Dois anos depois do falecimento de Roberto Campos, eu publicava um artigo em sua homenagem:
1128. “Roberto
Campos: dois anos sem bons combates de ideias”, Washington, 2 outubro 2003, 3 p.
Artigo em homenagem a Roberto Campos, por ocasião da passagem do segundo
aniversário de sua morte, em 9/10/2001. Publicado no Jornal do Brasil (6.10.2003, Seção Opinião). Relação de Publicados n. 448.
Roberto Campos: dois anos sem bons combates de
idéias
Paulo Roberto de
Almeida
Jornal do Brasil (6.10.2003, Seção Opinião)
Dia
9 de outubro marca a passagem do falecimento, em 2001, de Roberto Campos,
seminarista, diplomata, economista teórico, burocrata, economista prático –
dirigente do primeiro órgão público de planejamento econômico no Brasil, o BNDE
–, professor, empresário, embaixador, ministro de Estado, diretor de banco de
investimento, articulista, embaixador, político, parlamentarista monarquista e
aposentado, nessa ordem. Se não bastassem todas essas atividades públicas, e
não considerando seu apego a alguns dos prazeres da vida, ele ainda seria um
dos mais importantes representantes de uma espécie em desaparecimento no
Brasil: o tecnocrata de alto coturno, não apenas um técnico, mas um verdadeiro
conselheiro do Príncipe, um insigne pensador e formulador de políticas, um
tomador de decisões, um reformista radical, um hábil articulista, um polemista,
enfim, um sábio.
São
poucos os que podem ser igualados a esse genial “policrata”, uma mistura de
político e tecnocrata, como ele mesmo se definia, que ademais de todas as suas
muitas qualidades sabia também ser um frasista e um humorista sem igual,
inventando “leis” que tinham, em alguns casos, alcance universal, mas que no
mais das vezes eram o resultado obrigatório de suas conclusões lógicas a partir
de uma realidade econômica e política brasileira propriamente surrealista. Com
todo o seu espírito crítico, sua pena afiada e suas reações rápidas e desconcertantes,
ele conseguia ser mais inovador e criativo do que essa mesma realidade de um
Brasil sempre surpreendente, tanto para o mais pacato dos economistas, como
para o mais afoito dos revolucionários. De fato, Roberto Campos, popularmente
conhecido como “Bob Fields” durante minha juventude, nunca perdeu um debate
para ninguém, mas ele devia se confessar uma frustração: perdeu para o Brasil,
esse gigante desengonçado que desarma o mais agudo espírito cartesiano.
Roberto
Campos atravessou por inteiro um breve século XX que começou com o fim do laissez-faire e o começo do socialismo
real – nasceu durante a Primeira Grande Guerra, no ano da revolução bolchevique
– e terminou com o fim do mesmo sistema que interrompeu, por um “breve” período
de apenas setenta anos, o processo de globalização capitalista que já tinha
sido analisado por Marx no Manifesto
de 1848. Ele assistiu à derrota ideológica, econômica e prática de um sistema
que, como ele mesmo alertou ainda em sua fase triunfante, tentou distribuir
riquezas com uma incompetência ímpar, quando comparado a todos os outros modos
de produção. Ele só não assistiu à vitória do bom senso, em favor do qual ele
clamou durante três ou quatro repúblicas brasileiras e mais de uma dúzia de
governos, aos quais ele serviu, criticou e tentou ajudar.
Roberto
Campos deve ter descoberto que o bom senso é a coisa mais difícil de ser
alcançada, num mundo que só conheceu o fim das ideologias, das religiões ou da
própria história nos escritos dos intelectuais. Fundamentalismos de todos os
gêneros, sobretudo econômicos e políticos, se encarregam de enterrar as ilusões
de todos aqueles que, como ele, acreditaram ser possível, um dia, fundar as
políticas públicas sobre um modesto conjunto de regras simples e
auto-evidentes: a escassez dos recursos, o caráter inelástico dos orçamentos, a
necessidade de fazer as escolhas dotadas de maior liberdade e de concorrência
em mercados semi-livres, os limites do distributivismo, do emissionismo e da
regressividade, a preferência pelo multiplicador, em lugar do divisor (daí a
insistência no controle de natalidade), enfim, umas poucas verdades que
deveriam ser de ampla aceitação entre pessoas medianamente bem informadas como
são os políticos, mas que padecem terrivelmente nas mãos de “planejadores
sociais” animados do desejo de “fazer o bem” com o dinheiro dos outros.
Parece incrível que com toda a sua prolífica produção de textos, idéias,
aforismas, artigos polêmicos e estudos sérios, Roberto Campos só tenha sido
objeto de dois livros algo desiguais: um estudo muito bem embasado sobre o seu
“pensamento político” (por Reginaldo Teixeira Perez; Editora FGV) e um outro
sobre sua própria vida e “tiradas” geniais (o “retrato” de Olavo Luz; Editora
Campus), além de exposições e análises em obras de caráter geral (como em
Bielschowsky). Talvez as suas volumosas memórias tenham intimidado eventuais
candidatos, mas nada justifica que ele permaneça sem um livro de depoimentos e
um outro de excertos de suas obras (como se fez recentemente para Mário Henrique
Simonsen, por exemplo).
Num país que possui mais editoras do que livrarias, não deveria portanto
ser difícil de encontrar um editor inteligente – a começar pelo que “obrigou”
Roberto Campos a terminar suas memórias – que se dispusesse a editar um volume de
testemunhos e estudos analíticos sobre sua obra e um outro de textos escolhidos
dentre as dezenas de escritos inteligentes que ele produziu ao longo de uma
vida útil que se estende do começo da ditadura Vargas até o final de uma
ditadura ainda mais ampla, a das falsas idéias. Nem todas ele conseguiu
eliminar com sua pena acerada e língua rápida, mas ele pelo menos forneceu
princípios claros e raciocínios diretos a todos aqueles dispostos a aprender a
partir da experiência pessoal, de alguma matemática elementar e da simples
observação da realidade ambiente, como aliás este que aqui escreve. Roberto
Campos foi provavelmente mais atacado do que incensado, num país que ainda
ostenta economistas macunaímicos, como talvez ele dissesse, com sua
irreverência sempre em riste.
Sim, confesso que fui um daqueles muitos que, no frescor da militância
juvenil, se compraziam em chamá-lo de “Bob Fields” e em considerá-lo um
“entreguista” a serviço de uma ditadura militar comprometida com o grande
capital monopolista internacional. Quanta bobagem podia se abrigar nas mentes e
escritos de “solucionistas” ideológicos, como éramos todos aqueles que
pretendiamos escapar da aridez pouco complacente da “ciência lúgubre”, em favor
de duas ou três receitas de “desenvolvimentismo acelerado”. Aliás, ainda pode.
Mas, confesso também que, entre a leitura árida do PAEG, nos meus dezesseis
anos incompletos, e o sabor de seus artigos cortantes no Estadão, eu aprendi muito rapidamente a respeitar um “adversário”
que me ensinou os primeiros rudimentos de economia (e de lógica “sociológica”).
Por isso mesmo, o retorno a alguns dos textos desse humanista tecnocrático e
humorístico talvez nos ajudasse a atravessar, sem muitos desgastes, uma nova
fase de transição entre algumas poucas verdades incertas de um passado ainda
recente e um presente animado por algumas grandes certezas de um passado não
muito remoto, mas que não quer passar.
A racionalidade iconoclástica de Roberto Campos anda fazendo falta. Onde
está o editor que poderia trazer de volta uma nova lufada de brisa inteligente
ao atual pântano (ou deserto, como queiram) de idéias curtas e soluções
rápidas? Que venha o Festschrift, o Mélanges, um In praise of Roberto Campos, com todas as orientações econômicas e
políticas a que ele teria direito em vida: ele adoraria assistir a mais algumas
polêmicas em torno de suas idéias: E provavelmente continuaria corrigindo
admiradores e adversários com seus argumentos de puro bom senso, como só cabe
aos grandes pensadores.
Paulo Roberto de
Almeida, sociólogo, diplomata.
(www.pralmeida.org)
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