Crônicas diplomáticas: depois da iniciativa pioneira do Renato Prado Guimarâs, outros escrevinhadores diplomáticos se apresentam: Christiano Whtaker
Senhores,
Permito-me submeter a crônica que se segue, recordação de bons tempos idos.
VIETNAM -1 O SANTO GUERREIRO
Bonum certamen certavi
Demorou três anos. Cheguei, fiz as visitas de praxe: autoridades, colegas. E fui já pedindo, por Nota formal: “A Embaixada do Brasil cumprimenta”, etc. e tal que todos conhecemos, e solicita que se marque uma entrevista com o Santo Guerreiro. Semana, mês, meses: eu, novato de Vietnam e de coisas asiáticas, estranhei – por quê não respondem? Na primeira ocasião que me apareceu, perguntei aos do Protocolo local, e a minha visita ao Santo Guerreiro? Ah, Embaixador, o Senhor há de comprender: ele está muito velho, adoentado, quase não recebe ninguém, quase não sai de casa.
Tá bem, comprendo. Mas daí a poucas semanas vou ao casamento de um figurão do Partido e da Assembléia. “Le tout Vietnam” lá estava, e eu me sentia só e estranho naquele mar de nativos que me olhavam com prudente curiosidade. Diviso ao longe outro estranho e solitário, o Embaixador da Argentina, que também me vê, e corremos um em direção do outro, em busca de amparo mútuo. “Ola, que tal, que contás”? “Tudo bem contigo? Qu’é qu’cêtá fazendo aqui?” “Lo mismo que vos, pues”. E trocamos nossas impressões sobre aquele vai e vem de gente asiática, comentamos a importância que deve ter o figurão que nos convidou, equilibramos pratos e copos. E eu diviso ao longe, sorrindo e com aparência de muita saúde, o Santo Guerreiro, que acaba de dar um abraço final no figurão e se escorre pela porta de saída. Não dava para largar o prato e o copo nas mãos de meu colega, amigo e co-mercosulino, tentar varar a barreira humana dos convidados e correr atrás do Grande Soldado, que vi afastar-se de braço dado com sua esposa, tranquilo, devagar, escapar-me. Bem, pelo menos ele sim sai de casa, pensei.
Meses depois fui à casa do Turco, excelente colega, que estava sempre explicando detalhes da história de seu país e da insuspeitada influência da Turquia na cena mundial. Foi ele que me ensinou que o pirata conhecido como “Barba Roxa” era, na verdade, o “rais” Babrus, almirante turco, terror do Mediterrâneo, que por coincidência sim tinha uma longa barba ruiva. E ele também me ensinou que a carne em conserva chamada “bästramë”, de origem túrquica, havia emigrado para os Estados Unidos com o nome de “pastrami” – e eu que jurava que era italiana! Grande Turco! Mas não tão grande assim que merecesse aquilo que eu estava vendo em cima de uma movel de sua sala: um porta-retrato de dentro do qual me sorriam, formais, sentados juntos, ele e o Santo Guerreiro. Essa não!
Saí furioso, e expressei minha indignação a todo o Governo local, por intermédio de ácida ironia a meu chofer de então. No dia seguinte, o chofer veio e me disse que ele próprio, que tinha parentes entre os militares – não tivesse ele mesmo sido capitão, e andado nas estrepolias do Camboja – ia ver se poderia agendar um encontro para mim. Dias, semana, duas semanas – e o meu encontro com o Santo Guerreiro? “Sorry, Ambassador. It is winter, very cold, and he is in Ho Chi Minh City.” Verdade? Desculpa? Como saber? Pelo menos estava realmente frio aquele meu segundo inverno em Hanói, e era possível que o Santo Guerreiro de fato tivesse ido invernar no Sul, onde o clima ora é quente e úmido, ora úmido e quente.
Deixei correr a dor-de-cotovelo e o tempo, mas todas as vezes que passava diante do casarão de grandes árvores onde vive o Santo Guerreiro, sentia a discreta pontada da frustração.
Meses e meses – mais de ano! – depois, mencionei por acaso a meu Intérprete Khoa o objetivo ainda não atingido, sempre tão longínquo, de visitar o Santo Guerreiro, e meu língua disse que ia ver o que ele podia fazer a respeito. Expressei meu agradecimento cético e de antemão resignado, e arquivei o assunto. Um mês depois, o Intérprete me veio informar que o Santo Guerreiro estava nas montanhas, mas devia voltar dali a uns quinze dias. Agradeci, arquivei. Mais um mês, e uma tarde chega o Intérprete e me anuncia, rebrilhando de mal-disfarçado orgulho: “El General Vo Nguyen Giap lo recibirá el próximo Jueves.”
Nunca cheguei a saber exatamente como foi que Khoa havia logrado o feito: estranha mania tem o língua de dar as mais circunloquiais explicações. Algo a ver com a cultura local. A uma pergunta símples, como “por quê não foi assinado o acordo de pesca com a Romênia?”, segue-se uma resposta que frequentemente se inicia com episódio histórico ocorrido na Dinastia Le. Quando perguntei como havia conseguido minha visita ao General, Khoa respondeu com um enigma: “En Vietnam, Embajador, cada cosa tiene su tiempo proprio…” E mais não disse. Aceitei, mas fiquei perguntando-me por quê o tempo do Turco tinha chegado antes do meu, se tínhamos apresentado credenciais no mesmo dia…
Chegou a quinta-feira. Preparei presentes: um livro sobre o Corpo de Fuzileiros Navais e CDs de música brasileira: Nazareth, sobretudo. O General é uma pessoa fora do comum. Nunca estudou Artes Militares: é professor de História – ou de Geografia? – por formação. E pianista, de corte chopiniano; porisso a escolha de Nazareth, o Chopin de Pindorama. Receberam-nos, a Khoa e a mim, o General e dois coronéis; um deles, do Departamento de Relações Internacionais do Exército, fluente em espanhol, intérprete para o caso de necessidade; o outro, sabe-se lá de que Departamento, presente ou em função do Embaixador de uma potência estrangeira, ou em função do próprio General, figura por vezes grande demais e que tem de ser discretamente contido, reconduzido a sua condição de monumento vivo. Frustraram-se – acho – todos os intépretes presentes, pois o General e eu escolhemos o francês para comunicar-nos. Trocamos amabilidades, falei-lhe sobre Nazareth, mas o soldado nele falou mais alto, e foi pelo livro sobre os Fuzileiros Navais que se interessou mais. Perguntou-me sobre o Brasil, perguntei-lhe sobre o Presidente Ho Chi Minh (“Um homem simples que estava genuinamente à vontade com qualquer pessoa, que sabia como tocar o coração de cada um”).
Terminada a visita, veio a cerimônia das fotografias – e as que tiraram de mim em conversa com o General são bem mais vívidas que aquela dele com o Turco. Mas a melhor de todas é a do jovem chofer Lai, que durante todo o ritual das fotos, desenrolado no jardim das Grandes Árvores, manteve-se à parte, junto do meu carro, perfilado como se ele também fosse um soldado (pode ser, nunca se sabe…). O General o percebeu, chamou-o, estendeu-lhe a mão, e – clic! – lá está estampada no rosto do jovem Lai a profunda admiração de todo um país por um dos seus maiores heróis, um homem que não perdeu seu rumo.
Nunca estudou Artes Militares, repito: e foi quem conduziu o Dragão, os milhares e milhões de dragões, que roeram Dien Bien Phu, e que foram roendo, cuspindo fogo, morrendo aos magotes, recuando, avançando, até que o último helicóptero decolou uivando de um terraço de Saigon. E ali estava ele, o Santo Guerreiro, recebendo-me na sala de seu casarão de grandes árvores, livros e mais livros nas estantes, um que outro enfeite de cativante mau-gosto. Um homem fardado, de pequena estatura, muito velho. E que transpirava serenidade, os bons combates que combateu, a marca que deixará.
. Um santo; e quando se for, será um dos jardineiros do Jardim. Cultivará flores.
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