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quinta-feira, 21 de fevereiro de 2019

Celso Lafer: obras (quase) completas em relações internacionais

Os dois grossos volumes, quase uma Gesamtwerke, estão inteiramente disponíveis na Biblioteca Digital da Funag. Eu, modestamente, dei minha contribuição a este empreendimento absolutamente essencial para todos os alunos de relações internacionais, candidatos à carreira diplomática ou simples curiosos por obras de qualidade.
Transcrevo minhas contribuições a esse projeto.
Paulo Roberto de Almeida


A educação de Celso Lafer: um reconhecimento ao mestre”, posfácio ao livro Celso Lafer: 
Relações internacionais, política externa e diplomacia brasileira: pensamento e ação 
(Brasília: Funag, 2018, 2 vols., 1437 p.; lo. vol., ISBN: 978-85-7631-787-6; 762 p.; link 1o. volume: http://funag.gov.br/loja/index.php?route=product/product&product_id=970&search=Celso+Lafer; 2o. vol., ISBN: 978-85-7631-788-3, 675 p.), 2o. vol., p. 1335-1347 (link 2o volume: http://funag.gov.br/loja/index.php?route=product/product&product_id=971&search=Celso+Lafer).


3360. “Orelhas e quarta capa do livro de Celso Lafer”, Brasília, 8 novembro 2018, 3 p. Elaboração de textos curtos para servir de orelhas e quarta capa ao livro Relações internacionais, política externa e diplomacia brasileira: pensamento e ação. Postagem no blog Diplomatizzando (link: https://diplomatizzando.blogspot.com/2018/11/celso-lafer-dois-volumes-de-seus.html). 

3368. “Índice onomástico: livro Celso Lafer”, Brasília, 2 dezembro 2018, 18 p. Listagem de todos os nomes relevantes de atores e autores que constam dos dois volumes da obra Relações internacionais, política externa e diplomacia brasileira: pensamento e ação (Brasília: Funag, 2018, 2 vols., 1437 p.; lo. vol., ISBN: 978-85-7631-787-6; 762 p.; 2o. vol., ISBN: 978-85-7631-788-3, 675 p.); enviado para impressão.


3369. “Apresentação geral da obra de Celso Lafer: consolidação de textos”, Brasília, 3 dezembro 2018, 15 p. Compilação dos sumários, de meu posfácio e dos textos para orelhas e quarta página. Apresentado numa postagem do blog Diplomatizzando (link: https://diplomatizzando.blogspot.com/2018/12/celso-lafer-dois-volumes-com-seus.html). Apresentação geral na plataforma Academia.edu (https://www.academia.edu/37897953/Celso_Lafer_Relacoes_internacionais_politica_externa_e_diplomacia_brasileira_pensamento_e_acao_2018_).

3377. “Je ne fais rien sans finesse: homenagem a Celso Lafer”, Brasília, 14 dezembro 2018, 4 p. Texto para ser lido na sessão de lançamento da obra de Celso Lafer: Relações internacionais, política externa e diplomacia brasileira: pensamento e ação (Brasília: Funag, 2018, 2 vols., 1437 p.; lo. vol., ISBN: 978-85-7631-787-6; 762 p.; 2o. vol., ISBN: 978-85-7631-788-3, 675 p.). Agregado ao trabalho 3379.
3379. “A Casa de Rio Branco recebe Celso Lafer”, Brasília, 19 dezembro 2018, 8 p. Junção dos trabalhos 3375 e 3377, para postagem em substituição a eventuais pronunciamentos no lançamento de sua obra em dois volumes: Relações internacionais, política externa e diplomacia brasileira: pensamento e ação (Brasília: Funag, 2018, 2 vols., 1437 p.; lo. vol., ISBN: 978-85-7631-787-6; 762 p.; 2o. vol., ISBN: 978-85-7631-788-3, 675 p.; disponível na Biblioteca Digital; link: http://funag.gov.br/loja/index.php?route=product/search&search=Celso%20Lafer). Postado no blog Diplomatizzando (link: https://diplomatizzando.blogspot.com/2018/12/a-casa-de-rio-branco-recebe-celso-lafer.html). Trechos reproduzidos em artigo de Pedro Rodrigues, no Diário do Poder (20/12/2018; link: https://diariodopoder.com.br/celso-lafer-de-volta/) e igualmente reproduzido no blog Diplomatizzando (21/12/2018; link: https://diplomatizzando.blogspot.com/2018/12/celso-lafer-de-volta-ao-itamaraty-pedro.html). Livros de Celso Lafer disponíveis nos seguintes links: 1o. volume: http://funag.gov.br/loja/index.php?route=product/product&product_id=970&search=Celso+Lafer; 2o. volume: http://funag.gov.br/loja/index.php?route=product/product&product_id=971&search=Celso+Lafer. Podem ser complementados, para a diplomacia recente (2016-2018), pelo livro contendo discursos e pronunciamentos do presidente Michel Temer: O Brasil no mundo: abertura e responsabilidade – Escritos de diplomacia presidencial (2016-2018) (Brasília: Funag, 2018, 420 p.; ISBN: 978-85-7631-791-3 http://funag.gov.br/loja/index.php?route=product/product&product_id=969&search=Michel+Temer).

A educação de Celso Lafer: 
um reconhecimento ao mestre

Paulo Roberto de Almeida
Diretor do Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais, IPRI-Funag/MRE.
in: Celso Lafer, Relações internacionais, política externa e diplomacia brasileira: pensamento e ação (Brasília: Funag, 2018, 2 vols., 1437 p.; lo. vol., ISBN: 978-85-7631-787-6; 762 p.; 2o. vol., ISBN: 978-85-7631-788-3, 675 p.), 2o. vol., p. 1335-1347.


Se as Confissões de Santo Agostinho – que ocupam um lugar central na cultura cristã do Ocidente latino, ao dar início à tradição intelectual da autobiografia consciente e deliberada – apresentam essa característica de, pela sua própria natureza confessional, terem influenciado fortemente, segundo Stéphane Gioanni (L’Histoire, junho de 2018), o subjetivismo moderno, A Educação de Henry Adams inaugura, por sua vez – como construção consciente e deliberada de uma trajetória de vida tão confessional quanto as memórias do bispo da velha Hipona –, a moderna autobiografia intelectual, combinando objetivismo político com algum subjetivismo filosófico. Mais do que uma história de vida, ou uma simples memória, o livro de Henry Adams representa, mais exatamente, um grande panorama de história intelectual dos Estados Unidos entre a Guerra Civil e a Grande Guerra, um empreendimento talvez sem paralelo, até o início do século XX, na tradição ocidental das biografias “confessionais”.
Setembro de 2018 marca o centenário da primeira publicação completa da obra do bisneto de John Adams e neto de John Quincy Adams, dois antecessores presidentes. Sua educação primorosa, objeto da autobiografia (escrita na terceira pessoa), aproxima-se, em certa medida, da sólida formação intelectual de um dos maiores representantes da vida acadêmica e diplomática do Brasil: Celso Lafer. Cem anos depois da publicação daquela autobiografia pioneira, parece inteiramente pertinente seguir a “educação” de Celso Lafer, três vezes ministro, sendo duas como chanceler, chefe de missão em Genebra, professor emérito da USP, articulista consagrado, mestre de várias gerações de estudiosos de relações internacionais e de direito.
A melhor forma de fazê-lo é por meio de uma compilação de seus muitos escritos sobre as relações internacionais, a política externa e a diplomacia brasileira, textos até aqui dispersos em um grande número de veículos impressos e digitais. A trajetória intelectual de seu autor se confunde com a própria evolução dos estudos e da prática das relações exteriores do Brasil no último meio século, mas estes dois volumes reproduzem apenas uma pequena parte de sua gigantesca produção acadêmica, profissional ou jornalística, deixando de integrar, por especialização temática nas áreas do título, uma outra parte essencial de suas atividades intelectuais, que cobrem os terrenos literário, cultural e mesmo de política doméstica.
A colaboração que pude prestar na montagem e revisão da presente coleção de textos – artigos, palestras, discursos, conferências, capítulos de livros – de Celso Lafer constituiu, ao longo do ano de 2018, uma das maiores gratificações intelectuais de minha relativamente curta trajetória como diretor do Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais, (IPRI), um modesto think tank, subordinado, como o Centro de História e Documentação Diplomática (CHDD) – seu contraparte do Rio de Janeiro –, à Fundação Alexandre de Gusmão (Funag), esta por sua vez vinculada ao Ministério das Relações Exteriores (MRE). Digo uma das maiores gratificações porque, justamente, dois de meus critérios na organização de eventos e publicações no IPRI são justamente esses: tudo o que for intelectualmente gratificante e inovar sobre a agenda “normal”.
Ainda antes de assumir formalmente a direção do IPRI, pude colaborar na montagem e realização de um seminário, de uma exposição e de um livro sobre o patrono da historiografia brasileira, o também diplomata, Francisco Adolfo Varnhagen: Varnhagen (1816-1878): diplomacia e pensamento estratégico (Brasília: Funag, 2016). Nesse primeiro empreendimento junto ao IPRI ofereci um estudo sobre o “pensamento estratégico de Varnhagen: contexto e atualidade”, no qual tive a oportunidade e o lazer de atualizar suas propostas de “reforma do Brasil”, apresentadas pela primeira vez em 1849, no Memorial Orgânico, documento magistralmente retirado das cinzas pelas mãos do presidente do IHGB, o historiador Arno Wehling, um especialista e também admirador da obra historiográfica de Varnhagen.
Logo em seguida, dediquei-me a retirar das “cinzas” de um injusto ostracismo político um outro colega diplomata, o economista de formação Roberto Campos, por meio de uma obra coletiva feita inteiramente à base da admiração de amigos: O Homem que Pensou o Brasil: trajetória intelectual de Roberto Campos (Curitiba: Appris, 2017). O livro, entretanto, por razões de oportunidade e de cálculo político, não foi publicado pela Funag, tanto quanto um outro, sobre o historiador e diplomata Oliveira Lima. Em seguida, aproveitando o desafio da publicação da magistral Fotobiografia de Oswaldo Aranha por seu neto, Pedro Corrêa do Lago (Rio de Janeiro: Capivara, 2017), e ajudado pela perícia documentalista de seu outro neto, Luiz Aranha, decidi montar, com a preciosa e estratégica ajuda do historiador Rogério de Souza Farias, uma compilação praticamente completa dos escritos de relações internacionais e de diplomacia brasileira produzidos ao longo de trinta anos pelo grande estadista gaúcho, o segundo maior chanceler brasileiro do século XX depois de Rio Branco, segundo Rubens Ricupero: “Oswaldo Aranha dominou a política exterior dos meados do século XX como Rio Branco o fizera na sua primeira década. Depois do Barão, ninguém mais alcançou, dentro e fora do país, o prestígio e a influência de Aranha, nenhum outro dirigiu a diplomacia com tanto acerto em tempos perigosos e de escolhas difíceis.” (Apresentação de Rubens Ricupero a: Oswaldo Aranha: um estadista brasileiro; Brasília: Funag, 2017, 1o. vol.).
A coletânea Aranha preenche, sem dúvida alguma, uma lacuna na historiografia brasileira da diplomacia contemporânea, ao recolher discursos, entrevistas, cartas e escritos diversos do político rio-grandense convertido em estadista de estatura mundial. Ela cobre momentos cruciais das relações internacionais e bilaterais do Brasil em pleno século XX, quando a diplomacia esclarecida de Aranha influenciou decisivamente a política do governo Vargas ao adotar a opção correta na voragem da Segunda Guerra Mundial, aliás a única concebível para um discípulo de Rui Barbosa, no formidável embate que se travou entre as democracias do Ocidente, capitaneadas por Churchill e Roosevelt, e os totalitarismos liderados pelos fascistas da Alemanha, Itália e Japão.
Esse trabalho de garimpo documental e de lapidação redacional dos escritos dispersos de Oswaldo Aranha, esteve, provavelmente, na origem da idealização, organização e montagem da obra que agora se apresenta: uma compilação seletiva dentre os muitos, incontáveis escritos até aqui dispersos de Celso Lafer, primeiro reunidos e organizados por ele mesmo, com a ajuda de Carlos Eduardo Lins da Silva, depois revistos e padronizados por mim, ao longo de muitas noites de indescritível prazer intelectual. Não sei se por pura emulação historiográfica, se por alguma secreta indução bibliográfica e documental, ou se por um evidente paralelismo diplomático, Celso Lafer e eu mesmo cogitamos, quase simultaneamente, que depois da “compilação Oswaldo Aranha” estava mais do que na hora de também pensarmos numa “compilação Celso Lafer”. Material, aliás abundante, não faltava para esse novo empreendimento.
A decisão foi então tomada em vista da existência, dispersa até aqui, dos seus muitos escritos de relações internacionais, de política externa e de diplomacia do Brasil, que constituem, ao mesmo tempo, um grande panorama do cenário mundial, político e econômico, nas últimas cinco décadas. Esses textos reproduzem meio século de ideias, reflexões, pesquisas, andanças e um exercício direto de responsabilidades à frente da diplomacia brasileira, em duas ocasiões, e, através dela, de algumas funções relevantes na diplomacia mundial, como a presidência do Conselho da OMC, assim como em outras instâncias da política global. Celso Lafer esteve à frente de decisões relevantes em alguns foros decisivos para as relações exteriores do Brasil, na integração regional, no comércio mundial, nos novos temas do multilateralismo contemporâneo.
Esta obra, construída ao longo de alguns meses de garimpo documental e de lapidação formal, a partir de um aluvião torrencial de pepitas preciosas que vinham sendo carregadas pelo fluxo heteróclito de publicações no decorrer de várias décadas, apresenta, finalmente, o que se espera seja uma obra de referência e uma contribuição essencial ao conhecimento da diplomacia brasileira e da vida intelectual em nosso país, a partir dos anos 1960 até aqui. Suas qualidades intrínsecas, combinando sólida visão global e um conhecimento direto dos eventos e processos que o autor descreve e analisa, representam um aporte fundamental a todos os estudiosos de diplomacia e de relações internacionais do Brasil, uma vez que reúne os relevantes escritos do mais importante intelectual desse campo, com a vantagem dele ter tido a experiência prática de conduzir a diplomacia brasileira em momentos significativos da história recente. As “questões polêmicas” da quarta parte reúnem alguns de seus artigos de jornal, nos quais exerceu um olhar crítico sobre a “diplomacia” implementada a partir de 2003, rompendo pela primeira vez a tradição secular da política externa brasileira, no sentido de representar o consenso nacional em torno dos interesses do país, para adotar o sectarismo míope de um partido que tentou monopolizar de forma canhestra (e corrupta) o sistema político.

Henry James, ao escrever em 1907 a sua autobiografia intelectual, admitia, indiretamente – segundo o prefácio de Henry Cabot Lodge à obra finalmente publicada em setembro de 1918 pela Massachusetts Historical Society –, que a grande ambição do neto e bisneto de presidentes era a de “completar as Confissões de Santo Agostinho”. Mas, diferentemente do pai da Igreja Cristã, que, como grande intelectual, trabalhou a partir de uma multiplicidade para a unidade de ideias em torno da fé cristã, seu moderno êmulo americano reverteu a metodologia, passando a trabalhar a partir da unidade para a multiplicidade de ideias (The Education of Henry Adams: an autobiography, p. xxxiv, da edição de 1999 da Modern Library). Isso talvez porque, à diferença da angustiada defesa de uma rígida crença nos dogmas cristãos, exibida no quarto século da nossa era pelo pai intelectual da Igreja Católica, Henry Adams ostentava o agnosticismo científico típico dos primeiros darwinistas sociais do final do século XIX.
Celso Lafer, herdeiro intelectual de grandes pensadores judeus do século XX, é, provavelmente também, um agnóstico pragmático, combinando destreza acadêmica e tino empresarial, como sempre foi a outra vertente de seus familiares e de um grande antecessor na diplomacia, seu tio Horácio Lafer, ministro da Fazenda e das Relações Exteriores na República de 1946. O modelo da autobiografia de Henry Adams, com suas três dezenas de capítulos seguindo a trajetória do ilustre herdeiro dos Adams nas grandes capitais do mundo ocidental – Washington, Londres (seu pai foi ministro na Corte vitoriana), Berlim, Paris (a Exposição Universal de 1900), Roma e muitas outras cidades dos Estados Unidos e da Europa–, poderia servir, eventualmente, para retraçar a carreira intelectual e diplomática de Celso Lafer, que também percorreu as grandes capitais da diplomacia mundial, como intelectual ou ministro das Relações Exteriores.
O jovem Adams, ao acompanhar como secretário o seu pai, designado em 1861 ministro plenipotenciário de Abraham Lincoln junto à corte da rainha Vitória, construiu uma educação “diplomática” no centro do que era então o maior império do planeta; ele pode encontrar-se com líderes britânicos da estatura de um Palmerston ou Gladstone, assim como, em suas andanças pela Europa, com “anarquistas” bizarros, ao estilo de um Garibaldi. Celso Lafer, por sua vez, construiu sua educação diplomática na observação direta do que foi feito por seu tio, Horácio Lafer, antes como ministro da Fazenda do Vargas dos anos 1950, depois à frente do Itamaraty, numa segunda fase do governo JK, dedicando a ambos trabalhos analíticos posteriores que figuram com realce em sua bibliografia. Da gestão do tio na política externa, destacou sobretudo sua ação no campo econômico: acordos comerciais, integração regional e aproximação à Argentina.
Essa educação continuou nos anos seguintes, de forma não surpreendente nos mesmos grandes temas focados anteriormente e, como Henry James, no contato direto com personalidades de realce na cena mundial; percorrendo as páginas dos dois volumes de Celso Lafer é possível registrar alguns dos grandes nomes do estadismo mundial, com quem Celso Lafer encontrou-se ou conviveu ao longo dessas décadas. Ele discorre, sempre de modo empático, mas penetrante, sem dispensar aqui e ali o bom humor, sobre líderes estrangeiros como Mandela, Shimon Peres, Koffi Annan, Antonio Guterres e, retrospectivamente, sobre o êmulo português do embaixador Souza Dantas, o cônsul Aristides de Souza Mendes, um justo entre os injustos do salazarismo. Dentre os diplomatas distinguidos do Brasil figuram os nomes de Saraiva Guerreiro e de Sérgio Vieira de Mello, para mencionar apenas dois nessa categoria.
Comparecem igualmente vários colegas e autores de renome, intelectuais da academia ou da diplomacia, como José Guilherme Merquior, Sergio Paulo Rouanet, Gelson Fonseca Jr., Synesio Sampaio Goes, Rubens Ricupero, Gilberto Dupas, Celso Furtado, Miguel Reale, Fernando Henrique Cardoso, entre os brasileiros. Estudiosos  estrangeiros, alguns conhecidos pessoalmente, aparecem sob os nomes de Karl Deutsch, Raymond Aron, Andrew Hurrell, Octavio Paz, Morgenthau, Kissinger e Prebisch. Suas resenhas e prefácios registram autores conhecidos na área, a exemplo de Sérgio Danese, Fernando Barreto, Gerson Moura e Eugenio Vargas Garcia, contemplados com extensas notas publicadas na revista Política Externa, da qual foi um dos responsáveis, junto com Gilberto Dupas e Carlos Eduardo Lins da Silva, durante vários anos.

A educação de Celso Lafer se fez, primordialmente, em intensas leituras e eventuais contatos, com grandes nomes do pensamento histórico, filosófico e político da tradição ocidental, desde mestres do passado remoto – Tucídides, Aristóteles, Grócio, Vico, Hume, Bodin, Hobbes Montesquieu, Kant, Tocqueville, Charles de Visscher e outros – até mestres do passado recente, inclusive alguns deles encontrados em carne e osso: Hans Kelsen, Carl Schmitt, Isaiah Berlin, Hanna Arendt, Norberto Bobbio, Raymond Aron, Hedley Bull, Martin Wight, Albert Hirschman, Stanley Hoffmann e muitos outros. Um desses “grandes mestres” aparece apenas marginalmente, ou episodicamente nos textos aqui coletados: Karl Marx, objeto de várias referências indiretas no exame da literatura especializada. Henry James, de seu lado, faz, em sua autobiografia, diversas referências ao pai do “socialismo científico” e afirmou ter seriamente considerado, junto com as teses ousadas de Darwin, os argumentos defendidos em O Capital, embora não demonstrasse entusiasmo com os anúncios precursores quando à derrocada do capitalismo.
James, na verdade, demonstra certo esnobismo em relação à maior parte dos teóricos que digeriu, em Harvard ou em suas leituras posteriores. Ao referir-se, por exemplo, à necessidade de conhecer os ensinamentos de Marx, continua dizendo que o confronto também devia ser feito em relação à “satânica majestade do livre comércio de John Stuart Mill” (p. 72). Mais adiante, ao fazer o balanço de sua visita à Exposição Universal de Paris, em 1990, que representava o triunfo do capitalismo da belle Époque, ele revela que “tinha estudado Karl Marx e suas doutrinas da história com profunda atenção, mas que não podia aplicá-las a Paris” (p. 379). No caso de Lafer, não há menção a algum estudo sério da doutrina marxista, mas as referências não faltam, seja por meio de Raymond Aron, seja através de obras de Hélio Jaguaribe.
Ambos, porém, Henry James e Celso Lafer, exibem o mesmo compromisso incontornável com os princípios do liberalismo político e dos governos democráticos. James, ao conviver mais longamente com o sistema parlamentar inglês, considerava que “o governo de classe média da Inglaterra constituía o ideal do progresso humano” (p. 33). Por classe média, ele queria dizer, obviamente, burguesia, em oposição à velha aristocracia de títulos, que não existia no seu país natal; ela estava surgindo, em sua própria época, mas apenas a partir do exibicionismo ostensivo dos “barões ladrões”, enobrecidos financeiramente a partir da idade dourada do capitalismo americano. Celso Lafer, do seu lado, sempre foi um liberal doutrinal e filosófico, não obstante seu alinhamento pragmático com a socialdemocracia na política brasileira, no que, aliás, ele combina com um de seus mestres, o jurista e intelectual italiano Norberto Bobbio.

Mais de uma centena de textos comparecem nos dois volumes, organizados em cinco partes bem identificadas, embora algumas repetições sejam detectáveis aqui e ali. O conjunto dos escritos constitui, sem dúvida alguma, um completo curso acadêmico e um amplo repositório empírico em torno dos conceitos exatamente expressos no título da obra: Relações internacionais, política externa e diplomacia brasileira: pensamento e ação. Os artigos, ensaios, conferências e entrevistas podem servir, em primeiro lugar, a todos os estudantes desses campos, não restritos, obviamente, aos próprios cursos de Relações Internacionais, mas indo ao Direito, Ciência Política, Filosofia, Sociologia, História, além de outras vertentes das Humanidades. Mas, os diplomatas profissionais e os demais operadores consolidados trabalhando direta ou indiretamente nessas áreas também encontrarão aqui um rico manancial de ideias, argumentos e, mais importante, “recapitulações” em torno de conferências, negociações, encontros bilaterais, regionais ou multilaterais que figuraram na agenda internacional do Brasil nas últimas décadas.
A diversidade de assuntos, inclusive em relação aos próprios personagens que aqui comparecem, em “diálogos”, homenagens, obituários ou relatos de encontros pessoais, possuem um inegável vínculo entre si, pois todos eles têm a ver, de perto ou de longe, com a interface externa do Brasil e com os voos internacionais do autor. Os textos não esgotam, obviamente, o amplo leque de interesses e de estudos do autor, que se estende ainda aos campos da literatura e dos assuntos culturais em geral, trabalhos que figuram em diversos outros livros publicados de Celso Lafer, vários monotemáticos e alguns na categoria de coletâneas, como por exemplo os três volumes publicados pela Atlas, em 2015, enfeixados sob o título comum de Um percurso no Direito do século XXI, mas voltados para direitos humanos, direito internacional e filosofia e teoria geral do direito. A sua produção variada, acumulada intensa e extensivamente em tão larga variedade de assuntos, permite o mesmo tipo de “assemblagem” ocasional efetuada na presente obra em dois volumes. Apresentando, por exemplo, seus escritos focados em Norberto Bobbio: trajetória e obra (São Paulo: Perspectiva, 2013), Celso Lafer começa por lembrar justamente essa prática do mestre italiano:
Bobbio, ao fazer, em 1994, um balanço de sua trajetória, observou que a sua obra caracterizava-se por livros, artigos, discursos sobre temas diversos, ainda que ligados entre si [nota: a referência aqui é à obra de Bobbio, O Futuro da Democracia]. Parte muito significativa e relevante da sua obra é constituída por volumes que são coletâneas de ensaios, reunidos e organizados em função dos seus nexos temáticos. Esses volumes de ensaios cobre os diversos campos do conhecimento a que se dedicou: a teoria jurídica, a teoria política, a das relações internacionais, a dos direitos humanos e o vinculo entre política e cultura, rubrica que abrange a discussão do papel do intelectual na vida pública. Esses volumes são representativos do contínuo work in progress da trajetória intelectual de Bobbio, esclarecendo como, no correr dos anos, por aproximações sucessivas, foi aprofundando a análise dos temas recorrentes do seu percurso de estudioso. (p. 23)

A partir da transcrição desse introito se poderia perfeitamente dizer: Ecce homo (talvez menos na linhagem nietzscheiana, e mais na do original bíblico). A afirmação se aplica inteiramente à própria trajetória acadêmica e profissional de Celso, ao seu percurso intelectual, à sua visão do mundo, com uma vantagem adicional sobre o jurista italiano, devido ao fato de Lafer ter sido bem mais do que um “simples professor”, ao ter exercido por duas vezes (até aqui) o cargo de ministro das relações exteriores (e uma vez o de ministro do desenvolvimento e de comércio exterior), funções certamente mais relevantes, para o Brasil, do que o cargo largamente honorífico concedido a Norberto Bobbio, já quase ao final da sua vida, de senador da República italiana.

O percurso de Celso Lafer, no Brasil e no mundo, sua postura filosófica, de defensor constante dos direitos humanos e da democracia política, suas aulas na tradicional Faculdade de Direito (e em muitas outras conferências em universidades e várias instituições em incontáveis oportunidades), sua luta pela afirmação internacional do Brasil nos mais diversos foros abertos ao engenho e arte da diplomacia nacional, todos esses aspectos estão aqui refletidos em mais de uma centena de trabalhos carinhosamente reunidos sob a direção do próprio mestre e oferecidos agora ao público interessado. Não apenas o reflexo de uma vida dedicada a construir sua própria trajetória intelectual, esses textos são, antes de qualquer outra coisa, aulas magistrais, consolidadas numa obra unitária, enfeixada aqui sob a tripla dimensão do título do livro.
Mais do que uma garrafa lançada ao mar, como podem ser outras coletâneas de escritos dispersos oferecidos a um público indiferenciado, a centena de “mensagens laferianas” aqui reunidas constituem um útil instrumento de trabalho oferecido aos profissionais da diplomacia, ademais de ser uma obra de referência aberta à leitura dos pesquisadores, dos professores e dos estudantes dessas grandes áreas de estudos e de trabalho acadêmico. Ao disponibilizar essa massa de escritos da mais alta qualidade intelectual ao grande público, esta obra faz mais do que reunir estudos dispersos numa nova coletânea de ensaios conectados entre si: ela representa, também e principalmente, um tributo de merecido reconhecimento ao grande mestre educador que sempre foi, e continuará sendo, Celso Lafer.
Vale!

Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 19 de julho de 2018

  

quarta-feira, 20 de fevereiro de 2019

Economia politica do intelectual - Paulo Roberto de Almeida (2006)

Reproduzindo um artigo de 13 anos atrás, talvez ainda válido.


Economia política do intelectual

Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 20 de julho de 2006
Revista digital Espaço Acadêmico (ano 6, n. 63, agosto 2006)


Pretendo, nestas breves considerações em torno da economia política dos intelectuais, oferecer uma visão cética, ou pelo menos crítica, sobre alguns dos mitos da nossa época, entre eles o do intelectual público enquanto figura de proa dos movimentos vanguardistas, ou progressistas, e portanto, uma figura isenta que encarna, supostamente, os melhores valores da racionalidade e do humanismo. Ainda que tudo isso possa ser justificado, em bases racionais, ou legitimado socialmente, nenhuma restrição de ordem conceitual ou filosófica deveria nos impedir de examinar essa figura ímpar da modernidade – mas, na verdade, eles não são tão modernos assim, nem tão excepcionais quanto se quer fazer acreditar –, tendo como base analítica essencial a relação de custo-benefício que eles costumam apresentar para a sociedade e como único critério de avaliação, a dissecação sem compaixão desse obscuro objeto de admiração (por vezes indevida).

1. Certidão de nascimento ou temporalidade difusa?
Não é verdade que o intelectual público seja um produto da nossa época, como pretendem alguns. Obviamente, os que defendem tal posição adotam a visão francesa do intelectual e têm até uma data para esse “nascimento”: a publicação do panfleto J’accuse, na verdade uma carta aberta que o escritor francês Émile Zola enviou ao presidente Félix Faure a propósito do processo Dreyfus. Publicado no jornal L’Aurore, em 13 de janeiro de 1898, o panfleto acusava o comando militar francês de conivência com erros criminosos no processo instaurado contra o capitão Alfred Dreyfus, injustamente condenado por traição à pátria e espionagem a serviço do inimigo alemão. Aí teria nascido, segundo os defensores dessa versão “moderna” do personagem, o intelectual público contemporâneo.
Altamente questionável essa visão e monopólio gauleses do intelectual. Talvez devêssemos recuar um pouco esse nascimento e falar, por exemplo, dos enciclopedistas do século XVIII, ou dos ingleses e escoceses do período da guerra civil, John Locke ou Thomas Hobbes, ou então do protótipo do conselheiro do príncipe, isto é, Maquiavel em pessoa. Mais um pouco – passando pela Idade Média, com tantos personagens brilhantes, como Avicena, Averroes, Maimonides e Tomás de Aquino – chegaríamos à antiguidade clássica, com Sócrates e Platão. Existem muitos outros exemplos, é claro, mas minha intenção não é a de retraçar as origens e desenvolvimento dos intelectuais ao longo da história, mas tão simplesmente a de fazer uma breve análise econômica das condições de produção, reprodução, circulação, acumulação e eventual falsificação desse personagem, nas condições modernas e brasileiras e também numa perspectiva crítica em relação aos possíveis defeitos desse “produto”, que está quase virando uma commodity, sob o império – é o caso de se aplicar o conceito – da globalização avassaladora.

2. Natureza do produto e valor agregado: ativos tangíveis e intangíveis
O intelectual pode ser definido como sendo, essencialmente, um produtor de saber ou, pelo menos, de ideias (nem sempre originais). Não qualquer saber, nem quaisquer ideias, que estariam disponíveis ao comum dos universitários – que eles, sim, são uma commodity –, mas um saber especializado e ideias supostamente únicas e aparentemente originais, pretensamente refinadas e dotadas de virtudes eventualmente “explicativas” do mundo real e “propositivas” de novas vias para se abordar os problemas do mundo real.
Seria isso verdade? Provavelmente não, ou então sim, mas de uma forma muito restritiva, pois a maior parte dos pretensos intelectuais não produz qualquer saber original – no sentido de elevar o estoque de conhecimento humano a patamares superiores de criatividade e inovação –, atuando mais como “porta-vozes” dos setores educados da população, sendo, por isso mesmo, requisitados pelos meios de comunicação para pontificar sobre esta ou aquela matéria. Estou obviamente referindo-me a alguns dos ilustres pontífices das ciências humanas, uma vez que os cientistas, que são os verdadeiros inovadores em nossa civilização tecnológica, não são habitualmente considerados como intelectuais, mas como meros produtores de um “saber instrumental”. Fiquemos, portanto, nesse estamento mais reduzido de “processadores de ideias humanísticas” para traçarmos uma breve economia política do intelectual.
O intelectual é um produto do seu meio, mas ele traz um valor agregado, o que os marxistas chamariam de “mais valia”, no sentido em que ele é capaz de acrescentar novos significados a velhos saberes, travestindo conceitos antigos sob novas roupagens, o que o transforma em um personagem próximo do prestidigitador. Atenção!: ele não um mero enganador, um embromador com ideias alheias. Não!: ele apenas recupera parte do conhecimento disponível em seu meio social e ambiente cultural e o apresenta de maneira relativamente inédita, o que em latim – sim, os intelectuais deveriam, em princípio, saber latim, tanto quanto grego antigo e inglês, essa novilíngua dos bárbaros da globalização – se traduz por “non nova, sed nove”, ou seja, não inteiramente novo, mas de forma nova.
A maior parte dos ativos do intelectual, o que seria o seu valor agregado pessoal, é constituída de intangíveis, matéria volátil como o calor dos sentidos e a luz das ideias, ainda que não se possa excluir que o intelectual também ande armado de um grande porrete, para eventualmente melhor enfiar suas ideias nas cabeças dos adversários. Nos tempos de Niccolò Machiavelli, por exemplo, a adaga era um instrumento fundamental de trabalho, tanto quanto os venenos pouco perceptíveis e as bolsas com ducados e fiorinos: a defesa pessoal, as conspirações e a compra de espiões, ou mesmo de possíveis adversários, figuravam no arsenal “intelectual” de qualquer condottiere ou candidato a príncipe por um dia. As armas enferrujam, venenos desaparecem, o dinheiro é dilapidado, mas o que fica são as ideias intangíveis dos intelectuais, que movimentaram líderes políticos ambiciosos, que por sua vez mobilizaram exércitos inteiros de mercenários – ou seriam militantes? – para defender suas causas, ou, mais exatamente, suas propriedades (que ainda não foram conquistadas, obviamente).

3. Volatilidade e imperfeição dos mercados intelectuais
Nosso intelectual atua em mercados imperfeitos, como são, aliás, a maior parte dos mercados de bens e serviços. Esse mercado é dominado por um número menor de “vacas sagradas” e muitos outros candidatos a um nicho nesse mercado altamente volátil, mas caracterizado por alguns ciclos perfeitamente definíveis. Esses ciclos obviamente têm a ver com a oferta e a demanda de “ideias úteis” para a sociedade. Nem todas as ideias são úteis o tempo todo, nem as supostas “utilidades” que se possa extrair de certas propostas “intelectuais” conformam, de fato, ideias originais que configurem uma melhor situação de “bem estar” para o conjunto da sociedade. Determinadas “ideias” de intelectuais reputados podem aparentar uma promessa de bem estar superior, mas na verdade representam, no entrechoque de sua implementação prática, uma diminuição do retorno real, aquilo que os economistas chamam de “maximização da satisfação”. 
O mercado dos intelectuais “marxistas”, por exemplo, já conheceu tempos melhores, quando as ações cotadas no nome do criador da seita – que digo?, uma religião, com todos os rituais a que ela têm direito – conheciam grande demanda e um alto “valor de troca”, valorizando-se indevidamente, portanto (pelo menos em relação ao seu “valor de uso” real, sobretudo nas sociedades do capitalismo avançado). Depois, elas saíram de moda, seus papéis despencaram – as ações do socialismo de tipo soviético, por exemplo, deixaram de ter cotação – e só tinham procura nos mercados periféricos, onde as ideias aparentemente circulam tardiamente ou estão sempre fora do lugar. A manutenção da demanda agregada para esse tipo de papel, em todo caso, só ocorreu nas universidades públicas, conhecidas pela imperfeição ainda maior dos seus mercados de ideias.
Os papéis liberais, em contrapartida, chegaram ao fundo do poço durante a longa dominação do keynesianismo doutrinal e do planejamento indicativo em quase todas as economias de mercado desenvolvidas. Durante o longo período que vai dos anos 1940 aos 80 do século XX, eles praticamente não tiveram cotação nas bolsas do pensamento econômico, ficando restritos – e basicamente escondidos – em alguns poucos bastiões do academicismo conservador, como Chicago ou a escola de Viena, limitada a alguns saudosistas da belle époque. Voltaram em peso no pregão das ideias na moda a partir dos anos 1980, sob o travestimento de “papéis neoliberais”, mas, de fato, as ações mais procuradas ainda pertenciam ao liberalismo clássico, como os títulos “Von Mises” ou os blue chips “Friedrich Hayek”.
Quanto às regras do “consenso de Washington”, contrariamente ao que parecem crer alguns neófitos do mercado de ideias – sempre existem inexperientes ou aventureiros nesse tipo de negócio –, elas não representam, na verdade, ações “neoliberais”, mas tão simplesmente um conjunto de propostas pragmáticas, visando oferecer prescrições macro e microeconômicas para ajudar os turbulentos mercados latino-americanos a superar as duras tarefas dos ajustes emergenciais e a encontrar novos patamares de estabilidade. O mercado para elas foi ingrato, submetidas que foram a fortes ataques especulativos dos antiglobalizadores – alguns preferindo ser chamados de “desenvolvimentistas” –, o que fez oscilar erraticamente os seus preços, trazendo pouca demanda a esse nicho restrito do mercado de ideias práticas.

4. Um tipo específico de intelectual: a “vaca sagrada”
Volto, agora, ao problema das “vacas sagradas” e às suas ideias eventualmente nocivas à sociedade em que vivem ou a que servem. Contrariamente ao que alguns podem crer, eles não são naturais da Índia, nem têm algo a ver com o planejamento estatal que foi a característica mais marcante daquele país durante suas décadas de baixo crescimento e de isolamento dos mercados globais. Nossa vaca sagrada também pode ser um planejador, mas ele é, sobretudo, um vendedor de ideias mortas. Qual é a minha noção de “vaca sagrada”?
Vacas-sagradas são aquelas pessoas que atingiram tal grau de excelência em suas áreas respectivas, que elas se tornam verdadeiras referências para o campo de estudos ou de atividades a que elas se dedicam. Viram mitos, pessoas inatingíveis e inatacáveis e tudo o que elas dizem – o que pode eventualmente incluir coisas anódinas ou até besteiras completas – é acatado com todo o respeito, vem repetido na imprensa e acaba sendo aceito com toda a reverência que essas vacas-sagradas merecem, por vezes indevidamente, e que elas exibem com certa arrogância na vida diária.
Eu – anarquista e iconoclasta que sempre fui – considero pessoalmente uma pena esse respeito indevido de que gozam as “vacas sagradas”, uma vez que esse acatamento reverencial por parte dos “candidatos” a intelectuais pode ser nefasto à “circulação” de novas ideias. Sim, pela boa e simples razão de que as verdadeiras vacas sagradas, por definição, ostentam velhas ideias, congeladas no tempo, que elas (as vacas, não as ideias) continuam a estender e dispensar aos discípulos como quem se esforça por espalhar os últimos restos do pote de geleia num pedaço muito grande de pão. Com isso, algumas dessas vacas-sagradas podem fazer muito mal a um país.
Considerem, por exemplo, este depoimento de uma das maiores vacas sagradas de todos os tempos, o finado economista Celso Furtado, no qual ele diz que o Brasil está dominado pelo neoliberalismo e que a “coisa microeconômica é um disparate completo”. Em depoimento prestado em agosto de 2004, poucos meses antes de morrer, ele disse exatamente o seguinte: “A hegemonia do pensamento neoclássico-neoliberal acabou com a possibilidade de pensarmos um projeto nacional; em planejamento governamental, então, nem se fala... O Brasil precisa se pensar de novo, partir para uma verdadeira reconstrução. Para mim, o que preza é a política. Essa coisa microeconômica é um disparate completo.” (Maria Inês Nassif, “O CDES e o consenso que não é neoliberal”, jornal Valor Econômico, 13/07/2006).
É realmente uma pena que a nossa maior vaca sagrada pensasse assim, pois o dinheiro da sua aposentadoria, o de todas as outras aposentadorias, aliás, todo o dinheiro que movimenta e sustenta o governo, assim como a qualquer outra pessoa no Brasil e no mundo, toda a riqueza que movimenta as relações, em quaisquer instâncias que se possa conceber, tudo isso deriva dessa “coisa microeconômica” tão desprezada e vilipendiada por Celso Furtado. Sem ela, não haveria empregos, renda e riqueza, pois é evidente que é a microeconomia que produz todo e qualquer valor na sociedade – o que Marx sabia muito bem – uma vez que a famosa macroeconomia – tão apreciada pelos keynesianos e por toda a torcida de economistas desenvolvimentistas – apenas se dedica, pura e simplesmente, à singela organização das melhores condições possíveis para o exercício de uma boa microeconomia pelos agentes econômicos. Não acredito que os economistas keynesianos pensem que governos sejam capazes de criar valor, ou que eles retiram dinheiro a partir do nada, como se fosse de uma lâmpada mágica. Até os economistas desenvolvimentistas sabem perfeitamente que são os produtores diretos, os agentes microeconômicos, tão desprezados por Celso Furtado, os ÚNICOS que criam valor numa sociedade.
Mas deixemos as vacas sagradas em paz para voltarmos aos nossos intelectuais de mercado. Nossa economia política ainda não acabou...

5. Intelectuais de marca ou genéricos?
Existem muitos modelos de intelectuais, alguns ostentando marcas de prestígio, outros sendo simples genéricos, como ocorre, aliás, com a maior parte dos universitários. Os primeiros custam mais caro, ou melhor, cobram mais caro do que a média do mercado para trabalhadores não-manuais, mas, como no caso das ações “marxistas”, seu valor de troca encontra-se indevidamente valorizado em relação ao seu efetivo “valor de uso”. Et pour cause: poucas de suas “ideias” são implementáveis de fato, consistindo, no mais das vezes, de prescrições quiméricas – só imagináveis por quem vive na torre de marfim, sem qualquer contato com as linhas de montagem ou as seções de contabilidade das firmas –, além de considerações genéricas do tipo “o que falta ao país é um projeto estratégico nacional” (proposição tão ingênua quanto inexequível, em condições democráticas).
Os intelectuais “genéricos”, em contrapartida, não costumam propor um “projeto nacional” pronto e acabado, contentando-se com comentários pretensamente profundos sobre temas do momento, a partir de frases de colegas de “marca” ou de algumas figuras do passado (as “vacas sagradas”, justamente, que se tornam ainda mais míticas do que já eram). Com os progressos da globalização, e a disseminação fácil das ideias geniais – a maior parte agora disponível num simples clicar de “cut-and-paste” – os intelectuais de marca se tornam cada vez mais genéricos – pois que amplamente disseminados nas engrenagens da tecnologia da informação – e os genéricos, por sua vez, podem aspirar a ter seus quinze minutos de fama, como se fossem uma marca legítima.
Atenção: se você pretende ser um legítimo intelectual de marca, não generalize as suas ideias, em todo caso, não antes de registrá-las em algum suporte comercial, devidamente protegido pela legislação de propriedade intelectual, o que lhe poderá assegurar não apenas o monopólio de continuar explorando aquelas ideias – ou pelo menos a forma em que foram expressas – durante bastante tempo, recolhendo no caminho alguns bons royalties pela circulação dessas ideias porventura geniais (não precisam ser, basta que tenham um ar de sê-lo). 

6. A substituição de importações intelectuais no caso brasileiro
O intelectual, no Brasil, sempre foi um produto importado, não vindo no porão dos navios, como o bacalhau, o azeite e vinho, mas na coberta das caravelas, veleiros e outros transportes que faziam o trajeto da metrópole, que era onde se dispensavam os saberes d’antanho. Muito antigamente eles vinham de Coimbra, depois essas importações foram amplamente diversificadas, com muitos saberes em várias línguas, mas com a predileção especial por Paris e seus modismos intelectuais. Apesar da decadência francesa em todas as coisas mais vis que possa haver no mundo, commodities, mercadorias ordinárias e outras bugigangas, é da França, e mais especificamente de Paris, que ainda provêm, junto com perfume e as roupas da moda burguesa, as ideias que constituem le dernier cri dos nossos intelectuais.
Aparentemente, toda a filosofia uspiana é uma demoiselle que aqui aportou depois de um long séjour parisien, como se estivesse num département d’outre mer. N’importe, o fato é que nós já fizemos nossa substituição de importações no terreno das ciências sociais, aliás com ideias, conceitos e metodologias que falavam inglês – vindas com os famosos brazilianists dos anos 1960 e 1970 – e não precisaríamos mais importar essas ideias francesas que só servem mesmo para a França, pois são tão específicas daquela cultura como o foie-gras, o camembert, o reblochon. Aliás, desde que aqui começou a se fazer o legítimo conhaque – sim, com “que”, sem “c” – de alcatrão de São João da Barra, no distante século XIX, que não precisaríamos mais importar ideias francesas, superadas que elas deveriam estar por nossa genialidade adaptativa e imensa capacidade de digerir e reproduzir o que há de mais avançado no mundo das ideias.
Mas, qual o quê! Nossos intelectuais são preguiçosos: eles não se dedicam a criar ideias próprias e continuam a consumir ideias francesas que na atualidade vêm mais em modelos prêt-à-porter do que sob a forma elegante do fait-à-la-main. É por isso que nossos alunos universitários continuam a ser torturados pelos Derridas de aluguel, pelos Lacan de contrabando, pelos Foucault de um imaginário que não tem muita imaginação. Vejam vocês que eu já encontrei estudos sociológicos sobre os nossos garimpeiros – sim, aqueles seres brutos que despejam mercúrio na natureza e usam as pepitas para comprar o amor das donzelas disponíveis – elaborados com a mais refinada técnica foucaultiana, como se não fosse possível analisar o imaginário rude desses seres singulares das nossas fronteiras da civilização, a não ser com tecnologia importada de Paris. Épatant, n’est-ce-pas?
Quero crer que a substituição de importações já se completou no caso das nossas ciências sociais e que não precisaríamos mais estar pagando royalties e serviços técnicos por essas contribuições dispensáveis ao nosso universo mental, e que só não o fazemos por absoluta preguiça conceitual e vagabundagem metodológica dos nossos intelectuais. Ao trabalho, rapazes e moças: libertem-se do que é importado, do que é supérfluo, para diminuir esse “passivo externo”, essa terrível dependência intelectual do estrangeiro, que só agrava a nossa “vulnerabilidade externa”, pesando indevidamente em nosso balanço de pagamentos do setor universitário.

7. Regulação e concorrência do mercado de intelectuais
            Todos os intelectuais dizem amar a liberdade, as pugnas intelectuais, o combate de ideias, a liberdade de expressão e a livre circulação das opiniões. Na verdade, como várias outras categorias sociais, sempre temerosas da livre concorrência, eles adoram uma boa reserva de mercado, um nicho garantido por um título de exclusividade, uma licença régia qualquer que lhe garanta a exploração monopólica de um serviço qualquer.
            Existiria outra razão para o jornalismo ser exercido por “intelectuais” portadores de certificado? Ou eles não são intelectuais os jornalistas? Pela nossa definição, eles se encaixam: lidam com conceitos, opiniões, argumentos, produzem ideias, informações, dicas úteis à sociedade, ao corpo e ao espírito, quem vai dizer que eles não são o que pretendem ser? Eles vivem, em última instância, da palavra escrita e, portanto, se encaixam na definição.
            Ainda que não fossem: os que se pretendem verdadeiros intelectuais são uma espécie de jornalistas universitários: vivem processando informações, elaborando dados em novas apresentações externas, remodelando o conteúdo daquelas ideias que possam ter fabricado no passado, aplicando um Lavoisier em outras que são recicladas de colegas porventura falecidos, enfim, fazem aquilo que se faz nas redações, apenas que eles têm um público cativo, e o mais das vezes passivo, ao passo que os outros, os intelectuais da imprensa precisam, pelo menos, fazer com que a clientela compre a sua produção como condição de sobrevivência física.
            O intelectual universitário não: ele dispõe de uma reserva de mercado, que pode explorar à vontade – stricto et lato sensi – e não precisa nem mesmo se preocupar com a satisfação do consumidor: as condições estão dadas pela estabilidade, uma tenure que em outros países – que exibem intelectuais mais competitivos – só se alcança ao cabo de longos e longos anos de produtividade desenfreada, segundo o velho princípio do publish or perish, e que é aferida regularmente para fins de patrocínio ou financiamento quanto a seus resultados efetivos, não os proclamados pela própria casta. Na verdade, nosso intelectual não quer concorrência, ele não gosta de concorrência, ele aprecia mesmo um bom monopólio, de preferência público, que explora privadamente.
Querem um exemplo?: O projeto de lei que cria o escritor de carteirinha. Trata-se do projeto de lei nº 4641, apresentado em setembro de 1998 pelo deputado Antônio Carlos Pannunzio (PSDB-SP) e que “dispõe sobre o exercício da profissão de escritor”. Será que esse escritor profissional terá de trabalhar 8 horas por dia, vai descontar imposto sindical, terá férias remuneradas, direito a FGTS, essas coisas?

8. As finanças dos intelectuais: transparência e recursos não-contabilizados
Assunto nebuloso este, aliás como tudo o que diz respeito a renda e pagamento de impostos em nosso país. O intelectual detesta ser um mero assalariado, o que ele acaba frequentemente sendo, geralmente do Estado. O intelectual assalariado não consegue ter liberdade para dispor de seus recursos. Se for para ser um assalariado, melhor ser como aqueles antigos artistas e intelectuais sustentados por mecenas endinheirados – o que é uma tautologia, obviamente – ou príncipes ainda não decadentes de cortes europeias, com castelos funcionais (com quadras de tênis, banheiros modernos e ar condicionado). Ser um Da Vinci, um Voltaire, e levar uma vida de palácio, de doces tertúlias na verdura suave de uma tarde de verão, isso é que é vida. Stop o sonho e voltemos à realidade.
O intelectual precisa, como qualquer mortal, se preocupar com o supermercado, o salário da empregada – sim, eles ainda não aboliram totalmente a escravidão – e o avanço do fisco sobre seus rendimentos não declarados. Claro que eles têm esse tipo de renda extra: quantas palestras, quantos artigos ou resenhas, quantas crônicas para essas revistas corporativas não surgem assim do nada e não é que “pinga”, em contrapartida, algum dinheiro ocasional para o choppinho da sexta-feira? Mais importante: quantos projetos e seminários, e visitas e convites, e livros coletivos e tantas outras oportunidades mais não surgem na vida do intelectual, sobretudo quando o seu preço de mercado já subiu por força de alguma ideia poderosa que encontrou muitos tomadores no mercado?
Como todo e qualquer brasileiro, intelectual também é gente, assim que, ao lado dos rendimentos declarados, e mesmo dos investimentos de portfólio, sempre existe uma parte de recursos não contabilizados e de “seguro de risco”. De preferência bem discreto, pois como todo mundo sabe, transparência demais é burrice. Mas aqui não vai nenhuma distinção especial, nenhuma exclusividade do intelectual. Ele é simplesmente como qualquer um de nós...
9. Uma lei de responsabilidade social para os intelectuais?
Seria bem vinda, sobretudo para aplicar naqueles que pretendem revender ideias alheias, métodos não testados, sugestões que não funcionam, problemas que estão longe de problematizar adequadamente, anomalias conceituais, paralaxes cognitivas, enfim, num conceito popularizado por Alain Sokal et Jean Bricmont, “imposturas intelectuais”.
Existem muitas imposturas intelectuais em nossas universidades, algumas até não percebidas como tais e que passam pelo mais puro produto do espírito que anda. (Ou alguém já conseguiu matar a praga do Foucault, que continua a torturar nossos aluninhos mesmo muitos anos depois de morto?) Difícil terminar com todas elas, sobretudo porque as ideias e seus criadores não se submetem a um simples teste da verdade, já não digo a falsificabilidade popperiana, mas um simples teste de sua adequação à realidade, de verificação empírica, de comprovação de laboratório, de validação socrática pela lógica das aproximações sucessivas. Elas são pragas renitentes.
Uma lei de responsabilidade social para os intelectuais os obrigaria a trazer a prova de suas afirmações, a fazer um simples cálculo de custo-benefício para verificar o retorno social de suas propostas de reforma da natureza e de transformação da sociedade. Os intelectuais parecem ser como a Emília, naquela história homônima de Monteiro Lobato: eles saem por aí com uma varinha mágica sociológica, um pó de pirlimpimpim filosófico, e se dispõem a oferecer a políticos incautos – sobretudo em épocas eleitorais – grandes projetos nacionais, a custo quase zero (no papel, mas as comissões são à parte), e uma indefinição absoluta quanto aos resultados. São tão traficantes quanto políticos que oferecem empregos na máquina pública, com a diferença que depois eles não precisam mourejar para produzir algum resultado tangível a partir de suas ideias malucas.
Uma lei dessas viria a calhar, mas não é provável que ela venha a existir any time soon: intelectuais são como cartomantes, eles oferecem um futuro qualquer, mas não garantem exatamente quando ele vai se realizar, e não admitem cobranças a respeito. Se calhar, eles até vendem suas ideias em dez vezes “sem juros”. Querem apostar?

Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 20 de julho de 2006


O Caso Wagner - Celso Lafer (JT, 7/07/1978)

Como o caso do criminoso nazista foi trazido novamente a público recentemente, em matéria da FSP, encontrei em meus arquivos um antigo artigo do então estudioso das relações internacionais, depois chanceler, Celso Lafer.
Artigo publicado no Jornal da Tarde (SP), 3/07/1978.
Transcrevo uma versão em jpg, acredito que lisível, aumentada...
Paulo Roberto de Almeida