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quinta-feira, 19 de janeiro de 2017

Querem saber de onde vem nosso "fascismo" estatal? De Portugal, ora pois! - Paulo Werneck

Meu amigo Paulo Werneck, douto pesquisador de coisas antigas, velhíssimas, antiquíssimas, nos traz este belo exemplo de uma regulação perfeitamente fascista, no sentido moderno da palavra, que é o fato de o Estado, ou o governo, dizer o que você pode, ou sobretudo não pode, fazer, com os seus próprios ativos financeiros, e até o que você pode vestir, em qualquer ocasião.
Alguns podem achar estranho eu chamar de fascismo a esta regulação do século 17.
Ora, pois: fascismo, reduzido à sua mais simples expressão, é quando o Estado diz o que você pode, ou não pode fazer, ou quando lhe obriga a fazer certas coisas, mesmo contra a sua vontade.
Não precisa de camisas cinzentas, botas negras, milícias armadas controlando os cidadãos: basta o Estado determinar como você deve regular a sua própria vida...
Paulo Roberto de Almeida

Uma Reserva de Mercado "Recatada"
Paulo Werneck
Guardamoria, 18 Jan 2017 12:45 PM PST


Feliciano de Almeida: Dom Luís de Meneses
Fonte: Wikipedia

Filipe III de Portugal (IV, na Espanha) enfrentava problemas em todas as frentes, os Holandeses estavam senhores de Pernambuco e outras partes do reino português, quando em 1º de dezembro de 1640 houve uma revolta em Portugal que culminou com a coroação de Dom João IV.

Depois da Restauração os holandeses foram expulsos do Brasil e Angola e a situação aparentemente retornou ao status-quo ante. Aparentemente apenas, pois na prática a situação econômica estava bastante distinta.

Os preços do açúcar, por exemplo, foram caindo progressivamente, com a concorrência do Caribe. Simonsen estabelece em gramas de ouro o preço da arroba do açúcar em Londres.

período    g de ouro por arroba de açúcar
1643-1652    17,69
1653-1662    11,43
1663-1672    10,98
1673-1682    9,15
1683-1692    8,69

Recebendo menos pelas mercadorias vendidas, é óbvio que ficava mais difícil pagar pelas mercadorias importadas, e, a continuar com o mesmo padrão de consumo representava uma sangria.

Dom Luís de Meneses, 3.° Conde da Ericeira (1632-1690) foi nomeado Vedor da Fazenda em 1675, por Dom Pedro II, então regente. Com idéias mercantilistas, tentou desenvolver a indústria textil em Portugal, criando uma reserva de mercado para a produção nacional e proibindo o uso daquilo que Portugal não podia produzir, tudo isso regulado pela Pragmática de 1677, verbis:
DOM PEDRO, por Graça de Deus, Principe de Portugal e dos Algarves, etc. Como Regente e Governador dos ditos Reinos e Senhorios. Faço saber aos que esta minha Lei virem, que, sendo-me representado e instantemente pedido pelos Estados do Reino, juntos nas Côrtes, que ultimamente mandei convocar, quizesse atalhar os graves damnos que se occasionavam nestes Reinos e suas Conquistas, assim em commum, como em particular, com a relaxação de trajes, excesso no custo das galas, o luxo com que se adornavam as casas, se fabricavam os coches, se vestiam os lacaios, o crescido numero delles, a dispendiosa vaidade dos funeraes, fórma dos lutos e abuso dos vestidos, em que meus Vassallos com extraordinarias profusões, ostentações vangloriosas, e immoderadas despezas empenhavam os Patrimonios, arruinavam os successores, e se vinham a empobrecer e envilecer muitas vezes por varias modos as familias mais nobres e facultosas, com grande desserviço de Deus, damno da honestidade, dos costumes, do bem publico do Reino e da conservação delle: E considerando eu a obrigação, que tenho de acudir com o remedio a estes males, não só com o exemplo de minha pessoa e Casa Real, mas tambem procurar por todos os meios possiveis, extinguir os abusos, evitar ruinas, e moderar os superfluamente luzidos e vãos adornos das pessoas, casas e familias, com a introducção da gravidade dos trajes e explendor honestamente apparatoso, que conduzem á restricção dos gastos e á melhora dos costumes, ordenei com os do meu Conselho fazer a Pragmatica e Lei pela maneira seguinte:

I. Primeiramente ordeno e mando que nenhuma pessoa de qualquer condição, gráo, qualidade, titulo, dignidade, preeminencia, por maior que seja, assim homens, como mulheres, nestes Reinos e Senhorios de Portugal e suas Conquistas até o Cabo da Boa Esperança, possa usar nos adornos de suas pessoas, filhos e criados, casa, serviço, e uso, que de novo fizer, de seda, rendas, fitas, bordados, ou guarnições que tenham ouro, ou prata fina, ou falsa; e só lhes permitto poderem trazer nos vestidos botões e casas de fio de ouro, ou de prata; ou de prata, ou de ouro de martello, como não sejam de filagrana, sem algum outro qualquer genero de guarnição, ainda que seja de fitas: e só permitto que as mulheres possam trater guarnição de seis dedos de largura, não sendo das generos acima probibidos, e poderão ser de rendas feitas no Reino, e da mesma largura.

II. Ordeno e mando que se não possa usar de nenhuma sorte de dourados, ou prateados nas cousas, que de novo se fizerem: porque sómente os permitto nas Igrejas, Ermidas, Oratorios, e cousas tocantes ao Culto Divino, e de nenhuma maneira em cousa alguma profana; porém não se comprehendem nesta prohibição as sedas, fitas, bordados guarnições de prata, ou ouro fino, ou falso, prateados ou dourados, que vierem da India, obrado tudo e feito naquelle Estado, e sendo manufacturas da Asia, porque de todas estas cousas se poderá usar livremente.

III. Nenhuma pessoa de qualquer condição, estado e preeminencia, por maior que seja, se poderá vestir de comprido, excepto os Clerigos de Ordens Sacras, ou Beneficiados, que notoriamente sejam conhecidos por taes; os Desembargadores e os Estudantes matriculados na Universidade de Coimbra e Evora; com declaração, que nenhum trará cousa alguma na roupeta, ou capa, que de todo prohibo.

IV. Nenhuma pessoa se poderá vestir de panno, que não seja fabricado neste Reino como tambem se não poderá usar de voltas de renda, cintos, talins, boldriés, e chapéos, que não sejam feitos nele.

V. Ordeno e mando que nas casas dos defunctos de qualquer condição, qualidade, titulo, estado, dignidade e preeminencia, por maior que seja; e nas Igrejas, aonde se enterrarem ou se lhes fizerem Officios, se use de nenhum adorno funeral mais, que uma tarima de um degráo coberto de negro, sem passamane, galão, ou renda de ouro, ou prata fina, ou falsa, sobre a qual se ponha o corpo, ou caixão com quatro tocheiras nos cantos, e dous castiçaes á Cruz, sem mais outro algum genero de armação, ou ornato funebre.

VI. Nenhuma pessoa se poderá vestir de luto comprido, e só usará do curto; porem poder-se-ha trazer capa comprida de panno, ou baeta com golilha, ou balona chãa, e de nenhuma fórma se poderá usar de capuz, ou capa de capello; nem de coches, carroças, calejas, estufas, liteiras ou seges, interior ou exteriormente cobertos de algum genero de luto.

VII. Os coches, carroças, calejas, estufas, liteiras e seges, que de novo se fizerem, não poderão ser exteriormente cobertas de algum genero de seda, nem com outra alguma guarnição, de qualquer genero que seja, mais que de uma franja unica.

VIII. Nenhuma pessoa de qualquer titulo ou preeminencia, por maior que seja, dentro nesta Cidade, ou em outro qualquer logar, aonde assistir minha pessoa e Casa Real, poderá trazer nos coches, carroças, calejas ou estufas, mais que quatro mulas, ou cavallos; e só permitto que sahindo della, se possam pôr seis no Convento de Santa Clara, no de Santa Martha, e Igreja dos Anjos, e nestas mesmas partes se tirarão, quando entrarem nella.

IX. Nenhuma pessoa de qualquer titulo e preeminencia, por maior que seja, poderá trazer, ou acompanhar-se, indo a cavallo, mais que de dous lacaios, ou mochilas livres, ou escravos; e do mesmo numero, indo em sege, alem do mochila, que a governar; e indo em coche, liteira, carroça, estufa, ou caleja, se acompanhará do mesmo numero de lacaios, ou mochilas, alem dos dous liteireiros, ou dos cocheiros; indo porem juntos, marido e mulher, poderão acompanhar-se de quatro lacaios, ou mochilas,

X. As librés que de novo se fizerem, dos cocheiros, liteireiros, lacaios e mochilas, não derão ser nenhum outro genero, que não seja de panno feito no Reino, nem forradas de cousa alguma, que seja de lãa, sem alguma guarnição, de qualquer genero que seja: as meias não serão de seda; os botões, sim, mas não de ouro, ou prata fina, ou falsa; e havendo de pôr-se fitas aos vestidos, será sómente nos calções passados com aquellas, que nelles se costumam; os vestidos de luto serão curtos, sem capas, on roupetas compridas.

XI. E porque de se dissimular neste Reino, por culpa dos Officiaes de Justiça o uso dos jogos de parar, ou em dados, ou em cartas, ou por outro qualquer modo, contra as prohibições de Direito, Ordenações e Pragmaticas, se tem seguido os grandes inconvenientes que a experiencia mostra, com grande damno de meus Vassalos, inquietação e ruina de suas casas: ordeno e mando, em execução das ditas Leis, que nenhuma pessoa de qualquer titulo e preeminencia, por maior que seja use de jogos de parar, nem dê casa para esse effeito, com as penas comminadas no fim desta Pragmatica, e das mais, que pelas Leis estão estabelecidas.

XII. Para o consumo das cousas prohibidas nesta Pragmatica, hei por bem conceder neste Reino um anno de tempo, contado do dia da publicação della na Chancellaria, com denegação de mais tempo; e nas Conquistas permitto o tempo de tres annos, contados do dia da mesma publicação, aonde se remeterá logo sem dilação: e declaro que se ha de começar a praticar no que toca aos dourados, prateados, numero dos lacaios, mulas nos coches, carroças, estufas e calejas, nos vestidos curtos, lutos e funeraes, passado um mez do dia da sua publicação; e que acabado este termo, o anno de consumo neste Reino, e os tres nas Conquistas, se praticará inteiramente tudo o que nella se contém.

XIII. E para melhor execução e observancia desta Lei, ordeno e mando, que todas as pessoas, que usarem de alguma das cousas acima prohibidas, sendo nobre, ou de maior qualidade, pagará pela primeira vez trinta mil réis; e pela segunda e mais vezes a mesma pena em dobro: e não sendo pessoa nobre, pagará pela primeira vez vinte mil réis; e pela segunda a pena em dobro, e será preso, e se applicará a condemnação, ametade para o accusador, e a outre ametade para a despeza dos Presidios do Reino; e além das sobreditas penas, perderão os mesmos vestidos, e mais cousas, que forem feitas contra esta Lei, cujo valor se applicará para o accusador e Captivos: e os Alfaiates, Bordadores, Douradores, Armadores e outros a quem toca fazer e obrar as ditas cousas acima probibidas, constando as fazem, ou mandam fazer por outrem, passado o tempo acima apontado, incorrerão nas mesmas penas referidas.

XIV. E porque na Casa Real, e nesta Corte se observe inviolavelmente esta Lei, ordeno e mando ao meu Porteiro-mór, ou a quem cargo servir, que por nenhum caso admittam a fallar-me em audiencia geral, ou particular, nem dentro no Paço, a pessoa alguma de qualquer qualidade, estado, ou condição que seja, que traga em sua pessoa, ou nas de seus filhos e familiares, cousa alguma das acima prohibidas: e na mesma fórma os Secretarios de Estado e Mercês não admittam requerimento, petição, ou papel de pessoa, que use de alguma das cousas prohibidas, antes logo me darão conta, para se mandar proceder, como for razão. E mando ao Regedor da Casa da Supplicação, e ao Governador da Relação, e Casa do Porto, e em especial aos Corregedores do Crime, assim de minha Côrte, como das ditas Casas, e aos Corregedores, Juizes do Crime desta Cidade, e a todos os mais Corregedores, Ouvidores, Juizes, Justiças, Meirinhos e Alcaides de meus Reinos e Senhorios, que tenham muito particular cuidado e vigilancia na execução desta Lei: e nas residencias, que se lhes tomarem aos que a dão, se perguntará, se fizeram inteiramente cumprir: e achando-os culpados em alguma maneira, não serão admittidos a meu serviço, até minha Mercê: e disto se accrescentará um Capitulo ao Regimento, por onde se tomam as residencias; e os Meirinhos e Alcaides, que forem descuidados e negligentes, assim nesta Côrte, como fóra della, em coutar e accusar as ditas cousas defesas, incorreráo pela primeira vez em suspensão de seus Officiaes por dous annos, e pela segunda vez em perdimento delles sem remissão; e sendo Serventuarios, serão privados das serventias, sem poderem entrar mais nellas, alem da pena de cem cruzados, para o que serão obrigados os Corregedores, Ouvidores, e Juizes de Fóra, em cada um anno, nas devassas geraes, que tirarem, a perguntar particularmente, se os ditos Meirinhos e Alcaides são negligentes em coutar, e demandar as ditas cousas, ou se dissimulam, e passam pelas pessoas, que as trazem, ou mandam fazer, ou fazem, sem lhes coutar, ou demandar.

E mando ao meu Chanceller-mór, que faça logo publicar esta Lei na Chancellaria na fórma, que nella se costumam publicar semelhantes Leis, para que, do dia da publicaçào della, assim na dita Chancellaria, como nas outras partes, em que se ha de publicar dos termos assignados, se dê a execução; enviando logo Cartas com o traslado della, sob meu Sello e seu signal, aos ditos Corregedores, Provedores, e Ouvidores das Commarcas, para que a publiquem, e façam publicar nos Logares, aonde estiverem, e nos mais de suas Commarcas e para que seja notorio a todos o que nela se contem, se registará no Livro da Mesa do despacho dos meus Desembargadores do Paço, e nos das Relações das ditas Casas da Supplicação, e do Porto, em que se registam semelhantes Leis: e nas Secretarias de Estado e Mercês. Manoel da Silva Collaço a fez, em Lisboa, a 25 de Janeiro 1677, Francisco Pereira de Castello-Branco a fez escrever. = PRINCIPE.

Liv. V. do Desembargo do Paço fol. 271.

Como podemos ler da "pragmática", o objetivo mercantilista é disfarçado sob uma máscara moral de combate ao luxo supérfluo, cujo desiderato era a não importação dos têxteis luxuosos, os quais não poderiam ser produzidos localmente, tanto que esses artigos, caso proviessem das Conquistas, poderiam ser usados, como disciplina o Item II.

Paralelamente, Dom Luís mandou vir técnicos da Inglaterra e fez o que pôde para incentivar essa indústria, projeto não mantido após sua morte, pois seus sucessores priorizaram a exportação de vinho.

Quanto ao vocabulário, temos "jogos de parar", que o Michaelis define como "aquele em que uma pessoa faz banca, e as outras, que jogam os pontos, apontam ou param (fazem apostas) contra ela".

Serviçais citados: cocheiro, quem conduz o coche e demais veículos; liteireiro, que conduz a liteira; lacaio, criado que acompanha o amo à pé, ou fica em pé na parte traseira do coche; e mochila, rapaz, que não traz espada, e vai adiante do cavalo ou carruagem do amo.

Veículos citados: coche, nome genérico para carruagens de quatro rodas; carroça, coche grande, ou com grades para colocar carga; caleja, que os dicionários definem como rua pequena, no caso é uma variante de caleça, sege mais grosseira, para usar nas estradas; estufa, um coche com quatro ou seis lugares; liteira, um veículo desprovido de rodas, pendurado numa espécie de viga, sustentada por animais, ou, as menores, por homens; e sege, carruagem pequena de passeio. Esses nomes são algo genéricos e intercambiáveis, salvo a liteira e, talvez, a sege.

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Fontes:

BLUTEAU, Raphael. Vocabulario portuguez & latino: aulico, anatomico, architectonico ... Coimbra: Collegio das Artes da Companhia de Jesu, 1712 - 1728. 8 v.

PINTO, Luiz Maria da Silva. Diccionario da Lingua Brasileira por Luiz Maria da Silva Pinto, natural da Provincia de Goyaz. Na Typographia de Silva, 1832.

PORTUGAL. Carta de Lei de 25 de janeiro de 1677. Pragmática sobre os trajos e jogos de parar. in SILVA, José Justino de Andrada e Silva. Collecção Chronológica da Legislação Portugueza Compilada e Annotada. Segunda Serie (Conclusão) 1675-1683 e Supplemento à Segunda Serie 1641-1685. Lisboa: Imprensa de F. X. de Souza, 1857

SILVA, Antonio Moraes. Diccionario da lingua portugueza. Lisboa: Typographia Lacerdina, 1813.

SIMONSEN, Roberto C. História Econômica do Brasil. 1500-1820. Brasília: Senado Federal, 2005.

VIEIRA, Frei Domingos. Grande Diccionário Portuguez ou Thesouro da Língua Portugueza. Porto: Casa dos Editores Ernesto Chardron e Bartholomeu H. de Moraes, 1871.

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