Aproveito a ocasião de postar este artigo de meu amigo Ricardo Velez-Rodríguez para informar que ele é um dos colaboradores ao livro que eu organizei sobre a vida, a obra e o pensamento de Roberto Campos, intitulado O Homem que Pensou o Brasil (Curitiba: Editora Appris, em publicação próxima), com muitos outros artigos de colaboradores distinguidos.
Vou postar os dados desse volume neste espaço.
Paulo Roberto de Almeida
Roberto Campos (1917-2001)
Um democrata que
sempre se empenhou na modernização das nossas instituições
RICARDO VÉLEZ
RODRIGUEZ*
O Estado de S. Paulo, 15
Março 2017
Comemora-se
este ano, no dia 17 de abril, o centenário de Roberto Campos.
A sua
figura é importante no processo de redemocratização do Brasil, pois Campos
conhecia em profundidade não apenas a natureza patrimonialista do Estado, como
também as mudanças pelas quais o País enveredou no segundo pós-guerra, tendo
participado dos esforços de modernização e democratização das nossas
instituições.
Durante
décadas o establishment do Itamaraty tentou riscar do mapa o embaixador Roberto
Campos, porquanto representativa de um perigo para os que se haviam encastelado
no regime de sesmarias ao redor de uma opção pelo “socialismo real”, após a
derrota dos alemães na 2.ª Guerra Mundial. Quando nosso personagem optou por se
habilitar em concurso para trabalhar no Ministério das Relações Exteriores em
pleno Estado Novo, no ano de 1938, a maior parte dos diplomatas brasileiros se
colocava no contexto dos interesses do Eixo. Mas quando as forças de Hitler
começaram a ser derrotadas pelos Aliados na etapa final da 2.ª Grande Guerra,
os diplomatas correram céleres para se arrumarem em torno dos representantes
das democracias ditas “populares”, chefiadas pela antiga União Soviética.
Guinada de 180 graus que, contudo, deixou intacto o dogmatismo e o gosto pelo
“poder total”.
Entre
os Aliados, os itamaratyanos fizeram a sua escolha: os russos, que representavam
a nova força que se estabelecia no mundo, contrária aos americanos. A respeito
do clima que se vivia no Ministério das Relações Exteriores no contexto dessa
arrumação ideológica, escreve Roberto Campos: “O Itamaraty, situado na avenida
Marechal Floriano (a antiga rua Larga de São Joaquim), era comumente apelidado
de Butantã da rua Larga. São cobras, mas fingem que são minhocas – dizia-me de
seus colegas o admirável Guimarães Rosa, que depois se tornaria o meu escritor
preferido” (Roberto Campos, Lanterna na Popa – Memórias, Rio de Janeiro,
Topbooks, 1994, pág. 31).
Roberto
Campos e um grupo minoritário representaram a opção por um conceito de
diplomacia afinado com a democracia ocidental e alheio à busca do
“democratismo” que terminou vingando no mundo comunista. Como ele mesmo
destacava, virou uma espécie de “profeta da liberdade”, à maneira, aliás, de
Tocqueville, que se descrevia a si próprio como um “São João Batista que prega
no deserto”. A respeito da opção liberal, frisa Roberto Campos na sua obra
autobiográfica, A Lanterna na Popa: “Em nenhum momento consegui a
grandeza. Em todos os momentos procurei escapar da mediocridade. Fui um pouco
um apóstolo, sem a coragem de ser mártir. Lutei contra as marés do
nacional-populismo, antecipando o refluxo da onda. Às vezes ousei profetizar,
não por ver mais que os outros, mas por ver antes. Por muito tempo, ao defender
o liberalismo econômico, fui considerado um herege imprudente. Os
acontecimentos mundiais, na visão de alguns, me promoveram a profeta responsável”.
Talvez
o traço mais marcante da personalidade intelectual de Roberto Campos tenha sido
a capacidade de rir de si próprio, estabelecendo uma saudável relatividade nos
seus pontos de vista. Definiu-se a si mesmo, no primeiro capítulo de sua
autobiografia, como “analfabeto erudito”. Analfabeto em matéria de
especialidades cartoriais que o habilitariam para um concurso público. Mas
erudito por uma inegável formação humanística haurida no seminário, onde cursou
os estudos completos de Filosofia e Teologia, além de ter recebido as ordens
menores – hostiário, leitor, exorcista, acólito.
Assim,
a passagem de Roberto Campos pela divisão de “secos e molhados” (nome jocoso
dado pelo nosso autor à área de Assuntos Econômicos do Itamaraty) foi bastante
profícua, tendo-o colocado, juntamente com Eugênio Gudin, na linha de frente da
formulação das políticas econômicas, que se tornariam, após a Conferência de
Bretton Woods, em 1944, a peça forte das relações diplomáticas. (Da mencionada
conferência Roberto Campos participou como assessor da equipe brasileira
chefiada pelo professor Gudin.)
Duas
etapas podem ser reconhecidas na formação do liberalismo econômico no nosso
autor: a primeira, em que a influência maior veio de Keynes, e a segunda, já
derrubado o Muro de Berlim, com uma aproximação maior do pensamento da Escola
Austríaca. Mas sempre mantendo atenta a vista na construção de instituições que
conduzissem o Brasil ao pleno desenvolvimento econômico com preservação da
liberdade.
Roberto
Campos foi também um crítico do patrimonialismo. Ao meu ver, um crítico
sistemático das práticas patrimonialistas com a tendência a fazer do Estado
negócio familiar. Na sua última fala no Congresso Nacional, ao se despedir da
vida pública, em 1999, frisou naquela bela página divulgada pelo Estadão:
“ (...). Sempre achei que um dos mais graves problemas dos subdesenvolvidos é a
sua incompetência na descoberta dos verdadeiros inimigos. Assim, por exemplo os
responsáveis pela nossa pobreza não são o liberalismo, nem o capitalismo, em que
somos noviços destreinados, e sim a inflação, a falta de educação básica e um
assistencialismo governamental incompetente, que faz com que os assistentes
passem melhor que os assistidos. Os inimigos do desenvolvimento não são os
entreguistas, que, aliás, só poderiam entregar miséria e subdesenvolvimento, e
sim os monopolistas, que cultivam ineficiências e criaram uma nova classe de
privilegiados – os burgueses do Estado. Os promotores da inflação não são a
ganância dos empresários ou a predação das multinacionais, e sim esse velho
safado, que conosco convive desde o albor da República – o déficit do setor
público” (A despedida de Roberto Campos, O Estado de S. Paulo, 31/1/1999,
página A8).
*
RICARDO VÉLEZ RODRIGUEZ É COORDENADOR DO CENTRO DE PESQUISAS ESTRATÉGICAS
DA UFJF, PROFESSOR EMÉRITO DA ECEME, DOCENTE DA FACULDADE ARTHUR THOMAS,
EM LONDRINA E-MAIL: RIVE2001@GMAIL.COM
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