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sexta-feira, 6 de janeiro de 2017

E por falar em Roberto Campos: fazendo falta no debate de ideias - Paulo Roberto de Almeida

Dois anos depois do falecimento de Roberto Campos, eu publicava um artigo em sua homenagem:

1128. “Roberto Campos: dois anos sem bons combates de ideias”, Washington, 2 outubro 2003, 3 p. Artigo em homenagem a Roberto Campos, por ocasião da passagem do segundo aniversário de sua morte, em 9/10/2001. Publicado no Jornal do Brasil (6.10.2003, Seção Opinião). Relação de Publicados n. 448.


Roberto Campos: dois anos sem bons combates de idéias

Paulo Roberto de Almeida
Jornal do Brasil (6.10.2003, Seção Opinião)

Dia 9 de outubro marca a passagem do falecimento, em 2001, de Roberto Campos, seminarista, diplomata, economista teórico, burocrata, economista prático – dirigente do primeiro órgão público de planejamento econômico no Brasil, o BNDE –, professor, empresário, embaixador, ministro de Estado, diretor de banco de investimento, articulista, embaixador, político, parlamentarista monarquista e aposentado, nessa ordem. Se não bastassem todas essas atividades públicas, e não considerando seu apego a alguns dos prazeres da vida, ele ainda seria um dos mais importantes representantes de uma espécie em desaparecimento no Brasil: o tecnocrata de alto coturno, não apenas um técnico, mas um verdadeiro conselheiro do Príncipe, um insigne pensador e formulador de políticas, um tomador de decisões, um reformista radical, um hábil articulista, um polemista, enfim, um sábio.
São poucos os que podem ser igualados a esse genial “policrata”, uma mistura de político e tecnocrata, como ele mesmo se definia, que ademais de todas as suas muitas qualidades sabia também ser um frasista e um humorista sem igual, inventando “leis” que tinham, em alguns casos, alcance universal, mas que no mais das vezes eram o resultado obrigatório de suas conclusões lógicas a partir de uma realidade econômica e política brasileira propriamente surrealista. Com todo o seu espírito crítico, sua pena afiada e suas reações rápidas e desconcertantes, ele conseguia ser mais inovador e criativo do que essa mesma realidade de um Brasil sempre surpreendente, tanto para o mais pacato dos economistas, como para o mais afoito dos revolucionários. De fato, Roberto Campos, popularmente conhecido como “Bob Fields” durante minha juventude, nunca perdeu um debate para ninguém, mas ele devia se confessar uma frustração: perdeu para o Brasil, esse gigante desengonçado que desarma o mais agudo espírito cartesiano.
Roberto Campos atravessou por inteiro um breve século XX que começou com o fim do laissez-faire e o começo do socialismo real – nasceu durante a Primeira Grande Guerra, no ano da revolução bolchevique – e terminou com o fim do mesmo sistema que interrompeu, por um “breve” período de apenas setenta anos, o processo de globalização capitalista que já tinha sido analisado por Marx no Manifesto de 1848. Ele assistiu à derrota ideológica, econômica e prática de um sistema que, como ele mesmo alertou ainda em sua fase triunfante, tentou distribuir riquezas com uma incompetência ímpar, quando comparado a todos os outros modos de produção. Ele só não assistiu à vitória do bom senso, em favor do qual ele clamou durante três ou quatro repúblicas brasileiras e mais de uma dúzia de governos, aos quais ele serviu, criticou e tentou ajudar.
Roberto Campos deve ter descoberto que o bom senso é a coisa mais difícil de ser alcançada, num mundo que só conheceu o fim das ideologias, das religiões ou da própria história nos escritos dos intelectuais. Fundamentalismos de todos os gêneros, sobretudo econômicos e políticos, se encarregam de enterrar as ilusões de todos aqueles que, como ele, acreditaram ser possível, um dia, fundar as políticas públicas sobre um modesto conjunto de regras simples e auto-evidentes: a escassez dos recursos, o caráter inelástico dos orçamentos, a necessidade de fazer as escolhas dotadas de maior liberdade e de concorrência em mercados semi-livres, os limites do distributivismo, do emissionismo e da regressividade, a preferência pelo multiplicador, em lugar do divisor (daí a insistência no controle de natalidade), enfim, umas poucas verdades que deveriam ser de ampla aceitação entre pessoas medianamente bem informadas como são os políticos, mas que padecem terrivelmente nas mãos de “planejadores sociais” animados do desejo de “fazer o bem” com o dinheiro dos outros.
Parece incrível que com toda a sua prolífica produção de textos, idéias, aforismas, artigos polêmicos e estudos sérios, Roberto Campos só tenha sido objeto de dois livros algo desiguais: um estudo muito bem embasado sobre o seu “pensamento político” (por Reginaldo Teixeira Perez; Editora FGV) e um outro sobre sua própria vida e “tiradas” geniais (o “retrato” de Olavo Luz; Editora Campus), além de exposições e análises em obras de caráter geral (como em Bielschowsky). Talvez as suas volumosas memórias tenham intimidado eventuais candidatos, mas nada justifica que ele permaneça sem um livro de depoimentos e um outro de excertos de suas obras (como se fez recentemente para Mário Henrique Simonsen, por exemplo).
Num país que possui mais editoras do que livrarias, não deveria portanto ser difícil de encontrar um editor inteligente – a começar pelo que “obrigou” Roberto Campos a terminar suas memórias – que se dispusesse a editar um volume de testemunhos e estudos analíticos sobre sua obra e um outro de textos escolhidos dentre as dezenas de escritos inteligentes que ele produziu ao longo de uma vida útil que se estende do começo da ditadura Vargas até o final de uma ditadura ainda mais ampla, a das falsas idéias. Nem todas ele conseguiu eliminar com sua pena acerada e língua rápida, mas ele pelo menos forneceu princípios claros e raciocínios diretos a todos aqueles dispostos a aprender a partir da experiência pessoal, de alguma matemática elementar e da simples observação da realidade ambiente, como aliás este que aqui escreve. Roberto Campos foi provavelmente mais atacado do que incensado, num país que ainda ostenta economistas macunaímicos, como talvez ele dissesse, com sua irreverência sempre em riste.
Sim, confesso que fui um daqueles muitos que, no frescor da militância juvenil, se compraziam em chamá-lo de “Bob Fields” e em considerá-lo um “entreguista” a serviço de uma ditadura militar comprometida com o grande capital monopolista internacional. Quanta bobagem podia se abrigar nas mentes e escritos de “solucionistas” ideológicos, como éramos todos aqueles que pretendiamos escapar da aridez pouco complacente da “ciência lúgubre”, em favor de duas ou três receitas de “desenvolvimentismo acelerado”. Aliás, ainda pode. Mas, confesso também que, entre a leitura árida do PAEG, nos meus dezesseis anos incompletos, e o sabor de seus artigos cortantes no Estadão, eu aprendi muito rapidamente a respeitar um “adversário” que me ensinou os primeiros rudimentos de economia (e de lógica “sociológica”). Por isso mesmo, o retorno a alguns dos textos desse humanista tecnocrático e humorístico talvez nos ajudasse a atravessar, sem muitos desgastes, uma nova fase de transição entre algumas poucas verdades incertas de um passado ainda recente e um presente animado por algumas grandes certezas de um passado não muito remoto, mas que não quer passar.
A racionalidade iconoclástica de Roberto Campos anda fazendo falta. Onde está o editor que poderia trazer de volta uma nova lufada de brisa inteligente ao atual pântano (ou deserto, como queiram) de idéias curtas e soluções rápidas? Que venha o Festschrift, o Mélanges, um In praise of Roberto Campos, com todas as orientações econômicas e políticas a que ele teria direito em vida: ele adoraria assistir a mais algumas polêmicas em torno de suas idéias: E provavelmente continuaria corrigindo admiradores e adversários com seus argumentos de puro bom senso, como só cabe aos grandes pensadores.

Paulo Roberto de Almeida, sociólogo, diplomata.
(www.pralmeida.org)
 

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