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domingo, 16 de dezembro de 2018

Leituras leves de um domingo pre-natalino - Paulo Roberto de Almeida

Leituras leves de um domingo pré-natalino

Paulo Roberto de Almeida
 [Objetivo: notas de leituras; finalidade: prazer intelectual]
  
Domingo pede cachimbo, diz o velho ditado. Eu, que já abandonei o cachimbo há muito tempo, até antes do casamento, que já dura quarenta anos – neste domingo 16 de dezembro, justamente –, prefiro fazer outras coisas, quando não estamos com os netos. Domingos, como quaisquer outros dias da semana, do mês, do ano, das décadas, são dedicados às leituras, à reflexão, à escrita. Passei o sábado na companhia áspera de livros de relações internacionais, de política externa e de diplomacia brasileira, para redigir dois textos que estou devendo há pelo menos três meses, digamos assim. Mas, isso virá, a seu tempo. Como eu digo sempre: o texto está pronto, só me resta escrevê-lo, o que não é o mais difícil. Com efeito, eu costumo ler muito antes de qualquer trabalho, fazer a minha acumulação primitiva, e algum estoque moderno de leituras, pensar um pouco, eventualmente redigir um esquema, e depois, plim!, o texto acaba saindo quase pronto, ainda que naquele estilo prolixo, rebarbativo, que horrorizaria escritores como Graciliano Ramos ou Hemingway, que diziam que escrever é a arte de cortar palavras.
Pois bem, neste domingo de casamento, ainda não escrevi nada de particularmente inteligente, apenas me dediquei aos afazeres domésticos, a comprar vinhos para o fim de ano, e acabei caindo, ou eles caíram sobre mim, em alguns livros daqueles esquecidos, que guardamos um dia para ler, e esse dia nunca chega. Pois bem, chegou hoje, e se lê daqui, percorre de lá, abre ao acaso, folheia um, folheia outro, e, de repente, plim!, se cai numa frase memorável, que nos faz sorrir, e aí dá vontade de compartir com os outros aquilo que de mais agradável se encontrou nessas leituras dominicais, com a peculiaridade, agora, de que se trata de um domingo pré-natalino, com árvore já montada – graças aos cuidados de Carmen Lícia –, presépio instalado – idem –, presentes para os netos já escondidos – ibidem –, tutto a posto– só falta a roupa de Papai Noel e uma barriga apropriada –, e aí finalmente sentamos no computador para transcrever os trechos mais saborosos.
Ei-los aqui, se me permitem a mesóclise, se isto é uma mesóclise.


Primeiro um romance de Jean-Christophe Rufin, de quem, muitos anos atrás resenhei uma obra contestadora da ordem internacional – pois ele foi da organização humanitária Médecins Sans Frontières–, um libelo contra o que se poderia chamar de “negligência malévola”, cujo título era L’Empire et les Nouveaux Barbares(1991; existe edição brasileira). Mas agora é um romance que Carmen Lícia e eu compramos alguns anos atrás em Paris, e que depois ficou na estante, chamado L’Abyssin(Gallimard Folio, 1997, mas o livro é de 1977, prix Goncourt e prix Méditerranée). Carmen Lícia já me tinha dado de presente um outro romance do mesmo autor, chamado Rouge Brésil, que ganhou o prêmio Goncourt (2001), falando sobre os índios do Brasil e seus déboirescom os portugueses, que eu nunca terminei de ler. Prometo fazê-lo num desses domingos com poucos afazeres.
Mas, este romance, histórico, mas baseado num personagem real – o subtítulo é: Relation des extraordinaires voyages de Jean-Baptiste Poncet, ambassadeur du Négus auprès de Sa Majesté Louis XIV–, trata realmente de negociações diplomáticas, e é por isso que eu transcrevo um simples trecho, extraído do capítulo 1 da parte III: “La Lettre de Créance”, ou seja, uma carta de acreditação, como carregam os diplomatas, quando se apresentam a um soberano estrangeiro (neste caso, o da Abissínia, tristemente célebre, bem mais tarde do que o século XVII, pela derrota imposta em Sadowa, em 1895, aos invasores italianos, e depois ao massacre brutal imposto por Mussolini ao único país africano independente e membro da Liga das Nações, que não fez nada, como de hábito). Bem, chega de conversa, vamos à primeira citação:


La diplomatie est un art qui requiert une si constante dignité, tant de majesté dans le maintien, tant de calme, qu’elle est fort peu compatible avec la précipitation, l’effort, bref, avec le travail. M. de Maillet [o personagem principal deste romance, com o já referido Poncet, cônsul francês muito maltratado pelo bey do Cairo, sob dominação otomana], en diplomate avisé, ne remplissait jamais sib bien son rôle que dans ces moments où, n’ayant positivement rien à faire, il pouvait s’y consacrer tout entier. Ce rien, il parvenait alors à l’élever à la dignité d’une grâce d’État, nimbée comme il se doit de secret et parfumée de mépris à l’endroit de tous ceux qui auraient eu l’audace de lui demander des comptes sur l’emploi de son temps. Depuis le départ de la mission en Abyssine et après les fâcheux désagréments que lui avaient causé les intrigues ecclésiastiques, le consul avait enfin repris le cours ordinaire du service de l’État : il lisait les gazettes, qui lui parvenaient avec du retard, tenait un compte précis des avancements et mutations dans la carrière et cherchait à définir la direction dans laquelle il pourrait orienter sa légitime ambition. Enfin, il rendait, selon un ordre prévu de longue date, des visites à un nombre considérable de personnages turcs et arabes à qui il n’avait rien à dire, dont il ne consentait à rien entendre et auprès desquels la conversation atteignait souvent la finesse, le ciselé des bas-reliefs orientaux chargés de mille chantournements, qui attirent l’œil et le charment sans lui laisser cependant distinguer aucune forme particulière, aucun signe, rien. (p. 317-18)

É evidente que Jean-Christophe Rufin, que conviveu bastante com diplomatas franceses, e estrangeiros, modernos, contemporâneos, usa aqui de un recurso literário, as aventuras de um diplomata do Ancien Régime, para dizer que, em todos os tempos, os diplomatas não servem para grandes coisas, que tudo o que lhes ocupa é remoção, promoção, postos agradáveis, se possível sem nada para fazer, e pedindo que, sobretudo, não lhe cheguem instruções para nada, qualquer coisa que lhes perturbe a calma, o savoir-vivre, a non-chalance, a imperturbável placidez dos postos sem problemas, onde se pode ler os jornais tranquilamente, jogar bridge, tomar um cognaccom os amigos, fumar um havana, e fazer plaisanteriessem consequências. Esse Rufin é, decididamente um gozador, e merece os seus Goncourt, porque ele sabe fazer com toda a graça de um espírito cultivé,un homme d’expérience, un grand voyageur.
Enfim, passemos ao segundo livro.

Quando eu morei sete anos na Europa, num autoexílio forçado pelos anos de chumbo em nosso querido país, eu costumava ler o Le Monde todos os dias, senão os que eu comprava, pelo menos os que eu encontrava na biblioteca, ou lia furtivamente no quiosque da universidade de Bruxelas. Pois bem, antes de ler qualquer artigo sério de política internacional – André Fontaine, por exemplo –, eu primeiro dava uma olhada no cartoon do Plantu e depois no box com as pequenas frases de Robert Escarpit, o homem da palavra, o espírito galhofeiro do dia, o gozador impecável, num Francês elegante, algumas vezes erudito, mas sempre com aquela tournure d’espritque me deixava pasmo de admiração. Pois bem, caiu-me também nas mãos, neste domingo dominical, um Livre de Poche de 1973, chamado Les contes de la saint-glinglin(Paris: Magnard).

Hilariante, a maior parte dos contos, inclusive porque ele explica (ou inventa) a origem de famosas frases em Francês – la belle Lurette, la poudre d’Escampette–, algumas até passadas para o Português, e aproveitadas por Monteiro Lobato, por exemplo. Vocês sabiam que o famoso “pó de Pirlimpimpim”, usado para viagens no tempo e no espaço pela Emília e seus colegas do sítio do Pica-pau amarelo, é na verdade, uma artimanha do Père Limpinpin? Pois é! Mas não é disso que eu quero falar. É justamente no conto 8 desse livro, chamado “La poudre du Père Limpinpin”, que eu encontro uma frases memoráveis, não mais contra os diplomatas, mas contra os militares, nossos irmãos de paz e de guerra, nossa corporação-espelho, feita do mesmo patriotismo entranhado, dos mesmos valores e princípios – a ordem, a disciplina, a hierarquia, a marcha unida, a obediência cega, o respeito aos superiores –, enfim, essas coisas que só os servidores do Estado podem exibir orgulhosamente. E o que diz Robert Escarpit desses militares sempre tão rigorosos? Isto (é também uma história do século XVII): 

À cette époque, les Suisses avaient pour coutume de gagner leur vie, et souvent de la perdre, en s’engageant comme mercenaires au service de princes étrangers. L’usage a presque disparu maintenant, et c’est dommage, car les Suisses étaient des beaux soldats qui portaient joliment leur uniforme. Le pape est le dernier client qui leur reste, mais il a rarement l’occasion de faire la guerre. (…)
La vie militaire en temps de paix, cela peut être agréable quand on sait s’y prendre. Mais vienne la guerre, cela peut devenir très dangereux surtout quand elle est longue. (…) Autrefois, on savait faire durer les guerres. On économisait les soldats pour en avoir jusqu’au bout. On faisait des guerres de sept, de trente ou de cent ans, selon les cas. (…)
Or, un beau jour, la guerre était presque terminée et les généraux auraient même immédiatement arrêté le combat s’ils avaient pu se mettre d’accord sur le gagnant. (pp. 104-5, 106-8, 109)



Bem, chega de guerras e de diplomatas, ou pas tout à fait. O terceiro livro que me caiu nas mãos, também em Francês, foi Montaigne: Que Sais-Je?, de Jean-Yves Pouilloux, para a coleção Découvertes Gallimard, pequenos-grandes livros de bolso, mas ricamente ilustrados, da qual temos vários, Carmen Lícia mais do que eu. 
O Montaigne que eu conheço é obviamente o dos Essais, dos quais eu tenho os três livros, de bolso (o primeiro da Gallimard-Folio, com prefácio de André Gide; o terceiro da Gallimard-Classique, com prefácio de Maurice Merleau-Ponty, ambos com edição anotada por Pierre Michel; e o segundo livro que me desapareceu na minha biblioteca escandalosamente desarrumada), e uma seleção anotada dos três livros, que eu vi há poucos dias no emaranhado de outros livros, em cujas estantes eu me perdi, não achando nem um, nem outro, como tampouco agora. O outro Montaigne que eu li, pouco tempo atrás, foi o de Stefan Zweig, terminado em Petrópolis pouco tempo antes de seu suicidar, já na angustia que ele também sentiu – como Montaigne durante as guerras de religião na França – ao contemplar o seu mundo europeu completamente destruído pela loucura genocida daquele austríaco psicopata que se julgava alemão. 

Tive o prazer, há poucos meses de assumir a direção do Instituto de Pesquisas de Relações Internacionais (IPRI), do Itamaraty, de promover um evento, a propósito do 75o. aniversário da morte de Stefan Zweig, com a participação do ex-chanceler Celso Lafer, como introdutor de uma edição multilínguas – feita pela Casa Stefan Zweig de Petrópolis, dirigida por Kristina Michahelles, e pela Memória Brasil, de Israel Beloch, o tradutor – da conferência feita por Stefan Zweig no Rio de Janeiro, em 1936, na primeira vez em que ele esteve em nosso país, chamada “A Unidade Espiritual do Mundo”, um tema que lhe era muito caro, para quem já tinha feito biografias de Erasmo – lutando contra Lutero – e de Castelio – lutando contra Calvino – e que se angustiava com a dominação da Europa pelos novos bárbaros do totalitarismo. O anúncio desse evento foi feito antecipadamente por mim numa postagem do blog Diplomatizzando (link: https://diplomatizzando.blogspot.com/2017/02/stefan-zweig-o-escritor-que-sonhava-de.html), sendo que dois anos antes eu já transcrevia uma matéria do ex-repórter do New York Times no Rio de Janeiro, Larry Rohter (famoso pela sua matéria anterior sobre as bebedeiras de certo presidente brasileiro), sobre a nova mania em torno de Stefan Zweig (vejam aqui: http://www.nytimes.com/2014/05/29/books/stefan-zweig-austrian-novelist-rises-again.html), e também uma outra matéria sobre uma nova biografia do escritor austríaco por Benjamin Moser, antes do filme Adeus Europa(aqui: https://diplomatizzando.blogspot.com/2014/06/stefan-zweig-por-benjamin-moser.html). O relato sobre o evento Stefan Zweig, com a presença de Celso Lafer, e reproduzindo algumas ilustrações, eu coloquei na plataforma Academia.edu em 12/03/2017 (link: http://www.academia.edu/31826161/Stefan_Zweig_e_o_Brasil).
Pois bem, o Montaignede Jean-Yves Pouilloux é primoroso, pelo recorte magnífico que ele faz dos Essais, com trechos destacados e entremeados de ilustrações as mais significativas, mas também pela seleção final de “témoignages et documents” (pp. 129-169), sendo que a última homenagem é justamente retirada do livro de Stefan Zweig sobre Montaigne, em palavras que poderiam ser aplicadas ao próprio escritor austríaco, ou a qualquer homem de consciência, lutando contra os demônios do fanatismo, da intolerância, da prepotência, do furor destruidor, o que ainda encontramos em nossos tempos, infelizmente, mesmo se sob formas mais amenas. Certas formas de fundamentalismo, religioso ou político, pertencem à mesma família dos dogmas, dos verdadeiros crentes, dos ideólogos animados pelas suas verdades exclusivas (e muitas vezes excludentes), que ainda podem ser encontradas por aí, vagando ao sabor das mudanças políticas e dos fervores transformistas. 
Os trechos que Pouilloux selecionou de Zweig sobre Montaigne merecem que os transcrevemos, inclusive porque eu não fiz notas dessa leitura de um livro derradeiro do grande Stefan Zweig, como tampouco fiz do Erasmo, de Castelio, ou do Fernão de Magalhães, essas figuras trágicas das quais Zweig amava retraçar a vida e os pensamentos. Mas fiz, por exemplo, do execrável Fouché, cujas notas eu transcrevi em meu blog: “Zweig sobre Fouché: biografia primorosa de uma figura execrável”, Brasília, 4 junho 2018, 11 p. Leitura e notas do livro de Zweig, Stefan (1881-1942): Joseph Fouché: retrato de um homem político; tradução de Kristina Michahelles; Rio de Janeiro: Record, 1999, 304 p; título original: Joseph Fouché: Bildnis eines politischen Menschen (1929). 

Divulgado no blog Diplomatizzando (5/06/2018; link: https://diplomatizzando.blogspot.com/2018/06/fouche-por-stefan-zweig-resenha-artigo.html). 

Vamos, finalmente, ao Montaigne, de Stefan Zweig: 
Seul celui qui, dans le bouleversement de son âme, est contraint de vivre un époque où la guerre, la violence, la tyrannie des idéologies menacent la vie même de chacun et, dans cette vie, sa substance la plus précieuse, la liberté de l’âme, put savoir combien il faut de courage, de droiture, d’énergie, pour rester fidèle à son moi le plus profond, en ce temps où la folie s’empare des masses. Il faut d’abord avoir soi-même douté et désespéré de la raison, de la dignité de l’homme, pour pouvoir louer l’acte exemplaire de celui qui reste debout dans le chaos du monde. (…) On a voulu voir en lui un homme qui se détache de tout, qui n’est lié à rien, qui doute de tout, e vit dans le vide – c’est ainsi que l’a décrit Pascal. Rien n’est plus faux : Montaigne aime démesurément la vie. (…)
Il n’est qu’une erreur et qu’un crime : vouloir enfermer la diversité du monde dans des doctrines et des systèmes. C’est erreur que de détourner d’autres hommes de leur libre jugement, de leur volonté propre, et de leur imposer quelque chose qui n’est pas en eux. Seuls agissent ainsi ceux qui ne respectent pas la liberté, et Montaigne n’a rien haï tant que la « frénesie », le délire furieux des dictateurs de l’esprit qui veulent avec arrogance et vanité imposer au monde leurs « nouveautés » comme la seule et indiscutable vérité, et pour qui le sang de centaines de milliers d’hommes n’est rien, pourvue que leur cause triomphe. 
Ainsi l’attitude de Montaigne face à la vie comme celle de tous les libres penseurs, aboutit à la tolérance. (…)
Il est important de voir cela, parce que c’est une preuve que l’homme peut toujours être libre, à n’importe quelle époque. (…) Même aux temps fanatiques, à l’époque de la chasse aux sorcières, de la « Chambre Ardente » et de l’Inquisition, les hommes humains [sic] ont toujours pu vivre ; pas un seul instant cela n’a pu troubler la clarté d’esprit et l’humanité d’un Erasme, d’un Montaigne, d’un Castellion. (…)
Celui qui pense librement pour lui-même honore toute liberté sur terre. 
(Montaigne : que Sais-Je ?,Gallimard, 1987, pp. 167-169).


Alguns desses pensamentos, curiosamente similares, me vieram outra noite à mente, a partir da leitura (no Kindle), de um livro de Eric Hoffe: True Believer: Thoughts on the Nature of Mass Movements,uma obra publicada pela primeira vez em 1951, que tem a ver justamente com esses fanáticos que infernizaram a vida de Erasmo, de Castélio, de Montaigne, de Stefan Zweig, e que continuam a infernizar as nossas vidas, com esses chamamentos ao “pensamento correto”, à punição dos desviantes, à condenação dos dissidentes, à perseguição dos livre pensadores. 
O livro de Hoffe me remeteu à leitura de um outro livro, de 1941, de um jovem americano graduando em história, que fez sua tese de doutorado sobre os românticos alemães, mas que terminou com sua culminação em Hitler, num momento em que ele se encontrava no ápice do seu poder, já tendo conquistado a França, e se lançado à conquista da União Soviética (mas antes de Pearl Harbor, quando Hitler também declara guerra aos Estados Unidos, três dias depois, num dos maiores erros estratégicos de toda a sua patética, e destrutiva, carreira de genocida psicopata). O livro, de Peter Viereck,se chama, prestem atenção: Metapolitics: From Wagner and German Romantics to Hitler(edição original: New York: Alfred A. Knopf, 1941; edição aumentada: New Brunswick: Transaction Books, 2003; disponível na Amazon). 
O termo metapolítica foi cunhado pelos seguidores de Richard Wagner, um antissemita admirado por Hitler – tanto que suas músicas foram tocadas até depois de seu suicídio, em sua homenagem – e vem associado a uma ideologia da qual Peter Viereck identifica os elementos mais distintivos: romantismo (incorporado sobretudo no ethosWagneriano), a pseudociência racial, o endeusamento de um Fuehrer, um vago socialismo econômico, e a força alegadamente supernatural e inconsciente dessa coletividade chamada de Volk. Juntos, esses elementos engendraram uma ênfase na irracionalidade e na histeria, e a crença de uma missão especial da Alemanha para dirigir a trajetória da história mundial. Digamos que, com exceção da ideologia racial, os demais elementos podem ser sempre encontrados nas mensagens de certos fanáticos religiosos ou políticos. O que é extremamente preocupante.

Prefiro ficar com Montaigne, com Erasmo, com Zweig, com minhas leituras.
Bom domingo a todos...

Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 16 de dezembro de 2018

terça-feira, 24 de julho de 2018

Stefan Zweig: Castellio contra Calvino. Conciencia contra violencia

Estive lendo este livro de Stefan Zweig, até selecionei um trecho que traduzi do espanhol. Ver ao final.
Ele foi escrito três anos depois do seu Erasmo, logo a início do regime hitlerista.
Nota-se, no trecho que traduzi e transcrevi, abaixo, o protesto de um escritor contra todas as ditaduras.
No mesmo ano de publicação deste livro, em 1936, Zweig vinha pela primeira vez ao Brasil, de passagem para Buenos Aires, onde se realizaria o congresso internacional do Pen Club, durante o qual foi muito pressionado para assumir uma atitude mais firme contra Hitler, mas ele se recusou.
O episódio foi retratado no filme, que recomendo, "Adeus à Europa", e de fato Zweig estava vendo o seu continente afundar em ditaduras e regimes fascistas.
No Brasil, deixou inconcluso seu livro sobre Montaigne, e, prontas, as memórias da belle époque, O Mundo de Ontem", publicadas postumamente. Seu Erasmo é um monumento. Mas nem sempre ele fala só de heróis (como esses, mais Fernão de Magalhães ), pode também tratar de calhordas, como Joseph Fouché, um grande livro, uma grande biografia.  Recomendo, também, a biografia de Stefan Zweig por Alberto Dines, um dos maiores jornalistas brasileiros, recentemente falecido.
Paulo Roberto de Almeida 

Stefan Zweig: Castellio contra Calvino. Conciencia contra violencia

Publicado por 

¿Qué puede llevar a toda una ciudad como Ginebra, con una larga tradición democrática, con unos ciudadanos acostumbrados a regirse por sus propias leyes, elegidas por orgulloso referéndum a mano alzada, a doblegarse ante la voluntad de un solo hombre, extranjero para más inri? No hablo de una sumisión forzada por la derrota militar sino de una docilidad voluntaria, propiciada primero por la inseguridad y luego apuntalada por el miedo. Hablo del férreo gobierno que instauró Calvino y que llevó a la ciudad suiza a un puritanismo modélico, a un extremo rigorismo que cumpliese con las severísimas exigencias del maestro, y a la persecución implecable del disidente, lo que condujo a la primera quema de un hereje de la fe reformada, Miguel Servet, y al acoso de uno de los mayores humanistas de la época: Sebastian Castellio.
Son admirables la inteligencia y determinación de Calvino a la hora de hacerse con el poder en Ginebra. Genial manipulador y estratega, sabe cómo contaminar la autoridad civil con la religiosa para hacerse dueño de ambas. Su raíz puritana pronto se deja sentir en todos los aspectos de la vida cotidiana: se prohíben las conversaciones ligeras, los libros que no sean obras piadosas (y, dentro de estas, solo las autorizadas por Calvino), los peinados demasiado largos, las ropas vistosas, los bailes, las fiestas, los juegos… Todo signo de alegría y de vida es suprimido. El control de los ciudadanos —¿mejor decir fieles?— alcanza niveles de virtuosismo gracias a una amplia red de delatores y espías que informan puntualmente de cualquier desviación de la doctrina. La diplomacia ginebrina da fiel noticia al maestro Calvino de las convulsiones en el extranjero.
A este espíritu fanático e intransigente se opuso, obligado por las circunstancias y por la firmeza de sus creencias, otro espíritu simétricamente opuesto. Sebastian Castellio era un erudito al que apasionó la polémica que levantó Lutero en toda Europa acerca de la libre interpretación de la Escritura. La inteligencia abierta y tolerante de Castellio enseguida fue ganada para la causa protestante, dedicandose nada menos que a una nueva traducción de la Biblia al francés y al latín. Buscando un lugar donde imprimir la primera parte de su trabajo, se alejó del ambiente francés, hostil a los protestantes, y fue a dar en ese bastión del reformismo llamado Ginebra. Por si fuera poco, Castellio y Calvino habían coincidido brevemente de estudiantes, cuando este último era un ferviente partidario de la libertad de conciencia, por lo que el humanista confiaba en disponer con presteza del imprimátur. Cuál no sería su sorpresa cuando Calvino contestó a sus requerimientos pretendiendo introducir cambios en su traducción de la Biblia. Y es que la traducción de Castellio reconocía su ignorancia en algunos puntos oscuros del texto sagrado, puntos que Calvino ya había zanjado conforme a su propia doctrina. Se inició así un cruce de escritos polémicos entre ambos (mejor dicho: entre Castellio y los subordinados de Calvino, pues este prefería delegar estas escaramuzas) que concluyeron en la pérdida del trabajo de Castellio y en su expulsión de Ginebra.
Castellio pasó muchas penalidades a partir de entonces. Tuvo que aceptar infinidad de trabajos para mantener a su familia, además de robarle horas al sueño para continuar su traducción de la Biblia y redactar una gran variedad de escritos. Desde su enfrentamiento con Calvino se mantuvo en un prudente segundo plano, trabajando sin llamar la atención. Obtuvo un puesto en la Universidad de Basilea, comunidad donde era querido y considerado. Y así podría haber seguido sine die apaciblemente si un hecho tremendo no lo hubiese obligado a empuñar la pluma de nuevo: la quema en la hoguera de Miguel Servet. Servet, un aragonés inquieto y provocador, cometió el mismo error que Castellio: recurrió a Calvino esperando encontrar un interlocutor para sus ideas teológicas y se topó con un furibundo déspota que no toleraba ni la más mínima discrepancia.
Los capítulos que Zweig consagra a Servet destacan con un relumbre especial debido a, por un lado, la extraña personalidad del aragonés y, por otro, a su espantoso final. Servet es presentado como un personaje deDostoyevski: brillante y contradictorio, astuto y temerario. El encontronazo con la pétrea autoridad de Calvino lo lleva al suplicio primero y luego a la quema pública, en unas páginas vívidas y conmovedoras que dejan huella en la memoria. Este horror en medio del oasis de libertad que había pretendido ser la Reforma empujó a Castellio a empuñar la pluma en defensa de la libertad de culto, argumentando que las cuestiones de fe corresponde a Dios dirimirlas, no a los hombres. La oposición del humanista enfureció a Calvino, quien puso en marcha toda su máquina propagandística para desacreditar a su enemigo y desautorizarle ante sus paisanos. Las calumnias constantes y la aparición de un libelo infamante hacen que Castellio se lance de nuevo, de mala gana, a la polémica, redactando un elocuente Contra libellum Calvini (el panfleto acusador venía firmado por uno de los secuaces del maestro pero Castellio sabía muy bien quién era el verdadero autor), un monumento de honestidad, rigor y tolerancia, una implacable demolición de las acusaciones y, a la vez, una llamada a la tolerancia. Llamada que Calvino respondió de la única manera que sabía: redoblando sus ataques. Indagó la vida entera de Castellio, sus amigos, su pasado y le saltó delante, como una liebre, un indicio que podía llevar al humanista a ser acusado de herejía: cundió la sospecha de que un discreto y generoso noble muerto hacía un tiempo podía haber sido en realidad David de Joris, un anabaptista fugado de Holanda hacía años. Dicho noble había sido amigo y contertulio de Castellio. Pero cuando la acusación parecía tomar cuerpo, Castellio murió a causa de su debilitado físico a los 48 años.
Sobre el trasfondo siempre apasionante de las controversias religiosas suscitadas por la Reforma, varias aspectos sobresalen en este duelo entre Castellio y Calvino. En primer lugar, llama la atención la pusilanimidad de los ciudadanos suizos, quienes ceden sin demasiada resistencia a las presiones de un carácter autoritario: acatando, los ginebrinos, los puritanos requerimientos de Calvino y, los ciudadanos de Basilea, cediendo a las calumnias contra un profesor de su Universidad cuyo comportamiento no había sido sino ejemplar. Parece que siglos de tradición democrática no proveen en absoluto de coraje y preocupación por el prójimo. Destaca también, como he dicho, la figura de Servet, siempre al borde la perdición, guiado por algún demonio interior que le hacía mirar fijamente a la nada. Repelente y fascinante, con algo más de esto último, se me antoja el retrato de Calvino. A pesar de su fanatismo y de su indiferencia ante el dolor ajeno, uno no puede dejar de admirar su inteligencia fría y precisa, su ambición desmesurada que sale a la luz tal vez por una casualidad (Zweig insiste en las dudas de Calvino antes de ir a Ginebra, solo resueltas por la insistencia de Farel), su logro de esculpir una ciudad entera a su imagen y semejanza. En cuanto al apacible y tenaz Castellio, el biógrafo le dedica las líneas más cálidas del libro para resaltar su inteligencia, su sabiduría y, sobre todo, su respeto a los demás que le llevó a practicar y defender hasta el final la tolerancia hacia las creencias de los demás.
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[Tradução livre do espanhol: Paulo Roberto de Almeida ]
(...)
Nenhum povo, nenhuma época, nenhum homem de pensamento escapa de ter de delimitar uma ou outra vez liberdade e autoridade, pois a primeira não é possível sem a segunda, já que nesse caso, se converte em caos, nem a segunda sem a primeira, pois então se converte em tirania. Não há dúvida de que no fundo da natureza humana existe um poderoso impulso de autodissolução na coletividade. Nossa ilusão ancestral, de se que poderia forjar um determinado sistema religioso, nacional ou social que a brindaria toda a humanidade paz e a ordem definitivas, é indestrutível. O Grande Inquisidor de Dostoievski demonstra a cruel dialética que, no fundo, a maioria dos homens teme a própria liberdade e que, de fato, ante a inesgotável variedade de problemas, ante a complexidade e responsabilidade da vida, a grande massa anseia pela mecanização do mundo através de uma ordem determinante, definitiva e válida para todos, que os livre de ter de pensar. Essa nostalgia messiânica por uma existência livre de problemas constitui o verdadeiro fermento que aplaina o caminho para todos os profetas sociais e religiosos. Quando os ideais de uma geração perderam seu ardor, suas cores, um homem com poder de sugestão não necessita mais nada a não ser levantar-se e declarar que ele, e apenas ele, encontrou ou descobriu a nova fórmula, para que o suposto redentor do povo ou do mundo adquira a confiança de milhares e milhares de pessoas. Uma nova ideologia – e esse é certamente o seu sentido metafísico – estabelece sempre em primeiro lugar um novo idealismo sobre a terra, pois qualquer um que ofereça aos homens uma nova ilusão de unidade e pureza apela às suas forças mais sagradas; sua disposição ao sacrifício, seu entusiasmo. Milhões e milhões, como se fossem vítimas de um feitiço, estão dispostos a deixar-se arrastar, fecundar, inclusive violentar. E quanto mais exija deles o mensageiro da promessa de turno, tanto mais eles se entregarão a ele. Para comprazê-lo, tão somente para se deixar guiar sem resistência, renunciam ao que até a véspera constituía a sua maior alegria, a liberdade. A velha ruere in servitium[desejo de servidão] de Tácito se cumpre uma e outra vez, quando, em fogoso ato de solidariedade, os povos se precipitam voluntariamente na escravidão, e enaltecem o chicote com que se lhes golpeia.
Para qualquer homem de pensamento não deixa de haver algo comovedor no fato de que seja sempre uma ideia, a mais imaterial das forças que existem na terra, que leve a cabo um milagre de sugestão tão inverossímil em nosso velho, sensato e mecanizado mundo. Com facilidade se cai assim na tentação de admirar e enaltecer esses iluminados, porque a partir do espírito são capazes de transformar a matéria obtusa. Mas fatalmente, esses idealistas e utopistas, justo depois de sua vitória, se revelam os piores traidores do espírito, pois o poder desemboca na onipotência, e a vitória no abuso dela mesma. E, em lugar de conformar-se com ter convencido de seu delírio pessoal a tantos homens, até o ponto em que eles ficam dispostos alegremente a viver e inclusive morrer por ele, todos esses conquistadores caem na tentação de transformar a maioria em totalidade, e de querer obrigar inclusive aqueles que não fazem parte de nenhum partido a partilhar de seu dogma. Não se satisfazem apenas com seus adeptos, com seus sequazes, com seus escravos espirituais, com os eternos colaboradores de qualquer movimento. Não. Também querem que os que são livres, os poucos independentes, os glorifiquem e sejam seus vassalos e, para impor o seu dogma exclusivo, por ordem do governo estigmatizam qualquer diferença de opinião, qualificando-a de delito. Essa maldição de todas as doutrinas religiosas e políticas que degeneram em tirania quando se transformam em ditaduras se renova constantemente. A partir do momento em que um clérigo não confia no poder inerente à sua verdade, mas que recorre à força bruta, declara guerra à liberdade humana. Não importa de que ideia se trata: todas e cada uma delas, desde o momento em que recorrem ao terror para uniformizar e regulamentar as opiniões alheias, deixam o terreno do ideal para entrar no da brutalidade. Até a mais legítima das verdades, se é imposta aos demais por meio da violência, se converte em um pecado contra o espírito. 
Mas o espírito se comporta de um modo enigmático. Invisível e impalpável como o ar, parece adaptar-se facilmente a todas as formas e a qualquer fórmula. E isso leva sempre as naturezas despóticas ao delírio de acreditar que se pode submetê-lo por completo, fechá-lo e encerrá-lo docilmente. No entanto, com cada repressão aumenta sua capacidade de reação, e precisamente quando é subjugado e comprimido se converte em um material incendiário, em um explosivo. Toda repressão conduz cedo ou tarde à revolta, pois a independência da humanidade, no largo prazo, resulta – eterno consolo esse! – indestrutível. Nunca até aqui foi possível impor de modo ditatorial uma única religião, uma única filosofia, uma única forma de ver o mundo a toda a terra, pois o espírito sempre saberá resistir a qualquer servidão, sempre se negará a pensar de uma forma que lhe seja prescrita, a que o convertam em algo vazio e insípido, a deixar-se restringir e unificar. Que banal e vão resulta por isso todo esforço de querer reduzir a sublime variedade da existência a um denominador comum, assim como dividir de modo maniqueísta a humanidade em bons e maus, piedosos e hereges, em obedientes e em hostis ao Estado, baseando-se em um princípio imposto apenas e tão somente pela lei do mais forte. Sempre haverá espíritos independentes que se levantem contra semelhantes violações da liberdade do ser humano: os objetores de consciência, os que decididamente se insubordinam ante qualquer coação exercida sobre a consciência. Nenhuma época conseguiu ser tão bárbara, nenhuma tirania tão sistemática como para que alguns indivíduos não lograssem escapar à violência exercida sobre as massas e defender o direito a uma opinião pessoal em face dos violentos monomaníacos e de sua verdade única. 
Também no século XVI, exaltado como o nosso por suas ideologias violentas, conheceu tais indivíduos livres e incorruptíveis. Lendo as cartas dos humanistas daqueles tempos, se sente fraternalmente a sua dor profunda pelos transtornos causados pelo poder. Comovidos, experimentamos a aversão de suas almas em face das proclamações estúpidas que os dogmáticos gritam no mercado, pregando a todos e a cada um o mesmo: “O que ensinamos é o certo, o que não é falso!” Que grande espanto sacode os serenos cidadãos do mundo à vista desses reformadores desumanos da humanidade que, proclamando com espuma na boca suas brutais ortodoxias, irromperam em seu universo, um universo que acredita na beleza. Que profunda repugnância sente em face de todos esses Savonarolas, John Knox e Calvinos que querem destruir a beleza que existe no mundo, e converter a terra em um seminário de moralidade. Com trágica clarividência, todos esses homens sábios e humanitários reconhecem o mal que esses fanáticos furibundos haverão de trazer à Europa. Por trás de suas palavras raivosas já escutam o fragor das batalhas. E naquele ódio pressentem a futura e terrível guerra. E, mesmo conscientes da verdade, esses humanistas não se atrevem a lutar por ela. Na vida, os destinos estão quase sempre separados: os que compreendem não são os executivos, e os que atuam não compreendem. Todos esses trágicos e aflitos humanistas se escrevem uns aos outros cartas comovedoras plenas de gênio, se lamentam a portas fechadas em seus gabinetes de estudo, mas nenhum deles sai a público para fazer face ao Anticristo. De vez em quando, Erasmo, a partir da sombra, se atreve a lançar um par de flechas. Rabelais, em meio a risos ferozes e oculto pela vestimenta de bufão, reparte algumas chicotadas. Montaigne, esse nobre e sábio filósofo, encontra em seus ensaios as mais eloquentes palavras. Mas nenhum deles trata de intervir seriamente, nem impedir pelo menos uma única dessas infames perseguições e execuções. Contra os furiosos, reconhecem esses homens do mundo, prudentes portanto, o sábio não deve lutar. O melhor, nessas épocas, é refugiar-se na sombra para evitar ser preso e imolado ele mesmo. 

segunda-feira, 9 de abril de 2018

Fernao de Magalhaes: quanto custou a primeira viagem de volta ao mundo?

Fernão de Magalhães: quanto custou a primeira viagem de volta ao mundo?

Paulo Roberto de Almeida
 [Objetivo: comentário sobre o custo da viagem; finalidade: explorar valores atuais]



Notas de leitura, e questões de história econômica e monetária
Estou lendo este livro de Stefan Zweig: Fernão de Magalhães: história da primeira circunavegação(tradução de Elias Davidovich; Rio de Janeiro: Editora Guanabara, Waissman, Koogan, Ltda., s.d.).
A edição brasileira, talvez incompleta, não traz a bibliografia utilizada por Stefan Zweig para compor o seu relato, provavelmente feito a partir dos diários de Antonio Pigafeta, o escrivão da frota, um dos poucos que sobreviveram ao famoso périplo marítimo, iniciado em 20 de setembro de 1519, do porto de San Lucar, perto de Sevilha, e terminado três anos depois (menos 12 dias), em 8 de setembro de 1522, com apenas um dos cinco navios afretados ao início.
O livro contém, em apêndice, o contrato concluído entre o rei espanhol Carlos I (depois Carlos V, ao realizar-se a união com os Habsburgos, da Áustria) e os dois navegadores encarregados de montar o empreendimento: Rui Faleiro e Fernão de Magalhãaes, feito na cidade de Valladolid, em 22 de março de 1518, segundo registro feito no quarto volume da “Colección de los viajes y descubrimientos”, de D. Martin Hernandez de Navarrete (Madrid: 1837). 
Pelas descobertas e serviços a serem prestados ao rei, assim como pelos perigos em que incorreriam, eles teriam direito a 20%, ou seja, um quinto, dos rendimentos e lucros em todas as ilhas e terras que descobrissem, além do título de governador dessas terras, para eles e para seus herdeiros, por todos os tempos. Eles também teriam licença para mandar dessas terras e ilhas o valor de mil ducados anualmente, assim como poderiam vender ou adquirir o que desejassem, bastando pagar o vigésimo como contribuição, à isenção de qualquer outro imposto, anterior ou posterior. Isso, porém, só seria válido quando do regresso da primeira viagem, e não antes. Para dar mais uma recompensa, eles poderiam reter para si, depois de escolhidas seis para o rei, duas ilhas para seu próprio usufruto (mas pagando a quinta parte nos rendimentos e lucros). 
Entrando nos detalhes de sua prestação, o rei prometia, para levar a cabo as promessas de volta ao mundo, aprestar cinco navios: dois de 130 toneladas, dois de 90 e um de 60 toneladas, equipados com tripulação, canhões e víveres para dois anos, para 234 pessoas, incluindo capitães, marinheiros e grumetes para a condução da armada. 

Quanto custou o afretamento da primeira viagem ao redor do mundo?
Mas, quanto custou tudo isso? Stefan Zweig relaciona, em um outro apêndice, a lista das despesas com a frota de Fernão de Magalhães, conforme consta do mesmo 4o. volume da “coleção de viagens e descobrimentos”, de Navarrete, de 1837. Todos os valores estão expressos em maravedis, a unidade de conta usada na Espanha entre os séculos XI e XIX, primeiro sob a forma de moedas de ouro cunhadas pelos ocupantes Almorávidas, depois sob diversas formas metálicas pelos reis católicos da Reconquista e seus descendentes, várias vezes desvalorizadas em relação à sua cunhagem original (de ouro para prata, depois vários tipos de metais, entre eles cobre). A lista resumida a seguir indica os valores dos navios e de diversas outras despesas com a frota, como segue:  
1) Navio “Concepción”, de 90 toneladas: 228.750 maravedis;
2) Navio “Victoria” (o único que retornou), de 95 toneladas: 300.000 maravedis;
3) Navio “San Antonio”, de 120 toneladas: 330.000 maravedis;
4) Navio “Trinidad”, de 110 toneladas: 270.000 maravedis;
5) Navio “Santiago”, de 75 toneladas: 187.500 maravedis.


O valor total dos navios era, portanto, de 1.316.250 maravedis. Com todos os seus equipamentos, canhões, pólvora, armaduras e lanças, o custo total da frota ascendeu a 3.912.241 maravedis. Os víveres (bolacha, vinho, azeite, peixe, carne seca, queijo e legumes, barris e garrafas para vinho e água) representaram 1.589.551 maravedis. Por sua vez, o soldo a ser pago durante 4 meses a 237 pessoas, incluindo os capitães e oficiais, requeria 1.154.504 maravedis. Mais 2 milhões de maravedis foram empregados em objetos diversos, além de mercadorias para permutas e presentes, entre eles sedas e panos. A importância total das despesas feitas com a armação completa dos cinco navios correspondia a 8.334.335 maravedis, dos quais 6.454.209 foram adiantadas pelo rei Carlos I e outros 1.880.126 maravedis por um “capitalista”: Christofer de Haro. 

Como avaliar esses valores? Seria possível atualizar o valor das despesas?
Caberia, agora, verificar o valor desses maravedis do início do século XVI, quando a Espanha começa a conhecer a grande inflação provocada pelos carregamentos de ouro e prata trazidos do Novo Mundo, e traduzir esses totais em valores correntes de nossos tempos. Segundo leio numa informação sobre as moedas usadas na Espanha em torno desse período, o maravedi passou a ser usada mais como unidade de conta do que como moeda efetiva para as transações, desde a introdução de uma nova moeda, o real, pelo rei Pedro I, de Castilla, em meados do século XIV, por um valor de 3 maravedis (Wikipedia: “Spanish real”; link: https://en.wikipedia.org/wiki/Spanish_real). A taxa de câmbio aumentou até 1497, quando o real, doravante emitido sobre a base de um composto de prata, foi fixado num valor de 34 maravedis. Segundo essa nota, o famoso “peça de oito” (peso de a ocho), também conhecido como dólar espanhol, foi emitido no mesmo ano como moeda de intercâmbio. Em 1566, o escudo cunhado em ouro passou a ser emitido, num valor de 16 reais de “prata”. Um século depois, dois reais de “meia prata” valiam 1 real de prata pura. O maravedi estava então cotado a esse real de “meia prata” à razão de 68 maravedis por cada unidade da moeda. Teoricamente, portanto, cada real de prata forte seria equivalente a 136 maravedis, e o escudo de ouro poderia valer 2.176 maravedis. 
Talvez se possa aproximar os valores expressos contabilmente em maravedis dos reais de prata, o que representaria mais ou menos o seguinte: o total da expedição teria custado 245.127 reais de prata, ou 15.320 mil escudos de ouro. Não posso, no entanto, no estado atual de meus conhecimentos, traduzir o valor real das despesas da frota de Fernão de Magalhães em cifras precisas suscetíveis de atualização. Caberia, a partir daí, tentar representar esses valores em pesetas do século XIX, com base nas frequentes desvalorizações dos antigos reais de prata, e trazer esses valores para cifras próximas dos dólares do século XX. O site Measuring Worth(http://eh.net/howmuchisthat/), da rede de história econômica à qual recorro frequentemente, promete para um breve futuro índices para conversão da peseta espanhola do século XIX (a partir de 1850), mas o site ainda não está pronto (https://www.measuringworth.com/spaincompare/coming-soon.php). Vamos aguardar, ou pedir a historiadores econômicos espanhóis, que um cálculo mais preciso seja feito.

Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 9 de abril de 2018

quarta-feira, 13 de dezembro de 2017

Stefan Zweig homenageado postumamente com a Ordem do Cruzeiro do Sul

Lembram-se  deste anúncio?

Eu tinha preparado, com a gentil cortesia da família de David Levine, que cedeu os direitos para o uso desta famosa caricatura, um convite para uma sessão especial que fizemos em março último em torno da figura do grande escritor austríaco Stefan Zweig, por ocasião da publicação no Brasil, graças à cooperação entre a Casa Stefan Zweig, de Petrópolis, e a  "Memória Brasil", do pesquisador e historiador Israel Beloch, do livro "A Unidade Espiritual do Mundo", uma edição universal em cinco línguas, com introdução de Celso Lafer, evento realizado no Auditório do Instituto Rio Branco, como informado abaixo.

Agora, Stefan Zweig será agraciado, em caráter póstumo, com a Ordem Nacional do Cruzeiro do Sul, no grau de Comendador, a ser entregue à embaixadora da Áustria no Brasil, e provavelmente será entregue para exposição permanente na Casa Stefan Zweig.

Graças ao empenho de meu amigo e colega Antonio de Moraes Mesplé, encerramos com essa atribuição a merecida homenagem a um grande escritor mundial, que se afeiçou ao Brasil, e aqui repousa na companhia de sua segunda esposa, Lotte Altmann.

  Paulo Roberto de Almeida 

Brasília, 13 de dezembro de 2017

 

Stefan Zweig e o Brasil: nota à imprensa




A Fundação Alexandre de Gusmão (FUNAG), o Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais (IPRI) e o Instituto Rio-Branco (IRBr) promovem nesta data, 21 de março, no auditório Embaixador João Augusto de Araújo Castro, debate sobre a obra do escritor austríaco Stefan Zweig (1881-1942) e sua estada no Brasil.

O debate começará às 15h. A entrada é franca. Terá a participação do ex-ministro Celso Lafer, professor emérito da Universidade de São Paulo; de Kristina Michahelles, jornalista, tradutora e diretora da Casa de Stefan Zweig em Petrópolis; e do historiador Israel Beloch, que coordenou a edição do Dicionário Histórico-Biográfico Brasileiro, editado pela Fundação Getúlio Vargas.

Jornalista na juventude, Stefan Zweig tornou-se, a partir da década de 1920, um dos escritores mais famosos e vendidos em todo o mundo. Em 1936, visitou o Brasil pela primeira vez, sendo homenageado pelo Governo brasileiro. Pronunciou, no Rio de Janeiro, a palestra “A Unidade Espiritual do Mundo”, em que repudiava a visão xenófoba e intolerante à época dominante na sua própria patria e na Alemanha. Com a ascensão do nazismo, exilou-se, a partir de 1934, na Inglaterra, visitando novamente o Brasil, ainda que rapidamente, em 1940, quando recolhe elementos para escrever, em 1941, “Brasil, País do Futuro”, obra em que enaltecia a diversidade presente na formação do povo brasileiro. Depois de breve estada em Nova York, mudou-se para o Brasil no segundo semestre de 1941, mas decidiu-se pelo suicídio em fevereiro de 1942, em Petrópolis, onde tinha instalado residência, profundamente deprimido com o avanço do nazismo na Europa. Ali terminou suas memórias, “O Mundo de Ontem”, na qual descreve o ambiente de liberdade e segurança desfrutado na Europa antes da Grande Guerra. Em sua carta de despedida, reafirmou seu amor pelo Brasil, cuja diversidade e tolerância eram, para ele, motivo de admiração diante de uma Europa que se autodestruía com a Segunda Guerra Mundial.

Depois do debate, o Professor Celso Lafer e o Doutor Israel Beloch autografarão o livro universal (em cinco línguas) editado por este último a partir da conferência de Stefan Zweig no Brasil, sobre “A Unidade Espiritual do Mundo”, que será lançado na ocasião, e que conta com estudo de Lafer sobre o pacificismo de Zweig.

O auditório do Instituto Rio-Branco fica no SAFS Quadra 05, lotes 2 e 3. Tem capacidade para 117 pessoas.

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Addendum:

Oportunamente, transcreverei aqui os discursos e uma descrição da cerimônia de concessão da Ordem  do Cruzeiro do Sul, a ser feita no dia 18/12/2017, no Palácio Itamaraty.