Como as teorias da conspiração guiam a agenda internacional de Bolsonaro
Como a cruzada contra o globalismo pauta as relações internacionais no governo Bolsonaro
Eduardo Barella
Valor Econômico | 29/1/2021, 5h
Quando candidato, Jair Bolsonaro acenou com um “novo Itamaraty” para conduzir a política externa brasileira. Parece estar cumprindo a promessa.
Em dois anos, o comando da diplomacia brasileira abandonou décadas de atuação pautada pelo multilateralismo e princípio da não ingerência, entre outras diretrizes. Bolsonaro deu o tom: discutiu com o presidente da França, Emmanuel Macron, sobre as queimadas na Amazônia; lamentou a vitória de Alberto Fernández na eleição presidencial argentina; acusou o governo chinês de disseminar o “comunavírus” e virou as costas para a ONU.
Sob tal diretriz, o “novo Itamaraty” trocou as propostas de diálogos construtivos por uma cruzada contra o chamado globalismo - para a direita radical, o conjunto de teorias conspiratórias disseminadas por agências internacionais e governos de esquerda para impor o “marxismo cultural”, em oposição aos valores patrióticos, anticomunistas e cristãos.
Um extenso levantamento feito por pesquisadores acadêmicos analisou 705 discursos e entrevistas sobre política externa dos principais integrantes do governo Jair Bolsonaro, da campanha de 2018 até julho de 2020. O mesmo foi feito com meio milhão de mensagens no Twitter postadas pela cúpula do governo e por influenciadores digitais que apoiam o presidente, mas num intervalo menor, entre dezembro de 2019 e julho de 2020.
A conclusão é de que 20% das menções da política externa brasileira sob o bolsonarismo contêm referências a teorias conspiratórias ligadas ao globalismo, algo inédito na diplomacia brasileira. Nenhum outro tema foi tão explorado pelo discurso oficial. O resultado surpreende porque teorias da conspiração não costumam fazer parte da política externa de governos, que têm a diplomacia racional como modelo predominante de narrativa.
O estudo identificou que 40% de todas as mensagens no Twitter no Brasil com teor conspiratório foram postadas por integrantes do governo, incluindo os do chamado “gabinete do ódio” - grupo de assessores responsável pelas redes sociais da Presidência.
Ou seja, além dos canais diplomáticos e oficiais, as teses conspiratórias ganharam capilaridade pela via digital e, com ajuda de influenciadores bolsonaristas, chegaram à base eleitoral do governo.
“Esses números comprovam que a política externa do bolsonarismo, do ponto de vista narrativo, está sendo pautada por uma visão de mundo antiglobalista, que, embora muita gente não tenha percebido, atende também a uma agenda interna do governo”, afirma o cientista político Feliciano de Sá Guimarães, professor do Instituto de Relações Internacionais (IRI) da Universidade de São Paulo (USP) e um dos responsáveis pelo levantamento.
“Falar mal da China, da Venezuela e da OMS ou denunciar que Macron quer invadir a Amazônia são temas internacionais que dão voto, pois passam uma mensagem de defesa de valores patrióticos”, acrescenta. O “comunavírus” seria um exemplo dessa suposta trama conspiratória globalista. A expressão se refere à narrativa de que o vírus SARS-CoV-2 foi criado em laboratório pelo governo da China com o objetivo de infectar o mundo inteiro e destruir a civilização cristã ocidental.
A pesquisa foi esmiuçada num artigo acadêmico ainda inédito, “When Conspiracy Theories Capture Foreign Policy Narratives: Jair Bolsonaro’s ‘Globalist’ Conspiracy in International Relations” (Quando teorias da conspiração capturam as narrativas de política externa: a conspiração ‘globalista’ de Jair Bolsonaro nas relações internacionais), assinado por Guimarães e três pesquisadores - Irma Dutra Gomes de Oliveira e Silva e Anna Carolina Raposo de Mello, ambas do IRI-USP; e Davi Moreira, da Fundação Getulio Vargas (FGV-SP).
Guimarães e Irma prepararam outro artigo, que deverá entrar na próxima edição da revista britânica “International Affairs”, especializada em relações internacionais, em que relacionam as principais identidades populistas de direita radical no discurso de política externa de Bolsonaro e como elas formataram a relação do Brasil com o governo Trump e a China.
“As situações apresentadas numa teoria da conspiração geralmente são simplificadas por um tripé: a identificação de um inimigo, o plano desse inimigo para dominar o mundo e a ideologia que ele quer impor”, explica Guimarães. Segundo ele, os antiglobalistas afirmam que o debate ideológico fundamental do planeta não se dá mais entre capitalismo e comunismo, e sim entre internacionalismo (que chamam de globalismo) e nacionalismo, as nações.
Vem daí a narrativa antiglobalista de que existe um complô internacional liderado por vários inimigos mesclados - o governo chinês, a ONU, a OMS, o investidor George Soros etc. - para impor o “marxismo cultural”, que nada mais seria que uma leitura enviesada da obra do filósofo marxista italiano Antonio Gramsci (1891-1937), datada dos anos 30 do século passado. Gramsci dizia que o embate dos comunistas contra os capitalistas deveria se dar também no campo da cultura e das instituições culturais. “Essa fração da extrema direita acredita que o comunismo venceu essa guerra cultural e, portanto, vai impor valores agnósticos ou ateus, antinacionalistas e anticristãos”, afirma Guimarães.
A correlação entre teorias da conspiração e globalismo no discurso bolsonarista fica evidente ao se observar como essa mensagem chega à base eleitoral do governo. Na primeira parte do levantamento foram analisados discursos, pronunciamentos, vídeos no YouTube e entrevistas sobre política externa de quatro integrantes do governo: Jair Bolsonaro (123 registros), o chanceler Ernesto Araújo (480), o assessor de política externa Felipe Martins (43) e a titular do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves (35), além do deputado federal Eduardo Bolsonaro (24), filho do presidente.
Os pesquisadores captaram características de teorias conspiratórias por meio de palavras-chave (como globalismo, China, marxismo, ONU, OMS, etc.), rodaram os dados num software e colheram revelações interessantes. O antiglobalismo, por exemplo, foi tema de apenas 1% dos discursos de política externa de Bolsonaro. “Pode parecer pouco, mas aparece em quatro discursos-chave do presidente, incluindo os dois que ele fez nas Nações Unidas”, afirma Guimarães. Já Eduardo Bolsonaro se mostrou o mais radical de todos: a narrativa conspiratória antiglobalista esteve presente em 58% de todas as suas falas de política externa.
As citações de política externa da ministra Damares, por sua vez, eram mais ligadas a temas religiosos do que ao discurso antiglobalista, o que levou os pesquisadores a dar início a uma nova pesquisa, sobre os evangélicos e a política externa. “Temos evidências de que a frente parlamentar evangélica, a Assembleia de Deus e a Igreja Universal têm pautado a narrativa de dois grandes temas de política externa brasileira: a mudança da embaixada brasileira em Israel de Tel-Aviv para Jerusalém, que ainda não ocorreu, e a criação de uma aliança internacional de países contra perseguições a minorias cristãs”, diz Guimarães. “É a primeira vez que temas religiosos e argumentos teológicos são utilizados sistematicamente no discurso da política externa brasileira”, acrescenta.
Em outra frente, no Twitter, o trabalho serviu para dimensionar a ressonância das teorias conspiratórias bolsonaristas nessa rede social. O levantamento contou com um filtro específico (limitado às expressões “globalismo” e “globalistas”), chegando a pouco mais de 552 mil tuítes.
Por meio de alguns critérios, entre eles de alcance, frequência e engajamento (incluindo postagens que foram retuitadas mais de cem vezes), os pesquisadores chegaram a uma lista dos 50 maiores influenciadores digitais antiglobalistas do bolsonarismo.
Entre os integrantes do governo aparecem Arthur Weintraub (ex-assessor da Presidência e irmão do ex-ministro Abraham Weintraub); Felipe Pedri, secretário de Comunicação Institucional do Ministério das Comunicações; e Ernesto Araújo, um grande influenciador, com 557 mil seguidores no Twitter. Os ativistas digitais, maioria na lista, incluem o perfil que se identifica como “Dom Esdras das Threads”, o jornalista Rodrigo Constantino, o deputado cassado Roberto Jefferson e notórios bolsonaristas, como Allan Santos e Sara Winter.
Guimarães chama atenção para o fato de o Twitter ser uma rede social muito usada pela elite política bolsonarista. “A hipótese especulativa é que o Twitter pauta o WhatsApp, que tem um potencial de disseminação de ideias infinitamente maior, mas é impossível de ser medido por ser fechado”, explica o acadêmico. “É raro ver policiais militares ou caminhoneiros tuitando, mas áudios e mensagens dessas lideranças que apoiam o governo têm muita capilaridade no WhatsApp.”
O levantamento também reforça a hegemonia do discurso político bolsonarista nas redes sociais, que teve início na mobilização pelos protestos de rua para o impeachment de Dilma Rousseff (PT).
Surpreso com os números, o ex-embaixador Rubens Ricupero cita um precedente histórico para alertar as demais correntes políticas sobre essa hegemonia. “Assim como o bolsonarismo está se aproveitando hoje das redes sociais, o fascismo e o nazismo, no começo do século XX, também perceberam a importância do rádio como um novo veículo de massa para atingir camponeses e operários e passar sua mensagem”, diz.
Procurado pelo Valor para comentar os dados do levantamento, o Ministério das Relações Exteriores informou, por meio de seu Departamento de Comunicação, que prefere aguardar a divulgação do estudo acadêmico para se manifestar.
A guinada da política externa brasileira sob o bolsonarismo não foi absorvida por boa parte dos integrantes e ex-integrantes do corpo diplomático do Itamaraty. Basta mencionar expressões como “globalismo” e “teoria conspiratória” para ouvir muitas reclamações.
“Eu nunca vi nada igual na nossa diplomacia, e olha que tenho 50 anos de carreira”, afirma o ex-embaixador Cesario Melantonio Neto, que antecipou a aposentadoria em dezembro de 2019, ao fim do primeiro ano do governo Bolsonaro, quando chefiava a embaixada em Atenas. Melantonio critica a relação de Bolsonaro com o agora ex-presidente Trump. “Não era de alinhamento, era de subserviência”, diz. “A gente abaixa a cabeça e ainda diz ‘I love you’? Não dá.”
Embora os diplomatas reconheçam que a política externa é sempre definida pelo presidente da República, cabendo ao chanceler cumpri-la, a atuação de Ernesto Araújo nos dois anos à frente do Itamaraty concentra boa parte das críticas. “Admito que parei de ler os discursos e os textos antiglobalistas do Araújo, dá aflição e desgosto de tão descolado da realidade”, afirma um diplomata com mais de dez anos de carreira, que ocupa uma posição intermediária na hierarquia do Itamaraty e prefere não se identificar por medo de represálias.
Ele diz que não existe mais clima entre os colegas para se discutir política. “Hoje consigo identificar quatro grupos entre os diplomatas da ativa: os que são contra e se expõem, os que são contra e se mantêm em silêncio [mas tentam conseguir um posto em que não sejam obrigados a seguir as novas diretrizes], os que flutuam de acordo com o governo, limitando-se a fazer o que lhes pedem, e, por fim, os que são alinhados e apoiam o chanceler”, revela.
Entre os diplomatas da ativa que não têm medo de se expor, o mais conhecido é o embaixador Paulo Roberto de Almeida. “Nenhum diplomata que frequentou o Instituto Rio Branco e serviu 30 anos no Itamaraty, como é o caso do Ernesto, tem o direito de ser antimultilateralista na diplomacia”, diz Almeida, que atualmente está sem cargo ou função.
Doutor em ciências sociais e autor de três livros sobre a era bolsonarista, Almeida foi demitido da diretoria do Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais após publicar críticas à política externa do governo em seu blog, Diplomatizzando. Chegou a ser transferido para a Divisão de Arquivo, no segundo subsolo do Anexo 2 do Itamaraty, onde celular e Wi-Fi não têm sinal. Almeida diz que “Trump e o Ocidente”, texto de Araújo que chamou atenção de Olavo de Carvalho, guru do bolsonarismo, conseguiu o objetivo de alçá-lo ao posto. “Metade do artigo é sobre o declínio do Ocidente, a outra metade é puro delírio olavista, juntando religião, salvação e antiglobalismo”, diz.
Pelo menos 20 diplomatas da ativa estão sem função. Há muita especulação sobre uma suposta caça às bruxas aos opositores do governo dentro do Itamaraty. Para Ricupero - autor de “A Diplomacia na Construção do Brasil - 1750-2016”, um dos livros mais abrangentes da história da diplomacia brasileira -, há uma intenção do governo Bolsonaro de implementar uma renovação nos quadros do Itamaraty.
Antes, segundo ele, os postos mais importantes, incluindo embaixadas de peso, sempre foram ocupados pelos diplomatas mais experientes. “Toda a cúpula do Itamaraty nomeada pelo Ernesto Araújo, que tem 53 anos, é da geração dele ou mais jovem. As mudanças parecem atender mais a esse objetivo”, afirma. No entanto, a insistência em adotar a narrativa antiglobalista fez Araújo perder a liderança entre os pares no Itamaraty. “Ele não é respeitado, é ridicularizado, o que é muito pior”, lamenta.
Sem Trump na Casa Branca, resta saber como ficam as relações do Brasil com os maiores parceiros comerciais, China e EUA. Para analistas, com a posse do presidente dos EUA, o democrata Joe Biden, e os constantes atritos com a China em meio ao agravamento da pandemia de covid-19, o governo deve ser pressionado a rever suas prioridades de política externa.
“Seguramente vai aumentar a pressão do setor privado, do agronegócio e da indústria para que o Brasil assuma uma posição pragmática em relação ao governo americano”, afirma o ex-embaixador Rubens Barbosa, listando alguns prováveis pontos de fricção na relação bilateral. “Na área comercial, os EUA podem suspender conversações que começaram com Trump de facilitação de comércio; na área agrícola, alguma restrição à importação de produtos brasileiros e, na área política, podem surgir atritos no âmbito da ONU, em temas como democracia e direitos humanos”, enumera.
Barbosa adverte, porém, que é preciso aguardar como Bolsonaro vai reagir à principal agenda externa de Biden: o meio ambiente. “A política ambiental americana tem como objetivo impedir o aquecimento do planeta, por isso os EUA vão voltar ao Acordo de Paris”, diz. “Não acredito que Biden tenha especificamente algo contra o Brasil, ele tem perfil pragmático, não deve propor retaliações, pois mantemos relações econômicas, comerciais e financeiras importantes com os EUA”, afirma.
Segundo ele, como o acordo União Europeia-Mercosul não deve ser ratificado em 2021 - outro fator que poderia influenciar na questão ambiental -, Bolsonaro vai ganhar tempo. “Ele pode seguir com a mesma retórica, de que é macho e não se atemorizou com o resultado da eleição americana, mas tudo vai depender das pesquisas e da pressão interna”, observa Barbosa.
Para o cientista político Guilherme Casarões, professor de relações internacionais da FGV, o discurso antiglobalista e suas teorias da conspiração atendem à estratégia populista de buscar inimigos, uma das marcas do atual governo. “Bolsonaro jamais falou em conciliação ou concessão, está o tempo todo antagonizando”, diz. “À exceção da pauta de reformas, toda a agenda do governo é negativa: é desconstruir, desinstitucionalizar, fechar o Ibama - e por aí vai.”
A sorte do presidente, segundo Casarões, é que alguns fatores econômicos internos permitiram que Bolsonaro seguisse nessa linha narrativa. “O agronegócio, por exemplo, tolerou as ‘bolsonarices’ do governo porque não teve perdas: a pandemia aumentou o preço dos alimentos, a China continuou comprando do Brasil, os mercados de soja e carne continuaram favoráveis”, diz.
Olhando para o futuro a curto prazo - os dois anos que restam do mandato de Bolsonaro -, Ricupero concorda que o isolamento do Brasil no cenário internacional tende a aumentar e pressionar internamente o presidente. “Os problemas causados pela opção pelo alinhamento com o Trump em contraposição à hostilidade com a China e ao comércio Sul-Sul com os asiáticos não chegaram a ser percebidos pela população, mas agora isso ficou mais evidente”, diz.
Ricupero diz que a questão das vacinas serve de exemplo. “Os EUA representam menos de 10% das exportações brasileiras, enquanto a China responde por cerca de 30% e, juntando com outros países da Ásia, incluindo Índia, somam 50% de nosso comércio”, diz. “Na hora que precisamos deles, para obter insumos da China e a liberação das vacinas da Índia, sentimos o que é o isolamento por causa de uma política externa equivocada.”
Para Ricupero, a pergunta a ser feita é simples: quais os custos e benefícios dessa política externa bolsonarista? “Os benefícios foram pequenos, atenderam mais ao grupo ideológico, que é apenas uma fração da base do governo, enquanto os custos, em especial os econômicos, foram elevados para vários setores, incluindo os que apoiam o presidente”, diz.
Segundo Ricupero, a política externa com viés antiglobalista do governo manchou para sempre a imagem do Itamaraty. “O dano já foi feito, não só para a diplomacia brasileira como para a noção do que o Brasil representa no cenário internacional”, diz. “Um dos componentes do respeito que sempre tivemos era a continuidade da nossa orientação diplomática, que agora foi rompida”, acrescenta. “Provavelmente vamos levar ao menos duas gerações para recuperar o prestígio.”
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