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Este blog trata basicamente de ideias, se possível inteligentes, para pessoas inteligentes. Ele também se ocupa de ideias aplicadas à política, em especial à política econômica. Ele constitui uma tentativa de manter um pensamento crítico e independente sobre livros, sobre questões culturais em geral, focando numa discussão bem informada sobre temas de relações internacionais e de política externa do Brasil. Para meus livros e ensaios ver o website: www.pralmeida.org. Para a maior parte de meus textos, ver minha página na plataforma Academia.edu, link: https://itamaraty.academia.edu/PauloRobertodeAlmeida;

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sexta-feira, 17 de março de 2017

Bob Fields, o desenvolvimentista interdependente - Sergio Eduardo Moreira Lima


‘Bob Fields’: o estigma, o diplomata e o Brasil

Artigo / SÉRGIO E. MOREIRA LIMA

Sérgio E. Moreira Lima é embaixador e presidente da Fundação Alexandre de Gusmão

O Globo, 16/03/2017


Dois momentos marcaram sua crença nas mudanças no mundo e no Brasil: o processo de integração europeia e o desenvolvimentismo de Juscelino Kubitschek

Arauto do liberalismo num Brasil marcado pela desigualdade social, paladino da convergência ideológica com os EUA num país que deveria buscar sua posição autônoma na ordem internacional são imputações a Roberto Campos. Respondem elas pelo estigma que marcou a irônica tradução para o inglês de seu nome, como forma de retirar a legitimidade de suas ideias e torná-lo estrangeiro. Essa visão dificilmente se sustentaria no tempo diante da densidade do homem e do seu compromisso com ideias, valores e com o futuro do Brasil.

Campos foi dos mais brilhantes pensadores brasileiros, um dos economistas e diplomatas mais influentes de sua geração. Suas ideias liberais sofreram críticas, que, sob o argumento nacionalista, as confundiam com atitude de “entreguismo”. Sua carreira diplomática ajudou-o na formação de sólida base acadêmica e profissional, acentuada por sua inteligência e pragmatismo. Esses atributos concorreram para o êxito de sua gestão como embaixador em Washington e fizeram com que sua contribuição fosse necessária à construção do Brasil moderno, lançando-o para além da Casa de Rio Branco, como ideólogo, ministro do Planejamento e estadista. Seu esforço tenaz foi livrar o Brasil da mediocridade e buscar na educação instrumentos de superação do subdesenvolvimento pela reestruturação econômica e institucional.

Para Campos, o Estado tornara-se demasiado grande para lidar com os pequenos problemas e demasiado pequeno para tratar das grandes questões. Revela o contraste entre o liberalismo do século XIX — com as reformas para criar riqueza via livre mercado —, com o período subsequente, “o século do coletivismo, o mais violento da história humana” e seus corolários, o dirigismo estatal e o comunismo. Conclui que a tarefa do século XXI será conciliar o mercado, no plano econômico, com a democracia, na vertente política.

Dois momentos marcaram sua crença nas mudanças no mundo e no Brasil: o processo de integração europeia e o desenvolvimentismo de Kubitschek. Manifestaria, porém, frustração, ao perceber que sua geração havia fracassado na tarefa de transformar o Brasil em potência em fins do século XX. Confessa perplexidade diante da vocação de pobreza de países ricos em recursos naturais, que, no caso brasileiro, não pode ser imposição da fatalidade. Atribui essa situação à inflação e à resistência à abertura internacional da economia brasileira.

Campos defendeu o Brasil como parte do sistema interamericano e criticou a “política externa independente”. Argumentava que a posição do Brasil não poderia ser de neutralidade, dado seu papel no sistema. Considerava que não estávamos em disponibilidade ideológica. Criticava a indiferença moral quando se contrapunham o valor supremo da liberdade e o totalitarismo.

Em sua visão, a política externa reflete opção nacional básica, que se expressava na fidelidade cultural e política ao sistema democrático ocidental, sem prejuízo da aferição de cada problema em termos de interesse nacional. Em resposta a seus críticos, Campos transcreve, em suas memórias, o trecho do discurso do presidente Castello Branco que ajudara a redigir:

“Não devemos dar adesão prévia às atitudes de qualquer das grandes potências — nem mesmo às potências guardiãs do mundo ocidental, pois que, na política externa destas, é necessário distinguir os interesses básicos da preservação do sistema ocidental dos interesses específicos de uma grande potência. (...) a política exterior é independente, no sentido de que independente deve ser, por força, a política de um país soberano. Política exterior independente, num mundo que se caracteriza cada vez mais pela interdependência dos problemas e dos interesses, significa que o Brasil deve ter seu próprio pensamento e sua própria ação, (...) não subordinados a nenhum interesse estranho ao do Brasil”.

O centenário de seu nascimento enseja reflexão sobre a importância de sua obra e análise isenta do mérito de suas ideias. Jamais podemos aceitar que o Brasil não esteja vocacionado à administração responsável e inovadora de sua abundância. Esta pôde contar com a dimensão de espaço e a diversidade de recursos naturais que representa a herança patrimonial da diplomacia brasileira, de Alexandre de Gusmão a Rio Branco.

quinta-feira, 16 de março de 2017

O Homem que Pensou o Brasil: Roberto Campos - org. Paulo R Almeida

O livro está pronto, só falta publicar (em 15 de abril):


Paulo Roberto de Almeida
(organizador)

O homem que pensou o Brasil:
trajetória intelectual de Roberto Campos


Curitiba
Editora Appris
2017

Sumário


Prefácio: o homem que pensou o Brasil
       Paulo Roberto de Almeida, 9                                                                                            

       Paulo Roberto de Almeida                                                         

A contribuição de Roberto Campos para a modernização do país
       Antonio Paim

Roberto Campos, o convívio com um estadista liberal
       Ives Gandra Martins                                                                                     

O iconoclasta planejador: Roberto Campos e a modernização do Itamaraty
       Rogério de Souza Farias                                                            

O patrimonialismo na obra de Roberto Campos
       Ricardo Vélez-Rodríguez                                                                                          

Racionalidade e autonomia em Roberto Campos
       Reginaldo Teixeira Perez                                                                                 

Roberto Campos: um economista pró-desenvolvimento econômico
       Roberto Castello Branco                                                                                   

Breve história da macroeconomia
       Rubem de Freitas Novaes                                                                

Roberto Campos na UnB: um passo para a abertura
       Carlos Henrique Cardim                                                  

No Parlamento: lucidez e coerência
       Antônio José Barbosa                                                               

Tanta lucidez assim é mitocídio: Raymond Aron e Roberto Campos como intelectuais públicos
       Paulo Roberto Kramer                                                   

Roberto Campos: uma trajetória intelectual no século XX
       Paulo Roberto de Almeida                            

Roberto Campos: obras                    
Notas sobre os autores
 
(370 p. aproximadamente)

quarta-feira, 15 de março de 2017

Roberto Campos: o democrata modernizador - Ricardo Velez-Rodriguez (OESP)

Aproveito a ocasião de postar este artigo de meu amigo Ricardo Velez-Rodríguez para informar que ele é um dos colaboradores ao livro que eu  organizei sobre a vida, a obra e o pensamento de Roberto Campos, intitulado O Homem que Pensou o Brasil (Curitiba: Editora Appris, em publicação próxima), com muitos outros artigos de colaboradores distinguidos.
Vou postar os dados desse volume neste espaço.
Paulo Roberto de Almeida


Roberto Campos (1917-2001)
Um democrata que sempre se empenhou na modernização das nossas instituições
RICARDO VÉLEZ RODRIGUEZ*
O Estado de S. Paulo, 15 Março 2017

Comemora-se este ano, no dia 17 de abril, o centenário de Roberto Campos.
A sua figura é importante no processo de redemocratização do Brasil, pois Campos conhecia em profundidade não apenas a natureza patrimonialista do Estado, como também as mudanças pelas quais o País enveredou no segundo pós-guerra, tendo participado dos esforços de modernização e democratização das nossas instituições.
Durante décadas o establishment do Itamaraty tentou riscar do mapa o embaixador Roberto Campos, porquanto representativa de um perigo para os que se haviam encastelado no regime de sesmarias ao redor de uma opção pelo “socialismo real”, após a derrota dos alemães na 2.ª Guerra Mundial. Quando nosso personagem optou por se habilitar em concurso para trabalhar no Ministério das Relações Exteriores em pleno Estado Novo, no ano de 1938, a maior parte dos diplomatas brasileiros se colocava no contexto dos interesses do Eixo. Mas quando as forças de Hitler começaram a ser derrotadas pelos Aliados na etapa final da 2.ª Grande Guerra, os diplomatas correram céleres para se arrumarem em torno dos representantes das democracias ditas “populares”, chefiadas pela antiga União Soviética. Guinada de 180 graus que, contudo, deixou intacto o dogmatismo e o gosto pelo “poder total”.
Entre os Aliados, os itamaratyanos fizeram a sua escolha: os russos, que representavam a nova força que se estabelecia no mundo, contrária aos americanos. A respeito do clima que se vivia no Ministério das Relações Exteriores no contexto dessa arrumação ideológica, escreve Roberto Campos: “O Itamaraty, situado na avenida Marechal Floriano (a antiga rua Larga de São Joaquim), era comumente apelidado de Butantã da rua Larga. São cobras, mas fingem que são minhocas – dizia-me de seus colegas o admirável Guimarães Rosa, que depois se tornaria o meu escritor preferido” (Roberto Campos, Lanterna na Popa – Memórias, Rio de Janeiro, Topbooks, 1994, pág. 31).
Roberto Campos e um grupo minoritário representaram a opção por um conceito de diplomacia afinado com a democracia ocidental e alheio à busca do “democratismo” que terminou vingando no mundo comunista. Como ele mesmo destacava, virou uma espécie de “profeta da liberdade”, à maneira, aliás, de Tocqueville, que se descrevia a si próprio como um “São João Batista que prega no deserto”. A respeito da opção liberal, frisa Roberto Campos na sua obra autobiográfica, A Lanterna na Popa: “Em nenhum momento consegui a grandeza. Em todos os momentos procurei escapar da mediocridade. Fui um pouco um apóstolo, sem a coragem de ser mártir. Lutei contra as marés do nacional-populismo, antecipando o refluxo da onda. Às vezes ousei profetizar, não por ver mais que os outros, mas por ver antes. Por muito tempo, ao defender o liberalismo econômico, fui considerado um herege imprudente. Os acontecimentos mundiais, na visão de alguns, me promoveram a profeta responsável”.
Talvez o traço mais marcante da personalidade intelectual de Roberto Campos tenha sido a capacidade de rir de si próprio, estabelecendo uma saudável relatividade nos seus pontos de vista. Definiu-se a si mesmo, no primeiro capítulo de sua autobiografia, como “analfabeto erudito”. Analfabeto em matéria de especialidades cartoriais que o habilitariam para um concurso público. Mas erudito por uma inegável formação humanística haurida no seminário, onde cursou os estudos completos de Filosofia e Teologia, além de ter recebido as ordens menores – hostiário, leitor, exorcista, acólito.
Assim, a passagem de Roberto Campos pela divisão de “secos e molhados” (nome jocoso dado pelo nosso autor à área de Assuntos Econômicos do Itamaraty) foi bastante profícua, tendo-o colocado, juntamente com Eugênio Gudin, na linha de frente da formulação das políticas econômicas, que se tornariam, após a Conferência de Bretton Woods, em 1944, a peça forte das relações diplomáticas. (Da mencionada conferência Roberto Campos participou como assessor da equipe brasileira chefiada pelo professor Gudin.)
Duas etapas podem ser reconhecidas na formação do liberalismo econômico no nosso autor: a primeira, em que a influência maior veio de Keynes, e a segunda, já derrubado o Muro de Berlim, com uma aproximação maior do pensamento da Escola Austríaca. Mas sempre mantendo atenta a vista na construção de instituições que conduzissem o Brasil ao pleno desenvolvimento econômico com preservação da liberdade.
Roberto Campos foi também um crítico do patrimonialismo. Ao meu ver, um crítico sistemático das práticas patrimonialistas com a tendência a fazer do Estado negócio familiar. Na sua última fala no Congresso Nacional, ao se despedir da vida pública, em 1999, frisou naquela bela página divulgada pelo Estadão: “ (...). Sempre achei que um dos mais graves problemas dos subdesenvolvidos é a sua incompetência na descoberta dos verdadeiros inimigos. Assim, por exemplo os responsáveis pela nossa pobreza não são o liberalismo, nem o capitalismo, em que somos noviços destreinados, e sim a inflação, a falta de educação básica e um assistencialismo governamental incompetente, que faz com que os assistentes passem melhor que os assistidos. Os inimigos do desenvolvimento não são os entreguistas, que, aliás, só poderiam entregar miséria e subdesenvolvimento, e sim os monopolistas, que cultivam ineficiências e criaram uma nova classe de privilegiados – os burgueses do Estado. Os promotores da inflação não são a ganância dos empresários ou a predação das multinacionais, e sim esse velho safado, que conosco convive desde o albor da República – o déficit do setor público” (A despedida de Roberto Campos, O Estado de S. Paulo, 31/1/1999, página A8).

* RICARDO VÉLEZ RODRIGUEZ É COORDENADOR DO CENTRO DE PESQUISAS ESTRATÉGICAS DA UFJF, PROFESSOR EMÉRITO DA ECEME, DOCENTE DA FACULDADE ARTHUR THOMAS, EM LONDRINA E-MAIL: RIVE2001@GMAIL.COM

terça-feira, 28 de fevereiro de 2017

Roberto Campos: o profeta responsavel

Acabo de colocar um ponto (provavelmente não final) em um longo (140 p.) ensaio de história das ideias de Roberto Campos.
Abaixo apenas o "Índice" do ensaio.


Roberto Campos: uma trajetória intelectual no século 20

Paulo Roberto de Almeida
(Brasília, 28/02/2017, 140 p.)

1. Turgot e Campos: dois economistas, separados no tempo, unidos nas ideias
2. As ideias movem o mundo? Provavelmente sim, para Roberto Campos

Primeira Parte: No Estado, pelo Estado, com o Estado
3. O seminarista literário se torna um economista prático
4. Do economista improvisado ao administrador pragmático
5. A irresistível ascensão do diplomata tecnocrata
6. A economia brasileira guiada pela mão do Estado
7. A produção intelectual a favor do ativismo estatal
8. Dos bastidores ao palco: o homem público se torna um estadista
9. No olho do furacão: o estadista em ação, no planejamento estatal
10. O articulista erudito a serviço da razão de Estado

Segunda Parte: Fora do Estado, sem o Estado, contra o Estado
11. Do “executivo imaginoso” ao “pregador missionário”
12. O diplomata “herege”, do “outro lado da cerca”, nadando “contra a maré”
13. O “herege diplomata” em licença, e no limbo, do Itamaraty
14. A produção intelectual, entre a academia e a tecnocracia
15. De volta às lides diplomáticas, na Corte de Saint James
16. O “herege diplomata” é sabotado no caminho da ministrança
17. A produção intelectual na terra dos grandes economistas
18. De tecnocrata a político: a ética da convicção, num país anti-weberiano
19. Do fracasso na política ao sucesso como publicista erudito

20. À guisa de conclusão: o profeta do planejamento utópico do futuro

Referências bibliográficas

sábado, 25 de fevereiro de 2017

Reescrevendo a historia: o fracasso monumental da Petrossauro - Roberto Campos

Preciso comentar? Acho que não. Só não sei porque ainda não se discute seriamente a questão da privatização completa desse ente deficitário e antro de corrupção que se chama Petrobras.
Paulo Roberto de Almeida

REESCREVENDO A HISTÓRIA...
Roberto Campos
Jornal do Comércio,  21/03/1999

Quando for escrita a história econômica do Brasil nos últimos 50 anos, várias coisas estranhas acontecerão. A política de autonomia tecnológica em informática, dos anos 70 e 80, aparecerá como uma solene estupidez, pois significou uma taxação da inteligência e uma subvenção à burrice dos nacionalistas e à safadeza de empresários cartoriais. Campanhas econômico-ideológicas como a do "o petróleo é nosso" deixarão de ser descritas como uma marcha de patriotas esclarecidos, para ser vistas como uma procissão de fetichistas anti-higiênicos, capazes de transformar um líquido fedorento num unguento sagrado. Foi uma "passeata da anti-razão" que criou sérias deformações culturais, inclusive a propensão funesta às "reservas de mercado".

A criação do monopólio estatal de 1953 foi um pecado contra a lógica econômica. Precisamente nesse momento, o ministro da Fazenda, Oswaldo Aranha, mendigava um empréstimo de US$ 300 milhões ao Eximbank, para cobertura de importações correntes (inclusive de petróleo). A ironia da situação era flagrante: de um lado, o país mendigava capitais de empréstimos que agravariam sua insolvência, de outro, pela proclamação do monopólio estatal, rejeitava capitais voluntários de risco. Ao invés de sócios complacentes (cuja fortuna dependeria do êxito do país), preferíamos credores implacáveis (que exigiriam pagamento, independentemente das crises internas). Esse absurdo ilogismo levou Eugene Black, presidente do Banco Mundial, a interromper financiamentos ao Brasil durante cerca de dez anos (com exceção do projeto hidrelétrico de Furnas, financiado em 1958). Houve outros subprodutos desfavoráveis.

Criou-se uma cultura de "reserva de mercado", hostil ao capitalismo competitivo. Surgiu uma poderosa burguesia estatal que, protegida da crítica e imune à concorrência, acumulou privilégios abusivos em termos de salários e aposentadorias. Criou-se uma falsa identificação entre interesse da empresa e interesse nacional, de sorte que a crítica de gestão e a busca de alternativas passaram a ser vistas como traição ou impatriotismo.  Vistos em retrospecto, os monopólios estatais de petróleo, que se expandiram no Terceiro Mundo nas décadas de 60 e 70, longe de representarem um ativo estratégico, tornaram-se um cacoete de países subdesenvolvidos na América Latina, África e Médio Oriente. Nenhum país rico ou estrategicamente importante, nem do Grupo dos 7 nem da OCDE, mantém hoje monopólios estatais, o que significa que os monopólios não são necessários nem para a riqueza nem para a segurança estratégica.

Essas considerações me vêm à mente ao perlustrar os últimos relatórios da Petrossauro. Ao contrário de suas congêneres terceiro-mundistas, que são vacas-leiteiras dos respectivos Tesouros, a Petrossauro sempre foi mesquinha no tratamento do acionista majoritário. Tradicionalmente, a remuneração média anual do Tesouro, sob a forma de dividendos líquidos, não chegou a 1% sobre o capital aplicado. Após a extinção de jure do monopólio, em 1995 (ele continua de facto), e em virtude da crítica de gestão e da pressão do Tesouro falido, os dividendos melhoraram um pouco, ma non troppo. Muito mais generoso é o tratamento dado pela Petrossauro à Fundação Petros, que representa patrimônio privado dos funcionários.

A empresa é dessarte muito mais um instituto de previdência, que trabalha para os funcionários, do que uma indústria lucrativa, que trabalha para os acionistas. Aliás, é duvidoso que a Petrossauro seja uma empresa lucrativa. Lucro é o resultado gerado em condições competitivas. No caso de monopólios, é melhor falar em resultados. Quanto à Petrossauro, se fosse obrigada a pagar os variados tributos que pagam as multinacionais aos países hospedeiros-bônus de assinatura, royalties polpudos, participação na produção, Imposto de Renda e importação - teria que registrar prejuízos constantes, pois é alto seu custo de produção e baixa sua eficiência, quer medida em barris/dia por empregado, quer em venda anual por empregado.

Examinados os balanços de 1995 a 1998, verifica-se que o somatório dos dividendos ao Tesouro (pagos ou propostos) alcançam R$ 1,606 bilhão enquanto que as doações à Petros atingiram 2,054 bilhões.

Considerando que o Tesouro representa 160 milhões de habitantes e vários milhões de contribuintes, enquanto que a burguesia do Estado da Petrossauro é inferior a 40 mil pessoas, verifica-se que é o contribuinte que está a serviço da estatal e não vice- versa.

Nota-se hoje no Governo uma perigosa tendência de postergação das privatizações seja na área de petróleo, seja na área financeira, seja na eletricidade. É um erro grave, que põe em dúvida nosso sentido de urgência na solução da crise e nossa percepção dos remédios necessários. A privatização não é uma opção acidental nem coisa postergável, como pensam políticos irrealistas e burocratas corporativistas. É uma imposição do realismo financeiro. Há duas tarefas de saneamento imprescindíveis. A primeira consiste em deter-se o "fluxo" do endividamento (o objeto mínimo seria estabilizar-se a relação endividamento/PIB). Essa é a tarefa a ser cumprida pelo ajuste "fiscal".  A segunda consiste em reduzir-se o estoque da dívida. Esse o objetivo da reforma "patrimonial", ou seja, a "privatização".

Não se deve subestimar a contribuição potencial da reforma patrimonial para a solução de nosso impasse financeiro. Tomemos um exemplo simplificado.

Apesar da crise das Bolsas, a venda do complexo Petrossauro-BR Distribuidora poderia gerar uma receita estimada em R$ 20 bilhões. Considerando-se que a rolagem da dívida está custando ao Tesouro 40% ao ano, uma redução do estoque em R$ 20 bilhões, representaria uma economia em curto prazo de R$ 8 bilhões. Isso equivale a aproximadamente 20 anos dos dividendos pagos ao Tesouro pela Petrossauro na média do período 1995-1998 (a média anual foi de R$ 401,7 milhões).

Se aplicarmos o mesmo raciocínio à privatização de bancos estatais e empresas de eletricidade, verificaremos que a solvência brasileira dificilmente será restaurada pela simples reforma fiscal. Terá que ser complementada pela reforma patrimonial.  É perigosa complacência a atitude governamental de que a reforma fiscal é urgente e a reforma patrimonial postergável. É dessas complacências e meias medidas que se compõe nossa lamentável, repetitiva e humilhante crise existencial.

sexta-feira, 6 de janeiro de 2017

Ainda Roberto Campos, com Marx e Hayek, discutindo a politica companheira - Paulo Roberto de Almeida

Este artigo é também sobre Roberto Campos, no terceiro ano de sua morte, batendo um papinho sobre as políticas econômicas companheiras com dois colegas economistas:


1333. “O que Roberto Campos estaria pensando da política econômica?”, Brasília, 30 setembro 2004, 4 p. Ensaio colocando RC em conversa com Keynes, Hayek e Marx, no limbo, a propósito do terceiro ano de sua morte. Preparada versão reduzida, sob o título de “O que Roberto Campos pensaria da política econômica”, publicada no O Estado de São Paulo (sábado, 9/10/2004, caderno Econômico, p. B2). Reproduzido in totum no site do jornalista Diego Casagrande (Porto Alegre: 8/11/2004) e no site do Ministério do Planejamento. Relação de Publicados n. 498.


O que Roberto Campos estaria pensando da política econômica?

Paulo Roberto de Almeida
Preparada versão reduzida, sob o título
“O que Roberto Campos pensaria da política econômica”,
publicada no caderno econômico d’O Estado de São Paulo
(Sábado, 9 de outubro de 2004, p. B2;
Relação de Publicados nº 471.

No dia 9 de outubro se estará ultrapassando a marca dos três primeiros anos do falecimento, em 2001, do diplomata, economista, administrador público, político e pensador Roberto Campos, que foi também um comentarista cáustico e voluntariamente impiedoso de nossas (ir)realidades quotidianas e bizarrices institucionais. Infelizmente para nós (mas talvez felizmente para os seus adversários “filosóficos”), ele não viveu o suficiente para assistir, a partir de 2002, a uma das mais formidáveis revoluções intelectuais já registradas em toda a história do Brasil: nada mais, nada menos do que a incrível conversão da água em vinho, isto é, a transformação do antigo partido adepto das rupturas econômicas – e propenso a fazer passar as “prioridades sociais” antes do respeito aos contratos da dívida – em um grupo comprometido com a responsabilidade fiscal, com a boa gestão das contas públicas e, surpresa das surpresas, com a aceitação decidida e consentida, não só da renovação do acordo de assistência financeira com o FMI, como também das condicionalidades associadas ao seu “menu” de política econômica (mais parecido a um regime de emagrecimento do que a uma churrascaria rodízio).
O que estaria pensando de tudo isso o iconoclasta, irônico e irreverente Roberto Campos? O que estaria escrevendo a respeito da atual política econômica o mais arguto dos polemistas brasileiros contemporâneos, o homem a quem seus inimigos políticos teimavam em chamar de “Bob Fields”, como se ele fosse menos patriota ou menos comprometido com o interesse nacional do que aqueles que o provocavam com slogans mal concebidos, mas que hesitavam em (ou simplesmente evitavam) enfrentá-lo num debate aberto e responsável sobre esses temas candentes da atualidade econômica?
Onde quer que ele possa estar no presente momento – e eu o imagino no limbo econômico das soluções imperfeitas, como compete a todos os partidários da disciplina da escassez, esses adeptos realistas da “ciência lúgubre”, sentado confortavelmente à esquerda de Hayek e à direita de Keynes –, ele deve estar soltando gostosas gargalhadas, comentando com seus incrédulos parceiros essa verdadeira “reversão de expectativas” a que o Brasil assistiu nos últimos dois anos e meio. Vamos imaginar um possível diálogo entre os três, com algumas rápidas incursões por parte de Marx (também, e mais do que nunca, no limbo) e uma única e breve intervenção do seu discípulo russo, Vladimir Ulianov, em férias de paragens mais quentes.
Roberto Campos, que nasceu no mesmo ano da revolução bolchevique, não teria perdido a oportunidade para, em primeiro lugar, espicaçar este último e provocar o filósofo alemão, cujas doutrinas serviram de inspiração para a mais desastrada tentativa de superar os limites estreitos da escassez econômica em nome de uma suposta gestão socialista das forças produtivas. “O que você está achando da ‘nova política econômica’ Vladimir?”, perguntaria ele, para ouvir o outro resmungar ressabiado: “Os companheiros assumiram numa situação de verdadeira guerra econômica, pois os especuladores de Wall Street e os sabotadores internos queriam a derrocada imediata do novo governo. Eles precisaram, temporariamente, compor com as forças do mercado e com os banqueiros gananciosos, mas ainda guardam munição para combater a exploração capitalista e a opressão burguesa. Espere para ver.”
Sem esperar pelo resto, Roberto Campos dirigiu-se de maneira não menos provocadora ao autor do Capital,: “Você acha mesmo, Karl, que nossos amigos saberão construir a sociedade ideal, na qual cada um contribuirá na medida de suas capacidades e cuja distribuição se fará segundo as necessidades de cada um de seus membros?” “Mas isto não é para agora, seu capitalista utópico”, respondeu o filósofo da mais valia, “e sim para a etapa comunista da revolução brasileira, isto é, para a última e derradeira fase da construção socialista. Por enquanto, até eu recomendaria uma política de transição e uma acomodação com os mercadores do templo, isto é, os donos do capital. De toda forma, ainda estamos no começo: não se esqueça que no Manifesto de 1848 eu preconizava primeiro o aprofundamento da globalização capitalista. Estou satisfeito com o que estou vendo: o novo governo caminha a passos rápidos no processo de internacionalização das empresas brasileiras, contribuindo com a missão histórica da rápida universalização do modo capitalista de produção. O socialismo está ao alcance da mão.”
Marx recebeu a surpreendente adesão do liberal Hayek, que também achava que o governo tinha tomado o caminho da servidão, construindo as bases da mesma economia coletivista que um dia tragou sua querida Áustria, sob a forma do dirigismo nazista, assim como a Rússia, sob a economia totalmente estatizada dos bolchevistas. “E o senhor, Herr Campos, não está preocupado ao ver a atual orientação do Brasilianische economik Regierung?”, indagou ele, com o semblante carregado. “De fato, meu caro Friedrich”, comentou Campos, “vários dos membros da nomenklatura tropical padecem de incurável nostalgia em relação aos antigos tempos revolucionários. Mas isso justamente não ocorre com das Finanz Ministerium de Herr Palocci: sua Realeconomik não causaria nenhum tipo de constrangimento ao seu amigo Friedman, de Chicago. Ele até agora se guiou pelo mais retos princípios do Ideal Liberalismus e estou certo de que ouviria com prazer algumas de suas receitas práticas sobre como escapar da servidão, hoje representada por um Estado economicamente opressor da liberdade de empreender, tão bem defendida em sua obra.”
Enquanto Hayek se deleitava ao ouvir essas palavras, Keynes fazia tilintar de impaciência o gelo de seu legítimo scotch, atacando sem mais esperar: “Mas esse doutor em medicina poderia ter evitado o amargo purgante de uma tão inútil quanto cruel recessão, se tivesse seguido uma das receitas da Teoria Geral, que recomendava injeções fiscais anti-cíclicas para poupar os Brazilian workers do desemprego e da perda do poder de compra. Ele precisava ter assegurado a demanda agregada, bem como o nível das despesas públicas, e deveria ter reintroduzido os controles de capitais, evitando a todo custo cair nas mãos daqueles fundamentalistas do FMI”.
“Você está mal informado, Maynard”, retrucou Campos, que tinha intimidade suficiente com o inglês para chamá-lo pelo seu nome do meio. “O Estado brasileiro não consegue sequer assegurar um dedal orçamentário para a recuperação das esburacadas estradas federais, quanto mais essa injeção fiscal que você recomenda para estimular a demanda agregada. O que ele faz, de um lado, é uma oferta desagregada de promessas insustentáveis de crescimento, ao mesmo tempo em que retira, por outro lado, as poucas poupanças da sociedade, pela mão de uma máquina de arrecadação mais ameaçadora do que um dreadnought britânico.” Antes que Keynes formulasse novas recomendações de política econômica a partir das idéias de algum economista morto, Campos completou, com a mais fina ironia britânica: “As conseqüências econômicas de mister Palocci são, em todo caso, menos perigosas do que as recomendações bizarras dos seus discípulos no Brasil, que pretendem dar cabo de algo que nunca existiu em meu país: o liberalismo econômico. Francamente, Maynard, eles estão completamente out of touch! Passe o gelo, por favor, e se puder a sua garrafa também.”
Virando-se novamente para Hayek, Campos aduziu com um sorriso maroto: “Não aconteceu em minha vida, mas eu ainda vou assistir, no Brasil, aqui do alto, à mais incrível revolução capitalista que se poderia esperar de um antigo líder socialista radical.” Tendo Marx justificado que isso talvez representasse alguma necessidade histórica da fase de transição para o capitalismo globalizado – que, afinal de contas, tinha tido sua marcha interrompida por setenta anos de tropeços socialistas –, Campos concluiu, rendendo uma homenagem à prosa barroca do Manifesto: “Eu também acho Karl: os seus amigos ex-socialistas, hoje neocapitalistas, não têm mais nada a perder, senão os grilhões mentais que os prendem às velhas soluções estatizantes de um passado tão mítico quanto, hoje em dia, inexeqüível. Esses grilhões mentais precisam ser rompidos e eles serão rompidos”. E dirigindo-se a ambos: “Vamos brindar com um gole de Schnaps a esta revolução burguesa tropical?”

Paulo Roberto de Almeida é doutor em ciências sociais, mestre em planejamento econômico e professor universitário.
(pralmeida@mac.com; www.pralmeida.org)


Versão publicada:

O Estado de São Paulo, Sábado, 9 de outubro de 2004
O que Roberto Campos pensaria da política econômica?
ENTRE HAYEK E KEYNES, HERR CAMPOS ESTARIA RINDO DA REVERSÃO DE EXPECTATIVAS VISTA NO BRASIL

(Subtítulo da edição impressa do jornal: “Diálogo de mortos: de Marx, Keynes, Hayek e Campos sobre o Brasil de Lula)

PAULO ROBERTO DE ALMEIDA


No dia 9 de outubro se completam três anos do falecimento, em 2001, do diplomata, economista, administrador público, político e pensador Roberto Campos, que foi também um comentarista cáustico e impiedoso de nossas bizarrices institucionais. O que estaria pensando o iconoclasta, irônico e irreverente Roberto Campos a respeito da política econômica do atual governo?
Onde estará ele no presente momento? Eu o imagino no limbo econômico das soluções imperfeitas, no purgatório da disciplina da escassez, na companhia de adeptos da "ciência lúgubre", sentado à esquerda de Hayek e à direita de Keynes, soltando gargalhadas a propósito da "reversão de expectativas" a que o Brasil assistiu nos últimos dois anos.
Roberto Campos não perderia a oportunidade para provocar o filósofo alemão cujas doutrinas serviram de inspiração para os propositores de uma "nova política econômica": "Você acha, Karl, que nossos amigos saberão construir a sociedade ideal, na qual cada um contribuirá na medida de suas capacidades e cuja distribuição se fará segundo as necessidades de cada um de seus membros?" "Isto não é para agora, seu capitalista utópico", responde o filósofo da mais-valia, "e sim para a etapa comunista, para a última fase da construção socialista. Por enquanto, até eu recomendo uma política de transição e uma acomodação com os donos do capital. No Manifesto de 1848 eu preconizava primeiro o aprofundamento da globalização capitalista. Estou satisfeito com o novo governo: ele promove a internacionalização das empresas brasileiras, ajudando na missão histórica da rápida universalização do modo capitalista de produção. O socialismo está ao alcance da mão."
Marx recebeu a surpreendente adesão do liberal Hayek, que também achava que o governo tinha tomado o caminho da servidão. "E o senhor, Herr Campos, não está preocupado com a orientação do Brasilianische economik Regierung?", indagou com o semblante carregado. "De fato, meu caro Friedrich", comentou Campos, "vários dos membros deste governo padecem de nostalgia em relação aos tempos revolucionários. Mas isso não ocorre com das Finanz Ministerium de Herr Palocci: sua Realeconomik não causaria nenhum constrangimento ao seu amigo Milton Friedman. Ele até agora se guiou pelos retos princípios do Ideal Liberalismus e estou certo de que ouviria com prazer suas receitas sobre como escapar da servidão, hoje representada por um Estado economicamente opressor da liberdade de empreender."
Enquanto Hayek se deleitava ao ouvi-lo, Keynes fazia tilintar o gelo de seu scotch, atacando sem mais esperar: "Mas esse doutor em Medicina poderia ter evitado o purgante de uma cruel recessão, se tivesse seguido as receitas da Teoria Geral, que recomenda injeções fiscais anticíclicas para poupar os Brazilian workers do desemprego. Ele precisa assegurar a demanda agregada e o nível das despesas públicas, além de controlar os capitais, evitando cair nas mãos dos fundamentalistas do FMI."
"Você está mal informado, Maynard", retrucou Campos, que tinha intimidade com o inglês para chamá-lo pelo nome do meio. "O Estado brasileiro não consegue sequer manter as estradas federais, quanto mais fazer essa injeção fiscal para estimular a demanda agregada. O que ele faz é uma oferta desagregada de promessas insustentáveis de crescimento, ao mesmo tempo em que retira a poupança da sociedade, usando uma máquina de arrecadação mais ameaçadora do que um dreadnought britânico." Antes que Keynes formulasse novas recomendações de política econômica a partir das idéias de algum economista morto, Campos completou, com a mais fina ironia britânica: "As conseqüências econômicas de mister Palocci são, em todo caso, menos perigosas do que as recomendações bizarras dos seus discípulos no Brasil, que pretendem dar cabo de algo que nunca existiu em meu país: o liberalismo econômico. Francamente, Maynard, eles estão completamente out of touch!
Passe o gelo, por favor, e a garrafa também."
Virando-se para Hayek, Campos aduziu com um sorriso maroto: "Não aconteceu em minha vida, mas ainda vou assistir, no Brasil, à mais incrível revolução capitalista que se poderia esperar de um antigo líder socialista." Tendo Marx justificado que isso era uma necessidade histórica da transição para o capitalismo globalizado - que tinha tido sua marcha interrompida por 70 anos de tropeços socialistas -, Campos concluiu, rendendo uma homenagem à prosa barroca do Manifesto: "Eu também acho Karl. Os seus amigos ex-socialistas, hoje neocapitalistas, não têm mais nada a perder, senão os grilhões mentais que os prendem às velhas soluções estatizantes de um passado tão mítico quanto, hoje em dia, inexeqüível. Esses grilhões mentais precisam ser rompidos e eles serão rompidos." E dirigindo-se a ambos: "Vamos brindar com um gole de Schnaps a esta revolução burguesa tropical?"

E por falar em Roberto Campos: fazendo falta no debate de ideias - Paulo Roberto de Almeida

Dois anos depois do falecimento de Roberto Campos, eu publicava um artigo em sua homenagem:

1128. “Roberto Campos: dois anos sem bons combates de ideias”, Washington, 2 outubro 2003, 3 p. Artigo em homenagem a Roberto Campos, por ocasião da passagem do segundo aniversário de sua morte, em 9/10/2001. Publicado no Jornal do Brasil (6.10.2003, Seção Opinião). Relação de Publicados n. 448.


Roberto Campos: dois anos sem bons combates de idéias

Paulo Roberto de Almeida
Jornal do Brasil (6.10.2003, Seção Opinião)

Dia 9 de outubro marca a passagem do falecimento, em 2001, de Roberto Campos, seminarista, diplomata, economista teórico, burocrata, economista prático – dirigente do primeiro órgão público de planejamento econômico no Brasil, o BNDE –, professor, empresário, embaixador, ministro de Estado, diretor de banco de investimento, articulista, embaixador, político, parlamentarista monarquista e aposentado, nessa ordem. Se não bastassem todas essas atividades públicas, e não considerando seu apego a alguns dos prazeres da vida, ele ainda seria um dos mais importantes representantes de uma espécie em desaparecimento no Brasil: o tecnocrata de alto coturno, não apenas um técnico, mas um verdadeiro conselheiro do Príncipe, um insigne pensador e formulador de políticas, um tomador de decisões, um reformista radical, um hábil articulista, um polemista, enfim, um sábio.
São poucos os que podem ser igualados a esse genial “policrata”, uma mistura de político e tecnocrata, como ele mesmo se definia, que ademais de todas as suas muitas qualidades sabia também ser um frasista e um humorista sem igual, inventando “leis” que tinham, em alguns casos, alcance universal, mas que no mais das vezes eram o resultado obrigatório de suas conclusões lógicas a partir de uma realidade econômica e política brasileira propriamente surrealista. Com todo o seu espírito crítico, sua pena afiada e suas reações rápidas e desconcertantes, ele conseguia ser mais inovador e criativo do que essa mesma realidade de um Brasil sempre surpreendente, tanto para o mais pacato dos economistas, como para o mais afoito dos revolucionários. De fato, Roberto Campos, popularmente conhecido como “Bob Fields” durante minha juventude, nunca perdeu um debate para ninguém, mas ele devia se confessar uma frustração: perdeu para o Brasil, esse gigante desengonçado que desarma o mais agudo espírito cartesiano.
Roberto Campos atravessou por inteiro um breve século XX que começou com o fim do laissez-faire e o começo do socialismo real – nasceu durante a Primeira Grande Guerra, no ano da revolução bolchevique – e terminou com o fim do mesmo sistema que interrompeu, por um “breve” período de apenas setenta anos, o processo de globalização capitalista que já tinha sido analisado por Marx no Manifesto de 1848. Ele assistiu à derrota ideológica, econômica e prática de um sistema que, como ele mesmo alertou ainda em sua fase triunfante, tentou distribuir riquezas com uma incompetência ímpar, quando comparado a todos os outros modos de produção. Ele só não assistiu à vitória do bom senso, em favor do qual ele clamou durante três ou quatro repúblicas brasileiras e mais de uma dúzia de governos, aos quais ele serviu, criticou e tentou ajudar.
Roberto Campos deve ter descoberto que o bom senso é a coisa mais difícil de ser alcançada, num mundo que só conheceu o fim das ideologias, das religiões ou da própria história nos escritos dos intelectuais. Fundamentalismos de todos os gêneros, sobretudo econômicos e políticos, se encarregam de enterrar as ilusões de todos aqueles que, como ele, acreditaram ser possível, um dia, fundar as políticas públicas sobre um modesto conjunto de regras simples e auto-evidentes: a escassez dos recursos, o caráter inelástico dos orçamentos, a necessidade de fazer as escolhas dotadas de maior liberdade e de concorrência em mercados semi-livres, os limites do distributivismo, do emissionismo e da regressividade, a preferência pelo multiplicador, em lugar do divisor (daí a insistência no controle de natalidade), enfim, umas poucas verdades que deveriam ser de ampla aceitação entre pessoas medianamente bem informadas como são os políticos, mas que padecem terrivelmente nas mãos de “planejadores sociais” animados do desejo de “fazer o bem” com o dinheiro dos outros.
Parece incrível que com toda a sua prolífica produção de textos, idéias, aforismas, artigos polêmicos e estudos sérios, Roberto Campos só tenha sido objeto de dois livros algo desiguais: um estudo muito bem embasado sobre o seu “pensamento político” (por Reginaldo Teixeira Perez; Editora FGV) e um outro sobre sua própria vida e “tiradas” geniais (o “retrato” de Olavo Luz; Editora Campus), além de exposições e análises em obras de caráter geral (como em Bielschowsky). Talvez as suas volumosas memórias tenham intimidado eventuais candidatos, mas nada justifica que ele permaneça sem um livro de depoimentos e um outro de excertos de suas obras (como se fez recentemente para Mário Henrique Simonsen, por exemplo).
Num país que possui mais editoras do que livrarias, não deveria portanto ser difícil de encontrar um editor inteligente – a começar pelo que “obrigou” Roberto Campos a terminar suas memórias – que se dispusesse a editar um volume de testemunhos e estudos analíticos sobre sua obra e um outro de textos escolhidos dentre as dezenas de escritos inteligentes que ele produziu ao longo de uma vida útil que se estende do começo da ditadura Vargas até o final de uma ditadura ainda mais ampla, a das falsas idéias. Nem todas ele conseguiu eliminar com sua pena acerada e língua rápida, mas ele pelo menos forneceu princípios claros e raciocínios diretos a todos aqueles dispostos a aprender a partir da experiência pessoal, de alguma matemática elementar e da simples observação da realidade ambiente, como aliás este que aqui escreve. Roberto Campos foi provavelmente mais atacado do que incensado, num país que ainda ostenta economistas macunaímicos, como talvez ele dissesse, com sua irreverência sempre em riste.
Sim, confesso que fui um daqueles muitos que, no frescor da militância juvenil, se compraziam em chamá-lo de “Bob Fields” e em considerá-lo um “entreguista” a serviço de uma ditadura militar comprometida com o grande capital monopolista internacional. Quanta bobagem podia se abrigar nas mentes e escritos de “solucionistas” ideológicos, como éramos todos aqueles que pretendiamos escapar da aridez pouco complacente da “ciência lúgubre”, em favor de duas ou três receitas de “desenvolvimentismo acelerado”. Aliás, ainda pode. Mas, confesso também que, entre a leitura árida do PAEG, nos meus dezesseis anos incompletos, e o sabor de seus artigos cortantes no Estadão, eu aprendi muito rapidamente a respeitar um “adversário” que me ensinou os primeiros rudimentos de economia (e de lógica “sociológica”). Por isso mesmo, o retorno a alguns dos textos desse humanista tecnocrático e humorístico talvez nos ajudasse a atravessar, sem muitos desgastes, uma nova fase de transição entre algumas poucas verdades incertas de um passado ainda recente e um presente animado por algumas grandes certezas de um passado não muito remoto, mas que não quer passar.
A racionalidade iconoclástica de Roberto Campos anda fazendo falta. Onde está o editor que poderia trazer de volta uma nova lufada de brisa inteligente ao atual pântano (ou deserto, como queiram) de idéias curtas e soluções rápidas? Que venha o Festschrift, o Mélanges, um In praise of Roberto Campos, com todas as orientações econômicas e políticas a que ele teria direito em vida: ele adoraria assistir a mais algumas polêmicas em torno de suas idéias: E provavelmente continuaria corrigindo admiradores e adversários com seus argumentos de puro bom senso, como só cabe aos grandes pensadores.

Paulo Roberto de Almeida, sociólogo, diplomata.
(www.pralmeida.org)