Paulo Roberto de Almeida
[Aula inaugural no Curso de Pós-Graduação
Lato Sensu em Diplomacia e Relações Internacionais da UFG, em Goiânia, em 24/03/2017,
a convite do Prof. Diego Trindade D’Ávila Magalhães, coordenador do curso.]
Sumário:
1. Continuidade ou
ruptura em política externa: ambiguidade de situações
2. O continuísmo diplomático
pelo staff profissional do Itamaraty
3. Quais são as
grandes linhas da diplomacia e da política externa desde 1985?
4. Uma diplomacia
conservadora para uma política externa idem?
5. A grande
ruptura e o Grande Desastre: o lulopetismo diplomático
6. Recuperando o
recuperável: o que fazer do legado de compromissos?
7. Conclusões
provisórias: que floresçam as cem flores?
Antes de formular
qualquer observação sobre a política externa e a diplomacia brasileira (são
duas coisas diferentes, como já comentei diversas vezes, embora possuindo certa
imbricação), cabe refletir sobre os rótulos eventualmente usados para definir
uma ou outra: desde a chamada “Política Externa Independente”, no início dos
anos 1960, tivemos vários outros slogans para definir as supostamente
diferentes orientações externas dos governos sucessivos do regime militar, até
voltarmos à normalidade de uma diplomacia sem rótulos, a despeito de fugazes
tentativas nesse sentido. Tivemos, aparentemente: (a) uma “diplomacia dos
círculos concêntricos” (1964-67), baseada nas teses do coronel Golbery do Couto
e Silva sobre a ancoragem do Brasil no chamado Ocidente, liderado, então como
hoje, pelos Estados Unidos, agora bem menos do que no passado; (b) a
“diplomacia da prosperidade” (1967-69), dos governos Costa e Silva e Médici,
que se desdobrou no projeto militar do “Brasil Grande Potência” (1969-74); (c)
as novas orientações diplomáticas dadas pela dupla Geisel-Azeredo da Silveira
ao que se chamou de “pragmatismo responsável e ecumênico” (1974-79); seguido
(d) pelo “universalismo” (1979-85) de Saraiva Guerreiro.
Depois disso, esses
rótulos de conveniência praticamente desapareceram da política externa brasileira,
a despeito de uma fugaz “diplomacia de resultados” (1985) atribuída ao breve
chanceler da redemocratização, Olavo Setúbal, sem que se possa identificar, nos
governos seguintes, uma preocupação terminológica especial. Foi apenas nos dois
primeiros mandatos do regime lulopetista – e eu o chamo de regime em função de
suas características especiais, que estão explicitadas em meu livro Nunca Antes na Diplomacia: a política
externa brasileira em tempos não convencionais (Curitiba: Editora Appris,
2014) – que se volta à necessidade, aparentemente psicológica, de atribuir um
rótulo à política externa que se pretendia uma espécie de retorno à Política
Externa Independente: chamou-se, então, de “diplomacia ativa e altiva”
(2003-2010), por vezes acrescida da palavra mágica “soberana”, como para
demarcar as grandes diferenças entre essa política externa e as dos governos
anteriores, supostamente não ativos e sobretudo não altivos, ou seja, acusado
de serem submissos e conformados a um fantasmagórico Consenso de Washington,
que o novo governo logo procurou substituir por um ainda mais fantasmagórico
“Consenso de Buenos Aires” (2003), febrilmente oferecido aos demais países
latino-americanos pela dupla Lula-Kirchner para ser soberbamente ignorado por
eles e por toda a comunidade internacional (também já escrevi sobre esse
patético exercício em 2003).
Esses rótulos
antecipatórios, ou slogans supostamente definidores de uma política externa que
se pretende implementar, não têm muita importância, em si mesmos, ou seja, como
reveladores da política externa efetivamente seguida, ao longo do governo que
os escolhe, mas são reveladores de certa psicologia de seus autores, ou
proponentes, inclusive no que se refere à necessidade pressentida de apresentar
algum tipo de justificativa em vista das mudanças propostas, que podem
representar uma espécie de inflexão, ou ruptura, ao que vinha sendo seguido
anteriormente. Assim foi com a chamada PEI, que supostamente representaria uma
saída do “alinhamento incondicional” com as posturas internacionais dos EUA, em
direção (mas de forma moderada) do chamado não-alinhamento, neutralismo ou
“terceira posição”). Os dois rótulos de maior “sucesso conceitual” durante esse
longo período foram, não por acaso, aqueles que efetivamente corresponderam aos
dois momentos de maiores mudanças nas orientações de política externa e de
ativismo diplomático, que foram, respectivamente, o “pragmatismo responsável e
ecumênico”, da dupla Ernesto Geisel e Antonio Azeredo da Silveira, e a
“diplomacia ativa e altiva” da dupla Lula-Amorim.
Não é o caso de
examinar, aqui e agora, as características de cada uma dessas políticas
respectivas, relativamente inovadoras, em relação ao que havia antes e ao que
veio depois – uma vez que já existem muitos trabalhos, acadêmicos e de
diplomatas, que se dedicaram a essa tarefa, inclusive o meu livro acima citado,
Nunca Antes na Diplomacia – mas cabe,
sim, registrar que ambas buscam estabelecer princípios e valores de suas
próprias legitimidades políticas, ou seja, a tal necessidade psicológica.
Vamos, em todo caso, resumir um pouco dos itinerários recentes na política
externa brasileira, que têm a ver justamente com a questão maior da
continuidade ou da ruptura nas principais orientações diplomáticas em cada
período, tal como definidas na defesa que delas fizeram seus respectivos
proponentes, num caso o presidente Geisel e seu chanceler Azeredo da Silveira,
noutro caso, o presidente Lula e os principais assessores em política externa,
respectivamente, e pela ordem, os diplomatas Samuel Pinheiro Guimarães e Celso
Amorim e o apparatchik Marco Aurélio Garcia, o homem do Foro de São Paulo, que
nada mais é senão um instrumento dos comunistas cubanos para controlar e
orientar os partidos de esquerda da América Latina.
1.
Continuidade ou ruptura em política externa: ambiguidade de situações
Em política externa, o
normal é a continuidade, sendo mais raras as fases de ruptura, inclusive por
causa dos compromissos externos que não podem ser rompidos facilmente, e porque
também existe um corpo consolidado de posições que reflete um determinado modo
de inserção no sistema de relações internacionais – nas suas diferentes
vertentes, bilateral, regional, multilateral – e um staff especializado, de
caráter permanente, que tende a ser conservador nos hábitos e no pensamento. Os
diplomatas são, em geral, continuístas, legitimistas (no sentido em que sempre
vão defender o governo do momento), burocráticos, cautelosos ao extremo e,
portanto, tendentes ao continuísmo em política externa e na política nacional,
de modo amplo.
Isso não impede o
acolhimento de novas ideias, quando elas correspondem ao Zeitgeist, ou os ares do momento, como podem ter sido, em suas
respectivas épocas, o desenvolvimentismo cepaliano e de JK, a Política Externa
Independente, de Quadros e Arinos, preservada na administração Goulart-San
Tiago Dantas, e até o último chanceler do regime de 1946, João Augusto de
Araújo Castro, um dos raros diplomatas não burocratas, e tido por muitos como
intelectual. Aquilo que se pode chamar de ideologia do desenvolvimento é a
ideologia oficial do Itamaraty, e é também a ideologia nacional brasileira
desde a era Vargas, e especialmente desde os últimos anos da república de 1946.
Existe, portanto, uma grande continuidade nas ideias e princípios que movem a
diplomacia brasileira desde longos anos, o que eu já examinei em dois textos de
1986, “A ideologia da política externa: sete teses idealistas” e “A economia da
política externa: do primário ao terciário”, inseridas como capítulos V e VII
na primeira edição de meu livro Relações
Internacionais e Política Externa do Brasil (Porto Alegre: Editora da
UFRGS, 1998), não mais reproduzidos nas duas edições posteriores (2004 e 2012)
desse livro. Nesses dois capítulos, eu trato basicamente de ideias e conceitos,
e pode-se registrar uma grande continuidade “filosófica” entre a diplomacia do
final dos anos 1950 e início dos 60, a que foi implementada pela dupla
Geisel-Silveira nos anos 1970, a “diplomacia do pragmatismo responsável”, e que
seria retomada, em termos modificados mas de certa forma coincidentes, na
“diplomacia ativa e altiva” dos companheiros, que eu chamo de diplomacia
lulopetista (mas que deve muito pouco ao seu chefe político, e bem mais aos
seus conselheiros diplomáticos já citados).
Não existe propriamente
novidade em registrar que o presidente Lula era um grande admirador do
presidente Geisel, o mais autoritário, concentrador, estatizante e
intervencionista dos presidentes militares, assim como a dupla Samuel-Amorim
era admiradora confessa da Política Externa Independente e ambos não relutavam
em admitir que estavam resgatando tudo aquilo que tinha sido defendido nos anos
de suposto não-alinhamento com a potência imperial e de compromissos com os
objetivos desenvolvimentista daquela época. Ainda que Lula não exibisse, nem de
longe, qualquer uma das supostas “qualidades” do presidente Geisel, de certa
forma um “tecnocrata” exemplar do regime militar, ele tinha grande apreço,
mesmo de forma inconsciente e totalmente instintiva, pela via “prussiana” do
desenvolvimento brasileiro, ou seja, pelo alto, feita de um exagerado
intervencionismo estatal, um protecionismo igualmente míope e todo aquele
impulso megalomaníaco de fazer do Brasil uma grande potência, respeitada nos
cenários regional e internacional. A dupla Samuel-Amorim se encarregou de fazer
exatamente isso, secundada pela assessoria caninamente “cubana” do apparatchik
do PT na presidência da República, várias vezes ironicamente chamado, pelo
jornalismo setorial, de “chanceler para a América do Sul”, em vista das
limitadas capacidades que ele exibia para a política externa como um todo.
2. O
continuísmo diplomático pelo staff profissional do Itamaraty
O próprio corpo de
servidores do Itamaraty, os diplomatas profissionais, tendem a ser mais continuístas
com aquela “ideologia desenvolvimentistas”, mas também são “legitimistas”, no
sentido em que podem se adaptar facilmente a mudanças de postura, tais como
emanadas da presidência da República. Tal foi o caso da primeira fase do regime
militar – o suposto alinhamento do governo Castelo Branco com as teses da
potência líder do Ocidente, o que não corresponde à verdade dos fatos – e
também das várias mudanças operadas no breve interlúdio de Fernando Collor na
presidência (1990-92), quando novas orientações, de abertura econômica e de
liberalização comercial, foram impressas naquela conjuntura (revisão
metodológica no Mercosul, adoção de ampla reforma tarifária, que correspondeu à
Tarifa Externa Comum, aceitação dos novos temas na Rodada Uruguai do Gatt,
revisão da política nuclear, início do processo de privatização de companhias
estatais, etc.). Foi também o caso da presidência FHC, quando se alterou a
política nuclear brasileira, no sentido da aceitação do TNP (1968), e de
diversos outros compromissos em geral alinhados com a postura globalizante e
progressista do presidente.
Ainda não existem
trabalhos suficientemente independentes sobre a postura dos diplomatas
profissionais com respeito às muitas “inovações” – em grande medida muito
duvidosas – da era Lula-Amorim, inclusive porque a maior parte do corpo de
servidores se mantive bastante discreto quanto às iniciativas lançadas pelo
lulismo diplomático, apenas cumprindo diligentemente (como sempre acontece) as
ordens emanadas de cima em nome da gloriosa “diplomacia ativa e altiva”
(bastante bem defendida por seus principais ideólogos diplomatas, o chanceler e
seu secretário-geral. Mas existe, sim, uma pletora de trabalhos acadêmicos
saudando a tal diplomacia “ativa e altiva” como sendo uma espécie de nec plus ultra do nacionalismo
diplomático, do soberanismo elementar, da busca de espaços próprios, não
tutelados pelo “império”, nos cenários regional e internacional. Não hesitaria
em dizer que 90% da academia engajada nesse tipo de estudos internacionalistas
mostrou-se amplamente satisfeita com o novo estilo diplomático dos
lulopetistas, com inúmeros trabalhos tecendo elogios até exagerados à política
externa “ativa e altiva” dos companheiros.
Se me permitem uma
referência pessoal, eu devo ter sido o único diplomata profissional e um dos
raros estudiosos acadêmicos – ao lado dos editoriais sempre cáusticos do
venerando jornal reacionário, O Estado de
S. Paulo, e de algumas matérias críticas da Veja, sobre a “diplomacia megalonanica” – que criticou abertamente as
novas orientações da política externa, conhecedor, como sempre fui, dos
caminhos do PT e suas vinculações cubanas. Sofri, por isso mesmo, treze anos e
meio de ostracismo no Itamaraty, durante os quais não apenas fui vetado para
cargos oferecidos em áreas que não tinha diretamente a ver com a política
externa “executiva”, como tampouco exerci qualquer cargo na Secretaria de
Estado; durante longos anos fui confinado ao chamado Departamento de Escadas e
Corredores, fazendo da biblioteca o meu escritório de trabalho, e me dedicando,
justamente, à escrita e à publicação de muitos artigos e de alguns livros sobre
os descaminhos dessa diplomacia enviesada, o que me era facultado pela completa
disponibilidade de tempo nessa interminável travessia do deserto.
De certa forma, eu
representei uma espécie de continuísmo – o que não é exatamente verdade –
quando a maior parte, senão a totalidade do Itamaraty aderia de maneira
obediente às invenções pirotécnicas do lulopetismo diplomático. Digo que o
continuísmo não figura entre minhas inclinações diplomáticas, porque considero
o Itamaraty excessivamente conservador – ou seja, muito pouco inovador – com
respeito ao conjunto das ideias e valores que orientam essa “ideologia do
desenvolvimento” no velho sentido cepaliano e terceiro-mundista que geralmente
constitui a communis opinio dos
diplomatas profissionais. Independentemente, portanto, das pretensas inovações
da era Lula-Amorim, o fato é que o lulopetismo diplomático, à exceção da
pirotecnia megalomaníaca, representou um grande continuísmo com respeito à
Política Externa Independente dos anos anteriores ao regime militar e, também,
com o “pragmatismo responsável” da era Geisel-Silveira.
3. Quais são
as grandes linhas da diplomacia e da política externa desde 1985?
O período final do
regime militar já não exibia mais aquelas preocupações exageradas com a
segurança – ou seja, o anticomunismo oficial – que tinham caracterizado o seu
início. Já não se falava mais em “Brasil Grande Potência”, inclusive porque
foram anos e anos de crises contínuas (o segundo choque do petróleo, em 1979, a
crise da dívida externa, a partir de 1982, e que ocupou o Brasil e a sua
diplomacia pela década e meia seguinte), e sim em esforços de desenvolvimento
no quadro das grandes mudanças trazidas pelo “aggiornamento” nos regimes
comunistas, inauguradas pelo reformismo da era Deng Xiaoping na China, e logo
seguidas pelo “glasnost” e pela “perestroika” do breve período Gorbatchev na
União Soviética.
A diplomacia brasileira
continuou a ser conservadoramente desenvolvimentista, e bastante relutante em
aceitar novos compromissos de abertura econômica ou de liberalização comercial,
embarcado na integração bilateral com a Argentina, processo que foi
quadrilateralizado no início dos anos 1990, com a constituição do Mercosul. A
diplomacia de FHC foi basicamente profissional, ou seja, itamaratiana, com as
já mencionadas inovações na área da política nuclear e da aceitação cautelosa
de novos compromissos em matéria de acordos comerciais (multilaterais e hemisféricos).
Os companheiros inventaram iniciativas mentirosamente “inéditas” que se
conformassem ao seu desejo de se enquadrar na fábula do “nunca antes”. A
prioridade para a América do Sul, por exemplo, já estava dada desde o início da
era FHC, e mesmo antes, sob a gestão de Itamar Franco, quando se tentou
contrapor às iniciativas americanas – a de Bush pai e a de Clinton – de um
amplo acordo hemisférico de livre comércio a proposta de um superficialmente
formulado projeto de Alcsa, uma área de livre comércio sul-americana (jamais
realizada formalmente, senão por uma miríade de acordos parciais na Aladi). A
abertura e o relacionamento com grandes parceiros do chamado Sul Global (uma
invenção geográfica sem qualquer sentido econômico ou mesmo diplomático) já
estava posta desde muito antes igualmente, inclusive porque o Itamaraty sempre
foi adepto dessas alianças terceiro-mundistas. O projeto de FHC de integrar
fisicamente a América do Sul foi despudoradamente roubado, reinventado sob
outro nome e, como várias outras iniciativas companheiras nessa área,
permaneceu não implementado, por falta de competência para levá-lo adiante, sem
as parcerias anteriormente previstas no projeto original.
4. Uma
diplomacia conservadora para uma política externa idem?
As grandes linhas da
diplomacia brasileira, historicamente, sempre foram as mesmas, ao longo de
vários governos e mesmo regimes: aproveitar as oportunidades oferecidas pelo
sistema internacional – em termos de comércio, investimentos, transferência de
tecnologia, acordos de cooperação, etc. – para impulsionar o processo de
desenvolvimento do Brasil; encontrar e definir os melhores parceiros para
ajudar, no plano bilateral, esse grandioso propósito, o que significava,
obviamente, os países mais avançados do bloco ocidental (embora isso não
descurasse o relacionamento econômico mesmo com os países do bloco soviético,
objeto de cuidados especiais durante todo o período da Guerra Fria); manter um
relacionamento estreito com os vizinhos da região, em especial no Cone Sul;
explorar canais de inserção nos mecanismos decisórios no plano multilateral, o
que implica um grande ativismo nos órgãos setoriais da ONU, como na própria
instituição-mãe, com o sempre acalentado desejo de lograr a reforma da Carta
para uma ampliação do seu Conselho de Segurança, avançando a disposição para
obter uma cadeira permanente em caso de eleição ou escolha nessa linha; exercer
papel preeminente nas coalizões de países em desenvolvimento para reforçar
demandas em favor de uma nova ordem econômica internacional, mais favorável aos
interesses desses países, em prol de mudanças na estrutura do comércio
internacional e nos projetos de industrialização substitutiva; atribuir relevo
principal, na agenda política e econômica mundial, para os objetivos de
desenvolvimento, em lugar dos gastos com segurança e defesa, insistindo nas
metas de desarmamento, sobretudo nuclear; cuidado extremo com a preservação da
soberania brasileira em todas as vertentes de trabalho.
Esses sempre foram,
entre muitos outros, os objetivos constantes e recorrentes da diplomacia
brasileira na implementação da política externa de cada presidente, com
pequenas variações de forma entre um mandato e outro, praticamente desde a
Segunda Guerra Mundial até os nossos dias. Isso equivale a dizer que o
Itamaraty é relativamente conservador na definição das metas de trabalho – mas sempre
em consonância com os grandes objetivos nacionais, e preservando um estilo que
não diferiu muito ao longo de décadas – como sempre foram conservadoras as relações
mantidas com os principais parceiros, desenvolvidos ou em desenvolvimento. Nas
poucas vezes em que tentou ser inovador, nas últimas décadas, como por exemplo
a proposta de se criar um grande espaço econômico unificado na América do Sul,
pela via de acordos comerciais, ou os projetos de integração física no mesmo
continente, os resultados foram muito modestos, para não dizer marginais ou
nulos. Mesmo na grande decisão de reduzir sua própria soberania estatal em
favor de um projeto ambicioso de integração, como no caso do Mercosul, os
resultados também ficaram muito aquém do esperado: em lugar do mercado comum,
uma colcha de retalhos sob a aparência de união aduaneira, com várias exceções
nacionais, e uma zona de livre comércio com muitas perfurações, dada a
indisposição dos países membros (entre eles o próprio Brasil), para uma real
abertura econômica recíproca e uma efetiva liberalização comercial.
5. A grande
ruptura e o Grande Desastre: o lulopetismo diplomático
Os três grandes
objetivos do lulopetismo diplomático eram, tal como expresso diversas vezes pelos
seus dirigentes máximos: (a) o reforço e a extensão do Mercosul na América do
Sul; (b) a conclusão exitosa das negociações comerciais multilaterais da Rodada
Doha; (c) a conquista de uma cadeira permanente no Conselho de Segurança, via
reforma da Carta das Nações Unidas. Parece evidente que, não só esses objetivos
deixaram de ser alcançados, mas que seu atingimento ficou ainda pior ao longo
de três gestões completas do lulopetismo diplomático e não parecem próximos de
serem alcançados no futuro previsível. Esse insucesso clamoroso não pode ser
inteiramente debitado à incompetência dos gestores dessa política externa,
ainda que o terceiro objetivo era claramente irrealista e tentou se realizado de
uma maneira totalmente ineficiente: colocando a pretensão do Brasil no quadro
de um agrupamento, o G-4 (com outros candidatos, como Índia, Alemanha e Japão),
cujos membros tinham suas arestas regionais que acabaram inviabilizando os
objetivos do quatro membros.
O primeiro objetivo era
perfeitamente realizável se o lulopetismo mantivesse uma política comercial
compatível com os objetivos originais do Mercosul e alinhada com as novas
demandas surgidas no continente a partir dos projetos americanos de um grande
acordo hemisférico de livre comércio. Em lugar disso, os companheiros, como
inimigos ideológicos do “império”, se empenharam em sabotar a Alca, como se
todos os demais fossem se unir em torno de vagas propostas brasileiras de um
bloco comercial excessivamente limitado para atrair os grandes parceiros da
região (que de resto sempre cobiçaram os mercados e os investimentos
americanos). Eles foram, junto com os dois outros aliados no empreendimento, a
Argentina de Nestor Kirchner e a Venezuela de Hugo Chávez, totalmente bem
sucedidos na implosão do projeto americano da Alca, apenas para se virem
isolados na sequência dos acordos parciais concluídos pelos EUA com cada país
ou grupos de países interessados no esquema por eles oferecido. Quanto ao
Mercosul, ele foi desviado de seus objetivos comercialistas, para converter num
palco de retórica política e de iniciativas sociais, totalmente inócuas do
ponto de vista da integração econômica prometida em seu tratado constitutivo.
As negociações
comerciais multilaterais tampouco avançaram como esperado pelos companheiros,
inclusive porque os companheiros dos companheiros, países como Argentina,
Índia, China e outros em desenvolvimento, mantinham uma disposição muito débil
para a abertura econômica e o desarme tarifário industrial, ao mesmo tempo em
que os grandes parceiros desenvolvidos tampouco estavam dispostos a desmantelar
o arsenal subvencionista e protecionista no setor agrícola. De forma geral, a
política comercial dos companheiros foi totalmente irrealista e inadequada às
necessidades dos setores competitivos da economia nacional, inclusive em
virtude de preconceitos de tipo ideológico mantidos pelos principais
formuladores dessa política enviesada.
Assim, o que era para
ser uma ruptura com o “neoliberalismo” do ancien régime tucanês acabou
revelando-se um grande fiasco substantivo, até no plano puramente formal das
táticas diplomáticas. O que dizer, então, da suposta liderança na América do
Sul e do desejo pouco secreto de ser o grande irmão generoso para vizinhos
menores ou supostamente dependentes? Quais foram os sucessos alcançados com a
Argentina dos Kirchner, da Bolívia de Evo Morales, do Equador de Ruben Correa,
ou da Venezuela de Chávez? Ainda não se contabilizou devidamente a soma total
dos imensos negócios paralelos que foram feitos em benefício de capitalistas
promíscuos e dos companheiros engajados nesses canais paralelos à diplomacia
oficial do Itamaraty, com gigantescos empréstimos e investimentos públicos
brasileiros em projetos obscuros ou claramente clandestinos, abrindo espaço, ao
que parece, para tenebrosas transações feitas à margem e no desconhecimento da
pátria mãe tão distraída.
Além dos fiascos
acumulados ao longo do regime companheiro, não se pode deixar de apontar como
as instituições públicas – o BNDES, por exemplo – foram usadas e abusadas para
projetos propriamente criminosos, tanto mais grandiosos quanto mais ditatoriais
ou autocráticos eram os parceiros envolvidos em transações altamente suspeitas.
Apenas um trecho de um livro publicado sobre esse tipo de projeção pouco
edificante permite desvendar o tipo de arranjo a que os companheiros se
dedicaram externamente desde que pegaram o jeito de fazer negócios para eles
mesmos:
Em
dezembro de 2016, um documento devastador do Departamento de Justiça americano
revelava: ‘Entre 2006 e 2013, a Odebrecht realizou mais de US$ 50 milhões em
pagamentos para autoridades do governo em Angola para assegurar contratos de
obras públicas.’
Fábio
Zanini: Euforia e Fracasso do Brasil
Grande: política externa e multinacionais brasileiras na era Lula. São
Paulo: Contexto, 2017, p. 82.
As demais histórias do
livro também são devastadoras, não exatamente para a reputação do PT, uma vez
que todos sabem que esse agrupamento heteróclito de neobolcheviques sem doutrina
é uma organização criminosa desde muito tempo, mas basicamente para a reputação
do Brasil e sua política externa, ao conformar um padrão que rompe todos os
compromissos anticorrupção assinados pelo Brasil desde os anos 1990. Como
revela ainda esse autor, “entre 2003 e 2015, o BNDES liberou US$ 14 bilhões
para 575 projetos no exterior, em 11 países da África e da América Latina.”
Os companheiros
conspurcaram a imagem do Brasil, sem que na verdade se tenha conhecimento de
uma infinidade de outros casos não documentados, uma vez que outro dos crimes
cometidos contra o Estado foi, sistematicamente, a condução de certos negócios
por vias paralelas, clandestinas, deliberadamente subtraídas a qualquer
escrutínio governamental, e até mesmo dos registros do Itamaraty. As mesmas
práticas criminosas testadas externamente foram amplamente repetidas no próprio
Brasil, onde a máquina de um ministério chave como a Fazenda foi usada para
fabricar medidas especialmente talhadas para beneficiar essas mesmas empresas
promíscuas, desde que um jorro de “doações legais” aportasse nas contas do
partido delinquente.
6.
Recuperando o recuperável: o que fazer do legado de compromissos?
Talvez seja ainda muito
cedo para fazer um balanço completo das imensas perdas, algumas irreparáveis,
trazidas pelo assalto ao poder da tropa de meliantes que congrega inocentes
militantes dirigidos por uma quadrilha de mafiosos. A corrupção das
instituições e o retrocesso econômico – provocando a maior crise da história
econômica do Brasil, a que eu chamei de Grande Desastre – podem ser
eventualmente reparados no plano interno, mas assumir a liderança pouco
desejável de ser um país indutor de corrupção no plano externo constitui,
obviamente, um galardão que não honra as tradições diplomáticas brasileiras.
Mas, existe um outro
aspecto que não tem merecido a devida atenção dos observadores, uma vez que se
considera que iniciativas diplomáticas tomadas numa determinada administração,
por engajar a palavra do Brasil externamente, precisam ser honradas e
preservadas, quaisquer que tenham sido as motivações originais. Estão neste
caso certo número de novas organizações criadas unicamente para afastar o
fantasma do império da América do Sul e algumas outras, ultrapassando essas
fronteiras e que unem o Brasil a regimes pouco frequentáveis em condições
normais, obrigando o Brasil a desvios de conduta em termos do direito
internacional, ou de princípios democráticos. A avaliação isenta do legado de
compromissos criados com objetivos altamente duvidosos pela diplomacia
lulopetista ainda está para ser feita, em algum momento de um governo futuro. Assim
como se descobre que os casos do vasto empreendimento de corrupção revelados no
plano interno constituem tão somente a ponta de um gigantesco iceberg,
provavelmente vai se identificar, por meio do exame acurado dos arquivos
nacionais e estrangeiros, que a megalomania diplomática do chefe de quadrilha
está deixando um passivo imenso na frente externa.
7.
Conclusões provisórias: que floresçam as cem flores?
O Brasil possui agora
uma janela de oportunidade para repassar todos os atos lícitos, mas
equivocados, e principalmente os ilícitos perpetrados pelos companheiros na
primeira década e meia do século XXI, começando ainda antes da assunção ao
poder – pelos plebiscitos contra a dívida externa, por exemplo, ou a ação
contra a Alca – e se estendendo ainda no momento atual. A conjuntura histórica
de corrupção e equívocos fabricados por inépcia ou ação deliberada pelos
companheiros não encontra paralelo em nenhum outro momento de nossa história, o
que não parece ter sido ainda compreendido pela comunidade acadêmica em toda a
sua dimensão propriamente criminosa. Existe uma tolerância implícita com a
delinquência diplomática, uma vez que a versão por eles propagada busca fazer
acreditar a tese totalmente equivocada da “autonomia” nacional, quando do que
se trata, verdadeiramente, é de uma colusão com pelo menos um poder estrangeiro
que controlou, por meios diversos, os dirigentes de uma associação feita para
delinquir, justamente.
O debate aberto, franco,
e desprovido de a prioris propagandísticos,
sobre os tempos não convencionais da diplomacia lulopetista ainda resta ser
feito, embora o registro documental sobre um volume significativo de ações
paralelas careça, como já dito, de provas cabais sobre aquilo que Ranke chamava
de wie es eigentlich gewesen, ou seja,
aquilo que realmente se passou. No que depender de mim, estou pronto para proclamar,
como no fábula, a nudez do soberano e denunciar uma década e meia de equívocos
monumentais. Um exercício saudável de revisionismo pode agora começar, uma vez
que o novo responsável pela política externa já aventou o exemplo maoísta das
cem flores. Esperemos apenas que não termine como no precedente chinês...
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 24 de março de 2017
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