caros, pois lutamos muito, no passado, para assegurá-los na ordem política interna e na nossa expressão externa: o pleno respeito aos direitos humanos, aos valores democráticos, a condenação do terrorismo e a não intervenção nos assuntos internos de outros países. E o que aconteceu nos últimos dez ou doze anos? Segundo um “wikileaks” do Itamaraty, recentemente divulgado pelo grupo Anonymous, pedimos aos Estados Unidos que retirem Cuba da lista dos países que patrocinam terroristas. Somos aliados de alguns dos piores regimes do planeta, que violam constantemente nossos princípios e valores consagrados. Superamos a antiga hipocrisia – que parece ser normal quando alguns desses temas são politizados na agenda internacional – em favor de um apoio direto e solidário a ditaduras.
Mais grave ainda: nossa Constituição consagra o princípio de que qualquer acordo gravoso para o país tem de ser necessariamente aprovado pelo Congresso, para ser plenamente válido, depois de formalmente ratificado. Não é isso que tem ocorrido nos últimos tempos. Um outro princípio relevante da Constituição, que é a necessária aprovação do Senado para operações financeiras externas, também tem sido descurado em diversas ocasiões, por acaso envolvendo algumas das mesmas ditaduras. Como é possível que empréstimos de órgãos públicos possam ser classificados como secretos, e se eximirem, assim, do necessário escrutínio do Congresso? Não se trata nem mais de só fazer favores a ditaduras corruptas, mas de um desrespeito a todo o povo brasileiro – que alimenta esses empréstimos com os seus impostos – bem como ao próprio poder legislativo, que deveria monitorar as condições sob as quais são feitas esses generosos empréstimos a regimes muito pouco frequentáveis desse nosso planetinha redondo.
A credibilidade de nossa política externa também tem sido posta à prova nesses episódios de inadimplência negociadora: o país, que pertence a um bloco que outrora pretendia ser um mercado comum, não consegue montar uma oferta exportadora, e concessões nas importações, para as negociações entre o Mercosul e a União Europeia. O bloco tampouco consegue dar início a novos processos negociadores com parceiros promissores, e isso quando esses mesmos parceiros têm assinado acordos de livre comércio ou de liberalização comercial com vizinhos mais ousados, ou talvez mais inteligentes e mais abertos do que nós. Por que é que o Brasil insiste nessa política de avestruz, se fechando ao comércio internacional, atribuindo a outros as fontes de nossos velhos problemas internos e pretendendo voltar a construir uma economia apenas baseada no mercado interno, quando sabemos que esse tempo já passou? Será que os companheiros no poder pretendem voltar ao stalinismo industrial praticado em outras eras de nosso itinerário econômico?
Quando é que vamos parar de sustentar ditaduras miseráveis e regimes inviáveis, e nos relacionarmos normalmente com as maiores democracias de mercado, atendendo de fato ao que nos prescreve a Constituição? Quando é que vamos deixar a introversão de lado e nos integrarmos plenamente nos circuitos da globalização contemporânea, sem mais esses pruridos defensivos que só têm atuado para diminuir, cada vez mais, nossa participação no comércio internacional? Quando é, enfim, que vamos deixar de lado essa diplomacia partidária, extremamente enviesada do ponto de vista dos interesses nacionais, e voltar às boas tradições do Itamaraty, baseadas numa análise isenta e objetiva das realidades externas, num tratamento profissional, tecnicamente embasado, dos itens da agenda internacional, e numa implementação consensual de questões que deveriam nos integrar cada vez mais ao mundo, não colocar-nos à margem, e por vias obscuras, da grande integração global que se processa sob nossos olhos mas com pouca participação do Brasil?


Está na hora de retificar os rumos e de realmente adotar uma política externa que seja consentânea, adequada e condizente com o que o Brasil passou a ser depois do Plano Real: uma democracia, ainda que com muitas falhas, fundada numa economia de mercado, e que deve procurar defender sua estabilidade interna e sua plena integração ao mundo contemporâneo. O Itamaraty sabe como fazer, já fez antes, mas é preciso deixá-lo voltar a fazer.

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