As Vacinas, o Gado da Índia, os Gansos, o Dragão e o Papagaio.
Paulo Antônio Pereira Pinto
As encomendas das vacinas da Índia e da China pelo Brasil, conforme noticiado, parece resumir-se a telefonemas à farmácia do bairro. “Tem tantos milhões de doses disponíveis?”. A resposta é a de que a venda ao exterior começará com a exportação a países vizinhos, sem incluir o Brasil.
Prefiro acreditar que a aceitação de sermos um “país pária” não tenha causado ruído nas comunicações telefônicas com Nova Delhi. Afinal, os Brahmins, que desprezam aquela casta inferior, cumprem atividades religiosas e não governamentais, na Índia.
Não nos situamos, cartograficamente, no entornodestes países - o que faz sentido, que para eles não sejamos prioritários , do ponto-de-vista sanitário.
Apesar da distância e diferenças de fuso horário –são 6 horas e meia a mais para a Índia e 11 horas para a China – temos vínculos históricos e culturais significativos com os dois povos. Estas relações históricas deveriam ter sido mais valorizadas, na interlocução para a compra das vacinas, tendo em vista os discursos de “amizades eternas”, consolidados com ambos os países.
Basta lembrar que, com respeito à Índia, já compartilhamos de outro “líquido da vida”: o leite.É sabido que, no final da década de 1950, pecuarista de Minas Gerais iniciou a importação de gado Girda Índia, que tem – segundo especialistas – aumentado a qualidade de derivados bovinos no Brasil.
Desnecessário lembrar que a Índia faz parte de nosso imaginário, desde os primeiros anos de escola, ao estudarmos nosso “descobrimento”. Mais adiante, aprendemos que, durante o “ciclo do ouro”, no século XVII, o Brasil colonial não dispunha de artesãos, tendo Portugal trazido especialistas de Goapara talhar a arte sacra em Minas Gerais.
Estudos mais aprofundados, como tive oportunidade de discutir com a equipe da TV Globo que foi a Mumbai, para a gravação da novela “A Caminho da Índia”, nos ensinam que há mitologias em comum, entre algumas crenças indianas e de nossos indígenas, que acreditam serem os humanosoriginários das águas dos rios.
Mas, talvez seja interessante fazer exercício de reflexão sobre alguns aspectos da recente emergência da China e da Índia, no cenário internacional.
Os Gansos, o Dragão, o Pavão e o Papagaio.
Durante as décadas de 1980-90, acreditava-se que predominava, na Ásia-Pacífico, o conceito de “revoada de gansos”, na qual o Japão seria o líder, em virtude de bem sucedido processo de desenvolvimento industrial voltado para exportações. Na medida em que seus produtos vendidos ao exterior se tornassem mais sofisticados e caros, os bens de menor valor agregado teriam sua manufatura, gradativamente, transferida para outros locais vizinhos, na Coréia do Sul, Cingapura (servi no Sudeste Asiático, entre 1986 e 1995, sucessivamente, em Kuala Lumpur, Cingapura e Manila), Hong Kong e Taiwan (onde chefiei nosso Escritório Comercial, entre 1998 e 2006). Estes viriam a tornarem-se novos “gansos” e a formar a tal “revoada” atrás dos japoneses.
O “dragão” chinês, então, não era considerado capaz de ser incluído nesta formação. As justificativas para a decolagem da China (trabalhei em Pequim entre 1982 e 85), no final do século passado, passaram a ser encontradas em ampla bibliografia sobre a questão de “valores asiáticos” e sua influência no processo dos “flying geese”. Segundo esta forma de pensar, o “hierático universo confuciano”, de origem chinesa, estaria permeando o fenômeno de crescimento da Ásia Pacífico, misturando gansos e dragão numa mesma revoada.
A partir do início do atual milênio, no entanto, o pavão indiano começou a marcar presença neste já eclético bando de aves símbolos de crescimento econômico. Na Índia, contudo, além do pavão, de pouca autonomia de voo, há, em Mumbai (onde fui Cônsul-Geral, entre 2006 e 2009), abutres, corvos e muitas - muitas mesmo - pombas que, com o comportamento errático idêntico ao dos demais habitantes do país, não obedecem a preceito confucionista algum. Tornou-se necessário, portanto, criar novo discurso ou tese, para explicar o alardeado fenômeno de emergência no Sul da Ásia.
Assim, o ex- editor da revista “Economist”, Bill Emmott, publicou o livro “Rivals – How the powerstruggle between China, India and Japan will shapeour next decade”, no qual cria abordagem inovadora para explicar a evolução dos países asiáticos, afirmando que as elites dos mesmos poderiam ser divididas entre “produtivas” e “parasitárias”.
Nessa perspectiva, ficava resolvida a questão do enquadramento do pavão no fenômeno de crescimento regional. Isto é, na sequência da produtividade das elites dos países dos gansos e do dragão, o animal indiano, agora, se veria livre de sua elite parasita.
Como observador em Mumbai, no entanto, entendi que não caberia adotar – neste universo aviário – a simples postura de um papagaio, no sentido de apenas imitar raciocínios gerados em capitais europeias e norte-americanas. A título de exercício de reflexão, buscava outros enfoques sobre o ressurgimento atual da influência de civilizações asiáticas, no cenário internacional.
A “Ásia”, a propósito, é uma expressão geográfica, onde como foi visto acima, aves de diferentes tipos são usadas como símbolos distintos. Não corresponde a uma civilização particular. Agrupamentos humanos muito variados se espalharam por seu território. Uma “civilização asiática” se apresenta, apenas, no Extremo Oriente. Naquela área, a vida humana se relaciona mais com o continente do que com o mar ou seu litoral.
Pode-se falar, no entanto, de um mundo do Oceano Pacífico e outro do Índico. Cada um destes deve ter suas aspirações estudadas separadamente. A natureza e a história concederam traços comuns a estes dois vastos conjuntos, diferenciando-os do mundo Ocidental.
No que diz respeito à China, os primórdios de sua história são marcados por sucessivas invasões de povos do Norte e Noroeste, levando ao surgimento e falência de grandes Impérios. Assim, a dinastia “Chang” floresceu no Segundo Milênio antes de Cristo, tendo sucumbido a invasores conhecidos como os “Tcheos”.
Em seguida, um novo Império se organiza, mas é tão vasto que é fracionado em principados, hostis uns aos outros. A Guerra Civil se intensifica até que uma família mais forte, a dos “Hans”, impõe sua autoridade. Os quatro séculos de paz assegurados pelos Hans são seguidos por novo período de anarquia até que veio a ser instalada a dinastia Tang ( 618-907).
Estas lutas internas, no entanto, não impediram que a China estendesse sua influência sobre a península coreana e ilhas japonesas.
Tais conflitos marcaram profundamente a mentalidade chinesa em dois aspectos principais: o camponês viveu sempre na ignorância sobre as causas dessas profundas alterações na vida política do país, enquanto consolidou completa indiferença sobre o que se passava além do seu grupo social de interesse mais próximo, isto é, a família e a aldeia; e o comércio e a agricultura se desenvolveram àmargem dos grandes movimentos políticos que sacudiram o Império chinês, através dos séculos.
O Caso da Índia
Até a chegada dos conquistadores turco-afegãos, no século XII, as sucessivas levas de invasores ou novos imigrantes que chegavam à Índia foram sendo absorvidos pelas civilizações já estabelecidas na área. Assim acontecera com gregos, hunos e diferentes grupos e tribos da Ásia Central[1].
Com turcos e afegãos, no entanto, veio novo elemento cultural que não foi absorvido pelo Hinduísmo – o Islã.
Mesmo que estas duas religiões tenham permanecido separadas e distintas a civilização que chegou à Índia com o Islã começou a influenciar todos os aspectos da vida local, criando o que alguns estudiosos chamaram de uma cultura Indo-Islâmico, particularmente no Norte do país.
Dois debates são criados, com respeito ao relacionamento entre a Índia e o Islã. O primeiro é histórico. Estudiosos ocidentais descrevem as dinastias turco-afegãs e suas sucessoras, Mughals, como o período de regência muçulmana na Índia. Outro grupo de acadêmicos discorda. Para estes, a comunidade muçulmana não exerceu poder, tendo, na verdade, o compartilhado com lideranças comunitárias locais.
O segundo debate diz respeito à teoria de que haveria duas “nações” na Índia, após a chegada do Islã àquele país. Este ponto de vista justificaria a divisão atual do subcontinente, com a criação do Paquistão.
Os que se opõem a tal interpretação assinalam que o sentimento de nacionalidade surgiu, na Índia, apenas em meados do século XIX. Havia uma elite muçulmana, naquela época, mas o país fora governado pelos ingleses.
Tais considerações podem parecer obscuras, mas conduzem ao âmago da questão da identidade indiana, na medida em que coloca o país em condição de absorver influências externas, sem perder seu sentido de identidade.
Caberia, assim, comparar as posturas chinesa e indiana, no processo de absorção de influências ocidentais, a partir do início do século XVIII, para que se chegue a critérios sobre as aspirações atuais dos dois países.
No que diz respeito à China, estes aportes do exterior ocorreram no momento em que sua civilização e sistema de governança estavam enfraquecidos. Naquele país, as pressões exercidas de fora, portanto, foram mais traumáticas do que na Índia.
No caso chinês, houve evolução no sentido a um “nacionalismo” e totalitarismo, que se fundiram durante a fase maoista. Na Índia, as influências externas levaram a tolerância quanto à diversidade cultural e a uma democracia eleitoral vigorosa.
Verifica-se, portanto, que não cessam os esforços de mistificação para explicar, com a utilização de aves simbólicas, suas revoadas e evocações a diferentes tipos de elites, o resurgimento recente da importância e influência de civilizações antigas, como a chinesa e a indiana, hoje capazes de produzir tão desejadas vacinas. Todo esse esforço buscaria explicar a padronização de aspirações de povos distintos, como resultado da globalização.
Na prática, verifica-se que a criação de uma economia global e o fortalecimento de novas tecnologias não erodiram culturas e valores locais, no chamado continente asiáticos. Pelo contrário, na medida em que as pessoas tiveram acesso a maior informação e educação, suas diferenças culturais se tornaram mais pronunciadas – não menos. Nesse processo, diferentes grupos demonstraram perseguir visões distintas de projeto nacional, assim como reagiram contra ameaças a sua identidade cultural.
Enquanto isso, ao papagaio verde e amarelo restariaconsolidar formas de interlocução com tais sociedades – ou ninhadas – multiculturais, multilíngues e multiquasetudo, consolidando heranças e posturas comuns, sem preocupação com rótulos e símbolos criados no Ocidente.
Afinal, no começo, nossa inserção internacional deu-se com a busca da “Rota das Índias” e, por influência portuguesa, costumes, crenças e saberes de origem chinesa foram introduzidos, logo no início de nossa História, na maneira brasileira de ser.
Em conclusão, este é o desafio! O que parece faltar, no momento é uma interlocução adequada, apelando para heranças comuns de identidade culturais, através de canais diplomáticos que deveriam estar consolidados, para que obstáculos burocráticos ou políticos sejam superados, com a efetivação da remessa das vacinas indiana e chinesa.Apenas telefonemas e cartas não bastam.
Paulo Antônio Pereira Pinto, Embaixador aposentado e primeiro Cônsul-Geral do Brasil em Mumbai.
[1]Keay, John. “India – A History”.
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