O RENASCIMENTO
DE GUDIN
Eugênio Gudin
(1886-1986) o maior pensador liberal da economia brasileira
Ricardo Vélez-Rodríguez
Rocinante,
9/08/2016
A tresloucada
marcha do Estado brasileiro como gestor da economia ao longo das últimas
décadas, notadamente durante os governos petistas, colocou sobre o tapete a
atualidade do pensamento de Eugênio Gudin (1886-1986), que muita gente achava
coisa do passado. As ideias liberais passaram a ser alcunhadas de
“Neoliberalismo” tout-court, abusando de um termo que virou xingamento
da esquerda patrimonialista.
Gudin renasce,
no 130º aniversário do seu nascimento, nesta quadra confusa da história
brasileira. E renasce justamente ao ensejo das desgraças protagonizadas pelos
que tentaram censurá-lo. Este artigo visa a destacar algumas das teses do
grande professor, mostrando como elas iluminam a atual quadra da nossa vida
política.
Serão
desenvolvidos os seguintes itens: 1 - O Capitalismo Naturalista. 2 – A
racionalidade social e o livre mercado. 3 – A irracionalidade social decorrente
da interferência do fator político na economia. A guerra. 4 – A irracionalidade
social e o planejamento estatal no Brasil. 5 – Capitalismo e democracia no
Brasil: perspectivas.
1 - O
Capitalismo Naturalista
O surgimento do
Capitalismo, para Gudin, não tem nada de abstrato nem de acidental. É tão
verificável quanto o aparecimento da máquina a vapor da era Industrial. O
nascimento desta era da economia, bem como seus passos, são realidades
perfeitamente cognoscíveis. Constituem fatos concretos da História
humana.
O “Capitalismo
Naturalista” estudado por Gudin se caracteriza porque é a etapa da História da
economia em que o Capital, aliado ao Trabalho e à Criatividade dos agentes
econômicos, dá ensejo à era da industrialização que produz a satisfação das
necessidades humanas básicas numa escala planetária, fazendo com que todas as
Nações se inter-relacionem com equilíbrio e constituam, assim, a máxima
manifestação da racionalidade humana.
O começo da sua
etapa decisiva, segundo o economista, “(...) pode ser referido ao ano de 1772
em que, pela primeira vez, se operou a redução do minério de ferro pelo coque
metalúrgico. As suas grandes etapas foram a da navegação a vapor no princípio
do século, a da locomotiva de 1827, a do Conversor Bassemer em 1856, a da
eletricidade industrial e da hulha branca no último quartel do século, a do
motor de explosão, do automóvel e da indústria do petróleo em seu último
decênio e, por fim, a do cinematógrafo e da aviação no limiar do século XX”
[GUDIN, Aspecto econômico do corporatismo brasileiro, 1938, pg. 7].
Poderíamos
adicionar um fato relevante, na área da educação e da pesquisa, que acompanha a
Revolução Industrial: a criação, na França, em 1794, após a Revolução Francesa,
da Escola Politécnica, que passou a tratar, ao lado da tradicional Universidade
nascida na Idade Média, do ensino das ciências e da tecnologia. [1] Ora,
esse ensino, até finais do século XVIII, tinha ficado relegado às Academias,
que surgiram fora das instituições universitárias na Europa, como ocorreu na
Itália de Galileu Galilei (1564-1642) e de Leonardo da Vinci (1542-1519), na
Inglaterra de Robert Boyle (1627-1691) e de Isaac Newton (1643-1727) e na
França dos marqueses Pierre Simon de Laplace (1749-1827) e Nicolas de Condorcet
(1743-1794).
Immanuel Kant
(1724-1804) saudou o novo momento econômico da industrialização, nos estudos
dedicados à Antropologia (entendida como saber pragmático acerca do homem),
caracterizando-o como uma Criação Cosmopolita. [2] A
respeito dessa característica globalizante e integradora da nova economia,
frisava Gudin: “As estradas de ferro, os motores de explosão, a navegação a
vapor arrancaram os povos do isolamento em que viviam, ligando-os pelos laços
de uma sociedade econômica em que a produção do planeta se espalha e distribui
pelo mundo inteiro. O transporte industrial, permitindo a organização de
socorros em grande escala, acabou com os quadros tétricos, que tanto registra a
história, de populações dizimadas pela fome, pela seca e pelas epidemias”
[GUDIN, Capitalismo e sua evolução, 1936, pg. 27].
Essa etapa de
evolução da economia mundial sob a égide da industrialização já vinha sendo
preparada desde o período renascentista, que sacudiu a pesada estrutura do
saber medieval centrado na Teologia Escolástica, a fim de abri-lo às ciências e
às técnicas. A respeito escreve Gudin: “A evolução social e econômica retoma o
seu curso com o Renascimento, em ritmo de progresso acentuado desde o século
XVI até o último quartel do século XVIII, que registra o maior acontecimento da
história econômica da humanidade: o advento da civilização
industrial”[GUDIN, Para um mundo melhor, 1943, pg.
99-100].
O equilíbrio
“estático” medieval é sacudido, após o Renascimento, pelo florescimento da
economia, das técnicas e da cultura nas cidades italianas. “A história – frisa
Gudin - nos revela períodos, por vezes longos, como o da fase negra da Idade
Média, em que o mundo se apresentava em estado de estagnação econômica e social
correspondente a um equilíbrio estático. São períodos de exceção” [GUDIN, Para
um mundo melhor, 1943, pg. 99].
Ao ensejo das
mudanças ocorridas na economia com o surgimento do Capitalismo e da Revolução
Industrial, frisa Gudin: “(...) puderam ser montados no mundo inteiro os
laboratórios de pesquisas científicas, com que a humanidade, há quase um
século, perscruta os segredos da Natureza. Graças ao microscópio, produto da
indústria, pôde Pasteur realizar a imensa obra de benefício humano que o
imortalizou. Graças ao aparelhamento industrial atingimos um ‘standard’ de
vida, que faz com que simples operários de hoje tenham mais conforto do que
príncipes de outros tempos ou do que Marx e Engels há menos de um século. Não
são sequer comparáveis os instrumentos com que a humanidade de hoje se defende
do frio, da fome, das intempéries, das infecções e de todas as adversidades que
a Natureza pôs no caminho penoso do ‘homo sapiens’. Ninguém de boa fé negará
esses truísmos” [GUDIN, Capitalismo e sua evolução, 1936, pg.
27-28].
O economista
elenca os grandes avanços que, na área técnica e no progresso econômico, a
Humanidade experimentou com o surto do capitalismo na era industrial, ao longo
do século XIX. Não deixa de registrar o fato apontado por Ortega y Gasset
(1883-1955) em A rebelião das massas (1928), [3] do
significativo aumento da população na Europa, em decorrência da melhora das
condições de higiene, saúde e produção de alimentos. Eis as palavras de Gudin:
“À redução do minério de ferro pelo coque metalúrgico e à máquina a vapor,
seguem-se, em rápida sucessão, na primeira metade do século XIX, a navegação a
vapor, a locomotiva e as estradas de ferro. A segunda metade desse século é
como uma feira de mágicas em que, juntamente com as descobertas de Pasteur,
aparecem o motor elétrico, o telefone, as turbinas hidráulicas e a vapor, a
lâmpada incandescente, o transporte de energia a distância. O último decênio do
século ainda assiste ao advento do motor a explosão, do veículo automóvel e à
infância da aviação. Foi um período de verdadeira exaltação do progresso, cujo
ritmo vertiginoso absorvia todas as energias humanas. Era como que uma fronteira,
no sentido de progresso de civilização que a essa palavra dão os americanos. O
século XIX assistiu a um crescimento da população da Europa, superior ao do
conjunto dos quatro séculos que o precederam. Mas toda essa população era
rapidamente absorvida na febril atividade da fronteira na
própria Europa ou na América. Não havia tempo para cuidar dos problemas de
justiça social nem de uma mais equitativa distribuição da riqueza entre os
homens. Tratava-se de conquistar a riqueza e haveria sempre tempo de cuidar,
mais tarde, de uma melhor repartição. Foi essa a conjuntura econômica e social
que Marx conheceu e profligou na incandescência de seu espírito revoltado”
[GUDIN, Para um mundo melhor, 1943, pg. 100-101].
O rápido
crescimento da produção industrial levou à expansão da fronteira econômica da
Europa. Novos mercados iam-se, assim, abrindo. A propósito, frisa o nosso
autor: “Tão acelerado foi o ritmo de progresso da produção industrial nos
países do Ocidente europeu, que eles se acharam, ao cabo de alguns decênios, na
contingência de procurar, fora de suas fronteiras, novos escoadouros para essa
produção” [GUDIN, Aspecto econômico do corporatismo brasileiro, 1938,
pg. 7].
A ampliação da
fronteira econômica levou a que os países industrializados buscassem novos
mercados para os seus produtos, nas nações ainda circunscritas à economia
agrícola. Os novos impérios coloniais tinham como finalidade garantir matérias
primas, mas também alargar o mercado consumidor para os produtos das grandes
indústrias. Sobre este ponto, o economista frisa: “À medida que se ampliava o
âmbito da civilização industrial e que as demais nações da Europa e já também
dos Estados Unidos da América do Norte iniciavam, a seu turno, a construção de
seus parques industriais, a Inglaterra, a França e a Holanda tinham que
procurar novos escoadouros para sua exportação nas nações que ainda viviam em
regime de economia agrícola, como nos impérios coloniais que construíram com o
duplo objetivo de angariar matérias-primas e de assegurar consumidores para
suas grandes indústrias” [GUDIN, Aspecto econômico do corporatismo
brasileiro, 1938, pg. 8].
Gudin faz
referência ao papel de dinamizadoras da produção que passaram a exercer, na
Europa, as Instituições de Crédito, bem como as Sociedades Anônimas. De outro
lado, fixa a atenção no equilíbrio a que chegaram as economias europeias com
aquelas dos países que recebiam os seus produtos industrializados, em troca
pelas commodities que os menos desenvolvidos exportavam. A respeito escreve: “O
vulto crescente da produção, o aumento considerável da riqueza e da capacidade
de consumo excederam, em breve tempo, as possibilidades dos sistemas monetários
e financeiros então existentes, dando lugar à criação dos dois grandes fatores
de propulsão da civilização industrial, que foram o Crédito e as Sociedades
Anônimas, um e outras tornados já então possíveis de se organizar, sobre a base
do acúmulo das economias privadas nas instituições bancárias. Em dado momento,
a Economia mundial parecia ter chegado a um estado de equilíbrio estável,
tendo, de um lado, as nações que dispunham do capital acumulado, da técnica
industrial, do combustível carvão e da navegação a vapor e que constituíam o
grupo das nações industriais e, de outro lado, aquelas nações que não dispunham
desses elementos, mas que podiam oferecer seus produtos agrícolas e suas
matérias primas em troca dos artigos manufaturados” [GUDIN, Aspecto
econômico do corporatismo brasileiro, 1938, pg. 8].
O aumento da
venda de produtos industrializados por parte dos países desenvolvidos se
traduzia numa forma de equilíbrio, resultante do incremento de commodities
compradas dos menos desenvolvidos. Em relação a esse aspecto, frisa Gudin:
“Quanto mais o grupo de nações industriais vendia seus produtos ao outro grupo,
mais lhe compravam produtos agrícolas e matérias primas, e vice-versa”
[GUDIN, Aspecto econômico do corporatismo brasileiro, 1938, pg.
8].
A economia dos
países submetidos a esse regime de trocas gozava de um equilíbrio induzido pelo
“gênio da civilização industrial”. Esse harmônico processo é assim descrito
pelo economista: “Se de um lado o progresso industrial de alguns países novos
fazia diminuir a importação de determinados artigos, esta redução era logo
compensada pelo aumento geral da capacidade de consumo, como pela importação
dos produtos de novas indústrias criadas pelo gênio da civilização industrial.
Se baixava a exportação de tecidos, aumentava a de automóveis ou de novos
produtos químicos” [GUDIN, Aspecto econômico do corporatismo brasileiro,
1938, pg. 8].
Um desequilíbrio
é apontado por Gudin nessa evolução histórica do Capitalismo Naturalista: os
trabalhadores terminaram sofrendo as consequências das variações do mercado,
ainda não suficientemente debeladas pela nova legislação trabalhista. No
entanto, com o correr do tempo, um novo equilíbrio se anunciava, na trilha do
aumento real da capacidade de compra por parte dos trabalhadores, já no final
do século XIX.
Eis a forma em
que Gudin resume todo esse processo: “Do ponto de vista social (...) é verdade
que a liberdade de movimentos de que carecia o capitalismo naturalista para sua
plena expansão custou não poucos sacrifícios às classes trabalhadoras, ainda
desamparadas de legislação social adequada e de união sindical (...). Não é
menos verdade que, ao findar o século XIX, os salários reais dos trabalhadores,
isto é, o seu poder de compra, tinham aumentado consideravelmente”
[GUDIN, Aspecto econômico do corporatismo brasileiro, 1938, pg.
9].
2 – A
racionalidade social e o livre mercado.
Eugênio Gudin é
tributário dos teóricos escoceses que encararam a racionalidade social como
proveniente da empresa econômica. Para ele, onde se instalou o Capitalismo
Naturalista terminou vingando a racionalidade no plano mais largo das relações
sociais. Como a prática do livre mercado é que dá ensejo a essa modalidade de
Capitalismo, ali onde tal liberdade é suprimida, simplesmente desaparece a
racionalidade social. Pesou, certamente, nestas convicções de Gudin a sua
condição de executivo de alto nível de várias empresas multinacionais. Formado
em engenharia em 1905 pela Escola Politécnica do Rio de Janeiro, nas décadas
seguintes trabalhou em várias empresas estrangeiras presentes no Brasil como a
Ligth, a Pernambuco Tramway and Power Co., a Great Western of Brazil Railway
Co. e a Western Telegraph Co., da qual foi diretor até 1954.
A tendência
ensejada pelos teóricos escoceses, de que é tributário Gudin, como foi frisado,
passou a ser caracterizada como da “Economia Política” e se desenvolveu na
trilha da moral social do século XVIII que, com Hume (1711-1776), Adam Smith
(1723-1790) e outros autores, oferecia uma alternativa racional às teorias
contratualistas. Seria possível, como pensava Hume, reduzir a política a uma
ciência referida à economia e aos negócios públicos. [4] Essa
temática foi retomada por ideólogos como Jean-Baptiste Say (1767-1832), que no
seu Tratado de economia políticapublicado em 1803, identificava a
nova ciência por ele proposta com um saber racional alicerçado na experiência,
irredutível à matemática, mas passível de ser resumido em poucos princípios
evidentes para todos.
A respeito
escreve Say: "Assim como as ciências exatas, a Economia Política se compõe
de um número reduzido de princípios fundamentais e de um grande número de
corolários ou deduções desses princípios. O importante para os progressos da
ciência é que os princípios decorram naturalmente da observação; em seguida,
cada autor multiplica ou reduz, de acordo com sua vontade, o número e
consequências, conforme o objetivo que se propõe. Aquele que desejasse mostrar
todas as consequências, fornecer todas as explicações, construiria uma obra
colossal e necessariamente incompleta. Inclusive, quanto mais essa ciência for
aperfeiçoada e difundida, menos consequências teremos de extrair, pois elas
saltarão aos olhos; todo mundo estará em condições de encontrá-las por si mesmo
e de aplicá-las. Um Tratado de Economia Política reduzir-se-á, então, a
um pequeno número de princípios que sequer precisaremos basear em provas, pois
eles serão apenas o enunciado daquilo que todo mundo já saberá, disposto numa
ordem apropriada a fim de se poder apreender o seu conjunto e as suas
relações". [5]
O conde Antoine
Destutt de Tracy (1754-1836), no seu Tratado de Economia Política (que
constituía a quarta parte da obra intitulada Elementos de Ideologia),
definia mais claramente o fundamento da ciência em apreço, ao afirmar que
"o comércio é toda a sociedade". [6] O
conde Pierre-Louis Roederer (1754-1835), por sua vez, considerava que "as
artes mecânicas, o fato de serem partilhadas por diferentes mãos, o comércio e
o intercâmbio de produtos por elas produzidos, são os únicos que estabelecem
entre os homens comunicações intimas, constantes e duráveis". [7] A
política tenderia, destarte, a se confundir com a economia e a ciência das
riquezas seria a chave para encontrar a harmonia social. Para Gudin, como fica
claro do que levamos exposto, o equilíbrio social se estabelece pelo próprio
jogo das forças econômicas submetidas à lei do livre mercado.
Gudin, no
entanto, não acredita que a Economia possa encampar a Política. Para ele, essas
duas variáveis são complementares, não podendo ser reduzidas a uma. Seria uma
simplificação inaceitável. Considera que ambas as variáveis são essenciais,
assim como a relativa à Cultura. Embora admirasse a obra de Augusto Comte
(1798-1857) à maneira dos nossos positivistas ilustrados, pelo fato de o
pensador francês ter sistematizado a ideia de uma ciência social que
possibilitasse o estudo rigoroso dos fenômenos socioeconômicos, longe estava
Gudin, no entanto, de encampar a visão antidemocrática do comtismo com a sua
“ditadura científica”. A crítica que faz ao “despotismo ilustrado” getuliano,
de raízes castilhistas, é clara. A sua vinculação à UDN acompanhou, certamente,
esse viés de antiestatismo.
Nessa concepção
da sociedade como uma realidade a ser abordada a partir de múltiplas variáveis,
Gudin se inspira no sociólogo alemão Werner Sombart (1863-1941). Considera que
foi ele quem primeiro chamou a atenção para o caráter magnífico e complexo da
empresa capitalista e se refere a ele da seguinte forma, no ensaio, já
citado, Aspecto econômico do corporatismo brasileiro: “Foi dessa
economia que o seu maior comentador (...) dizia: ‘Estrutura tanto mais digna de
admiração quanto ela é o produto, não de uma vontade consciente e de uma
deliberação refletida, mas do funcionamento autônomo e por assim dizer
automático de uma multidão incomensurável de economias individuais, procurando
cada uma o seu próprio interesse’”.
Gudin adota o
ponto de vista de Sombart de que são múltiplas as variáveis que, além da
economia, dão conta da complexidade da vida social. É bem verdade que Sombart,
ao lado de sua admiração pela empresa capitalista, nutria desconfianças em
relação à predominância do espírito de lucro sobre a componente racional que
garantiria a perpetuação do processo (numa espécie de busca da “paz perpétua”
almejada por Kant). Os momentos de “guerra” (e, notadamente, as Guerras do
século XX) poriam à prova a subsistência do sistema. No entanto, Gudin é
otimista quanto à possibilidade de serem sorteadas as dificuldades. A “Guerra”
é fruto da predominância dos fatores políticos sobre os econômicos. O anseio de
dominação pode sufocar a produtividade.
A respeito da
forma como Gudin interpreta a obra do sociólogo alemão, Maria Angélica Borges
frisa: “No comentário à obra de Sombart aparece o desdobramento dos
pressupostos da noção de equilíbrio econômico presente na concepção econômica
que Gudin abraça (...)”. [8] O
Capitalismo autorregulador era, para Gudin, “a maior obra civilizadora que o
espírito humano já concebeu e criou” [GUDIN, Aspecto econômico do
corporatismo brasileiro, 1938].
O Capitalismo,
acredita o mestre carioca, saberá superar as crises, retomando o processo de
criação de riquezas mediante a incorporação de novos avanços tecnológicos como
a automação, por exemplo, e preservando a livre iniciativa, para fazer frente
aos reptos de uma produção massiva, atendendo – de outro lado - às novas
exigências sociais. Diríamos que Gudin retoma o otimismo que inspirava à
primeira geração dos pensadores da economia política, nos tempos de Adam Smith,
mas ampliando o leque epistemológico para o estudo de várias variáveis.
3 – A
irracionalidade social decorrente da interferência do fator político na
economia. A guerra.
Para Gudin, a
Primeira Guerra Mundial veio quebrar o desenvolvimento equilibrado do
Capitalismo Naturalista, devido à interferência irracional do fator político
que destruiu o equilíbrio do sistema. Maria Angélica Borges frisa a respeito:
“Este paraíso durou, para nosso economista, até 1914, quando se deflagrou a
Primeira Grande Guerra. Para ele, esse fato sinaliza o fim de uma época. O
mundo capitalista, no plano do fator econômico, caminhava de forma positiva.
Mas, em virtude de acontecimentos decorrentes do fator político, envolvendo
paixões e ambições humanas, o equilíbrio econômico foi interrompido. Deixado à
mercê de sua própria lógica, o tecido social não conhecia a crise. Porém, tal
não ocorreu, porque o fator político quebrou a dinâmica do fator econômico.
Para o autor, o equilíbrio natural é da lógica interna do fator econômico,
assim como a possibilidade de quebra do equilíbrio é exterior a ele”. [9] A
Primeira Guerra Mundial explica, assim, o caos econômico que se seguiu ao
processo de desenvolvimento harmonioso do Capitalismo na “Belle Époque” (1875 /
1914).
Assim se refere
Gudin a esses fatos: “(...) O enriquecimento geral prosseguia seu ritmo natural
e benéfico, a difusão de capitais se processava com regularidade, o comércio
internacional aumentava todos os anos. E se guerra houve inteiramente gerada pela
explosão de paixões e ambições políticas e militares e em que os fatores
econômicos menor papel representaram, essa foi a guerra de 1914, que
desencadeou sobre o mundo uma das maiores crises econômicas da história”
[GUDIN, Capitalismo e sua evolução, 1936, pg. 9].
Como
consequência do desarranjo produzido na economia mundial pela Primeira Guerra,
a Inglaterra perdeu o controle sobre as finanças internacionais e os Estados
Unidos, onde tinha se desenvolvido o processo capitalista sem obstáculos,
terminaram assumindo o controle das finanças mundiais.
Gudin sintetiza
da seguinte forma os aspectos fundamentais dessa profunda mudança do
Capitalismo Naturalista, destacando o papel que os Estados Unidos passaram a
desempenhar na economia: “Quando os Estados Unidos da América do Norte, que já
representavam antes da guerra função de relevo na Economia Mundial
[intervieram], a transformação foi ainda mais profunda. Com um parque
industrial que já era capaz de suprir os aliados de munições, canhões, material
de guerra e de transporte, o seu enriquecimento de 1914 a 1917 foi vertiginoso,
de sorte que, ao término das hostilidades, esse grande país havia-se
transformado de país devedor da Europa, que era até 1914, no maior país credor
do mundo, sem que, entretanto, tivesse a experiência e a sabedoria exigidas por
essa nova função. Aí está como se processou a desorganização da Economia
Mundial. O equilíbrio que se havia gradativamente formado até 1914, sob o
regime do Capitalismo apoiado na Economia Liberal, e que consistia na
conjugação harmônica das funções econômicas dos vários países que o
constituíam, foi gravemente perturbado pela inversão de valores de suas
unidades componentes. As peças do sistema, que d´antes se entrosavam
harmonicamente, já não mais se engrenavam, umas às outras” [
GUDIN, Aspecto econômico do corporatismo brasileiro, 1938, pg.
12-13].
Esse desarranjo
revelou que, no ciclo anterior à guerra, havia uma lacuna que não tinha sido
preenchida: a ausência de policiamento sobre o sistema de trocas, que terminou
produzindo a falência do mesmo. Gudin reconhece que, no seio do sistema
Capitalista, encontram-se elementos que podem, em determinado momento, colocar
em risco a saúde econômica. No caso concreto do desarranjo produzido pela
Guerra no contexto do sistema econômico mundial, esses elementos negativos
situavam-se do lado do surgimento de monopólios e de outras práticas
irracionais.
A propósito,
frisa Gudin: “A mais elementar lacuna do sistema capitalista, tal como
funcionava no primeiro decênio [do século XX] era a ausência de policiamento. A
livre disposição, pelos bancos, de depósitos das economias privadas, sem a
fiscalização do Estado, a ilimitada liberdade de apelar para a Economia privada
e para a subscrição de empréstimos de Estados, de empresas de negócios de toda
espécie, sem que primeiramente o Estado certificasse que tais operações tinham
de fato o destino e as possibilidades de êxito anunciadas, estavam a exigir,
com urgência, o policiamento do sistema (...). Este simples policiamento, se
adotado a tempo, teria poupado, ao Capitalismo, algumas das mais violentas
críticas que lhe foram assacadas” [GUDIN, Aspecto econômico do
corporatismo brasileiro, 1938, pg. 15].
O nosso autor
lembra que essa crise do Capitalismo já tinha sido prevista por um teórico da
talha de David Ricardo (1772-1823). Eis a apreciação do nosso autor a respeito:
“Já Ricardo, talvez o maior economista do seu século, dizia, referindo-se ao
Sistema Capitalista, que o seu automatismo exige um grande número de empresas
de dimensões tais que nenhuma delas possa agir diretamente sobre os preços. É
que na luta da concorrência, quando levada a seus limites extremos, chega o
momento em que os contendores compreendem que o seu prosseguimento importaria
na ruína final de todos, como na perda e destruição final do capital social
invertido na indústria ou serviço em causa (...). Nesta hipótese, dá-se,
inevitavelmente, o entendimento entre os produtores ou o amálgama e unificação
de empresas, com a supressão da concorrência, que era o próprio princípio vital
do Capitalismo naturalista. Outra modalidade do resultado final da luta é a do
esmagamento sucessivo do mais fraco pelo mais forte, ficando este só em campo,
sem mais concorrentes e, portanto, no regime de monopólio, que é justamente o
oposto da essência do Capitalismo” [GUDIN, Aspecto econômico do
corporatismo brasileiro, 1938, pg. 16].
Gudin estudou
com atenção a crise do laissez-ferismo de início do século XX. Conhecia em
detalhe a obra dos economistas de Cambridge que, nas primeiras décadas do
século, tinham-se debruçado sobre esse tema. Conhecia bem o pensamento de John
Maynard Keynes (1883-1946) e concordava com a sua crítica ao capitalismo de
final de século, que tinha deixado aberta a porta para os desequilíbrios. Como
o economista britânico, reconhecia a necessidade de uma correção de rumo,
mediante intervenções indiretas do Estado para restabelecer o equilíbrio, sem
que se chegasse ao extremo do Estado-empresário tão do gosto do despotismo
ilustrado. Mas considerava necessárias intervenções pontuais que evitassem o
risco de paralisia do Capitalismo Naturalista.
Em relação à
proximidade de Gudin com o pensamento keynesiano, escreve José Luis Oreiro:
“Gudin (...) considerava corretas as ideias de John Keynes para analisar
períodos de depressão econômica. Foi, inclusive, um dos primeiros a divulga-las
em português, em seu livro Princípios de economia monetária,
lançado originalmente em 1943. A obra foi a primeira sobre monetarismo
publicada no País e se tornou chave para as gerações de economistas. Sua
trajetória foi também marcada pela autoria de artigos para jornais e
publicações técnicas e participação em importantes conferências no Brasil e no
exterior”. [10]
Afinava-se Gudin
com as propostas de intervenção moderada do Estado na economia proposta por
Keynes, para sanar os desequilíbrios causados pelo laissez-ferismo. Tomou
conhecimento da política intervencionista do New Deal, posta em
marcha pelo presidente Franklin Delano Roosevelt (entre 1933 e 1937), mas
criticou, no entanto, o que lhe parecia uma intervenção forte demais que seria
repetida, no Brasil, pelo presidente Getúlio Vargas (1883-1954). A criação de
inúmeras agências federais por Roosevelt parecia, ao nosso autor, uma indevida
concessão dos americanos ao estatismo.
Gudin criticava,
de outro lado, a versão estatizante que, das reformas keynesianas, foi
elaborada pelo economista argentino Raul Prebisch (1901-1986) e que terminou
inspirando o pensamento da CEPAL, tendo-se disseminado pela América Latina
afora, dando ensejo a reformas estatizantes que terminaram sendo postas a
serviço dos diversos populismos que floresceram no nosso continente ao longo do
século XX e – como observamos na atual quadra - que se manifestam, também, nos
diversos modelos neopopulistas que azucrinam a vida dos cidadãos desta parte do
mundo.
A Segunda Guerra
Mundial ensejou nova crise no seio do Capitalismo, em decorrência do fato de
que não foram solucionados a contento os problemas que deram lugar à Primeira
Grande Guerra. Os mecanismos para uma economia internacional policiada ainda
não tinham sido plenamente desenvolvidos, em que pese a efetivação da política
do New Deal nos Estados Unidos para superar a crise de 29. O
resultado de tudo isso, na década de 30, foi o acirramento dos problemas e o
surgimento de uma proposta de economia planificada na Alemanha hitlerista, como
decorrência da bancarrota econômica que fez surgir a hiperinflação, em boa
medida como efeito das absurdas exigências do plano de paz ensejado pelo Tratado
de Versalhes (1919), que deixou abertas as feridas que conduziram à
Segunda Guerra Mundial. Um clima de estatismo semelhante acompanhou a ascensão
de Joseph Stalin (1878-1953) ao comando da União Soviética. Keynes, em As
consequências econômicas da Paz, [11] deixou
claras essas contradições (que ficaram explícitas na negociação do Tratado de
Versalhes) e que foram também registradas por Max Weber (1864-1920).
Gudin participou
da Conferência de Bretton Woods (agosto de 1944), [12] que
reorganizou a economia mundial. O nosso autor, conhecedor das propostas feitas
por Keynes nessa Conferência, saiu fortalecido como um economista afinado com
os novos tempos. Antes de regressar ao Brasil visitou, em companhia de Otávio
Gouveia de Bulhões (1906-1990), a prestigiosa Faculdade de Economia da
Universidade de Harvard. Ali teve oportunidade de discutir com os scholars
americanos “(...) o projeto da Faculdade de Economia do Rio de Janeiro (que se
transformaria na Universidade do Brasil, hoje Universidade Federal do Rio de
Janeiro). O resultado da visita é relatado em carta ao ministro, enviada de
Chicago: ‘Escrevi na pedra o programa e o projeto de currículo que lhe
recomendamos, para submetê-lo à crítica de todos e para receber sugestões dos
mestres. Tenho a satisfação de comunicar-lhe que depois de fazerem várias
perguntas e de pedirem esclarecimentos, todos os professores de Harvard acharam
o programa excelente dizendo que nada havia a modificar’”. [13]
4 – A
irracionalidade social e o planejamento estatal no Brasil.
Para Gudin,
Getúlio Vargas pôs em funcionamento um sistema econômico de intervenção direta
e prolongada do Estado na economia. A adoção das políticas intervencionistas,
no Brasil, foi além do recomendado por Keynes para sanear economias em
depressão. Vargas avançou no terreno da estatização, ao ensejo da adoção da
ideia de planejamento. Na longa polêmica sustentada com Roberto Simonsen
(1889-1948) a respeito, Gudin deixou claro que o planejamento deita raízes no
intervencionismo monopolista do ciclo mercantilista. O Plano contrapõe-se à
livre iniciativa.
A respeito o
nosso autor frisa: “No regime mercantilista do século XVIII, os fatores de
produção eram dirigidos para as atividades econômicas ditadas pela política
nacionalista do Estado; a formação do artesanato orientada de acordo com o
plano de produção formulado pelo Estado; o comércio exterior controlado para
assegurar o acúmulo do maior stock possível de metais preciosos, velando-se por
que o balanço de comércio fosse sempre ‘favorável’; o comércio com as colônias
arregimentado pelo princípio exclusivo da troca de produtos manufaturados por
matérias-primas, etc. Esse tipo de economia exigia evidentemente uma
planificação detalhada da vida econômica do país e uma ininterrupta vigilância
do Estado sobre as atividades individuais” [GUDIN, Eugênio e SIMONSEN,
Roberto. A controvérsia do planejamento na economia brasileira,
1977, pg. 61].
Segundo Gudin,
com a adoção do planejamento o governo passou a privilegiar aquilo que os
burocratas achavam importante, passando por cima das leis do mercado. Aconteceu
isso no Estado Novo, no ciclo desenvolvimentista marcado pela volta de Getúlio
ao poder (1951-1954), na aceleração das obras dirigidas pelo Estado ou por ele
estimuladas ao ensejo do “plano de metas” de Juscelino Kubitscheck (1902-1976)
e nos rumos estatistas que inspiraram as iniciativas das “grandes obras” dos
governos militares, após 1964. Em todos esses estágios a meta foi a introdução
de uma visão industrialista, com descuido para a modernização das atividades
agrícolas, que teriam permitido um desenvolvimento equilibrado e não
inflacionário. O regime militar, pelo menos, acordou para a importância da
modernização da produção agrícola, tentando resolver, em primeiro lugar, a
espinhosa questão fundiária, com a formulação do Estatuto da Terra em
1964.
O que houve no
Brasil foi um indevido crescimento do Estado à sombra da ideia de planejamento,
socavando a liberdade de iniciativa e enterrando a produtividade na defesa de
interesses cartoriais. Gudin criticava essa feição estatizante. A respeito
frisava: “No Brasil o Estado, sem qualquer programação socialista de
nacionalização, assenhoreou-se de muitos setores econômicos que nas outras
democracias incumbem à iniciativa e direção privadas. Fica-se alarmado ao
verificar como se tem estendido o domínio do Estado sobre tantos setores da
economia brasileira (...). O Estado tem, no Brasil, o controle da enorme
maioria da rede ferroviária e de quase toda a navegação mercante. Estradas de
ferro, navegação, portos, siderurgia, minério de ferro, petróleo, fábrica de
motores, são atividades hoje quase integralmente açambarcadas pelo Estado. Essa
ampliação da atividade do Estado não foi, como em outros países, o resultado de
um propósito, ou de um plano político. Foi, geralmente, o produto da
incapacidade política e administrativa do Estado, que acabou por tornar
inviável a direção privada das respectivas empresas e a força-las a entregar-se
ao Estado. A par dessas atividades erradamente transferidas do campo da
economia privada para o Estado, é de alarmar a manutenção, em tempo de paz, dos
controles estabelecidos pelo Estado durante a guerra mundial (...).”
[GUDIN, Planejamento econômico, 1951, pg.30].
Gudin era
intransigente na crítica ao planejamento. Castigava fortemente esse conceito.
Um exemplo, em que o economista grifou todas as palavras do texto: “A
mística da planificação é, portanto, uma derivada genética da experiência
fracassada e abandonada do ‘New Deal’ americano, das ditaduras italiana e alemã
que levaram o mundo à catástrofe, e dos planos quinquenais da Rússia, que
nenhuma aplicação podem ter a outros países” [GUDIN, Eugênio e SIMONSEN,
Roberto. A controvérsia do planejamento na economia brasileira,
1977, pg. 73].
Destaquei em
páginas anteriores que Gudin foi escolhido, em 1944, como delegado brasileiro à
Conferência Monetária Internacional de Bretton Woods, que criou o Fundo
Monetário Internacional (FMI) e o Banco Internacional para a Reconstrução e o
Desenvolvimento (BIRD). Essa conferência caracterizou-se pela sua inspiração
nos postulados liberais caros a Gudin, principalmente no que respeita ao
comércio internacional, em contraste com as políticas protecionistas que vigiam
anteriormente. Entre 1951 e 1955 Gudin foi o representante do Brasil perante o
FMI e o BIRD.
No começo dos
anos 50, o nosso autor formou parte da Comissão de Anteprojeto da Legislação do
Petróleo, tendo-se manifestado contra as restrições colocadas à entrada de capital
estrangeiro nessa área. Gudin foi contrário à criação da Petrobrás e à
instauração do monopólio estatal do petróleo. Apoiou com determinação a
política da UDN contra o estatismo varguista, de que decorreriam o
enfraquecimento do presidente e os trágicos acontecimentos que conduziram ao
suicídio de Vargas em 54. Na sua rápida passagem de oito meses à frente do
Ministério da Fazenda no governo Café Filho, entre 1954 e 1955, Gudin
desenvolveu uma política de estabilização econômica baseada no controle do gasto
público e na contenção da expansão monetária e do crédito. Foi marcante a
decretação da Instrução 113 da Superintendência da Moeda e do Crédito (SUMOC),
favorável à entrada de capitais estrangeiros no Brasil para financiar
investimentos.
5 – Capitalismo
e democracia no Brasil: perspectivas.
A posição de
Gudin em face do movimento de 64 era clara: a deposição de Goulart pelos
militares tinha plena justificação, pois a República Sindical pretendida
irresponsavelmente desaguaria na bolchevização do País. Tratava-se, também, de
reagir contra a corrupção generalizada e a quebra de hierarquia nas Forças
Armadas, estimulada pelos apelos populistas do presidente.
Toda essa
movimentação contra as instituições republicanas estava escondida sob o manto
de uma série de “reformas” que visavam à instauração do “poder popular”. A
respeito dos motivos que inspiraram o pronunciamento militar, frisava Gudin:
“(...) O que a revolução visava não era a reforma da Constituição, nem a
reforma agrária, nem a reforma bancária, nem a reforma eleitoral e ‘tutti
quanti’. O objetivo da revolução era enxotar do governo os maus brasileiros que
estavam destruindo a civilização cristã, a civilização ‘tout-court’, a cultura,
o caráter e a prosperidade econômica do País; era declarar guerra de morte à
corrupção, à demagogia, à bolchevização e ao primarismo. E tratar de restaurar
o que se havia demolido” [GUDIN, Ilusão gráfica, 1964, pg. 96-97].
Gudin saudou com
alegria as primeiras medidas econômicas do novo governo, que visavam a controlar
a inflação e a por a casa em ordem no terreno da contenção do gasto público. No
entanto, para o nosso pensador, a ação saneadora dos governos militares, ao
abrir a porta para o desenvolvimento capitalista libertando-o dos entraves
socialistas, não conseguiu chegar à finalidade almejada, pela presença
perniciosa, na gestão econômica, da prática do planejamento concretizada no
correspondente ministério. Para Gudin, o planejamento pode ser entendido em
sentido lato ou em sentido estrito. Em sentido lato, entende-se como
programação de despesas e é válido. Em sentido estrito, entende-se como meta
definida politicamente e não é aceitável do ângulo liberal [cf. GUDIN, Ministério
do Planejamento ou Ministério da Economia? 1966, pg. 124].
Referindo-se à
prática histórica do “planejamento” como rotineira programação de despesas ao
longo da história republicana, o nosso autor frisava: “O planejamento ou
programação dos investimentos governamentais é diferente;
sempre foi feito na República Velha como na segunda. As ‘plataformas’ do
governo eram estabelecidas pela cúpula política, especialmente pelo candidato
(de eleição assegurada) à Presidência da República, e os respectivos projetos
passavam a ser estudados e organizados. Esse ‘programa’ de governo obedecia às
necessidades consideradas mais prementes da Nação. O caso do governo Rodrigues
Alves e Afonso Pena é típico a esse respeito. Mas esse ‘programa’ ou ‘plano’ ou
‘planejamento’, como se queira chamar, limitava-se ao setor governamental, sem
prejuízo das medidas de estímulo que o governo adotasse para a expansão
das atividades privadas. O que se receia do planejamento econômico
global, como agora se pretende consolidar, é que ele se torne um instrumento
que ainda mais venha a agravar o açambarcamento da economia do País pelo
governo, diretamente ou através de autarquias, empresas públicas ou empresas
mistas” [GUDIN, Ministério do Planejamento ou Ministério da Economia?,
1966, pg. 124].
A importância
crescente que o Ministério de Planejamento ganhou nos governos militares, essa
foi a causa fundamental que levou a que se perdesse a dinâmica econômica
encetada pelo movimento de 64. Comentando as reformas feitas em 1966 no terreno
da política econômica, que colocavam o Ministério do Planejamento como canal de
intervenção política direta do Poder Executivo na Economia, frisava o nosso
autor: “(...) Não é aceitável que o ministro da Fazenda se limite a dizer que
‘no seu setor’ a política certa está sendo executada, lavando as mãos como
Pilatos quanto aos demais (...). No projeto essa falta é sugerida, em parte,
pelo Ministério do Planejamento e Coordenação Econômica (...). [O artigo 6º do
decreto] confere ao ministro do Planejamento a incumbência de ‘auxiliar
diretamente o presidente da República’ na coordenação, revisão e consideração
dos programas setoriais. Mas isso é uma forma indireta, imprecisa e um tanto
sub-reptícia, inadmissível em matéria de capital importância como é o da
execução da política econômica do governo. (...) O ministério do Planejamento
deixa de ser um ‘ministério extraordinário’, como até agora, para ser um
ministério permanente encarregado de formular e coordenar os planos e programas
de ação governamental” [GUDIN, Ministério do Planejamento ou Ministério
da Economia?, 1966, pg. 122-123]. Para Gudin ficava claro que as leis do
mercado estavam sendo substituídas pelas prioridades fixadas, do ângulo
político, pelo General-Presidente da República.
Quais as
perspectivas que, no sentir do velho economista liberal, restariam ao Brasil,
no decorrer do século que, com ele, se extinguia? Para o nosso autor restaria,
apenas, o programa de “voo de besouro” ou “de galinha”, com decolagens
mirabolantes e quedas crônicas, em decorrência dessa presença tuteladora do
poder político sobre as leis do mercado, que de forma errada fixava metas
parciais de desenvolvimento econômico no terreno da indústria, sacrificando
setores essenciais como o agrário.
Fiel ao seu
liberalismo econômico ortodoxo escrevia Gudin: “Tanto quanto eu tenha podido
investigar, o homem comum só conseguiu uma melhoria persistente em seu padrão
de vida nos países que adotaram as técnicas do mercado livre, como meio de
organização de sua atividade econômica (...). Não conheço um só exemplo de uma
sociedade predominantemente coletivista ou de planejamento central em que o
cidadão comum tenha conseguido uma melhoria substancial e persistente nas suas
condições de vida (...). A sedução do ‘Plano’ está em que ele trata de investir
e de gastar, o que é sumamente agradável, muito mais do que administrar e
consertar o que está errado. As energias, a capacidade e o prestígio do governo
não são ilimitados” [GUDIN, Ministério do Planejamento ou Ministério da
Economia?, 1966, pg. 125].
Conclusão.
Diante do quadro
atual de crise profunda em que se encontra a nossa economia, em decorrência da
“contabilidade criativa” petista que ensejou inúmeros rombos nas contas
públicas, além das práticas de corrupção que afetam a nossa credibilidade
perante o mundo e a saúde das empresas, as palavras de Gudin em prol da transparência
na gestão da economia e da transferência, para o setor privado, da tarefa de
geração da riqueza sem espera-lo tudo do Estado, soam tremendamente atuais. O
Estatismo não é culpa dos marcianos, mas de todos nós, inclusive das
expectativas dos próprios empresários de encontrar, nas benesses do poder,
refúgio tranquilo para os riscos que enfrentam. Falando da discussão que se
travou em torno à presença tutelar do Estado na economia, lembrava Gudin em
1979, no depoimento dado ao pesquisador da Fundação Getúlio Vargas: “Se você me
perguntar de onde brotou esse debate, qual foi o espírito que o inspirou, eu
lhe responderei sinteticamente: o protecionismo excessivo que a indústria
paulista exigia” [GUDIN, Depoimento. CPDOC/História Oral. Fundação
Getúlio Vargas, Rio de Janeiro, 1979, pg. 145].
Como lembrava
com propriedade Roberto Campos: “Na grande controvérsia brasileira, (Roberto)
Simonsen triunfou no curto prazo. O Brasil embarcou num processo de
industrialização fechada, extremamente protecionista e ineficiente. O resultado
foram, como previra Gudin, inflação e crises cambiais crônicas. No longo prazo,
foi Gudin que tinha razão. O atual movimento mundial de abertura econômica,
integração de mercados e liberalização comercial na América Latina teve nele um
grande precursor”. [14]
Talvez a melhor
lição deixada por Eugênio Gudin foi a que burilou no espírito dos seus alunos,
ao longo das décadas dedicadas pelo mestre ao ensino dos fundamentos da
Economia, como espaço para o exercício da liberdade. Poderia concluir com as
palavras de Julian Chacel (1928), um dos alunos do grande economista liberal:
“Gudin como professor fez escola. Escola que acredita na liberdade do homem,
como condição essencial para o processo de escolha e da decisão econômica. Que
é reticente diante da proposta híbrida de uma economia de mercado compatível
com um planejamento fortemente centralizado na ação do Estado. Nem todos,
obviamente, seguem a sua doutrina e dão ao fenômeno monetário o poder
explicativo que Gudin lhe confere. Mas todos, sem exceção, que conviveram e
convivem com Gudin, dentro e fora de uma sala de aula, retiraram e retiram do
seu convívio uma grande lição. Lição de vida”. [15]
Gudin, enquanto
pensador econômico e mestre, [16] se
definia a si mesmo como aquele que deita alicerces, repetindo as palavras de
conhecido escritor gaúcho: como aquele que “bate estacas”. Eis as palavras do
nosso autor a respeito: “Roberto Campos, economista provecto, analista
percuciente, escritor primoroso, tem uma especial vocação para o pensamento
categorizado. Dizia-me João Neves da Fontoura (1887-1963), de uma feita, que o
meu raciocínio se parecia com uma construção sobre estacas; uma estaca batida e
bem firmada, depois uma segunda, enfim um conjunto de sólidas estacas sobre as
quais – dizia o grande escritor – eu assentava o edifício do meu raciocínio e
das minhas conclusões. Roberto Campos não é como eu um batedor de estacas. É um
criador de categorias (...). Campos considera impossível conceber-se o Universo
senão sob as categorias da inteligência”. [17]
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[1] A
Escola Politécnica foi criada em 1794, dentro do espírito do Iluminismo, como
órgão educacional do Estado para formar os engenheiros e técnicos de que este
carecia. O nome inicial da instituição era: École Centrale des Travaux
Publics e ficava sob o controle do Ministério da Guerra. Napoleão
Bonaparte (1769-1821), já coroado Imperador, a transformou, em 1805, em
instituição de formação técnica e militar, dando-lhe o nome com que passou à
posteridade. Em 1970, o Estado francês reformou a Escola (conservando-a no
âmbito do Ministério da Defesa), a fim de abrigar também estudantes civis, da
França e do estrangeiro. Militares brasileiros frequentam regularmente a
Escola, desenvolvendo, nela, estudos de pós-graduação em engenharia e áreas
afins, de interesse das Forças Armadas. A reforma educacional efetivada por
Napoleão compartilhava do espírito iluminista que inspirava ao cristão novo
Antônio Nunes Ribeiro Sanches (1699-1783), médico e pedagogo português que
vivia em Paris. Ribeiro Sanches foi o inspirador da criação do Colégio dos
Nobres, ao ensejo das orientações dadas por ele ao Marquês de Pombal
(1699-1782) e à Imperatriz da Rússia Anna Ivanovna (1693-1740). Por influência
de Ribeiro Sanches foram criados, respectivamente na Rússia e em Portugal, o
Colégio dos Nobres de São Petersburgo e o Colégio dos Nobres de Lisboa. Sobre a
estrutura deste, dom Rodrigo de Sousa Coutinho (1745-1812) conde de Linhares,
criou, no Rio de Janeiro, a Real Academia Militar, em 1810.
[2] Cf.
KANT, Immanuel. Antropología en sentido pragmático(2ª edição em
espanhol, tradução de José Gaos, Madrid: Alianza Editorial, 1991, pg. 290-291).
Para o pensador alemão, o novo momento econômico deveria abrir espaço para uma
convivência pacífica da humanidade, ao ensejo da construção da Paz Perpétua,
uma criação cultural que Kant denominava de “Cosmopolita”, assim como a
Industrialização. Kant dedicou a este último aspecto o seu opúsculo, de 1795,
intitulado: A Paz Perpétua. (Cf. KANT, Immanuel, La Paz
Perpetua, apresentação de Antonio Truyol y Serra; tradução ao espanhol de
Joaquín Abellán, 2ª edição, Madrid: Tecnos, 1989).
[3] Cf.
ORTEGA Y GASSET, José. A rebelião das massas. 2ª edição. (Tradução
de Marylene Pinto Michael). São Paulo: Martins Fontes, 2002.
[4] HUME,
David. Essays - Moral, Political and Literary.(Introdução de E. F.
Miller). Indianapolis: Liberty Found, 1987, pg. 14-31. ROSANVALLON,
Pierre. Le moment Guizot. Paris: Gallimard, 1985, pg. 24-25.
[5] SAY,
Jean-Baptiste. Tratado de economia política. (Prefácio de G.
Tapinos; tradução de C. Barbosa Filho; tradução do prefácio de R. Valente
Correia Guedes). São Paulo: Abril Cultural, 1983, pg. 45.
[6] Apud
ROSANVALLON, Pierre. Le moment Guizot. Ob. Cit., pg. 24.
[7] Apud
ROSANVALLON, Pierre. Le moment Guizot. Ob. Cit., ibid.
[8] BORGES,
Maria Angélica, Eugênio Gudin, Capitalismo e Neoliberalismo,
(Prefácio de Luiz Gonzaga de Mello Belluzzo). São Paulo: EDUC, 1996, pg.
52.
[9] BORGES,
Maria Angélica, Eugênio Gudin, Capitalismo e Neoliberalismo, ob.
cit., pg. 52.
[10] OREIRO,
José Luis. “Tributo a Eugênio Gudin”. Revista Desafios do
Desenvolvimento. Brasília, Março de 2009.
[11] KEYNES,
John Maynard. The Economic Consequences of the Peace. New York:
Harcourt, Brace & Howe, 1920.
[12] A
delegação brasileira à Conferência de Bretton Woods foi integrada por: Arthur
de Souza Costa (1893-1957), ministro da Fazenda; Euvaldo Lodi (1896-1956),
líder empresarial, primeiro presidente da Confederação Nacional da Indústria e
fundador do SESI e do SENAI; Eugênio Gudin; Octávio Gouveia de Bulhões e
Roberto Campos (1917-2001).
[13] Apud
SCHWARTZMAN, Simon (organizador). Tempos de Capanema. Rio de
Janeiro: Paz e Terra; São Paulo: EDUSP, 1984, pg. 224.
[14] CAMPOS,
Roberto. Lanterna na popa – Memórias, Rio de Janeiro, 1995: pg.
240.
[15] CHACEL,
J. Apud KAFKA, A. (Organizador). Gudin visto por seus contemporâneos.
Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1979, pg. 35.
[16] Eugênio
Gudin teve um papel de destaque como educador, na formação de várias gerações
no estudo e na pesquisa da Ciência Econômica no Brasil. Em 1938 participou, no
Rio de Janeiro, da fundação da Faculdade de Ciências Econômicas e
Administrativas, posteriormente incorporada à Universidade do Brasil, hoje
Universidade Federal do Rio de Janeiro. Nessa oportunidade, formulou o primeiro
programa de ensino superior de Ciências Econômicas no país. Por esse motivo,
foi designado, em 1944, pelo ministro de Educação Gustavo Capanema, para
redigir o projeto de lei que institucionalizou o Curso de Economia no Brasil.
Pelos seus esforços em prol da divulgação dos cursos de Economia, é considerado
o patrono dos economistas brasileiros. Em 1948, Gudin e Octávio Gouvêa de
Bulhões lideraram o grupo de economistas que criou a Revista Brasileira
de Economia. Em 1951, esse mesmo grupo criou o Instituto Brasileiro de
Economia e em 1952 assumiu o controle da revista Conjuntura Econômica.
Gudin lecionou Economia na Universidade do Brasil até 1957, quando se
aposentou. Posteriormente foi Vice-Presidente da Fundação Getúlio Vargas, entre
1960 e 1976.
[17] GUDIN,
Eugênio. Apud Maria Angélica BORGES, Gudin, Capitalismo e Neoliberalismo,
ob. cit., pg. 263.