Temas de relações internacionais, de política externa e de diplomacia brasileira, com ênfase em políticas econômicas, em viagens, livros e cultura em geral. Um quilombo de resistência intelectual em defesa da racionalidade, da inteligência e das liberdades democráticas.
O que é este blog?
Este blog trata basicamente de ideias, se possível inteligentes, para pessoas inteligentes. Ele também se ocupa de ideias aplicadas à política, em especial à política econômica. Ele constitui uma tentativa de manter um pensamento crítico e independente sobre livros, sobre questões culturais em geral, focando numa discussão bem informada sobre temas de relações internacionais e de política externa do Brasil. Para meus livros e ensaios ver o website: www.pralmeida.org. Para a maior parte de meus textos, ver minha página na plataforma Academia.edu, link: https://itamaraty.academia.edu/PauloRobertodeAlmeida;
1. O texto mais popular de toda a imensa produção intelectual de Rui Barbosa continua sendo sua profissão de fé como jurista, a Oração aos Moços. Sua origem é prosaica. A turma de bacharéis que colava grau no ano de 1920 na Faculdade de Direito de São Paulo convidou o então senador pela Bahia para seu paraninfo. Tratava-se de uma homenagem ao ex-aluno, que completava 50 anos de formado. Assim nasceu a Oração: como discurso de paraninfo. Alegando idade avançada e moléstia, Rui não se deslocou a São Paulo para comparecer à cerimônia, que teve lugar a 29 de março de 1921. O texto acabou lido pelo catedrático de direito romano, Reinaldo Porchat, que viria a ser o primeiro reitor da Universidade de São Paulo. O texto tornou-se instantaneamente um clássico. Diversas de suas passagens se tornaram bordões no ambiente forense. Até hoje é comum encontrar, reproduzidas em sentenças, petições, sustentações orais, ou mesmo estampada em escritórios de advocacia ou gabinetes de juízes, frases como: “A regra da igualdade não consiste senão em aquinhoar desigualmente aos desiguais, na medida em que se desigualam”? Ou ainda: “Justiça atrasada não é justiça, senão injustiça qualificada e manifesta”? Ou esta: “Se o povo é analfabeto, só ignorantes estarão em termos de o governar”? Como explicar a popularidade desse discurso, que há quase um século permanece no panteão de verdadeiro evangelho dos estudantes de direito?
2. Como em todas as obras clássicas, pesaram diversas causas, entre as quais o contexto de sua produção, a excelência de seu conteúdo e sua fortuna crítica. Em 1920, aos setenta anos de idade, Rui Barbosa era uma personalidade consagrada. Senador da República, advogado, jornalista, ex-ministro de Estado, ele era considerado pela opinião pública o “maior brasileiro vivo”. Iniciado treze anos antes, por ocasião de sua participação como representante do Brasil na Segunda Conferência da Paz na Haia, seu processo de consagração atingira seu apogeu em agosto de 1918, quando o próprio regime republicano, de que Rui era virulento crítico, celebrou oficialmente seu “jubileu cívico”, isto é, seus cinquenta anos de atividade política. Foram três dias de festividades, um dos quais decretado feriado nacional.
3. Mas, para entender o sucesso da Oração, é preciso considerar também o estilo literário particular em que foi redigido. Não era a primeira vez que Rui se dirigia à mocidade. Em 1903 ele escrevera Palavras à juventude aos meninos de um colégio de Nova Friburgo, que ele visitara. Não obstante, salta aos olhos a diferença de estilo. Desde a Campanha Civilista, quando passara a se dirigir pessoalmente a audiências mais amplas, Rui percebera a familiaridade do público com o estilo oratório dos sermões e adotara o estilo evangelizador de um padre Vieira, que cruzava o registro do pregador e do pedagogo. Na Oração aos Moços, ele não era só o pedagogo; ele era o velho pai ou padrinho que, em tom de intimidade confessional, oferecia conselhos aos moços a partir da sua própria experiência. Falava da importância de ouvir o próprio coração e de estar preparado para uma vida dedicada ao amor, ao sacrifício, à justiça, à caridade; recomendava a oração e o trabalho; e pedia aos jovens que não trocassem o dia pela noite, continuando sempre a estudar. Enaltecia a profissão de juiz e enunciava regras de conduta para os magistrados: não contribuir para a morosidade processual; receber o advogados das partes; evitar o governismo; tratar igualmente o rico e o pobre; evitar o excesso de rigor; e, principalmente, duas regras de grande atualidade: não se meter em política e não ir atrás de popularidade.
4. Quanto ao conteúdo propriamente político, a Oração era atravessada por um intenso idealismo liberal democrático. Os moços deviam lutar sempre pela verdade do governo da lei: verdade eleitoral, verdade constitucional, verdade republicana, sempre incompatíveis com regimes autoritários e oligárquicos. Mas Rui também advertia contra o comunismo, lembrando que a igualdade não era dar a todos indistintamente (“filosofia da miséria”), mas a cada um na proporção de seus méritos. O patriotismo era a última lição: o bacharel em direito deveria zelar pela sorte do Brasil, ameaçado pelos imperialismos de todo o tipo. No seu entender, o Brasil só poderia ser salvo de sua corrupta oligarquia política pela ação de uma elite jurídica orientada por um espírito liberal e republicano na defesa da Constituição. Era esse o principal recado deixado por Rui, que explica em larga parte a popularidade do texto nos meios jurídicos até o dia de hoje, em que a ideologia do bacharelismo judiciarista atingiu seu apogeu entre nós.
5. De fato, o sucesso do texto se deveu igualmente à sua fortuna crítica. A oração foi instantaneamente interpretada pelos liberais como uma espécie de testamento do velho Rui às futuras gerações de bacharéis. O senador baiano lograra consolidar-se na imaginação dos liberais como um modelo de atuação para a mocidade: um jurista idealista, culto, destemido, solitário, incumbido pelo destino de defender a Justiça identificada com o Estado de direito democrático contra a corrupção identificada com politiqueiros conservadores, autoritários e oligárquicos. Para tanto, o bacharel liberal deveria travar uma luta sem trégua com a Constituição debaixo do braço, pela tribuna jornalística, forense e parlamentar. No idealismo cosmopolita de Rui beberiam as principais lideranças liberais e socialistas de tendência ideológica cosmopolita da Terceira República. Pensemos na Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), com advogados como Levi Carneiro, Sobral Pinto e Raimundo Faoro; na União Democrática Nacional (UDN) de Aliomar Baleeiro, Afonso Arinos de Mello Franco, Bilac Pinto e Prado Kelly – mas também de Carlos Lacerda que, sem ser jurista, seria o principal êmulo de seu estilo combativo. Mas na herança de Rui beberiam socialistas críticos do personalismo do trabalhismo de origem getulista. Pensemos no Partido Socialista Brasileiro de João Mangabeira, Hermes Lima e Evandro Lins e Silva, mas também na ala do Partido Trabalhista Brasileiro de Alberto Pasqualini e Santiago Dantas. Todos eles se reconheceriam profundamente devedores do exemplo de Rui Barbosa. Nas décadas de 1970-1980, a pregação antiautoritária de Ulysses Guimarães, em ocasiões como a da apresentação de sua anticandidatura a presidente da República ou do encerramento da Constituinte de 1988, nada mais fariam do que emular a fórmula ruiana de combate aos regimes autocráticos.
6. Não admira, portanto, que o busto de Rui Barbosa goze solitariamente do direito de figurar solitariamente no edifício do Senado Federal, atrás da cadeira do presidente, como um anjo tutelar da democracia brasileira. Enquanto houver ideal liberal democrata nas escolas de direito e nos bancos parlamentares, haverá lugar para a Oração aos Moços, esse clássico do pensamento político e jurídico brasileiro.
Quando o presidente Jair Bolsonaro usou a expressão “as minhas forças armadas”, na época em que semanalmente insuflava apoiadores contra o Congresso e o Judiciário, observadores do cenário político interpretaram de dois modos o sentido por ele dado àquela expressão.
Alguns afirmaram que, por ser intelectualmente tosco e não se expressar com inteligibilidade, ele apenas teria tentado repetir o artigo 142 da Constituição, cujo caput classifica o presidente da República como “autoridade suprema do país”. Outros afirmaram que, depois de não ter conseguido subir na hierarquia militar e sido afastado por mau comportamento no Exército, onde jamais galgou os postos do oficialato que exigem maior estudo e preparo, ele recorreu à expressão “as minhas Forças Armadas” como exercício de auto afirmação. Teria sido um modo de se impor a colegas que chegaram ao generalato, enquanto ele ficou para trás como simples capitão reformado.
As duas interpretações não são excludentes e ensejam uma reflexão sobre que Forças Armadas são essas, quem a integra e qual é o nível de sua formação cultural. Se forem levadas em conta apenas as falas de seus membros encastelados no Planalto, a começar por Bolsonaro, as conclusões dessa reflexão não são abonadoras. Afinal, o que se ouve diuturnamente do presidente e de seu entorno militar são bobagens e grosserias. O que expressam não traduz qualquer visão minimamente refinada de mundo. Apesar de terem passado por escolas militares, talvez sequer tenham a ideia de um projeto de poder para o país. A distância entre eles e os militares que lutaram na Itália, na década de 1940, ou mesmo o generalato atualmente na ativa, em diferentes postos de comando, parece infinita no campo intelectual. Destrói e devasta os esforços de construção da imagem de militares modernos, democráticos e com boa formação.
A falta de aprimoramento intelectual de Bolsonaro e dos fardados por ele abrigados em cargos de confiança fica ainda mais evidente quando cotejada com um militar francês que, a partir da patente de capitão — obtida por mérito, não por acordo — transitou com sucesso do Exército para a política. Trata-se de Charles de Gaulle, cuja melhor e mais completa biografia, de autoria de Julian Jackson, acaba de ser lançada no país pela Editora Zahar. Destaco o período de 1932 a 1939, quando, após ter sido prisioneiro por 32 meses na primeira guerra mundial e servido mais tarde no Líbano e na Polônia, enfrentou vários desafios. Foram os anos em que se preparou para os exames de admissão à Escola de Guerra. Assumiu o posto de palestrante de história militar na Academia de Saint-Cyr. Integrou — como capitão — a equipe do Marechal Pétain no Estado-Maior do Exército francês. E acabou removido para um cargo na Secretaria do Conselho Superior da Defesa Nacional. Além de ser o fórum onde o planejamento de defesa era discutido no mais alto nível, esse órgão fazia a ponte entre os militares e os burocratas profissionais e os políticos do governo.
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Este é o ponto de referência que me permite comparar o que dizia sobre o papel das Forças Armadas aquele então capitão francês com o que fala Bolsonaro. Tanto um quanto outro têm em comum o fato de que saíram dos quartéis para a vida política, convertendo-se em presidentes da República. Também têm em comum a egolatria, o conservadorismo, a opção pela direita, a vocação autoritária e a ideia de que as Forças Armadas são a corporação que melhor incorporaria os valores de seus países.
O que me interessa, nesta resenha, é justamente a distância entre um e outro, com base na noção de tipo ideal formulada pelo sociólogo alemão Max Weber (1864-1920). Tipos ideais são uma espécie de parâmetros que orientam as investigações a partir de um determinado número de características reunidas teoricamente pelos cientistas sociais. Ao observar a realidade eles a contrastam com esses parâmetros. No caso da democracia, por exemplo, selecionam um conjunto de características com base no qual define um todo idealizado. Ao observar um sistema político concreto, classificam o quanto esse sistema é democrático — ou seja, o quanto ele se aproxima dessa idealização, desse parâmetro.
O que tenho em mente assim é uma métrica de dois tipos ideais. Por um lado, o tipo ideal do militar profissional, refinado, capaz de liderar corporações e com profundo conhecimento da história militar. Por outro, o inverso — o militar despreparado, inculto, impulsivo, insensato, mentiroso, fanfarrão e covarde. Em suas anotações, por exemplo, De Gaulle reconheceu que em tempos difíceis, de guerra e entreguerras, políticos e burocratas agiam muitas vezes de modo confuso e apaixonado, mas tinham seu valor. Era uma forma nada sutil de dizer que os militares tinham foco, frieza e capacidade de decisão. Também afirmava que, se a reconstrução da França após a primeira guerra mundial tivesse de começar pelo Exército, isso estaria de acordo com a ordem natural das coisas, pois “os militares são a expressão mais completa do espírito de uma sociedade”.
A afirmação é refutável em diferentes sentidos, mas, para sustentá-la, De Gaulle tinha uma enorme base histórica, da qual Bolsonaro carece. Ao contrário deste, De Gaulle respeitava a liturgia do cargo, relacionava-se com intelectuais, dominava um vocabulário extenso e primava pelo raciocínio lógico e pela capacidade de formar quadros competentes por onde passou, na vida civil e na vida militar. Era um oficial pretensioso e arrogante — características que, segundo Julian Jackson, decorriam de sua percepção de que a sociedade francesa não valorizava seus soldados e entendia que o Exército não deveria imiscuir-se em questões políticas.
De Gaulle pensava de modo oposto, lamentando essa desvalorização. Dizia que um Exército profissional era mais confiável do que um Exército de recrutas e tropas coloniais para manter a ordem pública. Não escondia o temor da politização e instrumentalização das corporações militares, o que, a seu ver, levaria ao rompimento do princípio da hierarquia das Forças Armadas e, por consequência, à subversão da ordem institucional. Aliás, entre nós esse mesmo temor ficou registrado em manifestações de alguns generais nos períodos mais turbulentos do ano passado.
Ao contrário do iletrado inquilino do Planalto, que não pensa no que fala, cerca-se de pessoas ainda mais despreparadas do que ele e faz digressões bizarras, insuflando apoiadores contra o Congresso e o Judiciário, De Gaulle lia, estudava e refletia. Tinha uma visão sistêmica das tensas relações entre o poder armado e o poder civil e consciência dos riscos inerentes aos riscos de perversão da relação entre a burocracia profissional na máquina administrativa francesa e os órgãos responsáveis pela manutenção da segurança pública. Competente na discussão de ideias abstratas e obstinado na busca de seus fins, era flexível e realista quando preciso. Defendia um Estado racionalmente organizado, uma ideia compartilhada no espectro político nos anos pré-guerra, especialmente pelos insatisfeitos com as inadequações do funcionamento de uma República parlamentar. Cartesiano, entendia que, uma vez tomada uma decisão e definido um rumo a partir de uma negociação entre os lados político e militar na administração pública, a ação seria desenvolvida “por meio de uma “organização racional”, o que implica método, ordem, ciência e eficiência.
Essas ideias entreabrem o autoritarismo de De Gaulle. Nos livros e anotações que fez naquele período, as palavras democracia e liberdade aparecem pouco, lembra seu biógrafo, que o classifica como um militar com cabeça de tecnocrata e um autoritário ilustrado. Na busca de uma métrica ideal-típico weberiana, o inverso de De Gaulle é Bolsonaro. A partir do contraste entre ambos fica mais fácil entender o sentido da expressão “as minhas Forças Armadas”, usada por este último, que é um presidente sem plano de voo, sem grandeza e sem coragem, quando comparado com seu par militar e político francês.
A discrepância entre os polos da métrica ideal-típica entre ambos é assustadora. A distância entre o horizonte de Xiririca da Serra e Paris/Colombey-les-Deux-Églises fez diferença na formação dos dois. O mesmo ocorre com os tempos que viveram e as culturas em que foram forjados. Por isso, De Gaulle tinha estatura e sentido de elevação. Pode-se discordar — e o faço com veemência, pois pertenço à geração de maio de 1968 — de suas ideias e métodos. Sabia onde queria chegar. O que não acontece com o capitão reformado, cuja grande obra política foi criar uma holding parlamentar para que seus filhos tivessem a vida custeadas pelos contribuintes e minar órgãos de fiscalização para evitar que sejam condenados judicialmente. Foi defender torturadores e assassinos da ditadura militar. Foi se envolver com liberação do uso de armas e desenvolver uma promíscua e assustadora relação com as Polícias Militares. Foi assumir posturas genocidas em tempos de pandemia.
Desse modo, quando fala nas “minhas Forças Armadas”, Bolsonaro mostra o despreparo de um militar disfuncional que, pelos acasos da vida, hoje ocupa um posto que lhe permite cobrar continências de generais. Revela a torpeza e a inconsequência de um demagogo que tenta usar politicamente a corporação da qual não teve competência para atingir os postos mais altos da carreira. Despreza militares do Exército, Marinha e Aeronáutica preparados e conscientes de seu papel constitucional. Parece não levar em conta os profissionais bem formados e treinados das três armas, dando preferência ao baixo clero, aos áulicos e àqueles que não hesitam em interagir com policiais militares e mecanismos de força paraestatais.
Enfim, ele escancara uma vocação de ditador de república bananeira, que não sabe o que fazer com o poder, a não ser reproduzi-lo cotidianamente em seu sentido mais bruto. Ou seja, e mais uma vez recorrendo a Weber, o poder fundado na violência, na mentira eletrônica, na polaridade amigo/ inimigo — e não o poder legítimo, baseado na representação parlamentar, na democracia representativa e no Estado de Direito.
Neste momento em que sua gestão desastrosa chega ao auge com a morte por asfixia centenas de milhares de amazonenses, decorrente do fato de não ter feito o que deveria após a eclosão da pandemia, resta saber se as Forças Armadas continuarão, pelo silêncio, permitindo a Bolsonaro que as chame de “minhas”. Caso oficiais sérios e preparados continuem tolerando o povoamento da máquina administrativa por militares despreparados, como o caso do Ministério da Saude, é um triste exemplo, não evitando que colegas continuem aceitando trabalhar para um governante que sistematicamente afronta a Constituição, as Forças Armadas, enquanto instituição, poderão ter graves problemas de credibilidade e legitimidade quando esse crime de genocídio for um dia julgado por algum tribunal internacional. Por causa das antigas feridas ainda não suturadas da ditadura militar de 64 e pelo fato de mais de 6 mil militares estarem atuando hoje na condução do governo, blindando o presidente no caso de um impeachment, se voltarem a insistir em conduzir o país elas correm o risco de sentar no banco dos réus amanhã, ao lado de um antigo tenente hoje convertido em pária internacional. Por contingência e absurdo, estariam assim reduzidas a tropas “dele” aquelas que o artigo 142 da Constituição Federal diz serem “instituições permanentes e regulares da Nação”.
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José Eduardo Faria
José Eduardo Faria é Professor Titular do Departamento de Filosofia e Teoria Geral do Direito da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP). É professor da Fundação Getulio Vargas (FGV-Direito) e um dos ganhadores do Prêmio Jabuti (Direito) em 2012, além de Prêmios Esso de Jornalismo (1974 e 1976).
Qualquer pessoa minimamente informada sabe que, se fosse levado a um divã de psiquiatra quando foi descoberto com planos de jogar bombas na represa do Guandu para protestar contra seus baixos soldos, o tenente Jair Bolsonaro seria, no mínimo, classificado como disfuncional. Por consequência, teria de ser sumariamente afastado das Forças Armadas, tal a gravidade de sua iniciativa, e, no limite, poderiam até ser aplicados a ele os dispositivos legais que tratam dos incapazes — ou seja, pessoas que não têm condições de exercer pessoalmente atos da vida civil.
Contudo, o que se viu à época não foi o país legal, das instituições de direito. Foi o país real, no qual prevalece o homem cordial de que falava Sérgio Buarque de Holanda ao estudar a transição de uma sociedade rural de raiz ibérica — cujos valores patriarcais e privados precedem a autoridade pública — para uma modernidade urbana americana, baseada no império da lei e em uma burocracia impessoal e meritocrática. O que prevaleceu, em outras palavras, foi uma solução contemporizadora, baseada na acomodação corporativa. Em vez de ser expulso do Exército, o tenente foi reformado, o que lhe assegurou a patente de capitão sem jamais ter capitaneado em sua curta e opaca vida militar. Com isso, seus superiores acabaram tomando uma decisão em causa própria, pois sabiam que ele se tornaria líder sindical da corporação. O que parece ter prevalecido é a ideia de que, se aquele disfuncional militar de baixa patente estivesse em um ambiente diferente do da caserna, no qual prevalece uma hierarquia bem definida, respeito irrestrito ao superior e valorização da antiguidade e da meritocracia como critérios de promoção, ele poderia ser um aliado corporativo.
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Como no poema de Goethe sobre o aprendiz de feiticeiro, os militares responsáveis pelo afastamento de Bolsonaro tentaram se valer de uma mágica que não dominavam. Agiram como o aprendiz que, tedioso e cansado, “encantou” um esfregão para que esse trabalhasse sozinho. Quando se conscientizaram de que não conseguiam parar o esfregão, ou seja, aquele capitão reformado que planejava atentados com bombas, já era tarde. No poema de Goethe, o aprendiz se vale de um machado para quebrar o esfregão. Todavia, cada vez que o faz, as partes quebradas se convertem em novos esfregões. A confusão só acaba quando o feiticeiro retorna, põe ordem na oficina e afirma que os espíritos poderosos somente deveriam ser chamados por quem os domina com autoridade, responsabilidade e prudência.
Como o exercício do poder absoluto corroeu Forças Armadas, deflagrando as mais variadas disputas e a corroendo inclusive em seus valores corporativos e até no plano moral, não houve à época um espírito poderoso que pudesse ser convocado para evitar a solução contemporizadora que beneficiava um capitão insurreto. Por isso, esse militar reformado tosco, agressivo, disfuncional, compulsivamente mentiroso e binário, que vê o mundo a partir da oposição entre bem e o mal, é hoje o chefe do Poder Executivo. O mais grave é que, além de sua visão de mundo estar na altura de um rodapé, ele se apresenta como o fiel intérprete do bem, da moral e dos bons costumes e quem dele discorda é visto como representante do mal, da devassidão e do comunismo, motivo pelo qual tem de ser destruído.
Essa é, de certo modo, uma interpretação rasteira do que dizia um jurista alemão que foi o teórico do decisionismo e, durante certo tempo, ideólogo do nazismo. Trata-se de Carl Schmitt, para quem a política é um conceito autônomo, situado entre as categorias moral, ética, ideológica, jurídica e econômica. Na situação limite da tensão entre união e ruptura, dizia ele encarando o conflito em sua dimensão absoluta, a política deixa de ser uma disputa com o outro — ou seja, um antagonismo entre adversários. Torna-se um confronto entre amigo e inimigo. Como quem não é amigo é, como consequência, inimigo. Portanto, é preciso destruí-lo para evitar ser destruído por ele. Nessa disputa, não há diálogo nem regras, só confrontação e violência. É isso por que a antítese amigo-inimigo tornou-se uma categoria sociojurídica que é a espinha dorsal do pensamento autoritário.
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Em um contexto de incertezas, desorientação e contingências como o atual, de que modo pode um militar disfuncional, despreparado e com uma visão binária estar à frente do Executivo, conduzindo negócios de Estado, no âmbito de um regime democrático? Em que medida não o está corroendo, valendo-se do populismo, da disseminação do ódio e da radicalização retórica para converter o regime democrático em uma espécie de autoritarismo dissimulado ou furtivo — mais precisamente, numa democracia iliberal. Ou seja: um regime no qual regras e procedimentos democráticos são utilizados por políticos com vocação ditatorial e por grupos autoritários com o objetivo de reduzir as mediações institucionais, minar garantias fundamentais, corroer liberdades públicas, inviabilizar juridicamente eventuais resistências e liquidar com os direitos das minorias. O passo derradeiro é alterar as regras democráticas com base nas quais se elegeram, com o objetivo de se manter no poder?
Essa tem sido a tônica do governo desde a posse de Bolsonaro. Se de um lado tem recorrido a instrumentos do regime democrático em busca de uma capa de legitimidade, de outro jamais escondeu sua compulsão por um aparato de poder sustentado com base na instrumentalização das instâncias superiores do Poder Judiciário, da Procuradoria-Geral da República e demais órgãos de controle, bem como em estratagemas de transgressão com base em dispositivos da Constituição polissêmicos ou mal escritos.
Esse é, entre vários outros, um dos problemas que a democracia enfrenta atualmente: a falta de antídotos, em um contexto de expansão das redes sociais e de esvaziamento dos mecanismos representativos tradicionais, para o risco de que populistas capturem um regime político representativo para miná-lo com base em suas próprias regras. Isso ficou evidente quando o presidente indicou para a corte suprema um juiz com currículo medíocre e acusado de plágio, que entrou para os quadros da Justiça Federal não por concurso, mas pela política miúda de uma entidade corporativa. A justificativa de Bolsonaro foi de que precisava de alguém no tribunal com quem possa “tomar tubaína” — um eufemismo para descrever a pretensão de obrigar o indicado a fazer tudo o que ele, presidente, quiser, seja reinterpretando a Constituição para suprimir ou distorcer o que ela diz, seja recorrendo a artimanhas hermenêuticas para declarar a legalidade de embustes e decisões marcadas pelo arbítrio autocrático.
O risco de erosão das instituições de direito também ficou explicitado quando o presidente arquitetou a ida para o Tribunal de Contas da União de um assessor que chama pelo diminutivo e que também tem um currículo constrangedor. Tal vulnerabilidade tem sido evidenciada à exaustão sempre que o presidente apresenta suas posições como politicamente preferíveis por serem, ao seu modo de ver, moralmente superiores às de seus adversários. Ele não refuta os argumentos de um governador que o critica — simplesmente, chama-o de “rato”. Não dialoga como chefe de Estado com determinados presidentes latino-americanos — apenas os classifica como membros da “esquerdalha”. Com ele, não há diálogo, mas desclassificações com base em monólogos constrangedores diante de turbas insensatas. E se a democracia passa a correr riscos por causa do comportamento do chefe do Executivo, paradoxalmente ele reivindica supressão de garantias e poderes absolutos — portanto, antidemocráticos — para enfrentar os maldosos que querem destruí-la.
O estelionato está no fato de que a cultura política inerente à democracia representativa não comporta afirmações absolutas — pelo contrário, o que nela prevalece são afirmações parciais, limitadas e contestáveis a respeito dos interesses comuns. O estelionato também está no fato de que o presidente e os que o cercam vindos do núcleo familiar e da corporação militar, não veem — nem querem ver — que na política as ideias não são propriedade de alguém ou de um grupo, mas reivindicações compartilhadas, e que a democracia pressupõe forças antagônicas e discussões contínuas. E quanto mais essas discussões partem da premissa de que a diversidade de opiniões e a pluralidade de valores fazem parte da vida social, mais é possível chegar a uma negociação bem sucedida — principalmente quando, em vez de desqualificar moralmente seus adversários, os políticos são capazes de apresentar argumentos políticos para justificar suas aspirações políticas.
Na década de 1980, quando a ditadura militar acelerava o passo rumo a um estrepitoso fracasso, fui convidado a falar sobre redemocratização na Escola Superior de Guerra e na Escola de Comando e Estado Maior do Exército. Nos dois eventos, sem ligação entre si, tive um acolhimento polido e franco. O melhor do debate foram as conversas informais, na hora do café, quando militares de meia idade se queixaram, em off,da imagem de ilegitimidade que então comprometia a respeitabilidade das Forças Armadas perante a sociedade e das dificuldades que oficiais mais jovens tinham para se afirmar na vida social, por serem considerado cúmplices de brutalidades cometidas por gerações de militares que não eram as suas.
Não me lembro ao certo das palavras que disse, apenas das ideias que apresentei. Primeiro, lembrando-me de Hobbes, um clássico que então discutia em meu curso sobre sociologia do conflito na USP, afirmei que a discordância e a conflituosidade são intrínsecas à sociedade e debati o trânsito do estado da natureza para o estado civil. Depois, enfatizei a democracia como um processo competitivo dinâmico que, se por um lado envolve aprendizagem e pragmatismo, por outro se oxigena pelas mudanças sociais, pela crescente incorporação das novas gerações e pelos acordos que são feitos em contextos conflitivos. A democracia é, assim, um processo de discussão plural, de definição de prioridades e de construção de objetivos compartilhados marcado por debates em que todos os atores respeitam uns aos outros e apresentam argumentos, em vez de se desclassificarem moralmente. Em seguida, chamei atenção para o fato de que, quanto mais argumentos morais são apresentados para desclassificar adversários, menores são as possibilidades de êxito da política.
O que não fiz, por falta de imaginação à época, e faço agora, diz respeito aos militares que compõem o entorno do capitão reformado, no sentido de que se consideram salvadores da pátria e zeladores da moralidade. Metaforicamente, e tendo em mente os que engendraram solução contemporizadora para o afastamento de um militar de baixa patente perigosamente disfuncional, retomo a frase final do poema de Goethe sobre o aprendiz de feiticeiro. “Espíritos poderosos devem ser convocados apenas pelos mestres que os dominam”. Se esses espíritos tivessem convocados no passado, talvez não tivesse surgido um político profissional, no pior sentido da expressão, e, possivelmente o País não estaria vivendo hoje uma noite longa e tenebrosa.
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José Eduardo Faria
José Eduardo Faria é Professor Titular do Departamento de Filosofia e Teoria Geral do Direito da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP). É professor da Fundação Getulio Vargas (FGV-Direito) e um dos ganhadores do Prêmio Jabuti (Direito) em 2012, além de Prêmios Esso de Jornalismo (1974 e 1976).
Em parceria com a É Realizações, o Estado da Arte publica hoje o ensaio O argumento liberal, de José Guilherme Merquior, que dá o título à indispensável coletânea do pensador brasileiro. Uma das defesas mais consistentes do liberalismo já feitas no Brasil — uma articulação do que o liberalismo brasileiro poderia ter sido —, trata-se do livro mais acessível da década final da obra de José Guilherme Merquior.
.O argumento liberal[1]
a Marcílio Marques Moreira
….O cerne do argumento liberal é a velha lição de Montesquieu: não basta decidir sobre a base social do poder — é igualmente importante determinar a forma de governo e garantir que o poder, mesmo legítimo em sua origem social, não se torne ilegítimo pelo eventual arbítrio do seu uso. Na raiz da posição liberal se encontra sempre uma dose inata de desconfiança ante o poder e sua inerente propensão à violência. Por isso, o primeiro princípio liberal é o constitucionalismo, isto é, o reconhecimento da constante necessidade de limitar o fenômeno do poder. O mundo liberal é uma ordem monocrática — uma sociedade colocada sob o império da lei, onde todo poder possa ser experimentado como autoridade e não como violência.
Mas o constitucionalismo, condição necessária da ordem liberal, não chega a ser sua condição suficiente. Uma oligarquia liberal não é, hoje, um princípio de legitimidade, embora o tenha sido em tempos como a Inglaterra whig ou o Brasil da Primeira República. É que, em nossos dias, não há legitimidade fora do ideal democrático, o que supõe a universalidade da cidadania, dos direitos políticos, e não apenas — como na república de tipo whig — a dos direitos civis. Não é só a segurança do indivíduo que se consagra; é também o seu direito de participação política (para não falar de certos direitos sociais). Até nos socialismos de estado, o ideal democrático nunca é negado, é meramente mediatizado pela preocupação — errônea e fatal — de superar as “liberdades burguesas”, supostamente falsas, por meio de um nivelamento democrático dirigido pelo partido-estado. Por conseguinte, para a vigência de uma ordem liberal moderna, faz-se mister a conjunção de constitucionalismo e democratização da cidadania.
Por trás dessa universalização da cidadania, reponta uma tardia vitória de Aristóteles sobre Platão. Entre esses dois filósofos lavrou um dos dilemas políticos mais clássicos da Antiguidade: a alternativa entre o governo da sabedoria ou o governo da lei. Para Platão, os homens deviam ser governados pelos sábios; a república ideal é o reino dos filósofos. Para Aristóteles, essa nobre aspiração repousa num erro, o erro de julgar que a diferença de qualidade entre os homens possua uma extensão e constância capazes de justificar a entrega permanente do poder aos melhores dentre eles. A sabedoria, ao ver do Estagirita, não é um atributo distribuído de forma tão nítida ou tão rígida nas coletividades humanas; e porque não o é, não é razoável preferir o governo dos sábios, da casta filosófica, ao império da lei, que já prefigura a moderna preocupação liberal com a necessidade de limitar o poder. Assim Aristóteles, sem ser democrata, ao refutar o elitismo filosófico de Platão, delineou um dos principais postulados liberais de inspiração, em última análise, democrática.
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Porém Aristóteles, tanto quanto Platão, ainda estava bem longe da moral basilar do liberalismo: o individualismo moderno, produto da complexa interação de processos históricos posteriores ao mundo clássico, a começar, naturalmente, pelo cristianismo e pelo capitalismo. E o individualismo moderno pode ser concebido como a admissão, no nível ético-político, do eclipse, ou colapso, daquele summum bonum em que a moral clássica (e clássico-cristã) via o objeto e a meta do bem viver. Pois o substrato ético da ordem liberal moderna seria a dispersão do bem comum — a tendência ao empirismo em moral, cuja encarnação mais característica viria a ser o utilitarismo.
A doutrina liberal conheceu pelo menos três fases principais. Locke e Montesquieu são, por assim dizer, mais ancestrais que fundadores, porque sua teorização precede o advento da Revolução Industrial e da Revolução Francesa, e o liberalismo cresceu como ideologia profundamente marcada por ambas. O que Locke e Montesquieu legaram ao pensamento liberal foi precisamente aquele postulado: o imperativo da limitação do poder. Locke o arguiu do ângulo da legitimidade, que desde então passou a repousar no consentimento individual (majority rule, minority rights); e Montesquieu perseguiu o mesmo alvo por meio da análise da mecânica dos poderes. Mas o primeiro ato da ópera liberal, após essa imprescindível ouverture, é o que se estende de Benjamin Constant (1767-1830) a Herbert Spencer (1820-1903).
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De Constant a Spencer floresce o paleoliberalismo. Seu maior mérito foi ter acrescentado à teoria da limitação do poder um conceito decisivamente ampliado da liberdade. À liberdade clássica, de participação pública no poder, somava-se o pleno reconhecimento da liberdade moderna, ou livre exercício privado de agires e fazeres conforme a inclinação de cada um. Em suma: à defesa da liberdade política, baseada na autonomia do indivíduo, cumpria aditar a proteção da liberdade civil, alicerçada na liceidade de suas ações. A inserção dessa perspectiva no tema da limitação do poder é de uma clareza cristalina. Do fato de que o poder legítimo procede de todos, argumentava Constant, não se segue que ele possa se estender a tudo. Logo, é preciso limitar o poder. A Spencer caberá (num grau inferior de sofisticação teórica) descrever a evolução política como o triunfo progressivo desse princípio. Ele viu a história da Europa avançada como a vitória da limitação do poder na esfera religiosa (liberdade de confissão) e, num segundo passo, na esfera econômica (laissez-faire).
Em compensação, esse tipo de liberalismo se mostraria singularmente cego ante a dimensão do estado. Nem Constant nem Spencer souberam ver o que viu Tocqueville: que o crescimento da liberdade civil foi acompanhado, e na realidade pressupôs, de uma tremenda expansão da regulamentação da sociedade pela lei, isto é, pelo estado como foco emissor de direito. O robustecimento da sociedade civil não ocorreu contra o estado, e sim sob a sua égide. De modo que, aí pela volta do século, o exorcismo do estado, refrão da política spenceriana, já era sobretudo um arcaísmo sociológico. O evolucionismo acertara em cheio ao pintar o progresso como superação do militarismo pelo industrialismo (do que Constant chamara “espírito de conquista” pelo “espírito de comércio”), porque nem mesmo a persistência do fenômeno bélico (na guerra franco-prussiana, nos conflitos balcânicos e, finalmente, na “grande guerra dos homens brancos”, a catástrofe de 1914-1918) desmentia, no âmbito europeu, a obsolescência do imperialismo de cunho clássico e dos valores marciais na cultura. Mas o erro do paleoliberalismo estava em confundir essa tendência com um ilusório perecimento do estado.
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Bem antes que a ideologia paleoliberal declinasse, outra fase da história do liberalismo começou: a fase social-liberal. O centro da nova perspectiva seria a distinção entre liberdade social e liberdade associal, devida ao inglês Leonard Trelawny Hobhouse, primeiro professor de sociologia na universidade Fabiana, a London School of Economics. A liberdade social, baseada na autodisciplina, é algo a ser desfrutado por todos os membros da sociedade; e consiste “na liberdade de escolher linhas de ação que não envolvam dano a outrem”. Há exatamente cem anos, o filósofo neoidealista oxoniano Thomas Hill Green redefiniu a liberdade como algo valioso apenas na medida em que seja meio para um fim — o bem comum.
Essa restauração da ideia de bem comum tinha endereço nitidamente antiutilitarista. E seu sabor potencialmente anti-individualista não deixava de brigar com a posição daqueles que, como Constant ou, sobretudo, John Stuart Mill, se haviam preocupado com padrões de excelência moral e intelectual, sem, no entanto, abandonar a ótica individualista (tanto Constant quanto Mill tinham perfilhado a ética humanista de Wilhelm von Humboldt, o ideal de uma Bildung ao mesmo tempo moralizadora e emancipatória).
Mas o desvio decisivo em relação à prática política estava na ultrapassagem dos dogmas antiestatistas dos paleoliberais. Green sustentava que a coerção estatal não é o único obstáculo à liberdade — barreiras econômicas e sociais também o são, o que torna legítimo, para removê-las, o recurso à ação do estado. De certo modo, Mill preludiara esse social-liberalismo ao aceitar a legitimidade da intervenção previdenciária do estado (que, aliás, nunca fora recusada por clássicos como Adam Smith ou Bentham); mas Mill permanecera contrário à administração permanente do bem-estar coletivo pelo estado, e fiel à concepção minimalista deste último. Os sociais-liberais do fim do século, como Green e Hobhouse, ou os economistas alemães da Verein für Sozialpolitik, como o influente Gustav Schmoller, ficariam bem mais perto de um “liberalismo de estado”. Liberalismo de estado que, no caso desses sociais-liberais ingleses, prefigura o ânimo igualitário do credo “liberal” no sentido americano dos nossos dias
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A rigor, a época social-liberal pode ser colocada entre Mill e os liberals rooseveltianos — ou melhor, entre Mill e Keynes, já que este foi seu grande economista, o diagnosticador e terapeuta das insuficiências do laissez-faire. De resto, a meia distância entre Mill e Keynes, o pensamento social-liberal se veria reforçado pela emergência de uma importante dissociação: o divórcio de liberalismo e otimismo. De Constant a Spencer, o liberalismo vivera encharcado de otimismo histórico, persuadido de que a desimpedida ação dos indivíduos levava sempre à colaboração e ao progresso harmônico do gênero humano. Não é que faltassem, propriamente, pessimistas. Ninguém menos que Mill foi um insigne arauto dos receios causados pela continuação descontrolada do crescimento econômico; e antes de Mill, Tocqueville concluíra que a conjunção da igualdade com a liberdade nada tinha de fatal. Mas geralmente o tom do liberalismo, estimulado pelo magnífico surto de prosperidade do meio do século, era bem otimista.
Desse tom se separariam, porém, os grandes liberais atuantes ao tempo da Grande Depressão, Lord Acton ou Benedetto Croce. Repudiando a visão rósea do liberalismo clássico, eles reconheceram que a “história da liberdade” (expressão de Acton) é inseparável do conceito. O Kulturpessimismus finissecular deixou sua marca na tradição liberal. Ora, essa nova desconfiança ante a história era basicamente propícia ao dirigismo socioeconômico. Se a mão invisível da Providência não mais assegurava por si só a harmonia entre os homens, então alguma medida de intervencionismo estatal se impunha — do contrário, a própria liberdade estaria em perigo. Esse corolário ainda não é visível num liberal gladstoniano como Acton; mas já o é em Croce, que emergirá da Segunda Guerra Mundial corno adversário do liberalismo econômico.
Do predomínio da ideologia social-liberal na era keynesiana (1930-1973) resultou a entronização política daquilo que Raymond Aron chama de “síntese democrático-liberal”: o complexo de direitos civis, políticos e sociais acatados pelas democracias industriais avançadas, e que combina várias liberdades, nos dois sentidos básicos de participação e não impedimento. Nascida de uma dialética fecunda entre o liberalismo clássico e a crítica socialista, a síntese democrático-liberal não se define por uma noção de liberdade, mas sim por um permanente diálogo social, no qual os grupos interlocutores jogam com diferentes ideias da liberdade ou das liberdades.[2] Preciosa síntese sociopolítica, ainda tranquilamente insuperada, no mundo contemporâneo, em sua capacidade de assegurar direitos e liberdades. Quem duvida disso, e especialmente quem lhe julgue superior a “construção do socialismo” nas ideocracias grotescamente intituladas “democracias populares”, deveria prestar atenção às rei- vindicações do Sindicato Solidariedade e reconhecer que as conquistas dos trabalhadores poloneses na Carta de Gdansk representam liberdades corriqueiramente usufruídas no Ocidente — exceto onde regimes autoritários tenham violado os princípios liberal-democráticos.
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…Essa menção é bastante para refutar o que Norberto Bobbio tão bem denunciou como falácia genética na argumentação antiliberal do marxismo. Os marxistas acusam o liberalismo de não ver que sua cara liberdade não passa de um privilégio de classe, conquistado pela burguesia na época de sua rebelião contra a sociedade feudal. Porém, admitir essa sua origem de classe absolutamente não nos obriga a pensar que as liberdades “burguesas” não tenham, hoje, um valor e um alcance universais. A gênese de uma instituição social é uma coisa; sua função e seu sentido presentes, bem outra. Por isso é que os trabalhadores poloneses lutam pelo que eram, ainda ontem, liberdades civis e políticas defendidas por burguesias à procura de emancipação.
Qual seria a terceira fase da ideologia liberal? Nesses últimos anos, a voga do antikeynesianismo e a viragem direitista na política anglo-saxônica deram novo lustre ao neoliberalismo. Seu maior profeta, o austro-inglês Friedrich August von Hayek, propõe um verdadeiro desmantelamento do social-liberalismo, um retorno em regra ao estado mínimo e à convicção de que o progresso deriva automaticamente de uma soma não planejada de iniciativas individuais. Quietismo governamental no plano econômico e simples legalismo no plano político-social. Pois a lei, para Hayek, se caracteriza pela sua neutra generalidade, equivalente à ausência de coerção social no sentido de uma opressão de classe. No entanto, observa Aron, muitas vezes a generalidade da lei não elimina seu aspecto eventualmente impositivo, do ponto de vista de dados grupos sociais, para os quais, em certas circunstâncias, a norma legal pode ser um poder ilegítimo. Afinal, as leis, por mais gerais que se entendam, exprimem com frequência interesses particulares.
Uma coisa é certa: a utopia liberal-conservadora de um puro e simples reino da legalidade dificilmente atenderá aos impulsos democratizantes das sociedades industriais de modelo liberal – e satisfará menos ainda às exigências sociais dos países, como o Brasil, onde a “síntese democrático-liberal” permanece incompleta.
O neoliberalismo só confia no jogo do mercado. Mas nós sabemos que o mercado, conquanto seja instrumento indubitavelmente necessário da criação de riqueza e do desenvolvimento econômico intensivo, nem por isso constitui uma condição suficiente da liberdade moderna, porque não é capaz de gerar, por si só, toda uma série de requisitos e oportunidades para o exercício mais pleno e mais significativo da individualidade de muitos. Se suprimir o mercado é ferir de morte o substrato material das liberdades modernas, deixar tudo entregue ao seu império é restringir significativamente o livre gozo dessas mesmas liberdades a minorias — e a minorias compostas de privilegiados pelo berço, e não só pelo mérito.
O neoliberalismo é, portanto, essencialmente, a reprise do paleoliberalismo; e como verificamos as deficiências deste último em matéria de visão histórica e consciência social, parece inevitável preferir, ao retrocesso neoliberal, uma retomada criadora do social-liberalismo.
Cada uma das grandes ideologias políticas contemporâneas — conservadorismo, liberalismo, socialismo — se encontra hoje afetada de não pequeno grau de desmoralização. Por isso Leszek Kołakowski foi particularmente sagaz ao extrair de cada uma delas o seu núcleo de razão e sabedoria. Em Como Ser Conservador, Liberal e Socialista, ele adverte que os conservadores estão certos ao sustentar que nem todos os males humanos têm causas sociais, sendo, pois, elimináveis por simples atos de engenharia social; que os liberais têm razão em pretender que o propósito fundamental do estado deve ser a segurança do cidadão, e que o sistema social não deve ser refratário à iniciativa individual; e que, finalmente, a recusa, pelos socialistas, do pessimismo antropológico dos conservadores, de modo a justificar a realização de reformas sociais, onde e quando necessárias, também é perfeitamente válida.
Gostaria de partir desse lúcido ecletismo de Kołakowski para concluir com uma importante distinção entre o conservadorismo e o liberalismo. Fundamentalmente, essas duas ideologias diferem porque, para o conservador, tanto a autoridade estabelecida quanto o status quo social tendem a ser sagrados, ao passo que para o verdadeiro liberal nunca o são. Assim como o fundo da ética liberal é o utilitarismo, o fundo de sua epistemologia política é o empirismo, ou seja, a disposição a submeter a autoridade e a ordem ao teste da experiência, sem sacralizá-las a priori.[3]
Mas há outra diferença, atinente às respectivas variedades de pessimismo. Conforme relembra Kołakowski , a visão conservadora obedece a um (até certo ponto) justificado pessimismo antropológico, que evita a ilusão de encarar a política, e as mudanças sociais por ela suscitáveis, como panaceia. A política, ou a revolução, nunca pode resolver tudo, porque o problema humano não é apenas “social” (é nesse sentido, claro, que Freud foi um conservador). Porém, conforme vimos no início deste ensaio, na raiz da ótica liberal existe um outro “pessimismo”: a ideia, prudente e realista, de que, quando no poder, todos os homens são, em princípio, suscetíveis de abusar dele — e daí a absoluta necessidade de controlar os governantes, limitando-lhes os poderes. Ora, esse axioma, a que James Mill deu uma formulação epigramática, ao escrever que todos os governantes deveriam, até segunda ordem, ser considerados uns patifes, não encerra, como a crença conservadora, um pessimismo propriamente quanto ao homem, e sim quanto à psicologia do poder.
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Talvez por esse motivo, o liberalismo é, das nossas três grandes ideologias políticas, a única a levar profundamente a sério o ideal democrático no sentido rigoroso da palavra, de governo do povo. Os socialismos de estado se querem democráticos por serem igualitários, mas ninguém se atreveria a dizer que pratiquem a democracia como forma de governo — exatamente aquilo que democracia, antes de tudo, significa. Por conseguinte, é puro confusionismo afirmar que a democracia pode ser liberal ou “popular”. Enquanto democracia liberal é realmente democracia, variando apenas no grau do seu teor democrático, a democracia popular, na prática, não o é. O argumento liberal não precisa fugir à realidade; mas o antiliberalismo socialista só consegue se estribar numa problemática ideal, promessa continuamente refeita e adiada de um paraíso da liberdade.
Resta escrever uma palavra sobre a sorte dessa democracia sans phrase que é a liberal. François Bourricaud, em recente e oportuna análise,[4] distinguiu, nas duas paixões democráticas — as paixões de Rousseau: liberdade e igualdade —, duas variantes históricas. A liberdade conhece uma versão liberal e uma versão libertária; a igualdade, por sua vez, uma versão meritocrática e outra igualitária, no sentido de niveladora. O que aconteceu na história da mentalidade ocidental foi que, por volta de 1950 ou 1960, predominavam a variante liberal da liberdade e a versão meritocrática da igualdade. Mas de lá para cá, e ao sabor do gauchisme eclodido em 1968, tendem a prevalecer a versão libertária da liberdade e a variante igualitária da igualdade.
Infelizmente, se essa segunda configuração ideológica viesse a triunfar em definitivo, é possível que o resultado pusesse em risco os próprios valiosos ideais que a inspiram: a liberdade e a igualdade. Pois o horizonte natural a que tende o liberalismo à outrance é a anarquia, e esta costuma levar a reações despóticas (as situações anárquicas acabam sempre dando razão a Hobbes); e os requisitos operacionais do igualitarismo nivelador induzem a um controle global, um centralismo, de consequências, ainda que não de intenções, inescapavelmente liberticidas. Tal é o maior desafio que o moderno liberalismo tem e terá de enfrentar. Do comunismo, a ordem liberal só precisa temer a força, não o poder, tão desgastado, de persuasão. E, todavia, em nossas sociedades cada vez mais permissivas e reivindicatórias, ela não está completamente a salvo da perversão interna de seu próprio ânimo: o velho, nobre espírito de liberdade e igualdade.
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Notas:
[1] Tempo Brasileiro, n. 65-66 (abr./set. 1981).[2] Ver Raymond Aron, Estudos Políticos. Trad. Sergio Bath. Brasília, Ed. Universidade de Brasília, 1980, p. 221-51; e minha introdução (pessimamente traduzida do francês por autor desconhecido) ao mesmo volume, seção V.[3] Sobre essa conexão liberalismo/empirismo, ver Celso Lafer, Ensaios sobre a Liberdade. São Paulo, Perspectiva, 1980, cap. 3, seção 4.[4] Le Bricolage Idéologique. Paris, P.U.F., 1980.
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