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sexta-feira, 14 de outubro de 2022

Os trens de Mussolini - Simon Schwartzman

By Simon on Oct 14, 2022 06:55 am

(Publicado em O Estado de São Paulo, 14 de outubro de 2022)

Me lembro como se fosse hoje. Era aluno em um conhecido ginásio em Belo Horizonte, e entre uma aula e outra, em uma roda de conversa, o professor de filosofia, ex-integralista, falava entusiasmado sobre as vantagens do fascismo. Eu ouvia espantado, e disse que não poderia concordar com aquilo, que eu vinha de uma família judia, muitos meus familiares haviam sido assassinados nos campos de concentração.  “Ah, entendo”, disse o professor, “então você tem um problema pessoal com isso”.

Eram os anos da guerra fria, em que os Estados Unidos e a União Soviética e seus seguidores disputavam não somente a hegemonia internacional, mas também o lugar de quem melhor encarnava os valores dos que haviam se unido para conter o mostro do nazifascismo, proclamados na Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948. Os Estados Unidos e a Europa Ocidental empunhavam as bandeiras da democracia, liberdades individuais e direito à propriedade, e a União Soviética, as bandeiras do fim da pobreza, desigualdade e exploração. 

Dos dois lados, havia os que acreditavam firmemente em suas bandeiras, e apontavam o dedo para as violações cotidianas destes direitos pelo outro. Mas havia também os que viam como, em ambos, a lógica do poder e de defesa dos interesses estabelecidos muitas vezes se sobrepunha ao discurso humanitário. Na União Soviética, os últimos vestígios da democracia participativa haviam sido enterrados pelos expurgos de Stalin, e nos Estados Unidos os princípios da liberdade e igualdade eram violados diariamente pela persistência da desigualdade social e do racismo. Internacionalmente, a União Soviética impunha com mão de ferro seu poder sobre a Europa Oriental, e os Estados Unidos, em nome da luta contra o comunismo e para defender os interesses de suas companhias, apoiavam as ditaduras latino-americanas e os remanescentes do colonialismo na África e Ásia, muitas vezes de forma sangrenta, como no Vietnam.

Para quem pensava que o mais importante era a promessa dos direitos sociais, as restrições à democracia e aos direitos humanos nos regimes socialistas eram vistas como “erros”, pequenos pecados que poderiam ser eventualmente corrigidos, ou inevitáveis na luta contra os inimigos e por um mundo melhor. Do outro lado, para quem valorizava sobretudo a liberdade econômica e os direitos civis, a pobreza e o apoio a ditaduras totalitárias eram também descontados como problemas circunstanciais, que eventualmente seriam resolvidos em um regime de liberdade política e econômica.  E havia os que concluíam que, no fundo, todos eram cínicos, o único que realmente importava era a disputa pelo poder político e econômico, e que os discursos dos direitos humanos não passavam de um amontoado vazio de palavras.

Esta disputa entre valores, e de regimes políticos que dão mais ênfase a umas partes do que outras dos direitos humanos, marcou o mundo ao longo do século 20, e só foi interrompida pela novidade do nazifascismo, que foi além do cinismo, e passou a incorporar como valores a guerra, a xenofobia, a violência, o racismo e a discriminação.  Era uma doutrina que se dizia se inspirar em supostas tradições, identidades e sentimentos mais profundos dos povos, muitas vezes de cunho religioso, diante dos quais os discursos sobre valores e direitos, e a própria racionalidade abstrata das ciências sociais e naturais, cultivadas, segundo eles, por elites cosmopolitas, perdiam sentido. 

A história mostrou o horror e o desastre criados por esta doutrina, e os importantes resultados trazidos pela liberdade política e econômica e pelos movimentos em prol dos direitos sociais. É inegável que hoje, em todo o mundo e no agregado, existe menos pobreza, miséria e opressão do que cem anos atrás, e que estamos muito mais próximos dos ideais dos direitos humanos do que jamais tivemos.  Mas a distância ainda é grande, mais para determinados grupos e povos do que para outros, e o próprio progresso gera expectativas que acabam se transformando em frustração e ressentimento.

É esse o caldo de cultura para o ressurgimento das doutrinas fascistas e autoritárias, de valorização da violência, xenofobia e ataque às instituições da democracia liberal. Mussolini, afinal, fez os trens italianos andarem no horário, e o nazismo tirou a Alemanha da depressão dos tempos da República de Weimar. Será que isto não é mais importante, como pensava meu professor de filosofia, do que a retórica da ética e dos direitos?

É assim também que raciocinam muitos dos que hoje, no Brasil, não dão maior importância ao crescimento da extrema direita, e a alimentam como a maneira mais prática de conseguir determinados resultados. Mas o que está principalmente em disputa não é saber quem é mais ou menos corrupto, ou quem dá mais prioridade à liberdade econômica ou aos direitos sociais, e sim quem defende ou quem trabalha para romper o consenso sobre os direitos humanos e o regime democrático que, bem ou mal, nos trouxeram até aqui. Eu tenho, sim, um problema pessoal com isto, e espero que não seja só meu.




domingo, 30 de janeiro de 2022

A miséria da educação brasileira não se deve a pouco dinheiro - Simon Schwartzman

 Transcrevo matéria copiada da lista Roda Democrática sobre a MAIOR TRAGÉDIA brasileira, a não educação, com base em artigo de Simon Schwartzman sobre os gastos do Brasil nessa esfera.

Paulo Roberto de Almeida 


O Brasil investe pouco em educação?  

3º episódio da série “A falência do modelo de Estado: sem mudar a topologia, nada muda!”  

“Para isso existem as escolas: não para ensinar as respostas, mas para ensinar as perguntas. As respostas nos permitem andar sobre a terra firme. Mas somente as perguntas nos permitem entrar pelo mar desconhecido.” Rubem Alves  

Um dos poucos assuntos que é uma unanimidade no Brasil é a Educação (saúde também). Pergunte a qualquer pessoa: “Você acha que a Educação deveria ser uma prioridade nacional?” e veja a resposta. Garanto que 99% das pessoas vão responder “SIM!”. Enfaticamente.  

No entanto, os resultados educacionais são muito ruins. Segundo Simon Schwartzman, “os dados do PISA, a pesquisa internacional da OECD sobre a qualidade da educação, mostravam que, dos 47% dos jovens de 15 anos que conseguiam chegar ao fim da escola fundamental ou início da média, 67% não tinham os conhecimentos mínimos de matemática esperados para a série, 18.8% não tinham a capacidade mínima de leitura, e 54% não dominavam os conceitos básicos de ciência. Os outros 53% tinham ficado para trás, ou desistido de estudar. Aos 18 anos, em 2012, somente 29% dos jovens haviam conseguido chegar ao último ano do ensino médio ou haviam entrado no ensino superior, e metade já havia deixado de estudar. Quem olha os dados vê a tragédia que está ocorrendo, mas a maioria da população, talvez por ter conhecido dias piores, não enxerga o problema”.  


Por que a educação brasileira é este desastre?  

Simon Schwartzman

https://www.schwartzman.org.br/sitesimon/

A resposta mais comum é: “falta dinheiro” ou “Investimos pouco”.  

Será?  

No Brasil, o gasto público em educação como percentual do produto interno bruto (PIB) é de 6,3% (Fonte: MEC/Inep/DEED), maior do que a média dos países da OCDE (4,4%) ou mesmo de países como Suécia (5,8%), Bélgica (5,7%), Islândia (5,7%) e Finlândia (5,8%). O Brasil só fica abaixo da Noruega (7,2%).   

Portanto, não falta dinheiro nem investimos pouco em educação.   O problema é outro. Não falta dinheiro nem investimento, mas investimos mal.   

Proporcionalmente, gastamos muito mais do que deveríamos no ensino superior, em detrimento do ensino básico e fundamental. O gasto por aluno do Ensino Superior (R$ 28.640,00) é 3,8 vezes maior que o que gastamos com o aluno da Educação Básica (R$ 6.823,00) mesmo considerando que neste último caso existe o custo da merenda escolar. Nos países desenvolvidos da OCDE, o gasto com aluno do ensino superior é apenas 1,8 vezes maior que o gasto com alunos do ensino básico. Gastamos, portanto, mais do que o dobro dos países da OCDE com o ensino superior (em comparação com o ensino básico e fundamental). Vejam a tabela.  

Outro paradoxo é que 80% dos alunos do ensino médio estudam em escolas públicas, mas apenas 36% destes alunos entram numa universidade (quando o aluno vem da rede privada este percentual mais do que dobra: 79,2%).   

A sociedade investe (proporcionalmente) muito mais nos alunos de Ensino Superior e mais da metade destes alunos são oriundos da rede privada de ensino médio. Ou seja, alunos que pagavam o ensino médio vão estudar gratuitamente no ensino superior, que é muito mais caro.   

Em resumo, o problema da educação brasileira não é “falta de verbas”, mas a necessidade de inverter nossas prioridades. A prioridade deve ser o ensino básico e fundamental (sem descuidar do Ensino Superior). Ponto.  

Investimos, proporcionalmente, menos do que deveríamos no ensino básico e fundamental e, sobretudo, investimos mal. Não se trata apenas de melhorar o salário dos professores ou os prédios, mas sobretudo de criar uma plataforma, um ambiente, que permita a cada aluna(o) aprender no seu ritmo. Em colaboração com alunos e professores de qualquer lugar do Brasil e, porque não, do mundo.  A criação deste ambiente, que conjuga o ensino físico com o virtual é hoje um dos focos de atuação do CRIE. Estou convencido que ele promoverá uma verdadeira revolução na educação, mas este é assunto para uma outra conversa...   

O ponto chave aqui é termos um outro modelo de Educação, com foco no ensino básico e fundamento, acessível a todos os cidadãos.   A topologia do Estado brasileiro está montada para funcionar de forma excludente. No caso da Educação, está montada para privilegiar as Universidades, que acabam sendo acessíveis a quem teve dinheiro para pagar um ensino básico e médio privado. Não adianta dar mais dinheiro para um modelo excludente e elitista. Nem achar que a política de cotas nas universidades vai resolver estes problemas. Sem mudar a topologia, nada muda de fato.   

Precisamos de um outro modelo educacional, não para ensinar as respostas, como disse Rubem Alves, mas para ensinar a fazer perguntas. A principal meta da educação, neste século XXI, é criar homens e mulheres que sejam capazes de fazer coisas novas, não simplesmente repetir o que outras gerações já fizeram. Homens e mulheres criadores, inventores, descobridores, capazes de navegar por mares nunca dantes navegados.  

Até a semana que vem!  

PS: para acompanhar esta série de posts sobre a Topologia Do Estado, siga o blog  https://crie-inteligenciaempresarial.blogspot.com/

sábado, 14 de março de 2020

Simon Schwartzman resenha Mussolini, de Antonio Scurati (OESP)

Mussolini

By Simon on Mar 13, 2020 06:57 am
(Publicado no O Estado de São Paulo, 13/03/2020)
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Para entender os movimentos de extrema direita que ocorrem hoje, a leitura de “M – O Filho do Século” de Antonio Scurati, recém-publicado pela Editora Intrínseca, que conta a história do surgimento do fascismo na Itália, é leitura obrigatória. É um romance documental, que faz lembrar o “Romance de Perón” de Tomás Eloy Martinez, publicado em 1998 pela Companhia das Letras, que merece uma reedição.
O fascismo surge das cinzas ainda quentes da Primeira Guerra Mundial, com seus onze milhões de mortos. Vitoriosa, mas economicamente arrasada, a Itália se divide entre um governo liberal, que tenta reconstituir a economia, e um forte movimento socialista que ganha cada vez mais força no campo e nas cidades.  Todos anseiam pela paz, mas Mussolini, que havia começado sua carreira como editor do jornal do Partido Socialista, Avanti!, e sido expulso do partido por defender a entrada na Itália na Guerra, decide abraçar a morte, a violência e o nacionalismo como formas de ação política e busca do poder. 
Seus principais parceiros, no início, são os remanescentes de uma tropa de elite desmobilizada, os Arditi, treinados para assassinar os inimigos, que depois da guerra se sentem frustrados e marginalizados. Scurati os descreve como passando o tempo embriagados, nos bordéis, armados com punhais e envolvidos em atividades criminosas. São eles que Mussolini conquista com seu novo jornal, O Povo da Itália, cujo tema principal é o ataque aos que se opuseram à participação italiana da guerra,  e os organiza com a criação em 1919 do Fasci Italiani di Combattimento, os Grupos Italianos de Combate, simbolizados por uma caveira, que dão início o movimento e do Partido Fascista.
No início, Mussolini e suas milícias paramilitares são olhados com desprezo tanto pelos liberais, que controlam o governo nacional, como pelos socialistas, que cada vez mais controlam os governos locais e ganham espaço no Parlamento. A economia do país continua estagnada, a Itália não consegue participar da partilha do mundo colonial feita pelas potências europeias e os Estados Unidos, e o exemplo da revolução russa inspira entre os socialistas a ideia de que a hora da revolução italiana também está próxima. Mussolini, no início, ainda tentou manter um discurso a favor dos operários e camponeses, e compartilhava, com os setores mais radicais do partido socialista, a ideia de que o regime político liberal não servia para nada, os políticos eram, na melhor hipótese, incapazes, e na pior, corruptos, e só uma revolução poderia resolver os problemas do país. Ambos acreditavam, com Marx e os anarquistas, que a violência era a parteira da história.
Com o país paralisado por greves e ocupações sucessivas de terras e fábricas, os fascistas decidem se colocar como defensores da ordem e, financiados por fazendeiros e empresários, partem para atacar com violência e desmantelar os movimentos e organizações de esquerda, ao mesmo tempo em que, pelo jornal, Mussolini sobe o tom na defesa da violência e do nacionalismo como os únicos caminhos para fazer a Itália voltar aos tempos gloriosos do Império de dois mil anos atrás. Na primeira eleição que em que participam, em 1919, os socialistas e o Partido do Povo Italiano, católico, conquistam a maioria, e os fascistas ficam totalmente marginalizados. Nos dois anos seguintes, que ficaram conhecidos como o “Biênio Vermelho”, a crise econômica se aprofunda, as greves e ocupações de fábricas e fazendas se multiplicam o desemprego continua e os fascistas intensificam sua violência, com assassinatos de líderes populares e destruição das sedes das organizações locais. 
Na eleição de 1921, os fascistas se aliam aos liberais e ganham, deixando os vários partidos da esquerda na oposição. No governo, a crise econômica persiste, e Mussolini continua incentivando o terrorismo, com as milícias agora organizadas em esquadrões dos camisas negras. Em 1922 organiza a “marcha sobre Roma”, em que as milícias avançam sobre a capital exigindo que Mussolini seja nomeado primeiro ministro. O governo hesita, teria sido fácil desmantelar a milícia se o exército decidisse agir, mas todos temem a confrontação.  Na chefia de governo, Mussolini trabalha para desmontar as instituições democráticas, criando dentro do governo uma polícia secreta copiada da Cheka de Stálin, para dar continuidade à violência, e em 1925 assume o poder como ditador.
Mussolini não estava sozinho em seu assalto à democracia, que incluía gestos teatrais,  acordos por debaixo dos panos, o uso descarado da violência contra os opositores, o uso sistemático da mentira e a traição constante a antigos companheiros.  Tinha a simpatia de empresários, como Gianni Agnelli, dono da FIAT, e intelectuais e artistas brilhantes e famosos, como o filósofo Benedetto Croce, o maestro Arturo Toscanini, e a amante, a aristocrática intelectual judia Margherita Sarfatti. Para eles, o Duce tinha seus defeitos, mas havia uma causa maior, a recuperação econômica e renovação da Itália, que tudo justificavam. Deu no que deu.

quinta-feira, 20 de junho de 2019

130 anos: em busca da República - lançamento de livro, convites Casa das Garças

CONVITE - Lançamento livro "130 anos: em busca da República"

É com satisfação que comunicamos e anexamos os convites para o lançamento do livro “130 anos: em busca da República”, na Casa Firjan, Rio de Janeiro, na 3ª feira, 25 de junho, às 19h. E no Shopping JK Iguatemi, São Paulo, na 3ª feira, 27 de junho, às 19h.

IEPE/Casa das Garças

sábado, 13 de abril de 2019

Simon Schwartzman sobre o ensino secundario - Academia Brasileira de Letras

Cientista político Simon Schwartzman fala na ABL sobre o tema ‘Perspectivas do novo ensino médio brasileiro’

O cientista político Simon Schwartzman faz na Academia Brasileira de Letras, a segunda palestra do ciclo de conferências “A educação no Brasil de hoje”, sob coordenação do Acadêmico e professor Arnaldo Niskier. O evento está programado para o dia 18 de abril, às 17h30min, no Teatro R. Magalhães Jr. (Avenida Presidente Wilson, 203, Castelo, Rio de Janeiro). Entrada franca.
Serão fornecidos certificados de frequência.
A Acadêmica Ana Maria Machado é a Coordenadora-Geral dos ciclos de conferências de 2019.

Acadêmico Arnaldo Niskier convida para o ciclo "A educação no Brasil de hoje"
O ciclo terá mais uma palestra, dia 25 de abril, também uma quinta-feira, no mesmo local e horário, intitulada Os desafios da educação a distância, com Celso Niskier.
Schwartzman adiantou, sobre seu tema que, em setembro de 2017, foi sancionada a nova lei que reformula o ensino médio brasileiro, com a previsão de que ela deveria começar a ser implementada em 2021. Essa lei teve por objetivo lidar com o grave problema dos altos níveis de evasão e a falta de qualificação profissional para os milhões de jovens que todos anos buscam o ensino médio, mas não continuam estudando no nível superior. Ao invés de um currículo único, a nova legislação permite que os estudantes escolham um entre vários “itinerários formativos”, entre eles o de formação vocacional de nível médio que até então era tratada como formação complementar.
“Às vésperas de sua implementação, existem muitas dúvidas e incertezas sobre como esta lei será implementada. Essas incertezas têm como pano de fundo a grande quantidade de jovens que chegam ao ensino médio com graves deficiências de formação em áreas fundamentais como o uso da língua e o manejo de operações matemáticas simples. Nessa apresentação, pretendo discutir alguns dos dilemas centrais que devem ser enfrentados nesta transição, que se referem à maneira pela qual os diferentes públicos que chegam ao ensino médio devem ser atendidos, a divisão e posterior relacionamento entre a parte geral e as partes diferenciadas do novo currículo, a questão da transição entre o ensino convencional, organizado por disciplinas, e a atual proposta de organizar a educação em termos de habilidades e competências, e a questão de como lidar com o ensino técnico, ou vocacional, no contexto do novo ensino médio”, afirmou o palestrante.
O CONFERENCISTA
Simon Schwartzman estudou sociologia e ciência política na Universidade Federal de Minas Gerais, tem um mestrado em sociologia pela Faculdade Latino-americana de Ciências Sociais (FLACSO, Chile), e é doutor em ciências políticas pela Universidade da California, Berkeley. Nos últimos anos, tem trabalhado em temas de educação, ciência e tecnologia e políticas sociais. Foi professor da Universidade Federal de Minas Gerais, do Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro e da Escola Brasileira de Administração Pública da Fundação Getúlio Vargas.
Na Universidade de São Paulo, foi professor de Ciência Política e diretor científico do Núcleo de Pesquisas sobre Ensino Superior entre 1990 e 1994, e Presidente do IBGE entre 1994 e 1998. Foi professor visitante nas Universidades de Columbia, Stanford, California/Berkeley e Harvard, nos Estados Unidos. É membro da Academia Brasileira de Ciências, Grão Cruz da Ordem Nacional do Mérito Científico e Comendador da Ordem Nacional do Mérito Educativo. Seu livro mais recente é Situação e Caminhos do Ensino Médio e Técnico no Brasil, São Paulo, Fundação Santillana 2016.
Schwartzman é autor de, entre outros, Education in South America. London: Bloomsbury, 2015; Higher Education in the BRICS Countries - Investigating the Pact between Higher Education and Society (com Romulo Pinheiro e Pundy Pilay), Springer, 2015; Brasil: A Nova Agenda Social (com Edmar Bacha). Rio de Janeiro, LTC, 2011; Políticas Educacionais e Coesão Social – Uma Agenda latino-americana (com Cristian Cox), Rio de Janeiro, Elsevier; São Paulo: iFHC, 2009; University and Development in Latin America. Successful Experiences of Research Centers. Global Perspectives on Higher Education volume 14. Rotterdam: Sense Publishers, 2008; Os Desafios da Educação no Brasil (com Colin Brock), Rio de Janeiro, Editora Nova Fronteira, 2005; Pobreza, exclusão social e modernidade: uma introdução ao mundo contemporâneo. São Paulo, Augurium Editora, 2004; As causas da pobreza, Rio de Janeiro, Editora da Fundação Getúlio Vargas, 2004; A Escola vista por dentro, com João Batista Araújo e Oliveira, Belo Horizonte, Alfa Educativa, 2002; Bases do Autoritarismo Brasileiro, Editora Unicamp, 5ª edição, 2015; Um Espaço para a Ciência: Formação da Comunidade Científica no Brasil, 4ª edição, Editora da Unicamp, 2015e The New Production of Knowledge (com Michael Gibbons, Martin Trow, Peter Scott, Helga Nowotny e Camille Limoges, Sage,1994.
11/04/2019

quinta-feira, 16 de agosto de 2012

Brasil: a nova agenda social - livro de Edmar Bacha e Simon Schwartzman (orgs.)


Brasil : a nova agenda social / Edmar Lisboa Bacha, Simon Schwartzman (organizadores).
Rio de Janeiro : LTC, 2011.

Introdução -  Edmar Lisboa Bacha e Simon Schwartzman

Parte 1 – Políticas de Saúde

2. Uma Nota sobre o Princípio da Integralidade do SUS – Mônica Viegas Andrade e Kenya Noronha

Parte 2 – Previdência Social e Políticas de Renda

4. Previdência Social: Uma Agenda de Reformas – Paulo Tafner e Fabio Giambiagi
7. O Contrato Social da Redemocratização -Samuel de Abreu Pessoa

Parte 3 – Políticas de Educação

10. Pré-Escola, Horas-Aula, Ensino Médio e Avaliação – Naercio Aquino Menezes Filho

Parte 4 – Políticas de Segurança Pública

12. Segurança Pública nas Grandes Cidades - Sergio Guimarães Ferreira

Bibliografia

Índice remissivo

Sobre os Autores

quinta-feira, 9 de agosto de 2012

Universidade para o povo? - Simon Schwartzman


A aprovação, pelo Senado, do Projeto de Lei da Câmara 180/2008, que reserva 50% das vagas das universidades públicas e escolas técnicas federais para alunos que tenham cursado todo o ensino médio na rede pública, parece ser exatamente o que demandavam em 1961 os estudantes da Universidade Federal de Minas Gerais, entre os quais Vinícius Caldeira Brant, Theotônio dos Santos Jr., Ivan Otero Ribeiro, Herbert José de Souza (o Betinho) , Guido Antônio de Almeida, Antônio Octávio Cintra e eu, em artigos publicados em Mosaico, a revista de nosso DCE.  Dizíamos então que era necessário “abrir as portas da Universidade para o povo e, em toda parte, lutar por aquilo que é do povo. Democratizar o acesso ao ensino, mas reformular completamente sua estrutura, devotá-la à pesquisa criadora, instrumento de formação de uma cultura popular. Cultura popular que consistirá, para as classes exploradas, na consciência de sua destinação histórica. Até hoje a cultura tem consistido na contemplação do mundo. Posta a serviço do homem, erigida em consciência popular, ela constituirá um ponto de partida para a luta de transformação social”.
Levou cinquenta anos, mas parece que finalmente conseguimos! O tema da revista eram as diferentes alienações e como superá-las, e ela está disponível aqui. O texto sobre a Universidade, além da ilustração inicial de Amaury de Souza, está ao final da revista,  na página 115.
Não se equivoca quem vê na idéia que tínhamos de Universidade a Tese 11 sobre Fueuerbach de Marx, que dizia que os filósofos (e, por extensão, os cientistas e intelectuais)  até hoje interpretaram o mundo, mas o que se trata é de transformá-lo. Estava embutida também a idéia de que a separação entre cultura popular e cultura científica e técnica era uma forma entre outras de dominação, e que desapareceria quando, finalmente, as portas das universidades, pela ação revolucionária de nós estudantes, fossem finalmente abertas para o povo.
Alguns de nossos companheiros de Mosaico já não estão entre nós, e eu não  poderia falar por ninguém, mas desde então entendi que não era bem assim. Entendi, por exemplo, que a diferença entre conhecimento especializado e conhecimento popular não é um simples artifício, mas o resultado de um processo complexo e difícil de formação, capacitação e especialização profissional que nem todos conseguem cumprir, e que não se pode resolver por um ato revolucionário como o que um dia Mao Tsé Tung tentou com sua famosa e trágica revolução cultural. Entendi também que a tentativa de Marx de romper a separação entre conhecimento e ação levaria, como levou na antiga União Soviética e seus defensores, à politização extrema do conhecimento e suas instituições, típica dos regimes políticos e das seitas totalitárias, com a degradação do trabalho intelectual. Entendi que sociedades modernas necessitam de universidades aonde deve predominar os valores do mérito e da qualidade do trabalho intelectual tanto de professores quanto dos alunos, e que o princípio de justiça da educação superior deve estar baseado na igualdade de oportunidades para o desenvolvimento da capacidade intelectual de cada um. Entendi que  as universidades não deveriam ser um instrumento de militância revolucionária, e sim um componente central da sociedades democráticas e abertas.
Isto não significa, no entanto, que o caráter elitista das universidades de então não fosse verdadeiro, como continua sendo até hoje. Basta olhar os dados de renda familiar dos estudantes de nível superior para constatar que eles provêm, em sua grande maioria, de setores de renda média e alta.  Em parte, isto tem a ver com os custos do setor privado, que hoje é responsável por 75% das matrículas do ensino superior brasileiro. Mas também com os processos seletivos tradicionais das universidades públicas, que tendem a selecionar, para os cursos mais procurados, os jovens que se beneficiaram de uma educação média de mais qualidade, graças aos recursos financeiros de suas famílias. Segundo os dados do Ministério da Educação, os investimentos diretos por estudante no ensino superior público e gratuito eram, em 2010, de 18 mil reais por estudante, em comparação com 3.580 gastos por estudante da educação básica. Este gasto tão elevado com a educação superior seria justificável se todo o ensino superior brasileiro fosse de alta qualidade, e se todos ou pelo menos a maior parte dos benefícios da formação de alto nível das universidades revertesse para a sociedade, e não para os alunos individualmente. Sabemos, no entanto, que a qualidade do ensino superior público brasileiro é muito variável, e que os diplomas servem muitas vezes para que as famílias consigam manter seus padrões de renda e acesso ao emprego, reproduzindo assim o círculo vicioso da desigualdade. Esta não é, seguramente, toda a história, mas é inegavelmente uma parte importante dela.
Diante desta situação, me parece perfeitamente razoável que o país decida, através de seus representantes no Congresso, que as universidades públicas passem a atender prioritariamente aos filhos das famílias de renda mais baixa, que estudam na rede pública de educação básica cuja qualidade é bastante precária, restringindo o espaço para os filhos de classe média e alta, que podem pagar por seus próprios estudos. O uso de critérios raciais na seleção dos alunos me parece absurdo, como já argumentei em outras partes, mas o critério de dar preferência aos oriundos de escola pública me parece bastante razoável, embora sujeito também a problemas. Aceita esta premissa, a questão que se coloca é como as universidades vão lidar com esta nova realidade de ter metade dos alunos admitidos por processos competitivos e metade admitidos sem maiores considerações de desempenho.
A maneira mais fácil de resolver o problema é postular que ele não existe. Nossas idéias de 1961 sobre a união da teoria com a prática, da pesquisa e da militância, e do desaparecimento da separação entre  o conhecimento das elites e do povo, assim como da separação entre o trabalho manual e intelectual,  não morreram de todo, e  podem ser reconhecidas no conceito de “politecnia” que circula entre certos meios no Brasil e que tem sido utilizado para justificar a transformação dos antigos centros federais de formação profissionais, os CEFETs, em Institutos Nacionais de Tecnologia, equiparados para todos os efeitos às universidades federais.
O suposto é que todas diferenças de formação desapareceriam se os alunos fossem expostos a uma educação de qualidade. Infelizmente, não há evidência de que isto seja assim, da mesma maneira de que não há evidência de que cursos de nivelamento ou reciclagem consigam superar, com facilidade, déficits de formação no uso da linguagem, de conceitos básicos de ciências e de uso de aritmética e matemática acumulados ao longo dos anos. Ao contrário, a evidência é que este tipo de nivelamento, embora não impossível, é extremamente caro e de resultados incertos. A opção mais adequada é oferecer uma variedade de formações profissionais para pessoas com níveis distintos de formação prévia, proporcionando tanto competências cognitivas como não cognitivas (relacionadas por exemplo à capacidade de trabalho em grupo, liderança, responsabilidade e motivação), permitindo ao mesmo tempo que as pessoas avancem em suas carreiras e formação conforme as características de cada um.
Sem isto, cursos mais competitivos em áreas como medicina ou engenharia ou nas faculdades de direito mais disputadas, que hoje oferecem por exemplo 100 vagas para os estudantes mais qualificados, passarão a ter somente 50, tornando muito mais difícil o acesso por esta via, e estimulando os alunos mais qualificados a buscar outras instituições, provavelmente no setor privado. Com 50% de alunos selecionados por mérito   de forma mais competitiva do que antes, e outros 50% por cotas, caberá às universidades decidir se ensinarão predominantemente para uns ou para outros (expulsando na prática a outra metade) se dividirão as turmas em duas, ou se seguirão apostando em que tudo será resolvido pelo conceito mágico de “politecnia”.
O encaminhamento correto desta questão seria criar instituições e carreiras diferentes para estudantes diferentes, tratando de atender com competência a cada setor, e criando mecanismos para permitir que os estudantes que queiram e possam circulem de um setor de formação tecnológica de curta duração, por exemplo, para outro mais acadêmico. A diferenciação é inevitável quando o ensino superior se massifica, e ela ocorre seja através de políticas deliberadas, seja por processos descontrolados em que cada um procura se salvar como puder, com prejuízo para todos.. Seria bom se fosse possível, no Brasil, combinar um número relativamente pequeno de instituições  de alta qualidade e seletividade com um número muito maior de instituições voltadas para a educação de massas, com diferentes níveis de exigência e projetos pedagógicos,  com políticas adequadas para tratar de forma diferentes as as questões de acesso e as questões de qualidade e excelência,  tanto no setor público quanto no privado. Não é este, no entanto, o caminho que parece que temos pela frente.

domingo, 10 de junho de 2012

A tragedia educacional brasileira: piorando em todos os níveis, do pre ao pos - Simon Schwartzman

Um artigo do conhecido especialista em educação, precedido de um comentário pessoal de meu amigo Mauricio Dias David: 



Simon Schwartzman é um dos mais respeitados sociólogos brasileiros. E um grande especialista em educação. Esteve também um período à frente do IBGE, nos anos 90. Tudo o que o Simon escreve merece uma reflexão atenta. Faz alguns anos, em um almoço em uma tarde de sábado na casa da Ana Célia e do Antonio de Barros Castro, em Itaipava, êle me comentou a sua receita para o sucesso da sua administração à frente do IBGE : " agi como uma rainha da Inglaterra, constituí uma boa diretoria de técnicos e procurava interferir o mais mínimo possível na administração da instituição". Adequados preceitos, cuja sabedoria se ressalta ainda mais em uma época de administrações intervencionistas em que o "professor" tal ou qual ( fico indignado quando tal qualificativo é usado fora do seu contexto de homem dedicado à propagação do saber...) é glorificado por muitos por ficar apontando "campeões nacionais" aqui e acolá... Mas voltando ao texto do Simon, sua leitura é proveitosa e incita à reflexão. Mas as suas conclusões são assustadoras ( pelo menos para quem se preocupa com o futuro da educação pública no Brasil) : " o mais provável é que as universidades federais continuem a se esgarçar, com greves sucessivas e piora nas condições de trabalho dos professores e de estudo para os alunos, abrindo espaço para que o setor privado ocupe cada vez mais o segmento de educação superior de qualidade, como ocorreu no passado com o ensino médio.". Previsões assustadoras e ameaçadoras, justamente no momento em que o nosso País vive jornadas cruciais para a definição do papel da educação, da pesquisa e da inovação na definição do futuro que nos será permitido construir...
Mauricio Dias David

Posted: 09 Jun 2012 03:25 PM PDT
A greve das universidades federais não é um evento isolado, mas parte de um processo que, infelizmente, tem tudo para acabar mal. Para entender, é importante lembrar que, diferentemente da maioria dos outros países da América Latina, o Brasil nunca teve grandes universidades nacionais abertas para todos que concluem o ensino médio, e optou, desde o início, por universidades seletivas, abrindo espaço para o crescimento cada vez maior do ensino superior privado, que, com seus cursos noturnos, de baixo custo e sem vestibulares difíceis, acabou atendendo à grande demanda por ensino superior de pessoas mais pobres e sem condições passar nos vestibulares e estudar de dia, que o setor público não atendia. Hoje, apesar do esforço do governo federal em aumentar a matrícula em suas universidades, 75% dos estudantes estão do setor privado.
Com um setor público pequeno e seletivo, as universidades brasileiras conseguiram criar um corpo de professores de tempo integral e dedicação exclusiva, desenvolver a pós-graduação e criar muitos cursos de qualidade, coisas que quase nenhum outro país da região conseguiu. Mas, como parte do serviço público, elas possuem um sistema homogêneo de contratos de trabalho, regras e promoção de professores e programas de ensino que não tomam em conta o fato de que elas são, na verdade, muito diferentes entre si – algumas têm programas de qualidade de graduação e pós-graduação em áreas dispendiosas como engenharia e medicina e fazem pesquisas relevantes, enquanto outras simplesmente copiam os modelos organizacionais, as regras de funcionamento e os custos das primeiras, com muito pouco de sua cultura institucional e conteúdos. Com a generalização dos contratos de tempo integral e a estabilidade dos professores, os custos subiram, sem mecanismos para controlar a qualidade e o uso adequado de recursos, que variam imensamente de um lugar para outro, independentemente de resultados.
Na década de 90, com Paulo Renato de Souza como Ministro da Educação, houve algumas tentativas de colocar esta situação sob controle, introduzindo um sistema de avaliação de resultados (o provão), vinculando parte do salario dos professores ao número de aulas dadas, e tentando introduzir legislação dando às universidades autonomia não somente para gastar, mas também para assumir a responsabilidade pelo uso eficiente dos recursos públicos através de orçamentos globais, e tentando fazer valer a prerrogativa do governo federal de escolher reitores a partir das listas tríplices selecionadas pelas universidades. Estas políticas encontraram grande resistência, os orçamentos globais nunca foram instituídos, o “provão” na prática só afetou alguns segmentos do setor privado, e o conflito entre as universidades e o governo no episódio da nomeação do reitor da UFRJ, em um tempo em que os salários não aumentavam, mobilizou grande parte dos professores, alunos e administradores das universidades federais contra o Ministério da Educação e o governo Fernando Henrique Cardoso.
Nos primeiros anos do governo Lula as relações das universidades federais com o governo passaram por um período de lua de mel: tudo era concedido, e nada era cobrado. A gratificação de docência foi incorporada aos salários, que passaram a crescer graças à melhora da economia e do aumento geral dos gastos públicos; o “provão” foi substituído por um pretencioso sistema de avaliação, o SINAES, que demorou em se organizar e continuou sem afetar as instituições federais; e a nomeação dos reitores eleitos internamente pelas universidades se transformou em regra. Para atender à demanda crescente por educação superior, o governo comprou vagas no setor privado com o Prouni, em troca de isenção de impostos, aumentando cada vez mais a proporção de estudantes no setor privado. Ao mesmo tempo, o governo iniciava uma política de expansão do acesso às instituições federais, primeiro com a introdução de cotas raciais e sociais, depois com a criação de novas instituições e a abertura de novas sedes das universidades existentes, e finalmente com o programa Reuni que, em troca de mais recursos, exigiu que as universidades federais praticamente duplicassem o número de vagas abrindo novos cursos, sobretudo noturnos, e aumentassem o número de aulas dadas por professor. Ao mesmo tempo, os antigos centros federais de educação tecnológica, os CEFETs, foram transformados em Institutos Federais de Tecnologia e equiparados às universidades em termos de custos e prerrogativas. Segundo dados do INEP, o gasto por aluno do governo federal passou de 9 mil reais ao ano em 2001 para 18 mil em 2010, acompanhando a inflação. Como o número de alunos do sistema federal duplicou nestes dez anos, devendo estar hoje em cerca de um milhão, os custos do sistema aumentaram na mesma proporção em termos reais, embora o número de formados tenha aumentado pouco. Só o programa REUNI custou 4 bilhões de reais, metade para investimentos e outra metade que passou a se incorporar ao orçamento das universidades federais.
Esta política de expansão acelerada não obedeceu a nenhum plano ou avaliação cuidadosa sobre prioridades, abrindo instituições aonde não havia demanda, admitindo alunos antes de existirem os edifícios e instalações adequadas, forçando as universidades a criar cursos noturnos e contratar mais professores mesmo quando não haviam candidatos qualificados, e sobretudo sem preparar as universidades para lidar com alunos que chegavam do ensino médio cada vez menos preparados. Ao mesmo tempo, a necessidade de contenção de gastos do governo Dilma tornou impossível atender às expectativas de aumento salarial dos professores, gerando um clima generalizado de insatisfação revelado pela greve.
É possível que a greve leve a algumas concessões salariais por parte do governo federal, como costuma acontecer, mas o efeito mais visível deste tipo de movimento é o de prejudicar os estudantes e professores mais comprometidos com o estudo e pesquisa, levando à desmoralização das instituições, sem que as questões de fundo sejam tocadas. A principal questão de fundo é a impossibilidade de o setor público continuar se expandindo e aumentando seus custos sem modificar profundamente seus objetivos e formas de atuação, diferenciando as instituições dedicadas à pesquisa, à pós-graduação e ao ensino superior de alta qualidade, que são necessariamente mais caras e centradas em sistema de mérito, das instituições dedicadas ao ensino de massas em carreiras menos exigentes, que é onde o setor privado atua com custos muito menores e qualidade pelo menos equivalente. Esta é uma tese que provoca enorme reação nas instituições federais e os sindicatos docentes, que querem sempre continuar iguais e niveladas por cima em seus direitos, embora esta nivelação não exista em relação aos resultados. Mas a conta, simplesmente, não fecha.
Uma diferenciação efetiva exigiria limitar os contratos de trabalho de tempo integral e dedicação exclusiva às instituições que consigam demonstrar excelência em pesquisa, pós-graduação e formação profissional; introduzir novas tecnologias de ensino de massas e à distancia, aumentando fortemente o número de alunos por professor; e criar mecanismos efetivos que estimulem as instituições a definir seus objetivos, trabalhar para eles, e receber recursos na proporção de seus resultados. Um exemplo do que poderia ser feito é o processo de Bologna que está ocorrendo na Europa, que cria um primeiro estágio de educação de superior de massas de três anos, com muitas opções, e depois as instituições se especializam em oferecer cursos avançados de tipo profissional e científico conforme sua vocação e competência. É necessário, também, criar condições e estimular as instituições federais a buscar recursos próprios, inclusive cobrando anuidades dos alunos que podem pagar. Esta diferenciação exigiria que as universidades federais fossem muito mais autônomas e responsaveis pelos seus resultados do que são hoje, sobretudo na gestão de seus recursos humanos e financeiros, o que se torna impraticável quando os salários dos professores são negociados diretamente entre os sindicatos e o Ministério da Educação e as tentativas de diferenciar benefícios e financiamento em função do desempenho são sistematicamente combatidas.
Se nada disto for feito, o mais provável é que as universidades federais continuem a se esgarçar, com greves sucessivas e piora nas condições de trabalho dos professores e de estudo para os alunos, abrindo espaço para que o setor privado ocupe cada vez mais o segmento de educação superior de qualidade, como ocorreu no passado com o ensino médio.
(Simon Schwartzman)

sábado, 11 de fevereiro de 2012

Bolsa Familia: mitos e realidades - Simon Schwartzman


Bolsa Família: Mitos e Realidades
Por: Simon Schwartzman
Revista Interesse Nacional, outubro-dezembro de 2010
Iniciados nos anos 1990 em vários governos locais no Brasil, os programas de transferência de renda para famílias pobres, hoje em grande parte federalizados com o nome de “bolsa família”, se tornaram extremamente populares, tanto no Brasil quanto internacionalmente, com a denominação de conditional cash transfer programs, ou programas de transferência condicional de dinheiro. Para muitos, são uma forma nova, quase mesmo revolucionária, de reduzir a desigualdade de renda e melhorar a educação e a saúde da população; para outros, não passam de políticas assistencialistas que ajudam a perpetuar a pobreza, mas que contribuem para dar votos para os governantes nos dias de eleição. A rea¬lidade está entre os dois extremos: estes programas trazem, efetivamente, benefícios para as populações mais pobres, mas seus efeitos econômicos e sociais são menos significativos do que se apregoa. Sua importância como instrumento político e eleitoral, no entanto, está fora de dúvida.

Questionando os pressupostos

Os debates sobre estes programas costumam estar marcados por pressupostos nem sempre explicitados, mas que precisam ser esclarecidos. A palavra “condicional”, usada pelo Banco Mundial e outras agências internacionais, mais do que no Brasil, sugere que haveria algo de errado em dar dinheiro para pessoas pobres, porque isso estimularia a preguiça e o ócio, fazendo com que elas deixassem de procurar trabalho.

É uma noção que vem dos tempos de Malthus e da abolição das poor laws inglesas no século XVIII. Essa condenação da ajuda aos pobres, ainda muito presente nas discussões sobre a ausência de “portas de saída” para os beneficiários das bolsas, não existe da mesma forma quando se trata dos subsídios às classes médias e mesmo altas. Os gastos sociais no Brasil, como se sabe, são fortemente enviesados a favor das classes médias e dos setores mais ricos da população, na forma de aposentadorias, pensões, educação superior gratuita, assistência médica gratuita, financiamentos especiais para agricultores e empresários, privilégios para funcionários públicos, e outros. Em comparação, o programa de bolsa família tem a focalização no sentido correto, beneficiando preferencialmente famílias mais pobres com crianças, ainda que de forma imperfeita.

Com a condicionalidade, o programa estaria livre do pecado da simples transferência de recursos, que muitas vezes é criticada como simples esmola. Na forma original, como bolsa-escola, o programa estabelecia, como contrapartida, que os pais mandassem os filhos para a escola; na forma ampliada, além da escola, as crianças precisam ser vacinadas, as mulheres grávidas precisam fazer o pré-natal e seguir outras orientações do Ministério da Saúde.

Esses programas muitas vezes trazem um outro pressuposto, que é a suposição de que os problemas de acesso à educação, assim como à saúde, são sobretudo de demanda, e não de oferta de serviços. Assim se imagina, por exemplo, que as crianças deixam de ir à escola porque precisam trabalhar para ajudar na renda da família. Como o dinheiro que podem conseguir trabalhando não é muito, um pequeno subsídio seria suficiente para mudar o estímulo, fazendo com que enviar a criança à escola seja mais rentável para a família do que fazer com que ela trabalhe. Isso aumentaria a demanda por educação, fazendo com que o sistema escolar, de alguma forma, respondesse com a melhora da quantidade e da qualidade de sua oferta de serviços; e o mesmo valeria para o sistema de saúde.

Esses dois pressupostos são equivocados. Uma grande parte da população brasileira vive em situação precária, sem formação profissional e sem perspectivas de conseguir trabalho minimamente adequado. Proporcionar a essas pessoas uma renda mínima, que ajude na sobrevivência do dia-a-dia, é uma política necessária, independentemente de qualquer condicionalidade, e não há nenhuma razão para crer na ideia malthusiana de que elas precisam da miséria para serem incentivadas a buscar trabalho.

Também é equivocada a ideia de que os problemas da educação brasileira são de demanda. Todas as pesquisas mostram que a população valoriza muito a educação, e de fato a permanência das pessoas nas escolas vem aumentando ano a ano, independentemente da existência ou não de bolsa-escola ou subsídio semelhante. Os problemas da educação estão do lado da oferta – a má qualidade das escolas públicas, os problemas de recrutamento e formação de professores, a ignorância em relação aos métodos de ensino mais apropriados etc. O mesmo pode ser dito em relação à saúde. Havendo boas escolas e serviços de saúde acessíveis, a população naturalmente buscará esses serviços.

Avaliando a focalização

Existem hoje muitos estudos e avaliações sobre os programas tipo bolsa família, no Brasil como no exterior, que permitem ir além das suposições iniciais, e identificar o seu alcance.

Diferente da maioria dos demais programas sociais, o Bolsa Família tem o mérito de levar um recurso adicional a famílias em situações de muita necessidade, e isso é algo que precisa ser valorizado, independentemente do cumprimento ou não de eventuais condicionalidades. Mas essa focalização não é perfeita – muitas pessoas que recebem o auxílio não precisariam dele, e outros que precisariam não o recebem. E a contribuição do programa para a redução da desigualdade de renda no país nos últimos anos é menor do que normalmente se diz.

Sergei Soares e outros fazem uma análise bastante completa da focalização e cobertura do programa no Brasil, e concluem pela sua boa focalização, em termos comparativos . Segundo eles, 80% das transferências vão para os 23% mais pobres, o que significa, na outra ponta, que um em cada cinco reais gastos vão para famílias de renda mais alta. Os problemas de focalização que ainda existem estariam associados ao processo de cadastramento dos beneficiados pelos municípios, baseados na autodeclaração de renda das pessoas.

O programa tem grande cobertura, beneficiando quase um quarto da população brasileira. Embora, em termos proporcionais, o valor das bolsas seja pequeno, elas representariam 43,6% da renda das famílias beneficiadas (no momento em que escrevia este texto, o governo estava por anunciar um aumento tanto da cobertura como do valor nominal da bolsa, elevando o rendimento médio mensal de R$ 62,00 para R$ 72,00 e incorporando mais 1,3 milhão de famílias ao total de beneficiados, que passaria a ser de 12,4 milhões de famílias).

As duas fontes principais de dados sobre o Bolsa Família até aqui são os registros administrativos e a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios do IBGE (PNAD) de 2006, que tem um suplemento especial sobre programas sociais. O quadro abaixo permite verificar a focalização e cobertura do Bolsa Família segundo os dados da PNAD 2006.

O Quadro 1 ordena os estados brasileiros pela percentagem de famílias pobres, situando-se a pobreza na faixa de renda familiar igual ou inferior a ¼ do salário-mínimo per capita. O que se pode ver é que quanto mais pobre o Estado, mais famílias são atendidas pelo programa, proporcionalmente. As duas últimas colunas do quadro indicam, no entanto, problemas sérios de focalização. Se nos estados mais pobres, sobretudo do Nordeste, a percentagem de famílias pobres beneficiadas é de 50%, nos estados mais ricos essa proporção é muito menor, ficando na casa dos 20%, o que significa que os pobres dos estados ricos são menos beneficiados pelo programa do que os dos estados pobres. A última coluna mostra que, sobretudo nos estados do Sudeste e do Sul, mais da metade das bolsas vai para famílias que estão acima da linha de pobreza. O programa tem também uma preferência clara pelas populações rurais, em detrimento das urbanas, como indicado no Quadro 2.

Esses dados devem ser vistos com cautela porque a PNAD não reflete exatamente a situação dos cadastros do programa, e também porque a rigor não se pode usar a mesma linha de pobreza para os estados mais pobres e os mais ricos da federação. De qualquer forma, os dados mostram como o programa está desproporcionalmente orientado para os estados mais pobres e zonas rurais e exclui muitos pobres em benefício de famílias de maior renda. Essa preferência pelos estados mais pobres, mas não necessariamente pelas pessoas mais pobres, tem implicações político-eleitorais que são fáceis de perceber.

Redução da desigualdade


A desigualdade de renda no Brasil, que é uma das piores do mundo, vem-se reduzindo desde a implantação do Plano Real em 1994, com um pequeno retrocesso em 2001, e uma queda mais acentuada a partir de então . Existem muitos estudos, bastante técnicos, que tratam de entender os determinantes dessa queda. Ricardo Paes de Barros e colaboradores estimam que ela se deve, em partes quase iguais, ao aumento da renda derivada do trabalho (32% a 46% da variação) e da renda não derivada do trabalho (42% a 48%). Outros fatores, como as mudanças nas taxas de ocupação e na estrutura de idades da população teriam papel menor.

Rodolfo Hoffmann, no mesmo volume , estima que a contribuição do aumento das transferências de renda do governo foi menor, respondendo por cerca de 20,5% da redução da desigualdade, ao passo que 68,2% seriam atribuíveis a mudanças no rendimento do trabalho. Ele observa ainda que o efeito das transferências é maior no Nordeste do que em outras partes do país. Essas transferências são, sobretudo, o Bolsa Família e o Benefício de Prestação Continuada, uma transferência no valor de um salário-mínimo que beneficia pessoas de mais de 65 anos e pessoas incapacitadas que não têm direito à aposentadoria porque não recolheram contribuições suficientes. As aposentadorias e pensões do regime geral do INSS e dos regimes especiais do funcionalismo público, por sua vez, não contribuem para a redução da desigualdade, e podem estar até mesmo atuando em sentido contrário. Sergei Soares examina o impacto de diferentes fatores na redução da desigualdade entre 2004 e 2006 e conclui que “as transferências sociais focalizadas, cujo peso na renda total é de cerca de 1%, contribuíram com ⅓ da queda na desigualdade.

Só o Programa Bolsa Família teria contribuído com 20% dessa redução”.

O que se pode concluir dessas análises é que a contribuição do Bolsa Família para a redução da desigualdade foi significativa, mas inferior à de outros fatores, como o crescimento da economia e o programa de Benefício de Prestação Continuada. O crescimento da economia nos anos recentes permitiu que o salário-mínimo tivesse importantes aumentos em seu valor real, sem maiores impactos no desemprego e na informalidade, efeitos perversos que seriam esperáveis em uma situação de estagnação ou menor crescimento, que é o que se teme que possa ocorrer nos próximos anos. O aumento real do salário-mínimo também impacta o sistema previdenciário e os orçamentos públicos em todos os níveis, acarretando um comprometimento financeiro que pode tornar-se muito problemático nos próximos anos.

O impacto na educação e outros efeitos

As expectativas iniciais de que programas de transferência de renda pudessem ter um impacto significativo sobre a educação não se confirmaram de uma maneira geral, embora alguns efeitos localizados possam ser observados. A principal razão é que, no Brasil, as famílias tendem sempre a colocar as crianças em escolas quando estas estão disponíveis. O abandono só começa a ocorrer de forma significativa ao redor dos 14 a 15 anos de idade, quando as crianças já passaram do que era a idade de corte para o recebimento da bolsa. Da população brasileira de 15 a 18 anos de idade, em 2006, de um total de 14 milhões de pessoas, 3,5 milhões estavam fora da escola. Entre os mais pobres, de um total de 4,4 milhões, 1,3 milhão estava fora da escola.

Recentemente, o governo ampliou o programa de bolsa para famílias com filhos até 17 anos de idade que estejam estudando. Com isso buscou atender aos de maior risco, mas o número de beneficiados não foi muito significativo. É que muitos jovens viviam em famílias que já recebiam a contribuição máxima do programa, entre outras razões.

O Quadro 3 mostra a percentagem de crianças e jovens de famílias pobres (25% inferior da distribuição de renda) que frequentam ou não a escola, por idade, por região, e se a família recebe ou não bolsa família, conforme os dados do IBGE de 2006.

O que se pode constatar é que existem diferenças importantes até os 7 anos de idade e dos 14 anos para cima, e de forma crescente depois desta idade, sobretudo na área rural. O que não se sabe é se as crianças e jovens estão na escola por causa da bolsa ou se recebem a bolsa porque estão na escola. A PNAD 2003 mostrou um resultado curioso a esse respeito: crianças de famílias que recebem ou esperam receber bolsas estavam na escola em proporções semelhantes entre si e diferentes das crianças de famílias que não recebiam bolsas. Isso sugere que não era o dinheiro da bolsa que explicava as diferenças, mas, sim, o acesso que as famílias tinham a escolas, por um lado, e ao programa de bolsa, por outro .

Uma análise comparada com programas similares em várias partes do mundo confirma o pouco impacto desses programas na educação, exceto em aumentar a matrícula em países ou regiões com níveis muito baixos de cobertura escolar . Para países como o Brasil, os problemas principais da educação não são mais de acesso ou assiduidade às aulas, mas da qualidade das escolas, dos conteúdos dos programas, da organização dos sistemas escolares e da formação de professores, entre outros, questões sobre as quais programas de transferência de renda não têm nenhum impacto.

Uma pesquisa feita pelo Centro de Desenvolvimento e Planejamento Regional de Minas Gerais (CEDEPLAR), por solicitação do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, buscou identificar os efeitos do programa em quatro áreas: gasto familiar, educação, trabalho e empoderamento da mulher . Para tanto, a pesquisa comparou domicílios em situação semelhante de renda que participavam e não participavam do programa em 2005.

Como era de esperar, as famílias que receberam a bolsa gastaram mais em alimentação do que as que não receberam, sobretudo entre os de renda abaixo de R$ 50,00 per capita e na região Norte/Centroeste, onde o aumento de gastos anuais com alimentos chegou a R$ 588,01. Aumentos de gastos em educação também ocorreram, mas os valores são pequenos, entre R$ 20,00 e R$ 50,00 ao ano.

Em relação à educação, a pesquisa encontrou que a diferença em frequência escolar dos que recebiam o auxilio era de 3,6%, chegando a mais de 7% na Região Nordeste; e que havia uma diferença de 1,8% a favor dos que recebiam a bolsa em relação à evasão escolar. Segundo o relatório, “os resultados da comparação da proporção de crianças que declararam só estudar em relação àquelas que declararam só trabalhar, trabalhar e estudar ou não trabalhar nem estudar, indicam não haver diferença significativa na alocação do tempo para o estudo entre os dois grupos comparados”, ou seja, entre os que recebem e os que não recebem a bolsa. De fato, ao contrário do que se pensa, não há incompatibilidade absoluta entre trabalho e estudo para os jovens, sobretudo porque o trabalho dos jovens, quando existe, tende a ser em tempo parcial.

Em relação ao trabalho, a pesquisa encontrou que os beneficiários do programa têm uma participação no mercado de trabalho ligeiramente menor do que a dos não-beneficiados, da ordem de 2 a 3%, com uma diferença importante no caso das mulheres beneficiadas da Região Sudeste e Região Sul, da ordem de mais 14%.
Finalmente, os dados sugerem que as mulheres, que são as que recebem o dinheiro da bolsa, têm maior poder de barganha em relação às decisões familiares no caso de famílias que recebem do que no caso de famílias que não recebem a bolsa.

O relatório não interpreta os resultados, mas, exceto em relação aos gastos com alimentos, não é óbvio que as diferenças encontradas se devem às bolsas do programa. É possível, por exemplo, que sejam as mulheres mais ativas e empreendoras do Sul e do Sudeste que busquem cadastrar-se nos programas de renda dos municípios, deixando de fora, justamente, as mais isoladas.

O lugar dos programas de transferência nas políticas sociais

Sonia Draibe realizou uma comparação cuidadosa dos diversos programas de transferências de renda condicionadas na América Latina, assim como da literatura existente, e procurou identificar que dimensões precisariam ser analisadas para avaliar seu impacto :

    que lugar ocupam nos sistemas nacionais de proteção social? Estão efetivamente integrados ao sistema de políticas sociais de cada país ou mantêm perfil e dinâmica próprios, paralelos àqueles?

    operam como efetiva porta de entrada aos programas sociais universais ou atuam de forma paralela e fragmentada, em relação a estes?
    como se dá a interação entre os programas de renda e os programas universais de saúde e educação, áreas em que, em geral, definem-se as condicionalidades ou contrapartidas?

    os programas de transferência de renda configuram efetivamente uma rede social de proteção básica? Há integralidade das ações e ganhos de sinergia ou os programas operam de modo isolado e independente, cada qual segundo suas rotinas e procedimentos próprios?

    que efeitos provocam nos sistemas nacionais de proteção social? A oferta dos serviços sociais básicos, especialmente os de saúde e educação, tem sido estimulada e incentivada, direta ou indiretamente, pelos programas?

A conclusão de Draibe é que, em geral, esses programas produzem alguma melhoria no consumo e no acesso a serviços para as populações mais carentes, mas são pouco ou nada eficazes em efetivamente tirar as pessoas da situação de pobreza em que vivem. Dos diversos programas estudados, o que sobressai como o de melhores resultados é o Programa Puente, do Chile, em que os auxílios monetários estão associados a um trabalho personalizado de apoio às famílias beneficiadas. O pressuposto do Programa Puente é que essas famílias se encontram excluí¬das das redes sociais e assistenciais existentes, cabendo ao programa não só trazer uma contribuição monetária, mas sobretudo apoiá-las para que possam inserir-se de maneira mais adequada na sociedade.

A ideia de associar benefícios financeiros às famílias a políticas sociais específicas é interessante, mas isso deveria ser feito, preferencialmente, através das próprias agências encarregadas da implementação dos programas, e não de forma separada. Assim, por exemplo, as secretarias de educação municipais e estaduais poderiam contar com recursos para dar bolsas de estudo para as crianças que o necessitem, identificadas diretamente. Diferentemente da situação atual, em que as autoridades municipais enviam listas de nomes para Brasília, que distribui os recursos, e depois tenta, sem muitas condições, verificar à distância se as condicionalidades estão sendo cumpridas. O exemplo do Chile chama atenção para outro aspecto importante das políticas sociais bem-sucedidas, que é a intersetorialidade, ou seja, a capacidade de trabalhar simultaneamente sobre os diversos aspectos das carências e dificuldades que afetam as famílias mais pobres, que requerem apoio direto, personalizado e integrado. No caso do Brasil, a incorporação de diferentes programas de apoio a famílias a um grande programa centralizado, aparentemente justificável em nome da racionalidade gerencial, na verdade pode ter tido um efeito negativo: retirar recursos de programas especializados que poderiam agir de forma muito mais efetiva em suas áreas de atuação.

Embora os programas de transferência de renda possam dar um alívio a situações de penúria, eles não constituem, de fato, mecanismos apropriados para dar às pessoas beneficiadas uma porta efetiva para sair da situação de pobreza, desemprego ou subemprego em que vivem. Não se trata de criticar os programas por deixar de fazer coisas que seriam impossíveis, ou quase, que fizessem. A má distribuição de renda no Brasil, bem como os problemas de pobreza a ela associados não são somente uma questão de justiça social ou de exploração dos pobres pelos ricos. Ela não pode ser resolvida com a simples transferência de renda de um setor da sociedade para outro, pois está associada a profundas diferenças de educação e capacitação e à ausência de um mercado de trabalho suficientemente dinâmico e amplo que tenha condições de absorver e integrar, de forma produtiva, o grande número de pessoas que hoje vivem à margem ou nas periferias da sociedade brasileira. A conclusão mais geral é que os programas de transferência de renda podem produzir efeitos benéficos, mas não são um substituto para as políticas econômicas e sociais clássicas, na área do emprego, do seguro social, da educação, da qualificação profissional, e do atendimento à saúde, que são as únicas que podem efetivamente produzir resultados mais significativos a médio e longo prazo.

A fanfarra e a prioridade com que esses programas são muitas vezes apresentados, como se eles constituíssem uma revolução nas políticas sociais e um caminho privilegiado para a solução dos problemas da pobreza e da desigualdade, se devem muito mais a seus usos políticos do que a seus resultados e potencialidades efetivas. •