De quem são as Forças Armadas?
por José Eduardo Faria
O Estado da Arte, O Estado de S. Paulo, …………………..
em memória dos mortos por asfixia em Manaus.
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Quando o presidente Jair Bolsonaro usou a expressão “as minhas forças armadas”, na época em que semanalmente insuflava apoiadores contra o Congresso e o Judiciário, observadores do cenário político interpretaram de dois modos o sentido por ele dado àquela expressão.
Alguns afirmaram que, por ser intelectualmente tosco e não se expressar com inteligibilidade, ele apenas teria tentado repetir o artigo 142 da Constituição, cujo caput classifica o presidente da República como “autoridade suprema do país”. Outros afirmaram que, depois de não ter conseguido subir na hierarquia militar e sido afastado por mau comportamento no Exército, onde jamais galgou os postos do oficialato que exigem maior estudo e preparo, ele recorreu à expressão “as minhas Forças Armadas” como exercício de auto afirmação. Teria sido um modo de se impor a colegas que chegaram ao generalato, enquanto ele ficou para trás como simples capitão reformado.
As duas interpretações não são excludentes e ensejam uma reflexão sobre que Forças Armadas são essas, quem a integra e qual é o nível de sua formação cultural. Se forem levadas em conta apenas as falas de seus membros encastelados no Planalto, a começar por Bolsonaro, as conclusões dessa reflexão não são abonadoras. Afinal, o que se ouve diuturnamente do presidente e de seu entorno militar são bobagens e grosserias. O que expressam não traduz qualquer visão minimamente refinada de mundo. Apesar de terem passado por escolas militares, talvez sequer tenham a ideia de um projeto de poder para o país. A distância entre eles e os militares que lutaram na Itália, na década de 1940, ou mesmo o generalato atualmente na ativa, em diferentes postos de comando, parece infinita no campo intelectual. Destrói e devasta os esforços de construção da imagem de militares modernos, democráticos e com boa formação.
A falta de aprimoramento intelectual de Bolsonaro e dos fardados por ele abrigados em cargos de confiança fica ainda mais evidente quando cotejada com um militar francês que, a partir da patente de capitão — obtida por mérito, não por acordo — transitou com sucesso do Exército para a política. Trata-se de Charles de Gaulle, cuja melhor e mais completa biografia, de autoria de Julian Jackson, acaba de ser lançada no país pela Editora Zahar. Destaco o período de 1932 a 1939, quando, após ter sido prisioneiro por 32 meses na primeira guerra mundial e servido mais tarde no Líbano e na Polônia, enfrentou vários desafios. Foram os anos em que se preparou para os exames de admissão à Escola de Guerra. Assumiu o posto de palestrante de história militar na Academia de Saint-Cyr. Integrou — como capitão — a equipe do Marechal Pétain no Estado-Maior do Exército francês. E acabou removido para um cargo na Secretaria do Conselho Superior da Defesa Nacional. Além de ser o fórum onde o planejamento de defesa era discutido no mais alto nível, esse órgão fazia a ponte entre os militares e os burocratas profissionais e os políticos do governo.
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Este é o ponto de referência que me permite comparar o que dizia sobre o papel das Forças Armadas aquele então capitão francês com o que fala Bolsonaro. Tanto um quanto outro têm em comum o fato de que saíram dos quartéis para a vida política, convertendo-se em presidentes da República. Também têm em comum a egolatria, o conservadorismo, a opção pela direita, a vocação autoritária e a ideia de que as Forças Armadas são a corporação que melhor incorporaria os valores de seus países.
O que me interessa, nesta resenha, é justamente a distância entre um e outro, com base na noção de tipo ideal formulada pelo sociólogo alemão Max Weber (1864-1920). Tipos ideais são uma espécie de parâmetros que orientam as investigações a partir de um determinado número de características reunidas teoricamente pelos cientistas sociais. Ao observar a realidade eles a contrastam com esses parâmetros. No caso da democracia, por exemplo, selecionam um conjunto de características com base no qual define um todo idealizado. Ao observar um sistema político concreto, classificam o quanto esse sistema é democrático — ou seja, o quanto ele se aproxima dessa idealização, desse parâmetro.
O que tenho em mente assim é uma métrica de dois tipos ideais. Por um lado, o tipo ideal do militar profissional, refinado, capaz de liderar corporações e com profundo conhecimento da história militar. Por outro, o inverso — o militar despreparado, inculto, impulsivo, insensato, mentiroso, fanfarrão e covarde. Em suas anotações, por exemplo, De Gaulle reconheceu que em tempos difíceis, de guerra e entreguerras, políticos e burocratas agiam muitas vezes de modo confuso e apaixonado, mas tinham seu valor. Era uma forma nada sutil de dizer que os militares tinham foco, frieza e capacidade de decisão. Também afirmava que, se a reconstrução da França após a primeira guerra mundial tivesse de começar pelo Exército, isso estaria de acordo com a ordem natural das coisas, pois “os militares são a expressão mais completa do espírito de uma sociedade”.
A afirmação é refutável em diferentes sentidos, mas, para sustentá-la, De Gaulle tinha uma enorme base histórica, da qual Bolsonaro carece. Ao contrário deste, De Gaulle respeitava a liturgia do cargo, relacionava-se com intelectuais, dominava um vocabulário extenso e primava pelo raciocínio lógico e pela capacidade de formar quadros competentes por onde passou, na vida civil e na vida militar. Era um oficial pretensioso e arrogante — características que, segundo Julian Jackson, decorriam de sua percepção de que a sociedade francesa não valorizava seus soldados e entendia que o Exército não deveria imiscuir-se em questões políticas.
De Gaulle pensava de modo oposto, lamentando essa desvalorização. Dizia que um Exército profissional era mais confiável do que um Exército de recrutas e tropas coloniais para manter a ordem pública. Não escondia o temor da politização e instrumentalização das corporações militares, o que, a seu ver, levaria ao rompimento do princípio da hierarquia das Forças Armadas e, por consequência, à subversão da ordem institucional. Aliás, entre nós esse mesmo temor ficou registrado em manifestações de alguns generais nos períodos mais turbulentos do ano passado.
Ao contrário do iletrado inquilino do Planalto, que não pensa no que fala, cerca-se de pessoas ainda mais despreparadas do que ele e faz digressões bizarras, insuflando apoiadores contra o Congresso e o Judiciário, De Gaulle lia, estudava e refletia. Tinha uma visão sistêmica das tensas relações entre o poder armado e o poder civil e consciência dos riscos inerentes aos riscos de perversão da relação entre a burocracia profissional na máquina administrativa francesa e os órgãos responsáveis pela manutenção da segurança pública. Competente na discussão de ideias abstratas e obstinado na busca de seus fins, era flexível e realista quando preciso. Defendia um Estado racionalmente organizado, uma ideia compartilhada no espectro político nos anos pré-guerra, especialmente pelos insatisfeitos com as inadequações do funcionamento de uma República parlamentar. Cartesiano, entendia que, uma vez tomada uma decisão e definido um rumo a partir de uma negociação entre os lados político e militar na administração pública, a ação seria desenvolvida “por meio de uma “organização racional”, o que implica método, ordem, ciência e eficiência.
Essas ideias entreabrem o autoritarismo de De Gaulle. Nos livros e anotações que fez naquele período, as palavras democracia e liberdade aparecem pouco, lembra seu biógrafo, que o classifica como um militar com cabeça de tecnocrata e um autoritário ilustrado. Na busca de uma métrica ideal-típico weberiana, o inverso de De Gaulle é Bolsonaro. A partir do contraste entre ambos fica mais fácil entender o sentido da expressão “as minhas Forças Armadas”, usada por este último, que é um presidente sem plano de voo, sem grandeza e sem coragem, quando comparado com seu par militar e político francês.
A discrepância entre os polos da métrica ideal-típica entre ambos é assustadora. A distância entre o horizonte de Xiririca da Serra e Paris/Colombey-les-Deux-Églises fez diferença na formação dos dois. O mesmo ocorre com os tempos que viveram e as culturas em que foram forjados. Por isso, De Gaulle tinha estatura e sentido de elevação. Pode-se discordar — e o faço com veemência, pois pertenço à geração de maio de 1968 — de suas ideias e métodos. Sabia onde queria chegar. O que não acontece com o capitão reformado, cuja grande obra política foi criar uma holding parlamentar para que seus filhos tivessem a vida custeadas pelos contribuintes e minar órgãos de fiscalização para evitar que sejam condenados judicialmente. Foi defender torturadores e assassinos da ditadura militar. Foi se envolver com liberação do uso de armas e desenvolver uma promíscua e assustadora relação com as Polícias Militares. Foi assumir posturas genocidas em tempos de pandemia.
Desse modo, quando fala nas “minhas Forças Armadas”, Bolsonaro mostra o despreparo de um militar disfuncional que, pelos acasos da vida, hoje ocupa um posto que lhe permite cobrar continências de generais. Revela a torpeza e a inconsequência de um demagogo que tenta usar politicamente a corporação da qual não teve competência para atingir os postos mais altos da carreira. Despreza militares do Exército, Marinha e Aeronáutica preparados e conscientes de seu papel constitucional. Parece não levar em conta os profissionais bem formados e treinados das três armas, dando preferência ao baixo clero, aos áulicos e àqueles que não hesitam em interagir com policiais militares e mecanismos de força paraestatais.
Enfim, ele escancara uma vocação de ditador de república bananeira, que não sabe o que fazer com o poder, a não ser reproduzi-lo cotidianamente em seu sentido mais bruto. Ou seja, e mais uma vez recorrendo a Weber, o poder fundado na violência, na mentira eletrônica, na polaridade amigo/ inimigo — e não o poder legítimo, baseado na representação parlamentar, na democracia representativa e no Estado de Direito.
Neste momento em que sua gestão desastrosa chega ao auge com a morte por asfixia centenas de milhares de amazonenses, decorrente do fato de não ter feito o que deveria após a eclosão da pandemia, resta saber se as Forças Armadas continuarão, pelo silêncio, permitindo a Bolsonaro que as chame de “minhas”. Caso oficiais sérios e preparados continuem tolerando o povoamento da máquina administrativa por militares despreparados, como o caso do Ministério da Saude, é um triste exemplo, não evitando que colegas continuem aceitando trabalhar para um governante que sistematicamente afronta a Constituição, as Forças Armadas, enquanto instituição, poderão ter graves problemas de credibilidade e legitimidade quando esse crime de genocídio for um dia julgado por algum tribunal internacional. Por causa das antigas feridas ainda não suturadas da ditadura militar de 64 e pelo fato de mais de 6 mil militares estarem atuando hoje na condução do governo, blindando o presidente no caso de um impeachment, se voltarem a insistir em conduzir o país elas correm o risco de sentar no banco dos réus amanhã, ao lado de um antigo tenente hoje convertido em pária internacional. Por contingência e absurdo, estariam assim reduzidas a tropas “dele” aquelas que o artigo 142 da Constituição Federal diz serem “instituições permanentes e regulares da Nação”.
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José Eduardo Faria
José Eduardo Faria é Professor Titular do Departamento de Filosofia e Teoria Geral do Direito da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP). É professor da Fundação Getulio Vargas (FGV-Direito) e um dos ganhadores do Prêmio Jabuti (Direito) em 2012, além de Prêmios Esso de Jornalismo (1974 e 1976).
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