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sábado, 3 de maio de 2025

Contra os fanatismos: os equívocos da esquerda ingênua ou ignorante - Paulo Roberto de Almeida

 Contra os fanatismos: os equívocos da esquerda ingênua ou ignorante

Paulo Roberto de Almeida, diplomata, professor.
Nota sobre o atraso no desenvolvimento a que nos conduz certo pensamento de esquerda

        Minha primeira “orientação política”, se ouso dizer, foi conservadora, o que poderia ser vagamente aparentado à direita, ou o seu equivalente no Brasil do início dos anos 1960. Depois do grande otimismo do governo JK – do qual me lembro basicamente em função da primeira copa do mundo brasileira, em 1958 – e da construção de Brasília, um projeto que me parecia futurista pelas primeiras fotos, o Brasil entrou numa zona de turbulência, basicamente pela inflação e pelo grevismo que se expandiu, causando preocupações em meus pais, modestos trabalhadores sem formação, na verdade, sem educação primária completa. O “perigo comunista” trazido pela crise dos mísseis soviéticos em Cuba – meu primeiro “batismo político” em matéria internacional – atuou no mesmo sentido, num dos pontos altos da Guerra Fria, com intensa propaganda anticomunista vinda dos Estados Unidos.
        O golpe de Estado militar veio confortar tais concepções num primeiro momento, que não era de direita explícita; mas ele acarretou, paradoxalmente, a inauguração, pouco tempo depois, de minha segunda “orientação política”, já de inclinação antiamericana e claramente anticapitalista, ou seja, de esquerda. A abundante literatura militante e acadêmica, de vezo marxista, consolidou a adesão a todas as teses correntes no universo da esquerda. Assim continuou pelo resto da formação colegial e, sobretudo, ao início dos estudos em Ciências Sociais, notoriamente enviesados para o marxismo teórico e a militância política.
        O curso teve de ser reiniciado no exílio, durante os anos de chumbo da ditadura, o que também constituiu uma oportunidade para conhecer, diretamente, a experiência histórica e concreta dos vários socialismos realmente existentes na Europa oriental, uma excelente lição para a inauguração de uma terceira “orientação política”, a socialdemocracia, tendente, pelo estudo aprofundado da economia, ao liberalismo de mercados. Foi um período de revisão completa das teses econômicas e políticas vinculadas ao meu “universo intelectual” dos 14 aos 24 anos. Registre-se que durante todo esse tempo, ao percorrer quase toda a literatura marxista, eu nunca deixei de ler os “filósofos burgueses” e os “pensadores liberais”, o que constituiu uma excelente barreira contra todos os sectarismos e quaisquer dogmas rígidos.
        Adentrando numa corporação conservadora como é a diplomacia profissional, aliás extremamente adepta dos princípios militares da hierarquia e da disciplina, não deixei de defender as ideias compatíveis com o universo progressista da justiça social, especialmente aquelas atribuindo primordial responsabilidade ao Estado pela redução das desigualdades. De resto, o mandarinato do Itamaraty é fortemente aderente às soluções estatais e centralizadoras como a via principal de definição de políticas públicas setoriais. Em outros termos, há uma propensão quase natural em aceitar uma política externa “de esquerda” e uma diplomacia “progressista”, o que também é reforçado pela ideologia produzida e veiculada pela academia no tocante às relações internacionais, universo povoado por conceitos como dominação, dependência, hegemonia, imperialismo e todos os demais vinculados aos países periféricos.
        Justamente, a combinação de rigoroso estudo histórico e teórico com o conhecimento direto das experiências de desenvolvimento econômico e social de muitas nações ao redor do mundo concedeu-me a oportunidade de avaliar, em termos realistas e críticos, as políticas econômicas e sociais preconizadas no âmbito da esquerda, com um foco especial em questões vinculadas ao espectro das relações internacionais do Brasil. Nessa área, contemplei desde os anos 1980 ao presente, uma certa identidade entre os interesses das classes dominantes e as preferências de políticas esposadas pela tecnocracia estatal, entre elas a casta diplomática, progressista em sua ampla maioria.
        Uma observação de mais de quatro décadas no ambiente da diplomacia e no da academia registrou um quadro de poucos avanços consistentes nos terrenos do crescimento e do desenvolvimento econômico e social do Brasil, e da América Latina, em confronto com os notáveis progressos alcançados em outras partes do mundo, notadamente na franja da Ásia Pacífico e de alguns poucos países engajados na integração ao mundo, menos propensos, talvez, em defender o “capitalismo nacional” e a não dependência de “nações hegemônicas”. Essa foi exatamente a ideologia do desenvolvimento nacional, praticado pelo nacionalismo da era militar e inteiramente esposado pela diplomacia de esquerda que dominou o Itamaraty desde o início do presente século. A política externa partidária praticada majoritariamente nas últimas duas décadas tem muito a ver com as dificuldades do Brasil em se inserir nas cadeias de valor e na globalização dos mercados intensamente praticados por países mais avançados e por aqueles que têm como objetivo primordial vincular-se estreitamente à economia mundial.
        Os equívocos nos quais o Brasil perseverou ao longo do período têm a ver com certa ingenuidade na formulação de políticas econômicas por parte das elites dominantes, mas também em virtude da ignorância básica nessas áreas por parte das esquerdas acadêmicas e partidárias que definiram as principais opções em matéria de política econômica externa. Se ouso apontar apenas dois exemplos desses equívocos eu me limitaria em indicar uma recusa sistemática em aderir aos sólidos padrões de políticas públicas básicas, tal como propostas por um clube de “boas práticas” como a OCDE, e a opção irrefletida – jamais objeto de uma reflexão ponderada por parte da diplomacia profissional – pelo Brics como foro privilegiado de coordenação externa nas grandes alianças internacionais. Ambas resultam de ignorância econômica e de preconceitos políticos por parte da diplomacia partidária proposta pelo atual partido no poder, aliás desde 2003 aos nossos dias, com pequenos interrupções no período, mas com a preservação dessas opções introvertidas ou vinculadas a um espectro identificado com o antiamericanismo anacrônico da esquerda e o estatismo renitente, e tradicional, em nossas elites econômicas.
        Como diria um ideólogo que se converteu ao liberalismo depois de ter sido um defensor de soluções estatais ao início da carreira diplomática, mas sempre detestado pelas esquerdas e geralmente desprezado pelos diplomatas, “o Brasil é um país que não perde oportunidade de perder oportunidades”. Ao que parece, na presente fase de emergência de uma nova Guerra Fria, o Brasil vai perder mais uma oportunidade de manter a costumeira imparcialidade e neutralidade de sua diplomacia, ao aderir ao campo dos que pretendem propor uma “nova ordem global multipolar”, de nítidos contornos antiocidentais. Esse é um programa inteiramente definido e implementado pela esquerda ingênua e ignorante que domina atualmente a diplomacia brasileira.

Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 4914, 3 maio 2025, 3 p.

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