Um sinal de luz
Nem nos trágicos anos 80, quando houve a crise da dívida externa, nem na década de 30, sob o impacto do crash da Bolsa de Nova York, havíamos enfrentado um retrocesso dessa magnitude. Pior: se não houver surpresas negativas pelo caminho, estima-se que será necessária uma década para que o PIB retorne ao nível no qual se encontrava em 2013, tempo semelhante ao que foi gasto para o país se reerguer da crise legada pela ditadura militar. Não é preciso ser economista para sentir tal retrocesso. Qualquer brasileiro percebe os efeitos nefastos dessa retração na sua vida - na perda do emprego, na queda da qualidade de vida e do poder de consumo, na piora dos serviços públicos ou na crise da segurança.
Mas, finalmente, começam a surgir os primeiros sinais de que a retomada está a caminho. Como no poema de Carlos Drummond de Andrade em que uma flor de esperança rompe o asfalto, um raio de luz de esperança desponta do pântano econômico. "O PIB que foi divulgado se refere ao passado", afirmou o ministro da Fazenda, Henrique Meirelles. "É um espelho retrovisor." Ele está certo. As evidências de que o ano tenha começado de maneira mais favorável podem ser vistas no aumento das vendas nos supermercados, no movimento de cargas nas estradas, na produção de embalagens para a indústria e no crescimento do consumo de energia elétrica. Segundo o IBGE, a produção industrial obteve uma ligeira alta de 1,4% em janeiro, depois de 34 meses consecutivos de resultados negativos. São indicadores de que a economia não está mais em queda livre e desgovernada. Segmentos como o das montadoras, das confecções têxteis e da indústria extrativa conseguiram reverter baixas no começo do ano. No campo, a situação é ainda melhor. As condições meteorológicas favoráveis vão contribuir para uma alta estimada em 22% na colheita de grãos na safra atual. Por fim, mas não menos importante, o Brasil conta com uma conjuntura externa que passou a ser mais favorável às exportações. A valorização das mercadorias agrícolas e minerais trará dólares essenciais para revigorar a economia como um todo.
O cenário é favorável a essa retomada. Mas o fator mais importante (e que permite otimismo com o futuro) foi a correção de rota feita pelo governo. No campo político, a administração de Michel Temer vê alguns de seus principais colaboradores sendo atropelados pela Lava-Jato. Mas na economia sua equipe é sólida e dispõe de alguns dos melhores da área no Brasil. Com Meirelles na Fazenda e Ilan Goldfajn no comando do Banco Central, Temermontou um time respeitado e com bom trânsito entre os investidores brasileiros e internacionais. Isso ajuda a restabelecer a confiança arranhada. "Tive sorte", diz Temer, ao lembrar que formou sua equipe em apenas oito dias (confira a conversa do presidente com VEJA na pág. 64). As estatais, comandadas por nomes como Maria Silvia Bastos Marques e Pedro Parente, também deixaram de atuar como meros braços políticos do governo. Hoje, o governo demonstra uma disposição real para reequilibrar o orçamento e as contas públicas, algo que não estava acontecendo. O mesmo se dá em relação à inflação. Estávamos em um ritmo que se aproximava perigosamente de uma reindexação de 1% ao mês. Voltamos ao centro da meta, 4,5% ao ano, e as perspectivas são que esse número seja ainda menor no fim de 2017. Em fevereiro, a inflação, de 0,33%, foi a menor registrada para o mesmo mês desde o ano 2000. Dessa maneira, o Banco Central poderá reduzir os juros, com reflexos positivos em toda a economia. "O Brasil estava prestes a explodir, nas mãos do governo anterior", afirma o economista Armínio Fraga, ex-presidente do Banco Central (veja a entrevista na pág. 62). "Se o modelo tivesse sido mantido, a tragédia social que estamos vendo seria ainda maior. Os problemas ainda são enormes, mas estão sendo enfrentados."
De fato, estão. Contribui para a melhora da percepção geral a agenda reformista de Temer. No ano passado, foi aprovado o teto para os gastos públicos, uma medida necessária. Neste momento, o governo empenha-se na tramitação da reforma da Previdência Social. Em seguida, tentará flexibilizar a legislação trabalhista e simplificar o sistema tributário. São todas reformas que estavam na lista de desejos havia anos, mas apenas agora, com um presidente impopular e transitório, começam a ser enfrentadas. Curiosamente, todas quase ao mesmo tempo. Nem o governo Fernando Henrique Cardoso, que tinha uma orientação claramente liberal, chegou a tanto. O clima de urgência, obviamente, deriva do tamanho inédito da crise, que, se prolongada ainda mais, ameaçava jogar de volta na miséria todos os que dela saíram nos últimos anos. Dentro dessa linha de agir na direção certa, uma medida que vai contribuir com o alívio orçamentário de uma boa parte das famílias será o resgate dos saldos de contas inativas do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS). Serão 10 milhões de trabalhadores favorecidos, num total de 30 bilhões de reais. Era um dinheiro que ficava praticamente parado, ou servindo a interesses pouco republicanos, e que agora vai ajudar a mover a roda da economia. Outra frente de trabalho são as iniciativas para reduzir os juros do crediário e dos financiamentos, entre elas as novas regras para o rotativo do cartão de crédito.
Embora existam sinais positivos, ainda é cedo para comemorações espalhafatosas. O desemprego, por exemplo, continuará em alta por alguns meses, até que a economia ganhe ritmo novamente. É natural que seja assim. O país ainda paga o preço dos desequilíbrios avassaladores legados por Dilma Rousseff e sua receita populista de esgarçamento das finanças públicas, festejada pelo então ministro da Fazenda Guido Mantega como uma "nova matriz econômica". "O tamanho do estrago feito indica a grande dificuldade em consertar a economia", afirma Gustavo Loyola, sócio da consultoria Tendências e ex-presidente do BC. "Um modelo econômico esgotado, ancorado no consumo do governo e das famílias, foi levado às últimas consequências, e o resultado está dado. Veremos uma retomada lenta." Segundo Loyola, embora a economia provavelmente esteja no ponto de inflexão da crise, alguns fatores importantes carecem de atenção. "A situação fiscal é complicada, e isso impede o investimento público. Aprovar a reforma da Previdência mostraria maior solidez fiscal." Alex Agostini, economista-chefe da Austin Rating, pondera que o caminho para retomar o grau de investimento, a classificação conferida a países que oferecem pouco risco aos investidores, será longo e complicado. "Não adianta somente fazer uma reforma fiscal. É preciso aumentar as receitas de forma sustentável, e isso só se consegue com crescimento", diz Agostini. O economista lembra que, na melhor das hipóteses, o equilíbrio do nível da dívida pública em relação ao tamanho da economia só acontecerá em 2019. "A tragédia maior será se as reformas não forem aprovadas. Na medida em que o orçamento é ocupado por despesas fixas, como a Previdência, sobrará muito pouco para investimentos em áreas importantes, até para saúde, educação e assistência social."
Os ajustes, pelo menos, foram encaminhados. Pior seria se o país continuasse a cavar um poço cada vez mais profundo - e vínhamos nessa toada. Em 2016, apenas a Venezuela teve um tombo maior que o do Brasil. Ficamos atrás até mesmo da Grécia e de outros países europeus que esta-vam com a economia em frangalhos. Durante muito tempo, o discurso da dupla Mantega e Dilma era que a conjuntura externa não era favorável. Como se vê claramente agora, o problema era muito mais interno do que externo. O Brasil é um ponto fora da curva (infelizmente para baixo) no crescimento mundial. Não chega a ser uma situação inédita. Por mais que os jovens não lembrem, somos um país acostumado com crises. Entre os anos de 1981 e 1983, o PIB brasileiro encolheu 8,5%. Foi a época da crise do pagamento da dívida externa, que pôs o país à beira do racionamento de combustíveis, pela incapacidade de importar petróleo. Já no tempo do sequestro da poupança e da hiperinflação no governo Collor, a economia recuou 7,7% em onze trimestres. Em retração e duração, a recessão dos últimos anos supera, portanto, outras graves crises da história. E essa foi, de longe, a que mais doeu no bolso do trabalhador. Segundo um estudo do banco Credit Suisse, em 1980 a renda per capita brasileira equivalia a 36% da americana; em 2016, o porcentual caiu para 26%. Colômbia e Chile tinham um rendimento menor que o do Brasil na década de 80 e conseguiram nos superar - no caso dos chilenos, a renda agora é 65% maior. "Distanciamo-nos dos países que representam a fronteira tecnológica e fomos alcançados pelos mais pobres", observa Regis Bonelli, pesquisador da Fundação Getulio Vargas.
Medidas econômicas levam tempo para surtir efeito. As bases do crescimento vivido na era Lula foram construídas no mandato de Fernando Henrique Cardoso. Com extrema boa vontade, pode-se dizer que a melhora na renda do trabalhador durante o primeiro mandato de Dilma era fruto de decisões tomadas pelo seu antecessor. Nesse ponto, Michel Temer não teve a mesma sorte. A herança recebida por ele é nefasta e tudo indica que seu mandato terminará sem que o legado positivo fique claro. Mas o presidente improvável tem a chance de escrever seu nome na história como aquele que recolocou o país nos trilhos
- e isso não é pouco. A primeira etapa foi vencida: conter o mergulho do PIB. Agora, o governo deve perseverar nos ajustes e nas reformas. Do contrário, o raio de luz que se projeta no horizonte será fugaz e se apagará ainda antes de começar a brilhar de verdade
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