Captação centenária da Argentina coloca dúvida sobre fluxo para emergentes
Por Jonathan Wheatley |
Financial Times, 21/06/2017
A Argentina, uma das mais conhecidas praticantes de calotes em série, foi a mercado com um bônus soberano com vencimento de cem anos, e os investidores o abocanharam com vigor.
Trata-se de um bônus denominado em dólares, que dá retorno daqui a cem anos, de um país com classificação "junk" (de alto risco), que mal conseguiu manter a solvência por mais do que metade desse tempo em todo o seu histórico como credor. Ao mesmo tempo em que há, seguramente, um cenário de investimento a ser examinado, vários analistas advertem que essa emissão é um sinal clássico de precipitação do mercado.
A questão, no entanto, não são os cem anos. As complexidades da matemática dos bônus permitem concluir que, quando os vencimentos são superiores a 30 anos, o cenário de investimento praticamente não muda. Excluindo-se o calote, com um rendimento de quase 8%, o bônus vai reembolsar os investidores integralmente em cerca de doze anos, mantidas inalteradas as demais variáveis (como a inflação) - e isso deixa de lado seu valor de revenda.
Em um mundo ávido por rendimento, o de 7,91% que está sendo oferecido mostrou ser um poderoso ímã, e o bônus atraiu US$ 9,75 bilhões em pedidos para uma emissão de US$ 2,75 bilhões. "As pessoas examinam as perspectivas dos próximos 12 a 24 meses e veem um panorama positivo [para a Argentina]", diz David Robbins, diretor de mercados emergentes da TCW de Nova York. "Já o período de duração dos [papéis de] alto retorno é coisa que deixa as pessoas mais à vontade. A Argentina está, na prática, vendendo uma participação em sua recuperação econômica", observa ele.
Com tantas outras coisas precificadas detalhadamente nos mercados, esta pode parecer fazer parte do programa. Mas outros advertem que já vimos esse filme.
Sérgio Trigo Paz, diretor de gestão de carteira de renda fixa de mercados emergentes da Black Rock, diz que tanto o fundamento lógico quanto o preço são bons. Mas acrescenta: "Pondo-se em perspectiva, [a transação] lhe dá uma sensação de 'déjà vu' ", disse.
A Argentina não constitui a única venda digna de nota negociada nesta semana. Segundo informações, a Rússia atraiu uma demanda de mais de US$ 6 bilhões para eurobônus de 10 e de 30 anos, cujos preços estavam para ser fixados ontem com rendimentos de 4,25% e 5,25%, respectivamente.
Tudo isso acontece num momento em que o Federal Reserve (Fed, o BC dos EUA) está partindo para o "aperto quantitativo", ao ter elevado os juros na semana passada pela segunda vez neste ano e ao preparar os mercados para o anúncio sobre como começará a encolher seu balanço neste ano.
Não é difícil vislumbrar paralelos entre o atual momento e 2013, quando o Fed anunciou o fim próximo do afrouxamento quantitativo, no momento em que os investidores se atiravam entusiasmados para abocanhar uma série de eurobônus emitidos por governos africanos. Alguns deles deram muito errado, uma vez que os investidores fugiram dos emergentes durante a escalada dos rendimentos dos títulos do Tesouro dos EUA em 2013, conhecida como "Taper tantrum", decorrente do medo que se seguiu ao anúncio de que o Fed deixaria de comprar bônus.
Os investidores podem sentir que a Argentina está menos vulnerável neste ano aos perigos de emitir títulos em dólar com rendimento pago a partir de receita recebida em sua própria moeda, em processo de enfraquecimento. A solidez do dólar do ano passado arrefeceu, e o peso se desvalorizou apenas cerca de 1,5% no câmbio com a moeda americana neste ano.
Embora não esteja prevista uma reedição do "taper tantrum", Trigo Paz está entre os que advertem que estamos num ponto de inflexão. Ele vislumbra dois cenários. Em um deles, o Fed está certo com relação à inflação e os juros continuarão a subir. Isso transformaria o bônus argentino em "uma má experiência". No outro, os mercados é que estão certos, a inflação e os salários vão decepcionar e voltaremos a um ambiente de juro baixo, o que será bom para os bônus - até que a deflação volte a mostrar as garras, prejudicando a Argentina.
Nesse ínterim, diz ele, haverá um meio termo ideal, no qual os investidores poderão embolsar um cupom de 8%. "A perspectiva não é boa de nenhuma das duas maneiras - é por isso que se entra num ponto de inflexão".
Jim Barrineau, codiretor de títulos de mercados emergentes da Schroders, concorda. "Emissões como essa serão as mais voláteis quando o mercado entrar em colapso", diz ele. "A pessoa vai bem até a hora que deixar de ir bem."
A questão é se os ingressos nos ativos emergentes neste ano, mais de US$ 35 bilhões só nos fundos de bônus, continuarão a proteger os investidores de sobressaltos. "As pessoas precisam pôr o dinheiro para render. A história mostra, nos emergentes, que esse tipo de ambiente não dura para sempre."
"Esse é o tipo da coisa que, quando a maré vira, tende, simplesmente, a ter desempenho inferior à média. Preferimos declinar de emissões que parecem ser o produto de um mercado efervecente [próximo de uma bolha]."
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