Crossing the Empire, 2014 (7): de Denver a Cody
Leituras no Velho Oeste
Paulo Roberto de Almeida
A jornada desta quarta-feira 3 de
setembro, toda ela consumida no trajeto entre Denver, Colorado, e Cody,
Wyoming, não teve nada de excepcional, a não ser por um traço do caráter
americano que revela um pouco do espírito que presidiu à construção desta
nação, com base primeiro na própria sociedade, depois, muito depois, no Estado.
Digo que não teve nada de
excepcional pois o dia foi de viagem, um pouco menos de 500 milhas para sair de
um estado e entrar em outro, parando numa pequena cidade que também homenageia
o Buffalo Bill (ele está em todas as partes por aqui), quase às portas de nosso
segundo objetivo principal: o parque nacional do Zé Colmeia, digo, de
Yellowstone, imortalizado num desenho animado que frequentou a infância de
milhões de crianças de nossa geração. Não sei onde anda atualmente o Zé Colmeia,
e provavelmente o autor dos desenhos já faleceu, mas se deve apenas a ele nossa
vinda a um parque natural, que de ordinário não comparece em nosso turismo
cultural e citadino. Mas, teve sim, algo excepcional, e vou tratar unicamente
disso nesta postagem.
No meio do caminho entre Denver e
Cody está Cheyenne, capital do estado cowboy do Wyoming, onde já tínhamos
estado no ano passado, mas totalmente por acaso, pois que simplesmente por um
desvio imposto pela natureza: nosso trajeto vindo do centro dos EUA, Missouri,
Kansas City, deveria nos levar a Denver, e depois a Boulder, antes de seguir
viagem para o Utah, Salt Lake City, terra dos mórmons, onde estivemos
efetivamente, mas tendo de fazer um desvio pelo norte, pelos estados do
Nebraska e Wyoming, justamente. A razão foram chuvas torrenciais, justo quando
estávamos no Missouri, que destruíram estradas, arrastaram casas, ceifando
algumas dezenas de vidas e arrasando completamente o vale do rio North Platte.
Em face da tragédia, tivemos de desistir do Colorado, e por isso fomos a Omaha,
Lincoln, Cheyenne, Ogalalla, e outras cidades do roteiro cowboy.
Desta vez, como já tínhamos visitado
o centro de Cheyenne, nos dedicamos a um museu que tinha ficado apenas nos
registros em 2013: do velho Oeste. Pois chegamos lá em torno do meio dia,
dedicando mais de uma hora a este simpático museu, que aparece nesta foto que
fiz, atrás da escultura do vaqueiro domando um cavalo.
O edifício é bem maior do que aparece na foto,
tão grande que perdi um boné que havia comprado no ano passado no rancho do
Jack London, em Sonoma, na Califórnia. Tive de comprar outro, no próprio museu,
importante para dirigir no final da tarde, na direção oeste, quando o sol do
final da tarde bate bem na frente do carro.
Mas, além dos cowboys, também encontrei uma
cowgirl, com um lindo chapéu de vaqueira, rosado, que se deixou fotografar para
a ocasião. Espero que ela goste...
Também me fiz fotografar por Carmen Lícia, em
frente a esta típica carruagem de transporte de passageiros, muito parecida com
aquelas que todos já vimos em filmes de Hollywood sobre o velho oeste,
justamente.
Mas o que mais me chamou a atenção foi esta
peça que, como disse ao início, retrata o espírito de um povo, um povo que se
fez pela democracia de aldeia, na base, não aquela superestrutural como
conhecemos nós, que parte do princípio da organização do Estado, com seus
poderes, etc.
Nos EUA, a democracia é um mores,
um costume social, um hábito de vida, algo que começa pela eleição do xerife
(vimos vários cartazes pedindo votos para um e outro candidato a sheriff,
cada vez que entrávamos num novo condado), pela eleição do juiz, as duas bases
do poder local, e depois se estende ao conselho de pais e mestres da escola (em
todos os lugares, mesmo os mais recuados, podemos cruzar com os ônibus amarelos
transportando escolares, de manhã e de tarde), e que explica o grau de
desenvolvimento social dos EUA, independentemente das desigualdades sociais, e
da segregação racial, que são dois outros traços da sociedade.
Esta peça é uma livraria ambulante, a primeira
do condado de Laramie, uma cidade próxima de Cheyenne. Fiz algumas fotos para
ilustrar a importância que assume a leitura, os livros, a cultura de forma
geral, na sociedade protestante original dos EUA.
Como disse Monteiro Lobato (não pretendendo
obviamente ser sexista): “um país se faz com homens e livros”. Não importa se
ele estava querendo vender mais livros da sua recém criada Companhia Editora
Nacional: é um fato que um país se faz basicamente com conhecimento acumulado,
do que se encontra nos livros. Em todo os EUA nos deparamos com pessoas lendo
em todas as circunstâncias, nas mais pequenas cidades sempre existe uma
biblioteca pública, e nós mesmos, Carmen Lícia e eu, frequentamos duas, em
Hartford e em West Hartford, muito boas, por sinal. Posso ler todos os mais
novos lançamentos, sem precisar comprar nas livrarias comerciais, e antes de me
decidir por encomendá-lo novo ou usado (em três meses ele estará praticamente
novo na rede de sebos que mais uso, a Abebooks).
O museu é uma joia da cultura cowboy e da
fronteira, com seu kitsch, e seus traços profundamente humanos. Fiz fotos de
algumas obras de arte também, mas termino por esta paródia musical em forma de
pintura: um cowboy com sua guitarra sendo unanimemente acompanhado por uma
plateia atenta e participativa. O quadro se chama, apropriadamente, Standing
Bovation..., uma ovação merecida, sem dúvida.
Amanhã, ou melhor, hoje, dentro de algumas
horas, vamos a Yellowstone. Não sou muito chegado a bichos e natureza,
preferindo, como Carmen Lícia, as cidades e a cultura, mas como está no
caminho...
Paulo Roberto de Almeida
Cody, 4 de setembro de 2014