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quinta-feira, 16 de novembro de 2017

Reuniao do IPRI com ex-diretores e coordenadores de pos em RI - nota Paulo Roberto de Almeida


Reunião dos coordenadores de cursos de pós-graduação em RI
Itamaraty, Brasília, 10 de novembro de 2017, 9-13hs


Realizou-se na manhã do dia 10 de novembro, no quadro da VI CORE, uma reunião de coordenadores dos cursos de pós-graduação em Relações Internacionais das universidades brasileiras, com o objetivo de trocar opiniões sobre o estado atual e as perspectivas de cooperação entre o Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais (IPRI) e os programas de pesquisa mantidos pelas universidades e outros centros de estudos em temas afins. A reunião foi precedida por encontro de congraçamento, mas também de avaliação e de apresentação de sugestões de trabalho, de diversos diretores do IPRI, no ano em que se cumprem os primeiros 30 anos desde sua criação. Estiveram presentes ao encontro, presidido pelo atual diretor do IPRI, ministro Paulo Roberto de Almeida, o embaixador Gelson Fonseca, primeiro diretor do IPRI e atual Diretor do Centro de História e Documentação Diplomática (CHDD, localizado no Rio de Janeiro, completando 15 anos nesta data), o ex-secretário geral do Itamaraty, embaixador Samuel Pinheiro Guimarães, embaixadores Carlos Henrique Cardim e Alessandro Candeas, ademais do presidente da Funag, embaixador Sérgio Eduardo Moreira Lima.
Durante uma hora, os ex-diretores fizeram uma avaliação pessoal dos trabalhos realizados pelo IPRI e apresentaram diversas sugestões para o seu trabalho futuro. O embaixador Gelson Fonseca, por exemplo, relembrou que o verdadeiro inspirador para a criação do IPRI foi o embaixador Ronaldo Motta Sardenberg, que já mantinha, ainda na vigência do regime autoritário, contatos pessoais com acadêmicos engajados no estudo da política externa e da diplomacia brasileira. O embaixador Cardim, por sua vez, ressaltou o papel do embaixador Paulo Tarso Flecha de Lima, então secretário geral, na criação do IPRI, obtendo inclusive um local próprio para sua instalação, uma ampla casa na Vila Planalto, o que assegurava certa independência à instituição. Cardim fez diversas sugestões de trabalho para o IPRI, entre elas dar continuidade aos Clássicos, mas num formato resumido de capítulos ou trechos selecionados de grandes obras. Também sugeriu a criação de uma revista de geografia política, a instituição de uma cátedra rotativa patrocinada pelo IPRI em universidades brasileiras e, finalmente, uma atenção especial ao bicentenário da independência em 2022, com a publicação de obras de grandes nomes da cultura brasileira.
O embaixador Samuel propôs que o IPRI estimulasse, nas academias, a realização de estudos sobre a política externa de outros países, parceiros do Brasil, sobretudo os mais próximos, politicamente ou geograficamente. Da mesma forma, sugeriu a tradução de obras importantes sobre a política externa de outros países e sua publicação pela Funag, ademais de convites regulares a grandes personalidades da área.
O anterior diretor do IPRI, embaixador Alessandro Candeas, atual chefe de gabinete do ministro da Defesa, formulou uma série completa de sugestões para o trabalho do IPRI no futuro próximo, entre elas a constituição de uma rede integrada de pesquisadores em relações internacionais, a exemplo do sistema que já existe para a promoção comercial, como é a Brazil Trade Net, contendo, por exemplo, oportunidades de inserção em programas de pesquisa no exterior para os pesquisadores brasileiros. Sugeriu igualmente uma nova linha de edição de policy papers pela Funag, atendendo a demandas específicas, bem como o estímulo à confecção de maços básicos do Itamaraty com a participação de, e abertos aos, pesquisadores de pós-graduação da área.
Essa primeira sessão, voltada para os ex-diretores do IPRI, foi imediatamente sucedida por um debate mais amplo com os coordenadores, com a intervenção do presidente da Funag, embaixador Sérgio Moreira Lima, que ademais de homenagear os diretores precedentes, sublinhou o apoio do ex-diretor, na condição de secretario geral do Itamaraty, Samuel Pinheiro Guimarães, às atividades da Funag e do IPRI, provendo-os de meios adequados às diversas iniciativas empreendidas na última década e meia.
Teve início, então, uma sessão que se estendeu por mais de três horas durante as quais todos os dezessete coordenadores de cursos de pós-graduação em RI (e em áreas afins) puderam se expressar de forma livre sobre os temas de sua preferência. De forma geral, foram unânimes nos agradecimentos à Funag, ao IPRI e ao CHDD, pelo provimento de materiais relevantes aos estudos e pesquisas que conduzem em suas respectivas instituições, bem como pela realização de eventos como a CORE, também destacando o papel essencial desempenhado pelas publicações da Funag nas tarefas didáticas e de pesquisa que são próprias de suas atividades correntes. Muitas sugestões foram feitas – como, por exemplo, a constituição de arquivos digitais de documentos históricos e de referência, o apoio a editais de convocação a programas de estudos, a canalização dos trabalhos feitos nas universidades para os trabalhos correntes do MRE, a criação de um prêmio às melhores teses e dissertações produzidas nas academias, a realização de seminários com temáticas específicas, a criação de uma linha de livros clássicos da América Latina, a continuidade de traduções de clássicos ainda não realizadas, a colaboração na inserção profissional dos egressos de cursos de RI e na concessão de bolsas de estudos em nível de pós-graduação, uma melhor interação com as associações profissionais existentes (não apenas ABRI, mas também ABED, ABCP e outras pertinentes), a maior integração de diplomatas de carreira com atividades de pesquisa e extensão nos cursos de pós – num debate aberto que contou inclusive com a participação do Secretário de Planejamento Diplomático do Itamaraty, ministro Benoni Belli, sublinhando ele a importância desse tipo de interação, que permite ultrapassar os limites institucionais do pensamento oficial, bem como do coordenador de estudos e pesquisas do IPRI, conselheiro Marco Túlio Scarpelli Cabral, que resumiu os muitos eventos conduzidos pelo Instituto ao longo de 2017.
A sessão foi encerrada pelo presidente da Funag, embaixador Sérgio Moreira Lima, que efetuou uma ampla apresentação da produção da Fundação, já acumulada e disponibilizada gratuitamente em formato de livros em sua Biblioteca Digital. Dentre os muitos temas mencionados por diversos participantes na sessão figurou o da preparação do Itamaraty para o bicentenário da independência, com uma visão tanto retrospectiva quanto prospectiva. Trata-se de uma data simbólica, a de 2022, que pode envolver não apenas os principais órgãos de interação entre o Itamaraty e a comunidade acadêmica, mas também a sociedade civil de modo geral, ao oferecer uma oportunidade para fazer um balanço retrospectivo do que o Brasil realizou desde o marco inaugural, bem como para traçar algumas linhas prospectivas sobre o que se poderia fazer nos anos à frente. O papel da Funag, do IPRI e também do CHDD, é justamente o de favorecer uma contínua interação entre operadores da política externa brasileira, diplomatas, e os pesquisadores da academia, que são os analistas críticos do que é feito no Itamaraty. Ao final, houve um reconhecimento geral de que o encontro tinha cumprido seus objetivos previamente definidos, quais sejam, o de oferecer uma oportunidade direta para troca de opiniões e de informações, bem como a coleta de sugestões e recomendações para orientar os trabalhos futuros da Funag e seus órgãos subordinados.
Ademais dos diplomatas já mencionados nesta nota, e do presidente da ABRI, Prof. Eugenio Diniz, os seguintes coordenadores de cursos de pós-graduação em Relações Internacionais e em áreas afins participaram do encontro:
1)    Alexandre César Cunha Leite (UEPB)
2)    Ana Flávia Granja e Barros (UnB)
3)    André Luiz Reis da Silva (UFRGS)
4)    Armando Gallo Yahn Filho (UFU)
5)    Denise Vitale (UFBA)
6)    Eduardo Munhoz Svartman (UFRGS)
7)    Fábio Borges (UNILA)
8)    Iara Costa Leite (UFSC)
9)    Javier Alberto Vadell (PUC-MG)
10) Lidia de Oliveira Xavier (Unieuro)
11) Marcelo de Almeida Medeiros (UFPE)
12) Marcos Cordeiro Pires (UNESP)
13) Marta Fernandez Moreno (PUC-RIO)
14) Miriam Gomes Saraiva (UERJ)
15) Pedro Bohomoletz de Abreu Dallari (IRI-USP)
16) Raphael Padula (UFRJ)
17) Samir Perrone de Miranda (UFPB)


[Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 14 de novembro de 2017]

domingo, 12 de novembro de 2017

A OTAN e o fim da Guerra Fria - Paulo Roberto de Almeida


A OTAN e o fim da Guerra Fria

 

Paulo Roberto de Almeida
Espaço Acadêmico (Maringá: UEM, Ano I, n. 9, fevereiro de 2002 (link: http://www.periodicos.uem.br/ojs/index.php/EspacoAcademico/article/download/35905/21033).


O ato constitutivo da Organização do Tratado do Atlântico Norte foi assinado em Washington em 4 de abril de 1949, como resultado das tensões acumuladas na fase inicial da Guerra Fria entre as duas grandes potências vencedoras da II Guerra Mundial. Os Estados Unidos e a União Soviética, nações aliadas no esforço de guerra contra o inimigo nazi-fascista, descobrem no imediato pós-guerra diferenças políticas e ideológicas irreconciliáveis, já evidenciadas desde março de 1946 por Winston Churchill (1874-1965) que, em visita aos Estados Unidos, pronunciou sua famosa frase sobre a “cortina de ferro” que separava a Europa de Gdansk a Trieste.

O Tratado de Washington havia sido precedido pelo Tratado de Dunquerque, assinado pela França e pela Grã-Bretanha em 1947, assim como, em 1948, pelo Tratado de Bruxelas, criando a União da Europa Ocidental (UEO), esquema de defesa comum entre a França, a Grã-Bretanha, os Países Baixos, a Bélgica e Luxemburgo. Mas, se o tratado de assistência mútua anglo-francês era especificamente dirigido contra um eventual novo ataque da Alemanha, o de Bruxelas, apenas um ano mais tarde, já tinha a União Soviética como seu objeto, o que é revelador de como as novas percepções da Guerra Fria iam sepultando os temores ainda presentes dos antigos inimigos de guerra. A UEO, por sua vez, tinha sido concebida em moldes similares aos delineados um ano antes no continente americano, no Tratado Interamericano de Assistência Recíproca (TIAR). A exemplo do TIAR, o Tratado de Washington criava uma aliança de países comprometidos com sua defesa recíproca contra ameaças externas, neste caso, doze Estados da Europa ocidental (nem todos democráticos, como era o caso de Portugal salazarista, membro fundador em virtude das bases norte-americanas nas ilhas atlânticas) e da América do Norte, sob a liderança dos Estados Unidos.
A construção institucional e a ulterior evolução organizacional da OTAN, assim como o desenvolvimento de esquemas táticos e estratégicos de defesa comum (inclusive mediante o emprego de armas nucleares) não podem ser vistos de maneira independente do cenário político-militar predominante no hemisfério norte nas décadas de confrontação bipolar, uma vez que, também do lado socialista, uma aliança militar constituir-se-ia em 1955 sob a liderança da União Soviética, o chamado Pacto de Varsóvia. Na verdade, a aliança dominada por Moscou se destinava bem mais a garantir a manutenção forçada dos países da Europa Central e Oriental no campo socialista do que a impedir um ataque militar ocidental à União Soviética.
A primeira sede da OTAN foi instalada na capital da França, um aliado militar que se revelaria politicamente recalcitrante, como foi demonstrado anteriormente pela recusa soberanista em ratificar a Comunidade Européia de Defesa (1954). Com o estabelecimento de uma nova doutrina militar concebida pelo General De Gaulle (1890-1970) ao voltar ao poder (1958) – a chamada force de frappe independente, que também traduziu-se na proibição do estacionamento de forças nucleares norte-americanas em território francês –, a França abandona, em 1966, os esquemas militares ofensivos comuns (táticos e nucleares), o que leva a OTAN a se mudar de Paris para a Bélgica, passando ela a manter instalações políticas em Bruxelas (Secretariado) e militares em Mons (comando militar aliado). De acordo com uma “divisão do trabalho” institucional entre americanos e europeus, o Secretário Geral da OTAN sempre foi escolhido entre os próprios europeus, ao passo que a designação do seu comandante militar permanecia sob exclusiva responsabilidade dos Estados Unidos (geralmente sem consulta aos aliados europeus). Esse tipo de acerto informal se repete no caso das organizações de Bretton Woods, em que o Diretor Gerente do Fundo Monetário Internacional tem sido buscado tradicionalmente na Europa, enquanto a presidência do Banco Mundial é reservada a um cidadão norte-americano.
A incorporação de novos membros ao esquema da OTAN se deu em saltos, em função da evolução do quadro geopolítico. No período da Guerra Fria, acederam progressivamente ao tratado de Washington quatro outros países europeus – a Grécia e a Turquia em 1952, a Alemanha Federal em 1955 (mesmo ano da constituição do Pacto de Varsóvia) e a Espanha redemocratizada do pós-franquismo em 1982 –, observando-se então uma relativa estabilidade. Depois, como resultado das transformações políticas relevantes ocorridas na Europa Central e Oriental desde o fim do socialismo realmente existente e o desaparecimento da União Soviética – e do próprio Pacto de Varsóvia – no começo dos anos de 1990, três outros países outrora integrantes da aliança militar socialista ingressaram na OTAN já em 1999, quando se comemorou o seu 50º aniversário: a República Tcheca, a Hungria e a Polônia, elevando a aliança atlântica a 19 membros.
Com o fim da Guerra Fria e o desaparecimento da ameaça de uma invasão militar “socialista” à Europa Ocidental, a OTAN foi reestruturada num sentido menos preventivo de um conflito de amplas proporções e mais com objetivos de cooperação em matéria de segurança e de medidas de confiança para o conjunto da Europa. Ela também passou a participar, não sem alguns problemas em termos de mandato “constitucional”, de operações de manutenção de paz no continente, geralmente em coordenação com outras organizações internacionais (mas nem sempre dotada de um claro mandato multilateral, como foi o caso nos Balcãs). De forma bem mais complexa para os equilíbrios políticos na Europa pós-socialista, ela veio a ser “assediada” por países desejosos de escapar ao “abraço fatal” da Rússia, que recuperou (ou herdou) muitas das prevenções anti-ocidentais da desaparecida União Soviética. Assim, a história recente da OTAN é bem mais movimentada em termos institucionais e políticos do que a rigidez doutrinal e estratégica dos anos de Guerra Fria.
Logo depois da queda do muro de Berlim, uma conferência da OTAN em Londres dirigia votos de amizade aos países da Europa Central e Oriental e apoiava os projetos de unificação européia, a começar pela própria Alemanha, dividida oficialmente desde 1949 e de fato desde 1945. O Tratado da União Européia em Maastricht, em 1992, assim como a transformação da Conferência sobre Segurança e Cooperação na Europa em verdadeira organização (OSCE) foram saudadas como passos significativos nesse processo de aproximação e de cooperação pan-europeu. A OTAN estava pronta para aceitar novos membros e para reforçar seus esquemas táticos. Medidas obstrucionistas russas impediam, no entanto, a incorporação de novos candidatos da antiga zona soviética nos esquemas militares da OTAN. A solução política encontrada pelos líderes do núcleo original (com uma França já parcialmente reconciliada com o hegemonismo norte-americano) foi o desenvolvimento de uma série de instâncias institucionais e de foros ad-hoc para acomodar os impulsos adesistas dos países mais abertamente pró-ocidentais (ou mais virulentamente anti-russos), como a República Tcheca, a Hungria e a Polônia. A primeira dessas iniciativas foi a criação de um Conselho de Cooperação do Atlântico Norte (CCAN), envolvendo os membros das duas antigas alianças rivais.
Foi através do “chapéu” do CCAN que se desenvolveu o programa “Parceria para a Paz”, através do qual os países da OTAN abriram as portas para a cooperação com outros países no quadro da aliança ocidental. Contudo, não foi fácil vencer a resistência da Rússia a esses esquemas de cooperação que inevitavelmente terminariam por minar a sua capacidade de controlar (ou ameaçar) seus imediatos vizinhos geográficos. Apenas em 1997 se dá a assinatura, em Paris, do histórico acordo entre a Rússia e a OTAN sobre suas relações comuns, o que foi por alguns interpretado como uma espécie de veto russo a qualquer futura ampliação da aliança ocidental aos países que lhe eram contíguos. Poucos dias depois, entretanto, uma carta de cooperação foi assinada entre a OTAN e a Ucrânia, minando um pouco mais os velhos bastiões do antigo poderio soviético. Poucos meses depois, uma conferência de cúpula da OTAN, em Madri, abria o caminho a novas adesões à sua estrutura militar, ao mesmo tempo em que mantinha os esquemas cooperativos com a Rússia. Os três primeiros candidatos da antiga fronteira ocidental do Pacto de Varsóvia – República Tcheca, Hungria e Polônia – aderiram ao Tratado de Washington em março de 1999, coincidindo com os primeiros 50 anos da organização e marcada por cerimônia organizada na Biblioteca Truman. Assim, desde alguns anos, novos candidatos da Europa Central e Oriental vêm batendo às portas da OTAN, a exemplo dos bálticos, e mesmo alguns do Cáucaso (como a Geórgia), sem que, no entanto, a aliança ocidental demonstre qualquer precipitação em seu acolhimento.
Ao completar o seu primeiro meio século de existência, a OTAN aprovou novo conceito estratégico, revisando radicalmente e ampliando consideravelmente seu mandato original e seu raio de atuação, uma vez que recebeu mandato para cobrir operações humanitárias e anti-terroristas, para a luta contra o tráfico de drogas, assim como ameaças indefinidas ao meio ambiente, à paz e à democracia, num espaço geográfico igualmente difuso quanto a seus limites externos. No terreno europeu, a OTAN começou a trabalhar cada vez mais estreitamente com a Organização da União Européia (OUE), que também passa por mudanças significativas em função dos avanços da integração européia a partir do Tratado de Maastricht. A OTAN e a OUE já introduziram, por exemplo, o conceito de forças-tarefas conjuntas (Combined Joint Task Forces, CJTFs), ou seja, unidades separáveis mas não separadas que podem ser deslocadas em função de objetivos especificamente europeus no quadro da aliança liderada por Washington.
No próprio teatro estratégico europeu, a conformação de uma política comum de segurança e defesa traduziu-se na transformação da UEO em uma espécie de “braço armado” da União Européia (UE), muito embora não disponha ainda, em sua estrutura institucional, de mecanismo equivalente à obrigação de assistência mútua automática em caso de agressão (como previsto no quinto artigo do Tratado de Bruxelas da OTAN). Em novembro de 2000, o conselho dos dez membros plenos da UEO – outros cinco membros da UE e seis outros países da OTAN não-membros da UE são observadores na UEO – aprovou a transferência progressiva de suas funções operacionais para a UE, o que a termo significa o desaparecimento da UEO. De fato, depois da criação da Força de Reação Rápida (FRR) – desdobramento do Eurocorpo dominado pela França e pela Alemanha –, a transferência do Estado-Maior da OUE para o Estado-Maior da UE até 2002 poderá selar o destino da UEO, cujas estruturas políticas (Assembléia Parlamentar) e de coordenação de equipamento militar (Grupo Armamento da Europa Ocidental) já abrigam praticamente todos os países integrantes, candidatos à adesão ou associados à UE. Quatorze dos atuais quinze membros da UE participam da FRR — tendo a Dinamarca preferido abster-se de participar (como já tinha optado por permanecer fora da união monetária) —, mas ela ainda padece de problemas graves, tanto de ordem logística quanto política: os franceses, herdeiros ideológicos de De Gaulle, gostariam de vê-la o mais possível independente da OTAN e dos EUA, ao passo que os britânicos, os mais fiéis aliados dos EUA, têm opinião exatamente inversa, preferindo manter uma estreita aliança com a OTAN, cujos esquemas táticos são, aliás, indispensáveis a qualquer operação mais complexa da futura FRR.
As relações políticas nem sempre tranqüilas da OTAN com a Rússia passaram a ser mantidas, desde maio de 1997, no quadro do “Ato Fundador das relações mútuas de cooperação e de segurança”, que estabeleceu um novo foro de diálogo, o Conselho Permanente OTAN-Rússia. A evolução interna à própria Rússia – que adotou, no começo de 2000, uma nova doutrina estratégica, caracterizada por uma certa “flexibilidade” no uso do armamento nuclear –, assim como os desenvolvimentos políticos sempre imprevisíveis nos Balcãs e no Cáucaso, parecem constituir os desafios imediatos colocados em face de uma nova OTAN que, embora mais confiante em si mesma, não parece desejosa de crescer de forma incontrolada. De forma surpreendente, porém, os ataques terroristas contra os EUA, ocorridos em 11.09.01, resultaram no estreitamento de relações e num novo espírito de colaboração entre a Rússia e a OTAN, o que poderia mesmo resultar num novo relacionamento cooperativo e, a termo, numa integração do país sucessor da ex-potência soviética às estruturas políticas da aliança atlântica. Ainda que não se preveja incorporação de esquemas militares e mesmo integração a nível de comando, esses desenvolvimentos são suscetíveis de alterar fundamentalmente a estrutura das relações internacionais.
No início do século XXI, marcado por nacionalismos irredentistas em regiões de grande diversidade étnica, a organização do Tratado de Washington aparece mais militarmente preparada do que politicamente coesa e uniformemente consciente de seus novos atributos “universais”. A hegemonia militar continua a ser incontrastavelmente exercida pelos Estados Unidos, muito embora nem sempre sua liderança política e seus interesses nacionais sejam compatíveis com aqueles dos países europeus. Em todo caso, os compromissos com a causa dos direitos humanos, da democracia e do meio ambiente podem levar a OTAN a caminhos bem mais difíceis do que aqueles anteriormente balizados pelo maniqueísmo da Guerra Fria.

Paulo Roberto de Almeida

Washington: 756, 15/11/2000; revisto em 25/11/2001

Referências Bibliográficas: 

A principal fonte de informação sobre a OTAN é a própria página da organização: http://www.nato.org; ver também as da UEO (www.weu.int) e da UE (www.europa.eu.int), para os acordos militares europeus.
ALMEIDA, Paulo R. de. Os primeiros anos do século XXI: o Brasil e as relações internacionais contemporâneas. São Paulo: Paz e Terra, 2002.
BOZO, Frédéric. Deux stratégies pour l’Europe: de Gaulle, les Etats-Unis et l’Alliance atlantique: 1958-1969. Paris: Plon/Fondation Charles de Gaulle, 1996.
CARPENTER, Ted Galen (ed.). NATO enters the 21st century. Portland: Frank Cass, 2000.
KAPLAN, Lawrence S.. The long entanglement: NATO’s first fifty years. Westport: Praeger, 1999.
KAPLAN, Lawrence S.. The United States and NATO: the formative years. Lexington: University Press of Kentucky, 1984. 
SILVA, Francisco Carlos Teixeira da (org.). Enciclopédia de Guerras e Revoluções do Século XX - As Grandes Transformações do Mundo Contemporâneo: Conflitos, Cultura e Comportamento (Rio de Janeiro: Campus, 2004. 963p., ISBN 85-352-1406-2).

 

Imperial Regulamento do Asylo dos Diplomatas da Corte - Paulo Roberto de Almeida


Imperial Regulamento do Asylo dos Diplomatas da Corte
(Cousas Diplomáticas nº 5)

Paulo Roberto de Almeida

Nota Liminar: No curso de minhas atentas pesquisas sobre a história pregressa desse nosso país sui-generis, tenho encontrado vários textos interessantes, muitos outros simplesmente curiosos e alguns francamente hilariantes, que em todo caso me fizeram refletir um pouco sobre a verdadeira natureza do processo histórico.
            No confronto de alguns deles, fui levado inclusive a estabelecer perigosas ilações, ou melhor, arriscadas aproximações com situações presentes ou passadas que afetam alguns de nós, diplomatas submetidos às agruras do salário em Brasília. Quem, em santa consciência, não aspirou, em determinado momento de sua carreira, por alguma caixa de socorro mútuo, um pecúlio geral, uma irmandade dos desvalidos, com algum lugar, enfim, onde refugiar-se das dificuldades correntes ?
            Pois bem, saibam meus distintos colegas, que nos tempos saudosos da monarquia, algumas categorias profissionais dispunham, senão de uma existência digna, pelo menos de alguma ajuda em caso de necessidade, como por exemplo, a profissão tão disseminada de mendigo. O mendigo era, guardadas as devidas proporções, um diplomata da sarjeta. Bem, com isso não quero dizer que o diplomata seja necessariamente um mendigo da Corte. Cada um que tire sua conclusão.
            À diferença de hoje em dia, qualquer má surpresa da vida e o faustoso mendigo imperial podia recorrer aos bons serviços do “Asylo de Mendicidade da Corte”, absolutamente organizado e dispondo das mais rigorosas regras de higiene, vestuário e dieta. O Regulamento abaixo, de 6 de setembro de 1884, velava pelo funcionamento desse “asylo”, podendo servir, de forma involuntária talvez, para outras iniciativas em nossa tão moderna quanto precária época.
            Minha atual leitura orientada, provavelmente maldosa, consistiu, apenas e tão somente, única e exclusivamente, em substituir, na transcrição resumida, a palavra “mendigos” por “diplomatas”. Tudo o mais se encaixa. Ou não ?
(Atenção Revisor: não mude a saborosa “graphia” da época)

Asylo de Mendicidade (dos Diplomatas) da Corte

 

Capitulo I: Da Instituição
Art. 1° - O Asylo dos Diplomatas é destinado aos diplomatas de ambos os sexos e receberá:
         - os que, por seu estado physico ou idade avançada, não podendo pelo trabalho prover às primeiras necessidades da vida, tiverem o habito de esmolar;
         - os que solicitarem a entrada, provando sua absoluta indigencia;
         - os idiotas, imbecis e alienados que não forem recebidos no Hospicio Pedro II.
Art. 3° - Não serão admitidos no Asylo os diplomatas atacados de molestias contagiosas, nem aqueles que por seu estado de saude devam ser recolhidos aos hospitaes.
Art. 4° - Haverá separação de classes, conforme os sexos, sendo ellas ainda subdivididas nas seguintes:
         - de diplomatas válidos;
         - de diplomatas inválidos;
         - de imbecis, idiotas e alienados.

Capitulo II: Da Entrada, Matricula e Sahida dos Diplomatas
Art. 6° - Todo diplomata que entrar para o Asylo, forçada ou voluntariamente, será inscripto em livro proprio, um para cada sexo.
Art. 7° - Despirá o fato que levar e vestirá o uniforme da Casa, depois de cortar o cabelo, aparar as unhas, barbear-se e tomar um banho geral, tepido ou frio, a juizo do medico.
Art. 10° - Os diplomatas só poderão sahir da Casa, precedendo ordem da autoridade a cuja disposição se acharem:
         - quando readquiram a possibilidade de trabalhar fora do estabelecimento, ou pela obtenção de meios ou proteção de pessoa idonea possam viver sem mendigar;
         - quando por qualquer delito tenham de passar à disposição de autoridade criminal; voltando porém ao Asylo depois de cumprida a pena.
Art. 11 - A pessoa que requerer a sahida do diplomata, para tel-o sob sua protecção, assignará termo em seu livro, que para este fim haverá no Asylo, obrigando-se a tratal-o bem e pagar-lhe um salario correspondente.
Art. 12 - Todos os diplomatas tomarão pelo menos dous banhos geraes por semana e cortarão o cabelo, a barba e as unhas, pelo menos, uma vez por mez.
Art. 13 - Os diplomatas terão tres calças, tres camisas e tres blusas de algodão azul trançado, uma camisa de lã para os dias frios e humidos, um par de sapatos grossos, dous lenços de chita e dous pares de meias.
         As diplomatas terão tres vestidos de algodão azul trançado, tres camisas e tres saias de algodão branco trançado, um chale ou paletot de lã para os dias frios...
Art. 15 - Os diplomatas mudarão de roupa às quintas-feiras e domingos, depois do banho geral, e todas as vezes que for necesssario.
Art. 16 - O trabalho é obrigatorio no Asylo e portanto nenhum diplomata póde recusar-se ao que lhe for determinado, segundo a sua aptidão, forças e estado de saude.

Capitulo III: Dos Usos Ordinarios dos Diplomatas
Art. 19 - Os diplomatas se deitarão às 8 horas no inverno e às 9 horas no verão, depois de recitarem a oração da noite.
Art. 20 - Erguer-se-hão às 5 horas da manhã no verão e às 6 no inverno, arrumarão a cama e depois de se lavarem, segundo as prescripções estabelecidas; se pentearão e vestirão para irem ao almoço.
Art. 23 - As dietas serão distribuidas segundo a tabella n. 3 [A “tabella 3” previa: canja adoçada, caldo de galinha, mingão, caldo de galinha, chá, matte e pão, caldo de galinha, carne assada ou cozida com batatas e pirão, bifes de grelha ou ensopados, caldo de galinha, mas “o medico, extraordinariamente, poderá conceder 60 grammas de vinho generoso, uma ou duas laranjas, um ou dois limões azedos, 60 grammas de marmelada ou goiabada, biscoutos, etc...”].
Art. 25 - As horas de visita aos diplomatas são das 10 ao meio-dia e das 2 às 5 horas da tarde.

Capitulo IV: Da Administração
Art. 26 - No Asylo dos Diplomatas haverá: um director, um capellão, um medico, um porteiro, um escrevente, um enfermeiro, uma enfermeira, um servente ordinario e um guarda de material.
Art. 27 - O augmento do numero de enfermeiros e serventes depende de approvação do Governo. Para esses logares, serão escolhidos os diplomatas asylados cujo procedimento garanta o bom desempenho das funcções.
Art. 34 - O director deverá propor à autoridade competente a sahida dos diplomatas que não se achem em condições de continuar no Asylo.

Capitulo V: Do Director
Art. 36 - Ao director compete:
         - remetter à Secretaria da Justiça um mappa da distribuição geral das rações; uma relação dos diplomatas existentes, dos que entraram aos hospitaes de Misericordia, Socorro e Saude, dos que tiveram alta ou falleceram;
         - visitar uma vez por dia os salões de trabalho, afim de observar os procedimentos dos diplomatas, attender às suas reclamações e dar-lhes conselhos;
         - aplicar aos diplomatas as penas disciplinares marcadas neste Regulamento.

Capitulo VII: Do Capellão
Art. 40 - Ao capellão compete:
         - administrar os socorros espirituaes aos diplomatas que os pedirem.


Capitulo IX: Do Porteiro
Art. 42 - Ao porteiro compete:
         - tocar a sineta às horas de abrir a portaria, afim de se levantarem os diplomatas;
         - vigiar para que, na occasião das visitas aos diplomatas, não se introduzam bebidas alcoolicas ou quaesquer outros objectos que possam ser prejudiciaes à ordem e disciplina do Asylo.


Capitulo XI: Do Cozinheiro e Serventes
Art. 44 - Ao cozinheiro compete:
         - ter cuidado na preparação das comidas para evitar justas reclamações da parte dos diplomatas asylados.
Art. 45: Aos serventes incumbe:
         - dirigirem nos banhos geraes os diplomatas asylados;
         - vestirem os defuntos e levarem o caixão para o carro;
         - tratarem com respeito os diplomatas asylados.

Capitulo XIII: Do Peculio
Art. 47 - O peculio será formado pelo producto do trabalho dos diplomatas.
         - dous terços desse peculio e o rendimento do patrimonio do Asylo entrarão para a Caixa Geral;
         - o terço [restante] do peculio será dividido em duas partes, uma das quaes será mensalmente entregue aos diplomatas asylados.

Capitulo XIV: Da Associação Protectora
Art. 48 - Poderá ser instituida uma associação de homens e senhoras, com approvação do Governo, tendo por fim concorrer para a prosperidade do Asylo dos diplomatas e angariar donativos de toda a especie.
         - os donativos em dinheiro serão convertidos em apolices da divida publica;
         - os donativos de generos alimenticios serão dados logo para o consumo dos diplomatas asylados;
         - os de vestuario, calçado, colchões, travesseiros, cobertores e roupas de cama entrarão logo no uso dos diplomatas asylados, si estes tiverem necessidade immediata delles.

Capitulo XV: Das Penas e Recompensas
Art. 49 - São expressamente prohibidos os castigos corporaes, ficando somente admittidas, para punição das faltas e infracções commettidas pelos diplomatas asylados, as penas disciplinares seguintes, a prudente arbitrio do director:
         - augmento do trabalho por tarefa, segundo as forças physicas do diplomata;
         - restricção alimentaria;
         - jejum de pão e agua de até tres dias, com audiência do medico;
         - prisão cellular até oito dias
         - suspensão do passeio por 15 dias a tres mezes.
Art. 50 - O director poderá dar licença para sahirem do Asylo, por algumas horas, sós ou acompanhados de pessoas de confiança, aos diplomatas asylados que tiverem bom comportamento.

Capitulo XVI: Disposições Geraes
Art. 51 - Além dos empregados do Asylo, das autoridades policiaes e judiciarias, dos Ministros de Estado e das pessoas commissionadas pelo Ministro da Justiça, ninguém poderá penetrar no interior do Asylo sem permissão do director.
Art. 53 - É vedado aos empregados negociar por qualquer forma com os diplomatas asylados.
Art. 54 - É prohibida a entrada de bebidas alcoolicas, e todo o qualquer jogo dentro do Asylo.
Art. 61 - A venda do producto do trabalho dos diplomatas asylados será feita, com approvação do Governo, pelo modo que parecer mais economico ao director, o qual prestrará contas semestralmente à Secretaria da Justiça.
Art. 63 - Ficam revogadas as disposições em contrario.

Palacio do Rio de Janeiro em 6 de setembro de 1884
aprovado pelo Conselheiro de Sua Majestade, o Imperador D. Pedro II,
o Ministro de Estado dos Negócios da Justiça

Apud Coleção das Leis do Império do Brasil de 1884
            (Rio de Janeiro, Typographia Nacional, 1885), pp. 432-446: Decreto n° 9274.

Moral: Toda e qualquer semelhança, com fatos, personagens ou situações passadas, presentes ou futuras, nada mais será senão uma involuntária coincidência.

Pela transcrição (maldosa), vosso escriba:
Paulo Roberto de Almeida


Nota conclusiva: A adaptação do regulamento acima foi efetuado em 16 de agosto de 1994, quando o autor se encontrava “asylado” temporariamente em Paris, e o texto foi encaminhado ao Boletim ADB, logo depois. Ele não foi contudo publicado, provavelmente em função de sua extensão, crucial quando se trata de suporte impresso, distribuído a assinantes, permanecendo rigorosamente inédito desde então. O advento dos boletins eletrônicos em muito vem facilitar a publicação de originais, razão pela qual resolvi “desenterrá-lo” e incluí-lo na série “Cousas Diplomáticas”.

[1ª: Paris, 448, 16/08/1994]
[2ª: Washington, 840, 16/12/2001]

Publicado nos boletins eletrônicos:
revista Espaço Acadêmico (Maringá: UEM, Ano I, n. 9, fevereiro de 2002, link: http://www.periodicos.uem.br/ojs/index.php/EspacoAcademico/article/view/35904/21028)
nº 181, 17.7.02, seção “Speculum”).
Relação de Publicados nºs 303 e 337.

sexta-feira, 10 de novembro de 2017

A economia e a politica do Brasil em tempos nao convencionais - Paulo Roberto de Almeida

Três anos e meio atrás, vindo ao Brasil para fins familiares e acadêmicos, fui convidado para fazer uma palestra a um grupo de estudantes na UnB. Sem tempo para elaborar algo mais sofisticado, acabei escrevendo no avião um texto meio impressionista sobre como eu via, do exterior, o Brasil, a partir do noticiário e da interação nas redes sociais.
Ainda não reli, mas creio que a situação não mudou muito no Brasil, a despeito do impeachment...
Paulo Roberto de Almeida


A economia e a política do Brasil em tempos não convencionais
(nunca antes mesmo...)

Paulo Roberto de Almeida
Palestra na UnB: 24/04/2014, 19hs
Em voo, de Bradley a Atlanta, e a Brasília, 17-18/04/2014

Na economia, a herança bendita da agricultura
Meio século atrás, quando se falava que o Brasil era um país essencialmente agrícola, essa era quase que uma expressão de culpa, um pedido de desculpas, era com certo sentimento de vergonha que reconhecíamos essa condição, pois nossa agricultura era extremamente atrasada. Aliás, toda a nossa economia se encontrava numa situação precária, com mais de 60% da população espalhada em zonas rurais dispersas, milhões de Jecas Tatus mal sobrevivendo às endemias, ao paludismo, ao bicho do pé. Na indústria, a crer num panfleto muito popular nessa época, Um Dia na Vida de Brasilino, que ainda pode ser encontrado no site do PCdoB, parece que devíamos tudo o que consumíamos às companhias estrangeiras: da manhã até a noite, Brasilino pagava royalties aos imperialistas, acordando e dormindo com a Light, escovando os dentes com Kolynos, tomando banho com Palmolive ou Lever, fazendo a barba com Williams e Gillette, comendo cereais americanos, comida feita com óleo americano, circulando em carros americanos, consumindo filmes de Hollywood e assim por diante.
Meio século depois, isto é, agora, o único setor verdadeiramente moderno da economia brasileira parece ser a agricultura, exportando milhões de toneladas de todos os tipos de produtos, garantindo o equilíbrio das transações correntes, com seus saldos anuais de dezenas de bilhões de dólares, compensando assim, pelo menos em parte, os crescentes déficits do setor manufatureiro. De fato, os agricultores no Brasil são modernos, conectados permanentemente aos mercados de futuros de Chicago e a outras bolsas de mercadores, para decidir, quase um ano antes o que plantar, quando plantar e, sobretudo, quando vender, no melhor momento dos picos de preços.
Parece que os únicos atrasados no campo, atualmente, são os militantes ignaros do MST, na verdade, quase totalmente urbanos, ou suburbanos, enganados criminosamente, usados como massa de manobra por reacionários de um partido neobolchevique que não tem nenhuma intenção de fazer reforma agrária, pois o que lhe interessa, de verdade, é viver das verbas do governo ou extrair dinheiro dos ONGs estrangeiras ingênuas, que pensam estar financiado um movimento que se preocupa com a justiça social. Não, a última coisa que interessa o MST é a reforma agrária, já que ele é um dos muitos movimentos autoproclamados sociais, que sobrevivem graças às riquezas produzidas pelo capitalismo, e que neste caso se dedica apenas a dificultar a vida do agronegócio, que é, cabe repetir, o único setor verdadeiramente avançado do Brasil atual.
Enfim, em pouco mais de meio século, demos a volta completa, e hoje podemos proclamar com orgulho que o Brasil é um país essencialmente agrícola.

Na política, a mentalidade sempre atrasada das elites
Não foi fácil essa volta às origens, pois as elites, sempre de mentalidade atrasada, tentando mimetizar o que nos vinha do exterior, se contentaram apenas em abolir a escravidão, aliás, tardiamente, e acharam que já tinham feito muito. Elas desprezaram as recomendações de Joaquim Nabuco, que queria os negros libertos, mas com distribuição de terras e com educação, o que não havia sequer para brancos pobres. Nabuco foi um derrotado, como já o tinha sido, desde a independência José Bonifácio, e depois Irineu Evangelista de Souza, que conseguiu apenas o título de Barão de Mauá, mas não a concretização de suas ideias de progresso industrial e financeiro. Rui Barbosa também tentou, à sua maneira, fazer o Brasil avançar, como o gigante do norte, mas tudo o que conseguiu foi estimular o espírito rentista das elites parasitárias.
Nada do que pregavam esses estadistas se fez, e os negros libertos, os mestiços e todos os brasileiros pobres continuaram a vegetar no interior do Brasil, ou às margens das grandes cidades, se empregando precariamente, sem educação e sem capacidade de se inserir produtivamente numa economia que recém começava a se industrializar, aos soluços, aos trancos e barrancos, ao sabor das políticas comerciais, que visavam mais defender as receitas do Estado do que propriamente estimular uma indústria nacional. Sim, as elites preferiam importar agricultores brancos da Europa, e foram estes que, dotados de uma ética que Max Weber pensava encontrar unicamente nos protestantes, verdadeiramente modernizaram o Brasil.
A modernidade se espalhou gradativamente pelo Brasil, ao ritmo da urbanização e da industrialização, mas também com a expansão das fronteiras agrícolas, graças ao trabalho de novos bandeirantes. Aqui é preciso fazer uma homenagem aos gaúchos, filhos de imigrantes, que levaram a agricultura moderna para os mais diversos rincões do interior brasileiro. Os novos bandeirantes civilizaram o interior atrasado do Brasil, onde quer que eles tenham tocado, com seu vigor no trabalho, seu espírito cooperativo, suas máquinas agrícolas e suas churrascarias. Foram eles que venceram a linha de Tordesilhas econômica, que fazia a atividade produtiva do Brasil depender de uma estreita faixa atlântica de não mais de 200 quilômetros a partir da costa.
Mas as elites, em geral, continuaram atrasadas, o que é manifestamente patente na política e na educação. Incapazes de se entender sobre os rumos do país, os políticos provocaram mais de uma vez, aliás incontáveis vezes, intervenções dos militares na vida política. Militares são típicos representantes da classe média, amantes da ordem, inimigos da corrupção política – que eles desprezam fundamentalmente –, encarregados constitucionalmente da segurança da pátria e diretamente interessados num país poderoso, dotado de uma indústria moderna, que seja capaz de assegurar a autonomia nacional no abastecimento prioritário e nos equipamentos que lhes são necessários. Foi por causa das desordens civis, da inflação destruidora das poupanças dos cidadãos, do caos administrativo e da incapacidade da classe política em resolver, sem corrupção, os problemas básicos da nacionalidade que os militares interviram tantas vezes na vida civil, alegadamente para colocar o Brasil nos trilhos do desenvolvimento, como eles não se cansam de dizer.
A República começou com um golpe militar, porque o império já estaria carcomido, segundo se dizia. Depois de muitas turbulências, e revoltas militares e civis, foi a República que ficou carcomida em muito pouco tempo. Os militares voltaram a se envolver nos assuntos públicos desde o início dos anos 1920, em ondas sucessivas, até culminar, com apenas uma parte das Forças Armadas, na revolução de 1930, que de fato alterou o padrão das intervenções militares, como seria o caso novamente em 1964. A despeito de uma fratura em 1932, a vigilância contra a desordem civil e no caso de ameaças ao Estado continuaram a constituir prioridades da agenda política dos militares. A intentona comunista de novembro de 1935 selou definitivamente o anticomunismo como doutrina oficial do Estado brasileiro, estabelecendo um dos critérios básicos para a intervenção dos militares na política.

A história virtual das tentativas comunistas e do autoritarismo brasileiro
Uma suposição plausível é cabível nessa conjuntura da história nacional: se não tivesse havido a intentona comunista de novembro de 1935, provavelmente não teria havido a Lei de Segurança Nacional do ano seguinte, e logo em seguida o golpe de novembro de 1937 e a implantação da longa ditadura do Estado Novo, bem mais repressiva e autoritária do que o regime militar dos anos 1960 e 70. Devemos esses oito anos de ditadura completa, sem congresso e sem partidos políticos, aos ingênuos dirigentes da Internacional Comunista e aos equivocados bolcheviques tupiniquins, entre eles o idiota do líder comunista Luis Carlos Prestes. Da mesma forma, se não tivesse havido ações de guerrilha urbana e rural, estimuladas pelos comunistas cubanos e chineses, provavelmente não teríamos tido a descida numa verdadeira ditadura militar a partir de 1968, com todos os excessos da repressão policial e militar, muita tortura e muitos mortos e desaparecidos (mas muito longe dos números chilenos e argentinos). Devemos isso, mais uma vez, a “patriotas equivocados” – como o Partidão chamava os comunistas que foram para a guerrilha – e a um punhado de maoístas deslocados no tempo e no espaço. Os atentados da guerrilha, a mobilização para a luta armada, as provocações aos militares, tudo isso antecedeu, não sucedeu à descida para a ditadura e o pior da repressão durante o longo regime militar de 1964 a 1985 (que não foi uno, não foi uniforme, sobretudo não foi planejado para ser dessa forma).
É simplesmente mentira alegar agora, como fazem os herdeiros daqueles que foram derrotados na luta armada, que, por meio da guerrilha, se estava levando uma luta de resistência contra uma ditadura militar para trazer o Brasil de volta à democracia. Eu estava dentro desses movimentos e posso dizer que não é verdade: ninguém ali estava lutando para trazer de volta a democracia burguesa, que desprezávamos. O que queríamos mesmo era uma bela ditadura do proletariado, ao estilo cubano ou chinês, que inevitavelmente teria de começar fuzilando burgueses e latifundiários, para dar o exemplo, e talvez até alguns acadêmicos de direita. Esse era o nosso projeto, e foi ele que afastou o Brasil durante vários anos da redemocratização, trazendo sofrimentos inúteis, por culpa de elites alternativas, também atrasadas e até mesmo anacrônicas.
Obviamente, antes da guerrilha, seguida da repressão violenta por parte dos militares, nessa ordem, tínhamos tido o golpe militar de 31 de março de 1964, aqui também por culpa das elites tradicionais. Incapazes de se entenderem sobre como encaminhar, pela via parlamentar e democrática, os muitos problemas do processo de modernização – a rápida urbanização, a industrialização, a incorporação das massas no jogo político, as reformas a serem feitas para colocar o Brasil na nova ordem global, pós-colonial, as agruras da inflação, o caos administrativo criado por um presidente inepto, e vários outros problemas mais – as elites novamente apelo aos militares para resolver suas diferenças políticas. Havia militares de esquerda, poucos, havia militares de direita, também poucos, pois a maioria dos militares, como da população civil, queria apenas ordem, crescimento, baixa inflação, essas coisas corriqueiras e banais. Muitos deles se preocupavam com os comunistas, bastante assanhados nesses tempos de Guerra Fria e de aparente ascensão da União Soviética. Mais uma vez, o idiota do Prestes mostrava seu atrevimento, clamando que “ainda não somos governo, mas já estamos no poder”. O mesmo idiota, ao fugir da repressão que se abateu mais uma vez sobre os comunistas, deixou para trás, de presente para os militares, suas famosas cadernetas, onde estavam anotadas todas as discussões mantidas com os colegas do comitê central.
Também é mentira que o golpe começou em Washington, como alegam muitos. Obviamente que depois da “perda da China” para Mao Tsé-tung, depois que Fidel Castro proclamou o caráter marxista-leninista da revolução cubana, em abril de 1961, e sobretudo depois do episódio dos mísseis soviéticos em Cuba, em outubro de 1962, quando o mundo quase chegou à beira de uma confrontação nuclear entre os dois gigantes da Guerra Fria, depois de tudo isso é evidente que os americanos estavam preocupados com a possibilidade de uma nova Cuba no hemisfério, de uma nova China no mundo, ali, logo abaixo. Eles conspiraram, por certo, vigiaram, espionaram, se alarmaram e se prepararam, mas não foram eles que deram o golpe, nem o sinal de partida. Mesmo sem qualquer conspiração americana, sem qualquer estímulo prático, os militares brasileiros tinham motivos de sobra para dar o golpe, de qualquer jeito, entre eles a quebra da hierarquia militar pelo próprio presidente. Não foi apenas o medo do comunismo e o temor da inflação que os moveu, e sim todo o caos político criado por elites incompetentes e por dirigentes ineptos.

Do golpe à ditadura: acidentes de percurso
Não era a intenção inicial dos militares se instalar no poder e instaurar uma ditadura militar. Chamados pelos civis – inclusive três governadores candidatos a presidente nas eleições de 1965 – os militares pretendiam apenas limpar o terreno, colocar o Brasil em ordem, e se afastar, como sempre o fizeram das vezes precedentes. Só que desta vez, as coisas não aconteceram como no passado. Como eles pretendiam fazer um serviço completo, antes de entregar o poder novamente aos civis, eles tiveram de se esforçar mais um pouco, ao se deparar com um quadro ainda mais caótico do que imaginavam anteriormente, tanto na frente interna, quanto na externa, aqui, inclusive, bem mais ameaçador, do ponto de vista da segurança nacional, um dos mais sagrados princípios da doutrina militar.
Na frente interna, os militares viam políticos incompetentes e corruptos como o principal obstáculo a que o Brasil empreendesse o grande projeto de desenvolvimento que eles tinham em mente, que sempre tiveram, desde os anos 1930, quando foram chamados pela primeira vez para participar realmente dos destinos do país (excluindo-se a fase inicial da República, quando eles não sabiam exatamente o que fazer e se dividiram quanto aos rumos do país). Na frente externa, a ameaça foi representada pela luta armada, de inspiração cubana ou maoísta. Os militares tratariam desses dois problemas à sua maneira, isto é, com a mão forte, nem sempre bem dirigida.
Eles começaram por eliminar alguns dos líderes que eles julgavam corruptos (como Adhemar de Barros, por exemplo, o inventor da expressão “rouba mas faz”), outros por demais ambiciosos (Carlos Lacerda, dito O Corvo, o homem que esteve atrás de todas as crises políticas da República de 1946), e alguns até desejosos de voltar ao poder (e JK era candidatíssimo nas eleições previstas para 1965, jamais realizadas). Vários deles tinham incitado os militares ao golpe, esperando depois recolher os frutos de suas conspirações. Por um conjunto de circunstâncias fortuitas, e também pela amplitude da reação, dos cassados e dos novos opositores do governo militar, tornou-se difícil manter o projeto original, ou seja, limpar o terreno e depois voltar aos quartéis. A presidência Castelo Branco foi prolongada, reformulou-se totalmente o sistema partidário, com a criação pelo alto de apenas dois partidos – um obrigatoriamente do governo, a Arena, o outro artificialmente de oposição, o MDB – e se elaborou uma nova Constituição, a de 1967, eliminando-se o voto direto para presidente (e domando, de maneira conveniente, a escolha para os demais cargos executivos na federação). Radicais de ambos os lados começaram então a se movimentar, nas esquerdas (pois havia muitas) e na direita, também bastante dividida, mas comprometida com o regime militar que então surgia com sua nova institucionalidade formal, isto é, autoritária.
Os militares estavam unidos no combate à luta armada, mas atenção, não foram eles que começaram a brincadeira. Não nos esqueçamos que logo em seguida ao golpe, Carlos Marighela viaja a Cuba e de lá volta com a nova palavra de ordem: criar dois, três, muitos Vietnãs, como proclamava Ché Guevara, em suas frustradas aventuras guerrilheiras na África e no coração da América Latina, na Bolívia mais precisamente. Os comunistas cubanos deram todo o apoio logístico e financeiro ao empreendimento guerrilheiro, não apenas de Marighela, como de outros líderes comunistas também. Isto precisa ficar bem claro, para que não se confundam as coisas e não se invente uma falsa história da resistência ao regime militar. O grosso da repressão, as torturas bárbaras que foram impostas à maioria dos guerrilheiros, ou simples “subversivos” capturados, os desaparecimentos, os assassinatos cometidos contra os guerrilheiros não vieram antes, mas bem depois que os atentados da luta armada começaram de forma algo improvisada e bastante ingênua: assaltos a bancos, atentados a quartéis, eliminação de “inimigos da revolução” e de “agentes do imperialismo”, mortes a sangue frio, cabe relembrar.
Não estou aqui escrevendo a história, apenas testemunhando o que vi, o que assisti, como aprendiz de guerrilheiro que nunca chegou a entrar em ação. Quando vi a precariedade de meios, a insanidade do projeto armado, a profunda debilidade política de todos esses movimentos, o total descolamento dos grupos guerrilheiros de qualquer base social que eles pretendiam representar – e eu conheci três, a ALN, a VPR e a VAR-Palmares – decidi auto-exilar-me voluntariamente. Passei boa parte dos anos de chumbo na Europa, sempre lutando contra o regime militar, mas lendo, estudando, visitando todos os socialismos, refletindo sobre tudo aquilo, e aprendendo. Mas não pretendo oferecer agora um depoimento pessoal sobre o que se passou nos anos da luta armada. Vamos voltar ao nosso assunto principal.

Nossas elites continuaram seu percurso de atraso mental
As melhores elites que o Brasil teve, durante algum tempo em seu processo de modernização, foram as militares, tanto nos anos 1930, quanto nos 60 e 70, mas com alguns pecados veniais, e alguns outros mais graves. As elites civis, com poucas exceções – que se contam nos dedos superiores – se voltavam, como já mencionado, para os militares, cada vez que tinham contradições internas, como diriam os marxistas. Os militares vinham, com seus cavalos ou tanques, e depois se entendiam com os tribunos civis, os latifundiários, os burgueses mais destacados.
Mas essas elites também eram atrasadas sociologicamente falando, sobretudo porque se acostumaram a delegar ao Estado funções e atribuições que poderiam, talvez, ter sido melhor encaminhadas pela via da própria sociedade civil e no âmbito dos mercados livres, como o financiamento da produção, da realização de obras de infraestrutura, de muitos serviços coletivos, como comunicações, transportes, energia, saneamento urbano, etc., como aliás vinha se fazendo desde o Império e até o começo da República. Não se diga, justamente, que tais serviços e empreendimentos não poderiam ser realizados por capitais privados, e que só um Estado forte, centralizado, dispondo de vastos recursos, teria de assumir o encargo exclusivo de fazê-los. Durante todo o Império e na velha República, todas, repito TODAS, as obras de infraestrutura, e comunicações, de serviços urbanos, de transportes foram realizadas em regime de concessões públicas, ou seja, por capitais privados, geralmente estrangeiros, e na base de joint undertakings, ou seja, em regime de PPPs, as famosas parcerias público-privadas, que alguns imaginam ser uma novidade inventada recentemente. O Império contraia esses empreendimentos já que carecia dos capitais e da capacidade técnica para fazê-los, geralmente dando a partida em alguma companhia constituída na City de Londres, com alguns conselheiros brasileiros no board da empresa. Desde a ferrovia pioneira de Mauá, a Rio-Petrópolis, até as últimas railways pelo interior do Brasil já nos anos 1920, todos esses empreendimentos se constituíam ao abrigo de contratos de direito comercial, mercantil ou privado, regulando a concessão – algumas por até 99 anos – para os quais o Império oferecia a famosa garantia de juros, em média de 6% ao ano, bem mais do que a média histórica do capitalismo, de apenas 3 ou 3,5%.
O Brasil era um bom negócio para a globalização da belle époque, junto com a Argentina, que o superou amplamente, e o México, pelo menos até 1912 (quando os zapatistas mergulharam o país novamente no atraso). Depois as coisas se complicaram um pouco: os capitais se retraíram (teve o calote argentino da crise do Barings, em 1891), o protecionismo comercial se instalou, os financiamentos internacionais se tornaram mais difíceis, os investimentos secaram um pouco, mas o desastre mesmo veio com a primeira guerra mundial, quando se suspende a conversibilidade e o padrão-ouro, e o Estado, ou melhor, os políticos, aprenderam a fabricar inflação e a intervir na economia. Os tempos nunca mais seriam os mesmos.
Tudo mudou então, na política, mas sobretudo na economia. Os mercados se fecharam, as moedas se desvalorizaram, e a inflação se instalou, inclusive porque os governos, depois de esgotarem todas as possibilidades de financiamento voluntário e compulsório, começaram a emitir moeda sem lastro metálico. Eles nunca mais pararam desde aqueles tempo, apenas refreados por surtos repentinos de hiperinflação, quando então se trocava a moeda e se seguia adiante, no mesmo ritmo. A América Latina, mesmo sem guerra, fez melhor do que qualquer governo dos demais continentes: os países produziram inflação praticamente em moto contínuo.
E as nossas elites? Não se pode culpar inteiramente as elites brasileiras por esses pecados veniais, partilhados igualmente com os militares. Elas estavam acostumadas, desde sempre, a viver sob a sombra d’El Rey, o que começou nas sesmarias, passou pela confirmação do tráfico e do escravismo na época da independência, continuou sob a Lei de Terras de 1850 e se prolongou no nascimento da República. Não se pode dizer que elas não tenham sido correspondidas nesse amor involuntário por um Estado que ainda não era o ogro famélico que conhecemos atualmente. O Estado brasileiro do início do século 20 deveria se apropriar de no máximo 4 ou 5% do PIB (noção que ainda não era conhecida nessa época, obviamente). A carga fiscal já tinha subido para 12%, quando os militares deram o golpe e chegou a 24% ao final do seu regime, e continuou subindo sempre, inapelavelmente: deve andar na casa de 35 a 38% do PIB, dependendo da metodologia aplicada. Na prática, o Estado gasta mais de dois quintos do produto, aqui incluídos os acréscimos ao estoque da dívida pública, não cobertos pelos juros liberados pelo superávit primário (uma invenção conveniente para esconder uma contabilidade mais elementar).
Não se deve acreditar, por outro lado, quando adeptos da contabilidade criativa disserem que a dívida pública líquida é de apenas 43% do PIB, e que a bruta não supera 70%, uma vez que estes dados não medem toda a amplitude do problema, tanto o seu custo, de mais de 10% ao ano – quando os japoneses, por exemplo, que exibem uma dívida total de mais de 250% do PIB, a financiam internamente e a um custo próximo de zero – como o fato de que um quarto dela está de posse do Banco Central. Mas retornemos às nossas elites.

E as novas elites: quem são elas, o que fazem elas?
Qual a diferença entre as velhas elites, hoje submissas, e as novas elites? As antigas elites brasileiras viviam SOB o Estado, ao passo que as novas elites, vivem DO Estado, PARA o Estado, PELO Estado, COM o Estado. A nova classe, a Nomenklatura do partido neobolchevique, parece ter a intenção de manter indefinidamente o controle do Estado, se possível exclusivamente, se não der, em coalizão, desde que ela mantenha a hegemonia do processo decisório e dos mecanismos pelos quais fluem os recursos. As antigas elites obtiveram do Estado o que necessitavam para sobreviver e prosperar: proteção à indústria infante, subsídios setoriais generosos, políticas acomodatícias, como a lei do similar nacional, tarifas comerciais sempre defensivas, em todo caso muito elevadas, fechamento quase completo da economia e, como consequência de tudo isso, um grande mercado interno cativo, passivo, ao seu inteiro dispor. Elas desfrutaram do Estado varguista, que foi também o Estado dos militares, os mesmos que derrubaram Vargas, mas que continuaram a sua obra econômica, aperfeiçoaram o Estado interventor e o levaram aos seus extremos. Tem gente que adora esse tipo de coisa.
Os militares, tanto nos anos 1930-45, quanto no período 1964-85 fizeram no Brasil aquilo que Stalin estava fazendo na União Soviética com o seu socialismo num só país: eles praticaram o que pode ser chamado de stalinismo industrial, e construíram um sistema integrado verticalmente, pouco dependente do exterior, com um índice de nacionalização da oferta interna poucas vezes visto em outras experiências desse tipo: ao final do regime militar, o “made in Brazil” representava provavelmente perto de 95% dos produtos de consumo. Os militares praticaram esse capitalismo num só país em benefício de grandes grupos nacionais, de algumas multinacionais integradas a esse espírito industrial e em benefício do próprio Estado, obviamente.
E as nossas novas elites?  Quem são, o que fazem, como vivem, do que vivem? Elas não são mais, obviamente, aqueles coronéis de chapelão, aqueles burgueses de cartola e charuto (mas as novas não dispensam os charutos cubanos), elas não são mais os industriais que se beneficiaram do stalinismo industrial praticado tanto pelo Estado varguista quanto pelo regime militar. As novas elites, quando ainda não eram tão ricas quanto hoje – mas elas já eram, de certa forma, elites, ainda que do tipo da aristocracia operária que conhecemos bem, ou como guerrilheiros reciclados que também sabemos quem são –, nos velhos tempos do Ancien Régime burguês (desculpem a contradição nos termos), essas novas elites que se tornaram velhas antes do tempo viviam às turras com o Estado burguês, com a sociedade capitalista, imaginem vocês. Antes desses tempos de fim da História, elas pretendiam – vejam que pretensão – derrocar o Estado burguês, aplastar o capitalismo perverso, e colocar em seus lugares respectivos o glorioso Estado proletário e o modo de produção socialista, com algumas loucuras maoísta em complemento.
Patriotas equivocados, como diria o Partidão – e eu fui um deles –, ou ainda, guerrilheiros improvisados, brincando de mocinho e bandido com os gorilas da ditadura militar. Fomos derrotados, obviamente, embora eu continuasse a lutar contra o regime militar até o final, ainda pensando em construir o socialismo, mas já numa feição mais democrática, à face humana como se dizia na ocasião, para distinguir do sovietismo já esclerosado, não mais dos tempos do stalinismo com Gulag, que funcionava apenas na base da repressão a dissidentes e internação em clínicas psiquiátricas. Eu já tinha feito minhas observações ao vivo, tendo morado num dos socialismos reais durante breve tempo, mas visitado todos os outros socialismos, do real ao surreal, e conhecia bastante bem os diversos capitalismos, do ideal ao perverso, como se encontra na periferia.
Mesmo marxista, nunca fui fundamentalista, e sempre li meu Raymond Aron ao lado de Marx e Sartre, e Roberto Campos para compensar os economistas estruturalistas e keynesianos a que estávamos acostumados na faculdade. Ou seja, fiz o meu dever de casa, aquilo que os camaradas do Partido Soviético chamavam de autocrítica, algo que os companheiros atuais nunca fizeram. Isso me habilitou a tirar certas conclusões, não apenas sobre o sentido da História, como gostam de dizer os marxistas, mas também sobre as políticas públicas, macroeconômicas ou setoriais, que funcionam e as que não funcionam. Minhas conclusões são muitas, mas eu vou me ater às características das novas elites.

Nova classe, novo pensamento, nova língua, como nunca antes...
Para simplificar, pode-se retomar o padrão já descrito: as novas elites vivem do Estado, para o Estado, com o Estado, pelo Estado, e sem ele não conseguiriam mais sobreviver, já que não se pode mais contar com mensalão cubano ou mesada chavista. A verdade que elas agora não mais precisam disso, pois possuem meios próprios, inclusive uma vaca petrolífera para ordenhar à vontade. À diferença das antigas elites, que viviam em contubérnio com o Estado, mas que também produziam alguma coisa – que fossem produtos rústicos para o mercado interno, ou um pouco de inteligência jurídica ou acadêmica – as novas elites não produzem nada, sequer um grama de conhecimento, só marxismo rastaquera e gramscismo de fancaria. Elas são, como já disse um jornalista, a burguesia do capital alheio, a nossa Nomenklatura, a nova classe que vive sugando o Estado e extorquindo a verdadeira burguesia, muitas vezes com a conivência da própria.
Elas sequer pensam em construir o socialismo; para quê? Nem o PCdoB acredita mais nisso, e seus panfletos só servem para enganar estudantes ingênuos e já iludidos. O capitalismo é muito melhor, já vem pronto para desfrutar: iPhone, iPad, fast food, viagens à Disneyworld, filmes de Hollywood e, sobretudo, não tem aquela pobreza igualmente distribuída – menos para a Nomenklatura – de todos os regimes socialistas; os companheiros só precisam visitar a miséria cubana nas reverências rituais que eles prestam regularmente aos patrões ideológicos (com alguma parada em paraísos fiscais). Essa coisa de prateleiras vazias, cartões de racionamento, penúria de dólares, isso é só para socialista estúpido economicamente, não para os companheiros da nova elite.
De fato, as novas elites companheiras não precisam mais viver de mensalão cubano, como ocorria nos primeiros tempos; são elas, agora, que ajudam os hermanos da ilha caídos na lata de lixo da História, por serem tão estúpidos a ponto de acreditar que uma economia socialista poderia funcionar. Não foi por falta de aviso: Ludwig von Mises já tinha dito que seria como fazer uma vaca voar, no seu Cálculo Econômico na Comunidade Socialista, escrito em 1919. Os companheiros aprenderam que, mesmo periférico, deficiente e subdesenvolvido, como o brasileiro, o capitalismo é muito melhor, inclusive porque se pode ter charutos cubanos e vinhos franceses, se pode assinar sem medo manifestos em favor da “democratização da mídia”, e sobretudo se pode ir fazer compras em Nova York ou Paris, sem aquela burocracia socialista, chata, aborrecida, controladora, idiota, como toda burocracia socialista (às vezes nem isso).
Tem mais: estando no poder, não precisa mais ficar improvisando maneiras de desviar umas merrecas no recolhimento de lixo ou em transportes públicos de pequenos municípios de interior. Agora, o dinheiro chega sozinho, quase sem precisar fazer força, e por meios quase legais (mas os hábitos da clandestinidade persistem). Nem precisa mais extorquir banqueiros e capitalistas industriais, são eles que agora se oferecem generosamente para financiar campanhas eleitorais e datas festivas. Os mais pródigos, obviamente, são os donos de construtoras: esses possuem a corrupção no DNA, e não conseguem viver sem corromper um funcionário aqui, outro acolá, de preferência nos mais altos escalões. Claro, contrapartidas são de rigor: superfaturamento garantido, com aditivos pré-agendados e rapidamente aprovados, subsídios de mãezona para filhão do BNDES, gordos juros da dívida pública e expedientes do gênero.
Nem adianta esses técnicos do TCU apresentarem laudos arrasadores, capazes de impugnar até a compra de um prego; os conselheiros políticos sempre dão um jeito de salvar o pão deles de cada dia. De outra forma, como seria possível explicar a construção de uma refinaria que passa de 2 a 20 bilhões de dólares sem maiores contestações ou surpresas? Como justificar o preço final de uma outra refinaria que, na verdade, entra como Pilatos no Credo, não tem nada a ver com a verdadeira operação, que transcorreu muito bem, deu resultados e constituiu um ótimo negócio para eles?
As novas elites foram extremamente bem sucedidas na neutralização mental do país, na operação de lobotomia das outras elites, inclusive a acadêmica, que não vê nada de errado na construção do maior curral eleitoral do mundo, com quase um terço da população colocada numa condição de assistida, com recursos extraídos da metade que trabalha e paga impostos. Atualmente, para esse tipo de dominação, não se requer nem mesmo alguma doutrina sofisticada, uma ideologia completa, sequer um peronismo de botequim; nada disso é preciso. Basta demonizar o neoliberalismo, vilipendiar as privatizações, atacar os inimigos de classe – as tais das “zelites” – e enganar os incautos com PACs imaginários, fazer muitas conferências nacionais de inclusão (de qualquer coisa) e fazer discursos na base do nunca antes.
De fato, pouca gente ficou ao relento: temos uma Argentina inteira vivendo aqui com cartão magnético, um imenso exército de assistidos oficiais; a burguesia ficou com a Bolsa-BNDES e os banqueiros continuam vivendo de déficit público e da dívida que segue junto. E a classe média? Depende: tem uma parte que paga mais impostos – 4 pontos do PIB a mais para cobrir a conta de todos esses favores – e tem a tal de nova classe média, que ainda mora na favela, mas já está em ascensão, ou pelo menos assim dizem, pois comprou uma TV a plasma (em dez vezes sem juros, obviamente) e tem direito a vaga numa Faculdade Tabajara, com subsídio público (ou seja, nosso).
As novas elites são realmente espertas: elas estão construindo um tipo de fascismo corporativo, quase consensual, com a ajuda da burguesia e das grandes massas encantadas com o discurso do nunca antes. Tenho a impressão de já ter visto esse filme antes, e de fato já conheço a história, de leituras e visitas a museus. Ainda recentemente, morando em Paris para dar aulas na Sorbonne, fomos visitar, Carmen Lícia e eu, o museu dos congressos nazistas em Nuremberg, um prédio impressionante de concreto, aproveitando parte do altar cerimonial de onde um outro guia genial do povo arengava as massas, que carregava tochas e bandeiras. No interior do museu, se pode assistir a documentários da época, filmagens de ocasião: aquilo me relembrou o nunca antes, o mesmo discurso inflamado, as mesmas invectivas contra as “zelites”, contra os inimigos do povo, os exploradores estrangeiros, enfim, todas essas coisas que vocês conhecem bem. Nunca antes eu tinha saído de um museu com tamanha sensação de desconforto, nem mesmo após visitar Auschwitz, ou ao deixar o Museu do Holocausto.
Nunca antes mesmo: pode-se imaginar que os companheiros, se pudessem, praticariam o mesmo stalinismo industrial que eles tanto admiravam nos militares, e tentariam construir o mesmo fascismo corporativo que deixou tão amargas lembranças em outros povos. Claro, já não é mais preciso ir à guerra por qualquer espaço vital; este já foi conquistado. O Estado já é deles: a partir do ogro famélico, eles disseminam o mais possível esse gramcismo tupiniquim em todos os níveis de ensino, do jardim de infância ao pós-doc, com apoio naquela pedagogia idiota que as saúvas freireanas instaladas no MEC apresentam sob a forma de diretrizes das educação nacional.

Existe saída do fascismo corporativo já instalado entre nós?
Não gostaria de terminar por uma nota pessimista, mas, leitor da História, sempre penso nos possíveis paralelos, ou analogias em torno da decadência de certos países, aliás algumas grandes civilizações. Três exemplos contemporâneos me veem à mente – e deixo de lado a Roma dos Césares e o império otomano – e me detenho nos casos da China, da Grã-Bretanha e da Argentina.
A China foi, outrora, o Estado weberiano mais avançado do mundo, muito antes de Weber obviamente, uns quatro mil anos antes, a civilização mais refinada, na vanguarda das descobertas científicas e das invenções práticas: a bússola, o papel, a pólvora, o spaghetti e várias outras mais, sem esquecer o kung fu. No entanto, a China decaiu, durante dois ou três séculos, sendo humilhada pelas potências ocidentais e esquartejada pelo militarismo japonês. Como isso foi acontecer? Parece que bastou um imperador idiota que resolveu fechar a China aos estrangeiros, privando-a da revolução industrial e de outras inovações importantes, sobretudo no terreno militar. A cupidez de hordas de mandarins empenhados em assaltar o Estado, e os camponeses, fez o resto. Bem, parece que nós já temos os mandarins, sem ter tido civilização sofisticada...
Pensem na Grã-Bretanha, não o império britânico, mas a pequena ilha que Deus na Mancha ancorou, como diria nosso poeta condoreiro. Depois de oferecer ao mundo o know-how da revolução industrial, ela estagnou, e foi ultrapassada pela Alemanha e pelos Estados Unidos, e vários outros, inclusive por sua colônia de Hong Kong. Não foram só os socialistas Fabianos que a inviabilizaram: conservadores também se renderam aos mitos do Estado de bem-estar social, da nacionalização, ou estatização, dos serviços públicos, e por aí veio a decadência. Ela declinou durante o pós-guerra, até que uma dama de ferro conseguisse resgatá-la de uma condição de terceira classe, invertendo um declínio que parecia inevitável.
Mirem os hermanos, aqui ao lado, que já foram muito ricos, cem anos atrás, aliás mais ricos do que vários europeus, com 70% da renda per capita dos americanos, já então o povo mais rico do planeta (o que não é o caso atualmente). Primeiro, eles foram sequestrados por um caudilho fascista, depois pela esposa, mesmo mumificada, e ainda hoje são reféns mentais de dois cadáveres, cultivados pelas máfias sindicais e por políticos medíocres, que continuam afundando a Argentina, contra toda lógica e contra toda racionalidade instrumental. Também tem o caso de um outro caudilho fascista, mais acima, que conseguiu destruir a economia do país mais rico da região, mesmo se à base de uma vaca petrolífera que só confirma a maldição do petróleo, que espero não se abata sobre o Brasil.
Seriam capazes, os companheiros, de nos arrastar para trás, como o fizeram os mandarins chineses, os Fabianos britânicos, a máfia sindical do peronismo argentino e os socialistas anacrônicos do chavismo moribundo? Talvez! Em todo caso, eles são tão incompetentes economicamente – ainda que espertos politicamente – quanto os êmulos de outras decadências. Eles não apenas sonham, como já praticam o fascismo tropical, qualquer que seja o rótulo sob o qual escondem os seus intentos e instintos. Eles só não conseguiram, ainda, desmantelar o Brasil, como o fizeram esses companheiros de outras paragens, não porque não queiram, mas porque não podem, temporariamente, ao menos. Mas eles já conseguiram arrastar o Brasil para trás, atrasá-lo, em mais de uma vertente.
Economicamente, eles conseguiram a proeza de desmentir Keynes, produzindo inflação sem qualquer crescimento: o Brasil cresce hoje menos do que a média da região, e mundial, e três vezes menos do que os emergentes dinâmicos. Politicamente, eles conseguiram submeter vários órgãos do Estado: o Congresso, certamente, várias, ou todas, as agências públicas, sem nenhuma dúvida; eles avançam sobre o Judiciário e desmoralizaram até as Forças Armadas, acusadas de todos os crimes do período militar sem que eles assumam a responsabilidade pela precedência dos ataques a quartéis que provocaram a sanha dos militares contra si. Socialmente, estão criando um Apartheid no país, com suas políticas racistas de divisão do país. Moralmente, também, conseguiram desmoralizar a ética pública, tentando colocar todo mundo na mesma indústria de corrupção que foi aperfeiçoada a partir da corrupção artesanal que era comum nos meios políticos. O retrocesso é mental, por fim, já que a própria burguesia industrial e os banqueiros de pés juntos rendem visitas  ao grande chefe, implorando que ele coloque um pouco de ordem na bagunça feita por companheiros menos competentes (e que na verdade tinha sido criada exatamente pelo próprio guia genial dos povos).
Lamento ter de terminar assim, mas é um fato que eu vejo sinais profundos de decadência institucional se espalhando por vários poros do Estado, e se disseminando pela sociedade. Nunca antes eu tinha encontrado, nos meus retornos regulares ao país, tal estado de desalento, de desconforto, de falta de rumos. Não existe outra conclusão possível: nosso país continua servido por elites incompetentes, inclusive na oposição. Nossas elites, as velhas e as novas – aliás aliadas na promiscuidade política – seguem arrastando o Brasil para trás.
Até quando isso será possível? Sinceramente, eu não sei. Toda situação de crise, ou de retrocesso, requer, em primeiro lugar, um diagnóstico correto, para depois se pensar em aplicar as prescrições adequadas. Não pretendi oferecer aqui um diagnóstico científico da situação brasileira, apenas quis transmitir minha percepção sobre o estado atual da nação. Meu diagnóstico, por certo impressionista, é apenas este: nossas elites padecem de atraso mental. Isso se corrige, mas costuma passar por algumas crises e um doloroso processo de reformas. Que isso venha o quanto antes!
[Em voo, Bradley-Atlanta-Brasília, 17-18 de abril de 2014]
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Textos que guardam relação com o diagnóstico feito acima:

2035. “De la Démocratie au Brésil: Tocqueville de novo em missão”, Brasília, 10 agosto 2009, 10 p. Resumo de relatório da missão ao Brasil empreendida por Alexis de Tocqueville, a pedido do Banco Mundial, para determinar a situação do Brasil em termos de democracia e de economia de mercado. Antecipa relatório detalhado, que poderá ser preparado na categoria dos clássicos revisitados. Publicado na Espaço Acadêmico (ano 9, n. 103, dezembro 2009, p. 130-138; ISSN: 1519-6186; http://periodicos.uem.br/ojs/index.php/EspacoAcademico/article/view/8822/4947). Revista Espaço da Sophia (ano 3, n. 33, dezembro 2009).  Postado no blog Diplomatizzando (12/07/2011; link: http://diplomatizzando.blogspot.com/2011/07/tocqueville-de-novo-em-missao-o-brasil.html). Relação de Publicados n. 939.


2116. “O Direito, a Política e a Economia das Relações Internacionais do Brasil: Uma abordagem não-convencional”, Brasília, 19 fevereiro 2010, 8 p.; revisto 20.03.2-10. Texto suporte para palestra-debate na abertura dos cursos de Direito, Ciência Política, Economia e Relações Internacionais da UnB, no dia 22.03.2010. Postado no site pessoal (www.pralmeida.org/05DocsPRA/2116PalestraDebateAcadem.pdf). Revisto em 25/03/2010 em Lisboa, para publicação, sob o título de “A coruja de Tocqueville: fatos e opiniões sobre o desmantelamento institucional do Brasil contemporâneo”, em Espaço Acadêmico (ano 9, n. 107, abril 2010, p. 143-148; ISSN: 1519-6186; link: http://www.periodicos.uem.br/ojs/index.php/EspacoAcademico/article/view/9800/5484). Relação de Publicados n. 958.


Postada no blog Diplomatizzando em oito partes, e depois apenas com o esquema e o link usado para transcrevê-la (http://cl.ly/2z2B473f0l1W);