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Este blog trata basicamente de ideias, se possível inteligentes, para pessoas inteligentes. Ele também se ocupa de ideias aplicadas à política, em especial à política econômica. Ele constitui uma tentativa de manter um pensamento crítico e independente sobre livros, sobre questões culturais em geral, focando numa discussão bem informada sobre temas de relações internacionais e de política externa do Brasil. Para meus livros e ensaios ver o website: www.pralmeida.org. Para a maior parte de meus textos, ver minha página na plataforma Academia.edu, link: https://itamaraty.academia.edu/PauloRobertodeAlmeida.

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quarta-feira, 25 de março de 2020

Globalizando: ensaios sobre a globalização e a antiglobalização - livro de Paulo Roberto de Almeida (2011)

Dando continuidade à libre disponibilidade de livros fora do mercado, venho, agora, a um dos que me deu maior prazer na construção, um processo que durou praticamente dez anos, ao meu estilo contrarianista, contestando cada uma das afirmações dos altermundialistas, ou antiglobalistas.


Globalizando: ensaios sobre a globalização e a antiglobalização 
(Rio de Janeiro: Lumen Juris Editora, 2011, xx+272 p.; Inclui bibliografia; ISBN: 978-85-375-0875-6)

Frontspício
Ridendo castigat mores.
Jean-Baptiste Poquelin, aliás Molière (1622-1673)


“O Brasil converter-se-á num dos mais formosos estabelecimentos do globo (nada para isso lhe falta) quando o tiverem libertado dessa multidão de impostos, desse cardume de recebedores que o humilham e oprimem; quando inúmeros monopólios não mais encadearem sua atividade; quando o preço das mercadorias que lhe trazem não mais for duplicado pelas taxas que andam sobrecarregadas; quando os seus produtos não pagarem mais direitos ou não os pagarem mais avultados que os dos seus concorrentes; quando as suas comunicações com as outras possessões nacionais se virem desembaraçadas dos entraves que as restringem...”.

Guillaume-Thomas Raynal, conhecido como Abade Raynal,
Histoire philosophique et politique des établissements et du commerce des européens dans les deux Indes (Amsterdam, 1770);
Apud Manuel de Oliveira Lima, D. João VI no Brasil
 (3a. ed.; Rio de Janeiro: Topbooks, 1996), p. 58-59.

Sumário

À maneira de prefácio:
O altermundialismo, uma enfermidade infantil da globalização

Parte I
Globalização
1. O Brasil e os primeiros 500 anos de globalização capitalista
2. Contra a corrente: treze ideias fora do lugar sobre as relações internacionais
3. A globalização e as desigualdades: quais as evidências?
4.  Três vivas ao processo de globalização: crescimento, pobreza e desigualdade
5. Distribuição mundial da renda: evidências desmentem concentração e divergência
6. O Brasil e os impactos econômicos e sociais da globalização
7. Globalização perversa e políticas econômicas nacionais: um contraponto

Parte II
Antiglobalização
8. Contra a antiglobalização: Contradições, insuficiências e impasses do movimento
9. A globalização e seus descontentes: um roteiro sintético dos equívocos
10. A globalização e seus benefícios: um contraponto ao pessimismo
11. Fórum Social Mundial: nove objetivos gerais e alguns grandes equívocos
12. Um outro Fórum Social Mundial é possível… (aliás, é até mesmo necessário)
13. Fórum Social Mundial 2008: menos transpiração, mais inspiração, por favor...
14. Fórum Surreal Mundial: pequena visita aos desvarios dos antiglobalizadores
15. Uma previsão marxista...
16. Perguntas impertinentes a um amigo antiglobalizador
17. Fórum Social Mundial 2010, uma década de embromação

À guisa de conclusão:
Se, nouvelle manière (ou as qualidades do homem na globalização)
Obras de Paulo Roberto de Almeida

Índice
  
À maneira de prefácio:
O altermundialismo, uma enfermidade infantil da globalização  

Parte I
Globalização
1. O Brasil e os primeiros 500 anos de globalização capitalista
1.1. Introdução: meio milênio de inserção internacional do Brasil    
1.2. A globalização mercantilista: as grandes descobertas e a expansão dos séculos 16-18 
1.3. A globalização da Revolução Industrial: manufaturas e novos impérios coloniais 
1.4. A globalização em compasso de espera: crises e recessão mundial no século 20 
1.5. A nova globalização capitalista: sob a sombra da Pax Americana  
1.6. Conclusão: um Brasil ainda pouco globalizado 

2. Contra a corrente: treze ideias fora do lugar sobre as relações internacionais
2.1. O mundo é injusto e desigual, está baseado nas relações de força e na prepotência dos poderosos  
2.2. O Brasil está situado na periferia, por razões históricas e estruturais, e portanto forçado a uma situação de dependência em relação às poderosas nações centrais 
2.3. A dominação econômica de empresas multinacionais atua como obstáculo para nossa independência tecnológica e se reflete em relações desiguais na balança tecnológica
2.4. O Brasil não consegue exportar devido ao protecionismo dos países ricos que protegem seus setores estratégicos ou sensíveis. O Brasil deveria fazer o mesmo 
2.5. O multilateralismo e os agrupamentos regionais representam nossa melhor defesa no plano mundial, por isso precisamos atuar mediante grupos de países (G-77, Mercosul etc.)
2.6. Devemos reforçar os laços com os grandes países em desenvolvimento (China, Índia, Rússia) e com os da América do Sul, onde podemos dispor de vantagens comparativas 
2.7. Só podemos abrir nossa economia e liberalizar o comércio na base da estrita barganha recíproca e com o oferecimento de concessões equivalentes e substantivas  
2.8. Os capitais voláteis são responsáveis pela desestabilização de nossas contas externas e devem ser estritamente controlados 
2.9. Os tratados devem ser sempre recíprocos e respeitadores de nossa soberania e autonomia nacional
2.10. A globalização acentua as desigualdades dentro e entre as nações. Por isso o Brasil deve evitar uma abertura excessiva à economia mundial 
2.11. Processos de liberalização entre parceiros muito desiguais beneficiam principalmente os mais poderosos, por isso devemos primeiro corrigir assimetrias estruturais  80
2.12. Nossa diplomacia é altamente capacitada e profissional, reconhecida pelos seus dotes de excelência                                                                                                        84
2.13. A ação diplomática brasileira deve servir ao processo de desenvolvimento nacional      86

3. A globalização e as desigualdades: quais as evidências?                                   91
3.1. Tendências à divergência e à concentração na economia mundial                 92
3.2. Tendências demográficas: a globalização promove a transição                      93
3.3. Mudanças tecnológicas: os fatores determinantes são domésticos
3.4. O mito do “intercâmbio desigual” 
3.5. Globalização financeira: para o bem e para o mal  
3.6. A globalização como bode expiatório de políticas nacionais  

4. Três vivas ao processo de globalização: crescimento, pobreza e desigualdade
4.1. Mea culpa: miserere nobis illusionis est   
4.2. A antiglobalização e os seus descontentes: em busca de coerência  
4.3. O que era preciso demonstrar: o economista como profeta  
4.4. Vinde a mim os pobres deste mundo?: os milagres da globalização 
4.5. Uma proposta modesta: o neomarxismo da globalização 

5. Distribuição mundial da renda: evidências desmentem concentração e divergência 
5.1. De volta ao problema (equivocado) do crescimento da pobreza mundial  
5.2. A diminuição da pobreza mundial: velhas e novas evidências     
5.3. Os dados do problema: questões metodológicas e descobertas empíricas  
5.4. A pobreza no mundo: diminuindo, a despeito de tudo   
5.5. O mundo é menos desigual: como isso ocorre, e por quais razões? 
5.6. Uma palavra final: os antiglobalizadores precisam mudar o discurso...

6. O Brasil e os impactos econômicos e sociais da globalização 
6.1. Um debate marcado por posições maniqueístas  
6.2. A globalização, o “fim da geografia” e a inserção desigual 
6.3. O Brasil na economia mundial   
6.4. Impactos e desafios do processo de globalização  
6.4.1. A abertura externa leva ao debilitamento das políticas nacionais?   
6.4.2. A globalização aumenta ou diminui as desigualdades intra- e entre-Estados? 
6.4.3. A globalização se traduz num padrão uniforme de políticas públicas? 
6.4.4. Crises financeiras são o resultado da globalização?; a integração regional é o remédio?  
6.4.5. A globalização significa menos democracia e maior dominação de cartéis e monopólios?  
6.4.6. Impactos econômicos e sociais da globalização ou do sistema de mercado?

7. Globalização perversa e políticas econômicas nacionais: um contraponto 
7.1. Abertura econômica e liberalização comercial   
7.2. Ausência de projeto estratégico   
7.3. Políticas não-ortodoxas de desenvolvimento   
7.4. As supostas políticas não-liberais da China   
7.5. A Índia como promotora do mercado interno    
7.6. O papel do cobre nacionalizado no sucesso do Chile   
7.7. O Brasil penalizado pelos seus juros excessivamente altos   
7.8. Políticas monetária e cambial do Brasil nocivas ao crescimento  

Parte II
Antiglobalização
8. Contra a antiglobalização: Contradições, insuficiências e impasses do movimento
8.1. Uma longa (mas necessária) introdução metodológica e de princípios  
8.2. Contradições da antiglobalização: carência de fatos, de método, de análises 
8.3. Pensando o impensado: existem ideias concretas sobre temas concretos? 
8.3.1. Protecionismo agrícola e vantagens comparativas dos mais pobres 
8.3.2. Dívida externa, movimentos de capitais e globalização financeira  
8.3.3. Competição aberta contra mercados regulados e fechados  
8.3.4. Instituições de solução de controvérsias em face do arbítrio comercial 
8.3.5. Crescimento e pobreza, ou o que a globalização pode fazer por eles 
8.3.6. Concentração da renda e desigualdades  
8.3.7. Tecnologia proprietária e dependência tecnológica  
8.3.8. Meio ambiente e mercado: um instável equilíbrio 
8.4. Diagnóstico de duas enfermidades precoces: autismo e esquizofrenia  

9. A globalização e seus descontentes: um roteiro sintético dos equívocos  
9.1. A globalização e o desenvolvimento: convergências ou divergências? 
9.2. A globalização e as políticas neoliberais: elas produzem recessão e desemprego? 
9.3. O “consenso de Washington” fracassou na América Latina? E o caso do Chile? 
9.4. Liberalização comercial e produtividade: quais as evidências nesse campo?
9.5. Liberalização financeira e capitais voláteis: e o problema da estabilidade?
9.6. Relações de trabalho e desemprego: quais as lições dos países mais flexíveis?
9.7. Inserção internacional e interdependência econômica: quais são os problemas? 
9.8. Patentes e países pobres: como avançar em ciência e tecnologia? 
9.9. Investimentos externos e autonomia tecnológica: eles são opostos? 
9.10. Segurança alimentar e protecionismo agrícola: e a situação dos países mais pobres?
9.11. Taxas sobre fluxos de capitais: elas são positivas ou mesmo necessárias? 
9.12. Livre-comércio ou mercantilismo: o que é bom para o crescimento?   
9.13. Conclusões: os mitos e equívocos sobre a globalização  

10. A globalização e seus benefícios: um contraponto ao pessimismo   
10.1. Uma controvérsia politicamente enviesada   
10.2. A globalização provoca miséria e desigualdade?  
10.3. As desigualdades estruturais da globalização capitalista agravaram-se? 
10.4. Os benefícios da globalização: redução da miséria e das desigualdades 

11. Fórum Social Mundial: nove objetivos gerais e alguns grandes equívocos
11.1. Pela construção de um mundo de paz, justiça, ética e respeito pelas espiritualidades diversas  
11.2. Pela libertação do mundo do domínio das multinacionais e do capital financeiro 11.3. Pelo acesso universal e sustentável aos bens comuns da humanidade e da natureza 
11.4. Pela democratização do conhecimento e da informação  
11.5. Pela dignidade, diversidade, garantia da igualdade de gênero e eliminação de todas as formas de discriminação 
11.6. Pela garantia dos direitos econômicos, sociais, humanos e culturais, especialmente os direitos à alimentação, saúde, educação, habitação, emprego e trabalho digno
11.7. Pela construção de uma ordem mundial baseada na soberania, na autodeterminação e nos direitos dos povos  
11.8. Pela construção de uma economia centrada nos povos e na sustentabilidade 
11.9. Pela construção de estruturas políticas realmente democráticas e instituições com a participação da população nas decisões e controle dos negócios e recursos públicos  

12. Um outro Fórum Social Mundial é possível… (aliás, é até mesmo necessário) 
12.1. Onde se encontra o outro mundo possível?  
12.2. Quem sabe um outro Fórum seja possível?  

13. Fórum Social Mundial 2008: menos transpiração, mais inspiração, por favor...
13.1. Déjà vu, all over again   
13.2. Repetindo velhos argumentos (equivocados)   
13.3. A mobilização pela mobilização (isso deve cansar)  
13.4. Os jornalistas estão fazendo o seu trabalho corretamente?   

14. Fórum Surreal Mundial: pequena visita aos desvarios dos antiglobalizadores   
14.1. Globalizados contra a globalização: reação freudiana?    
14.2. Objetivos reciclados nos últimos três anos: falta de ideias?   
14.3. Pelo menos um objetivo novo: alguma grande contribuição intelectual? 
14.4. Os “sábios” da antiglobalização: mais bem dotados que os jovens? 
14.5. Mais uma dúzia de propostas para um outro mundo possível: será possível? 
14.5.1. Cancelamento da dívida externa dos países do Sul  
14.5.2. Introdução da Taxa Tobin sobre transações financeiras   
14.5.3. Desmantelamento dos paraísos fiscais   
14.5.4. Benefícios sociais sem discriminação de gêneros 
14.5.5. Comércio justo com exclusão da liberalização de serviços
14.5.6. Soberania alimentar e barreiras a OGMs       
14.5.7. Contra patentes de conhecimento e a privatização de bens comuns 
14.5.8. Contra todas as discriminações, pelos direitos de povos indígenas 
14.5.9. Defesa dos recursos naturais, sobriedade energética  
14.5.10. Contra bases estrangeiras, salvo a serviço da ONU  
14.5.11. Direito à informação, contra os grandes grupos de comunicação 
14.5.12. Democratização ampla das organizações internacionais 
14.6. A caminho de Belém 2009: alguma esperança de ideias novas?  

15. Uma previsão marxista sobre o “fim da história” e os equívocos atuais dos antiglobalizadores             
15.1. Da profecia, enquanto engenharia social       
15.2. O fim da história, enquanto profecia otimista   
15.3. O capitalismo não tem manual de instruções (aliás, nem o socialismo) 
15.4. O socialismo tropeça no cálculo econômico     
15.5. Marx: habitual de Davos e articulista da Economist 

16. Perguntas impertinentes a um amigo antiglobalizador     
16.1. Sem querer ofender ninguém...            
16.2. Quem afirma tem o dever de provar...     
16.3. Doze perguntas em busca do outro mundo possível...   

17. Fórum Social Mundial 2010, uma década de embromação
17.1. A novela está de volta (com o mesmo enredo...)   
17.2. O diagnóstico do nosso mundo impossível      
17.3. Construindo um outro mundo possível    
17.4. O mundo possível dos antiglobalizadores     
17.5. A grande síntese antiglobalizadora         


À guisa de conclusão:
Se, nouvelle manière (ou as qualidades do homem na globalização)       


Obras de Paulo Roberto de Almeida                 



À maneira de prefácio:
O altermundialismo, uma enfermidade infantil da globalização

Incrível atualidade a da frase transcrita no frontspício deste livro, de uma das cabeças mais lúcidas do século 18 francês. Anti-escravagista em plena era do tráfico africano, pensador iluminista, conhecedor das coisas do mundo, mesmo sem ter viajado fora da Europa ocidental, o abade Raynal (Guillaume-Thomas) poderia ser descrito, em linguagem moderna, como um “globalizador esclarecido”, categoria à qual eu mesmo me orgulharia de pertencer, se existisse entre nós tal clube filosófico. Com efeito, a sua provocadora Histoire philosophique et politique des établissemens & du commerce des européens dans les deux Indes pode ser chamada de primeiro tratado da globalização dos tempos modernos, ou le premier traité de la mondialisation, como prefeririam os franceses, sempre suscetíveis nessas coisas de anglofonia.
Raynal começa o primeiro livro de sua enorme obra (6 volumes) proclamando a revolução que tinha sido a passagem do cabo da Boa-Esperança: “uma revolução então começou no comércio, na potência das nações, nos costumes, na indústria e no governo dos povos. Foi nesse momento que os homens dos lugares mais distantes se fizeram necessários: os produtos dos climas equatoriais são consumidos nos climas vizinhos do pólo; a indústria do norte é transportada ao sul; os tecidos do Oriente vestem o Ocidente, e em todas as partes os homens trocam suas opiniões, suas leis, seus hábitos, seus remédios, suas enfermidades, suas virtudes e seus vícios”. Além de lúcido, nosso abade era um visionário: “Tudo mudou e tudo deve mudar ainda. Mas, as revoluções passadas e aquelas que ainda vão vir, podem ser úteis à natureza humana? O homem, por causa delas, gozará um dia de mais tranquilidade, de mais virtudes ou de mais prazeres? Poderão elas torná-lo melhor, ou elas apenas o mudarão um pouco?” [1]
Estas perguntas, filosóficas, de fato, são examinadas à luz da obra colonizadora dos europeus: “Depois que se conheceu a América e a rota do Cabo, nações que não eram nada se tornaram poderosas; outras, que faziam estremecer a Europa, se enfraqueceram. Como essas descobertas influenciaram o estados dos povos? Por que, enfim, as nações mais florescentes não são exatamente aquelas com as quais a natureza foi mais pródiga?” Ele começa a explorar essas questões, partindo do pressuposto da unificação comercial do mundo sob a hegemonia do se poderia chamar, hoje em dia, de capitalismo ocidental. A análise de Raynal é absolutamente atual, podendo-se dizer que seus argumentos parecem referir-se à globalização contemporânea.

Esta coleção de ensaios pessoais também é colocada sob o signo controverso da globalização, aliás, bem mais do lado do abade Raynal do que dos modernos êmulos daqueles representantes das correntes anti-iluministas que colocaram sua obra no index dos livros proibidos e tentaram calar sua voz incômoda e libertária. Após a publicação da terceira edição da sua História filosófica das duas Índias, seus inimigos a fazem condenar pelo Parlamento de Paris, queimando-a em praça pública, enquanto ele se refugiava na Suíça (onde ele faz construir um monumento em honra à liberdade). Ele freqüenta em seguida as cortes de Frederico II, da Prússia, e a de Catarina II, da Rússia.
Às vésperas da Revolução, ele encarna os ideais do Iluminismo e dos direitos humanos e protesta contra a autocracia e a escravidão nos territórios coloniais, cujos horrores ele conhecia por ser descendente de uma família de grandes comerciantes (e de traficantes). Perseguido pelo ancien Régime, ele logo se coloca também contra os exageros do novo regime, como declarado em sua carta à Assembléia Nacional em 31 de maio de 1791: “eu alertei os reis quanto aos seus deveres; inquietai-vos que hoje eu fale ao povo dos seus erros”.
Com efeito, mesmo os bem intencionados cometem erros, como por exemplo, hoje, os chamados altermondialistes franceses – e seus seguidores miméticos no Terceiro-Mundo, conhecidos como antiglobalizadores –, ao pretender substituir as iniquidades da globalização capitalista por sistemas econômicos que fariam os povos das antigas colônias ainda mais pobres do que eles já são.
De fato, ao examinar os escritos, declarações, manifestos, slogans e consignas dos antiglobalizadores, e ao confrontá-los com os dados da realidade, tanto no plano da história, como da atualidade, ou ainda no âmbito da simples lógica formal, impossível não chegar à conclusão de que eles se equivocam redondamente sobre o mundo, seus problemas e respectivas soluções. Pode-se, inclusive, parafrasear a velha frase: nunca, tantos se enganaram tanto, sobre tantos assuntos.

Há muitos anos venho observado o curioso fenômeno da antiglobalização: não posso me impedir de admirar e também de sorrir face à ingenuidade de tantos jovens, sinceramente armados de idealismo, desejosos de corrigir os defeitos deste mundo. Mas tampouco posso evitar uma sensação de cansaço ante tantos slogans repetidos, retomando aborrecidamente chavões de décadas atrás, quando eu também marchava contra o imperialismo e a dominação do capital financeiro internacional. Creio, sim, que o movimento altermundialista é uma enfermidade infantil da globalização. Como não existe uma vacina contra ele, é preciso esperar que os sinais da enfermidade se tornem cada vez mais tênues, até desaparecer por completo, quando todos os jovens estiverem devidamente  globalizados, como aliás já estão os da antiglobalização (mas no seu caso, eles pegam continuamente o virus com professores alienados da academia).
Tenho menos complacência, justamente, em face desses velhos representantes da academia, que parecem não ter aprendido absolutamente a partir do itinerário de desastres do socialismo real, no século 20. Velhos sindicalistas podem ser perdoados por marcharem contra a “deslocalização”, já que, afinal de contas, eles não estão fazendo mais do que o seu dever, ao defender a manutenção dos empregos de seus associados em seus respectivos países. Mas, intelectuais de gabinete, que repetem slogans monotemáticos, simplificando uma realidade complexa e induzindo jovens a se engajarem em causas perdidas, não são apenas equivocados; eles também podem ser considerados intelectualmente desonestos, já que dispondo de todos os instrumentos para se informar (e se formar). 
A acusação é grave, e ela se refere não apenas a equívocos materiais, digamos de avaliação econômica da realidade. Ela tem a ver com um slogan absolutamente vazio, o tal de “outro mundo possível”: jamais fomos contemplados com a arquitetura desse outro mundo prometido, nunca apresentado em seus contornos materiais ou sequer “filosóficos”. Esses acadêmicos vivem do movimento pelo movimento, numa espécie de moto perpétuo mental, aliás, girando em circuito fechado, pois que imune e isolado de todo e qualquer debate que não seja no interior do próprio movimento.
Ao condenar o tal de “pensamento único” – que seria, supostamente, o do neoliberalismo – esses acadêmicos alienados conseguem ostentar o mais rígido pensamento único conhecido na atualidade. De resto, o conjunto do movimento antiglobalizador pode ser acusado de sectarismo e tribalismo: só podem participar dos seus encontros, aqueles que aderem ao credo filosófico que constitui a “bíblia” do movimento antiglobalizador. Os que não estão habituados aos rituais da tribo encontrarão nesta coleção de ensaios farto material probatório.

Os trabalhos aqui compilados falam por si mesmos. Eles tanto dão a palavra ao movimento antiglobalizador – pois que reproduzindo fielmente suas teses e argumentos mais repetidos – quanto se dedicam à anatomia desse pensamento redutor e simplista. Cada um dos ensaios está datado cronologicamente, o que explica pequenas repetições nos argumentos aqui e ali. De resto, eles devem se sustentar por si mesmos, e submeter-se à crítica dos leitores, entre os quais espero encontrar muitos jovens idealistas e alguns irredutíveis antiglobalizadores. Não tenho o hábito de ser politicamente correto, nem o de dobrar-me a conveniências do momento. Alguns dos trabalhos aqui compilados, já publicados anteriormente, podem explicar minha posição singular tanto na academia, quanto em outros ambientes. Não sou de esconder minhas posições. A todos de julgar.

Paulo Roberto de Almeida


[1] As obras de Raynal estão disponíveis em formato digital no site da Bibliothèque Nationale de France, também através do portal da coleção Europeana: http://www.europeana.eu/portal/brief-doc.html?start=1&view=table&query=Abb%C3%A9+Raynal.


A obra está disponível na plataforma Academia.edu, neste link: 

https://www.academia.edu/42313006/Globalizando_ensaios_sobre_a_globalizacao_e_a_antiglobalizacao_2011_

segunda-feira, 16 de março de 2020

Manifesto Globalista (2020) - Paulo Roberto de Almeida

Nova divulgação deste "manifesto", redigido em março, mas corrigindo uma distração relevante que estava inscrita na versão anterior: a troca de bolchevique por menchevique, o que faz toda a diferença. Outra razão desta nova divulgação é o fato de que a pandemia GLOBAL, que se acelerou nas duas últimas semanas, está sendo encarada por meio de medidas nacionalistas, exclusivas e excludentes, afastando a necessária coordenação e cooperação GLOBAIS, como deveria ser.
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 16 de março de 2020

Manifesto Globalista


Paulo Roberto de Almeida


Introdução: um manifesto em defesa do globalismo?
Um “manifesto globalista”? Na linha do Manifesto Comunista (1848), de Marx e Engels? Sim, exatamente, mas com algumas diferenças de espírito e de conteúdo. 
Como o globalismo vem sendo atacado de maneira superficial e simplista por alguns espíritos neogóticos, com argumentos totalmente equivocados, vou divulgar o meu manifesto globalista, especialmente voltado para o mundo diplomático brasileiro, onde o besteirol antiglobalista que está sendo disseminado desde algum tempo é bem maior. A estrutura do presente ensaio provocador pode parecer semelhante, ou similar, à do texto gótico de 1848, mas os argumentos são bastante diferentes.
Mas antes uma precisão: o título original do pequeno panfleto de 1848 – feito muito rapidamente, inclusive com alguns “empréstimos” deliberados – preparado por dois jovens hegelianos radicais, era Manifesto do Partido Comunista. Só que não ainda não existia nenhum “partido comunista”: o texto havia sido encomendado pela Liga dos Justos, uma associação de trabalhadores alemães sediada na Inglaterra. Os partidos comunistas surgiram bem mais tarde, no seguimento da primeira grande divisão dos socialistas, seja na Primeira Internacional, em face do embate entre anarquistas-bakuninistas e marxistas-marxianos, seja depois, com o surgimento dos socialistas-reformistas – Lassale, Liebknecht, Kautsky, Bernstein –, agrupados na Segunda Internacional, que logo foram combatidos pelos bolcheviques-leninistas da Terceira Internacional. A partir de 1919, quem quisesse apoiar o primeiro “Estado trabalhador” da História tinha de mudar o nome do seu partido para comunista, e acrescentar o subtítulo: “seção [nacional] da Internacional Comunista”, como foi o primeiro nome do Partido Comunista do Brasil: seção brasileira da Internacional Comunista (1922, nome recuperado depois, sem o subtítulo, pelo PCdoB). 
Marx e Engels aprovariam, quase certamente, a distinção entre comunistas e socialistas, para logo em seguida criticar os discípulos pouco instruídos nas coisas econômicas (pois que conduziram o comunismo a uma situação insustentável). Para os propósitos do presente ensaio, como nem o globalismo, nem o bizarro antiglobalismo constituem partidos, no sentido etimológico e funcional da palavra, este novo manifesto não é do “Partido Globalista” e sim apenas um “Manifesto Globalista”; se quiserem acrescentar algo, eu não me oporia a este subtítulo: “contra o antiglobalismo”. Feitos os esclarecimentos históricos, vamos a um novo “clássico revisitado” de minha série, que já comporta uma paródia do velho Manifesto, adaptado aos vibrantes novos tempos da globalização capitalista (o novo Manifesto, e o livro completo, estão disponíveis aqui: https://www.academia.edu/41037349/Velhos_e_Novos_Manifestos_o_socialismo_na_era_da_globalizacao_1999_).

1. O grande temor dos reacionários: o espectro do globalismo
Um espectro percorre a comunidade adepta das teorias conspiratórias: o espectro do globalismo. Todos os poderes de velhas correntes ultraconservadoras, da extrema direita e dos reacionários sem qualquer doutrina, mas também da esquerda antiglobalizadora, se aliaram em uma campanha contra o fantasma do globalismo. Este seria, no precário entendimento dos que estão coligados ou convergentes no combate a esse novo monstro metafísico, um alegado complô de ricaços de esquerda e de burocratas da ONU — sem esquecer alguns ideólogos, como este que aqui escreve — devotado a retirar soberania aos Estados nacionais e a construir um governo mundial dirigido por burocratas não eleitos de organismos internacionais. 
Qual entidade de burocratas dedicados à interdependência global não foi vilipendiada pelos seus adversários no poder como globalista? Quantos diplomatas sinceramente devotados ao seu trabalho internacionalista já não foram acusados de globalistas pelos novos cruzados reacionários da causa antiglobalista?
Desse fato concluem-se duas coisas.
O globalismo passou a ser identificado por esses adeptos de teorias conspiratórias como um novo poder.
Já é tempo dos globalistas engajados – como este que aqui escreve – exporem perante o mundo inteiro – ou pelo menos aos true believers e outros ingênuos seduzidos pela causa antiglobalista – a sua visão do mundo, seus objetivos e tendências, e de contraporem à lenda do espectro do globalismo um manifesto do próprio punho. Um manifesto que examine cada uma das alegações dos antiglobalistas e confirme que eles estão indo na direção contrária ao sentido tomado pela grande trajetória da interdependência global, ao pretenderem fazer girar para trás a roda da História.

2. Globalistas e antiglobalistas (ou internacionalistas conscientes e nacionalistas tacanhos)
Adeptos de teorias conspiratórias sempre existiram ao longo dos séculos: são geralmente mentes simples, almas cândidas, pessoas ingênuas que, induzidas por profetas de algum desastre iminente – gurus alucinados pelas dificuldades naturais, estruturais ou conjunturais, sistêmicas ou acidentais, contingentes, das economias sociedades – tentam ver, nesses soluços de uma longa e lenta evolução para estágios diferentes de organização econômica, política e social, a ação de sociedades secretas, entidades poderosas que manobrariam em surdina justamente contra o Estado ao qual pertencem. 
Para eles, se algo estranho – ou seja, coisas que eles não conseguem explicar – está acontecendo no mundo, ou no cantinho em que eles vivem, é porque um pequeno grupo de espertalhões, geralmente ricos e poderosos, mas sempre mal intencionados, está tentando (e conseguindo) tomar o controle do mundo e de suas vidas, para impor não se sabe bem que tipo de novo regime ou sistema de vida. Dizer que os “conspiradores” são paranoicos já é uma redundância em si, pois parece haver uma correspondência íntima entre esses dois tipos de alucinados, embora nem todos os paranoicos sejam adeptos de teorias conspiratórias: vários se refugiam em seu mundinho conhecidos, temendo que o céu lhes caia sobre a cabeça, apenas dizendo que “estão vindo atrás de mim”. Paranoicos podem ser recatados e, portanto, não prejudiciais, mas conspiratórios tendem geralmente a perturbar a paz geral e a felicidade da nação anunciando as piores catástrofes que estão para se abater sobre o país e cada um de nós. Os antiglobalistas pertencem a esse gênero perfeitamente alucinado: “Os globalistas vão tirar nossas liberdades, vão retirar a soberania da nação, vão nos converter todos em escravos da poderosa máquina perversa” (que pode ser a do capital ou a do marxismo, à sua escolha), “eles vão destruir as bases das nossas sociedades, já estão fazendo isso, alerta minha gente!”.
Pois é, esses são os antiglobalistas, que seriam apenas ridículos, se não fossem também inutilmente ridículos, pois engajam a sociedade, quando estão no poder, em uma retirada em regra de fluxos, circuitos, correntes, movimentos e outras interações que seriam naturais e benéficas, se deixadas ao sabor das mudanças progressivas e regulares em quaisquer sociedades “normais”, ou seja, aquelas que respondem à dinâmica constante das atividades econômicas ou que reagem positivamente às novas ideias que cérebros educados estão sempre propondo para melhorar a vida de cada um dos cidadãos (ou súditos).
E quem são os globalistas, supostamente pecadores, indivíduos perigosos, propensos, pelo menos potencialmente, a roubar nossas liberdades e a soberania dos países, supostamente em benefício de algum grupúsculo organizado de conspiradores profissionais (que podem ser grandes capitalistas, judeus, marxistas, o que vier à cabeça)? Os globalistas somos todos nós, pessoas normais, que tendem a receber positivamente quaisquer novos influxos que representem agregação de valor, seja material, seja espiritual: produtos (ou seja, bens e serviços, de todas as partes do mundo), ideias novas, hipóteses, pesquisas, desafios, enfim, quaisquer propostas de mais conforto, harmonia, bem-estar, novidades em geral. Globalistas são pessoas abertas ao que o mundo produz de melhor – e, presumivelmente, a soma de novidades do mundo sempre será maior do que as novidades do seu próprio país –, ideias interessantes, até propostas desafiadoras, do ponto de vista das velhas tradições e costumes arraigados nas dobras do tempo. 
Globalistas são receptivos a tudo isso, e não temem perder a liberdade se aceitam provar um novo pudim (salvo se for inglês, pois aí é perigoso), um novo aparelho (mesmo se for chinês, com aquelas coisas embutidas que vão passar a controlar a sua vida), uma nova forma de responsabilização de políticos (esse estamento autocentrado em todos os países), e propensos a se abrirem às migrações de todos os tipos, inclusive as suas próprias. Numa palavra, globalistas são internacionalistas, e antiglobalistas tendem a ser nacionalistas tacanhos (muitos deles obtusos, ou seja, infensos a quaisquer novidades).
Estou sendo maniqueísta? Provavelmente sim, mas cabe recordar que antes de aparecerem os nacionalistas tacanhos, que proclamam abertamente serem não só antiglobalistas, como também nacionalistas de um novo tipo (não carnívoros, se supõe), todos vivíamos felizes, sem sequer ter a consciência de sermos globalistas, ou seja, de estarmos abertos às novidades do mundo. O Brasil é um exemplo disso: acolheu imigrantes de todo o mundo, como uma coisa benéfica à construção do seu próprio Estado-nação – permitindo, por exemplo, no Império, que esses estrangeiros se estabelecessem nas faixas de fronteiras –, como algo natural e positivo; mas, a partir de certo momento, virou um país nacionalista tacanho, agora tudo mais reforçado, depois que essa horda de soberanistas ingênuos e de antiglobalistas que se abateu sobre nós. 

3. Globalistas naturais e globalistas profissionais
A distinção pode parecer desprovida de maior significado, ou simplesmente inútil, na medida em que poucas diferenças existem, em princípio, entre aqueles que se adaptam naturalmente ao ritmo das mudanças no mundo contemporâneo – francamente globalista, na letra dos tratados e no espírito dos tempos – e os que se exercem profissionalmente no campo ativo do globalismo assumido e promovido. Vamos explicar.
Globalistas naturais são todos os cidadãos, indivíduos normais, consumidores abertos ao que possa existir de novidade no mundo da oferta dos mercados, sem preconceitos contra itens úteis na sua labuta diária ou no seu lazer cotidiano: são aqueles que não acham que a Coca-Cola é a “água negra do imperialismo” – como alguns anti-imperialistas ainda proclamavam algum tempo atrás –, que o rock não é uma “dança satânica”, que o iPhone é uma das grandes invenções da humanidade, que a China não quer exportar o seu modelo político – apenas inundar nossos mercados de produtos baratos, eventualmente também de uma qualidade aceitável –, que a ONU não vai instalar um governo mundial e que o George Soros não vai destruir o valor da nossa moeda e sugar nossas reservas internacionais. Enfim, são cidadãos como quaisquer outros, sem prevenções contra o que nos vem de fora, e com uma imensa curiosidade de saber o que existe lá fora, sem dividir o mundo entre “nós e o resto do mundo”. 
Globalistas profissionais são justamente aqueles que trabalham nessa interface, entre o nacional e o internacional, entre o doméstico e o externo, entre as nossas vantagens competitivas nacionais e as vantagens comparativas internacionais (sempre relativas, como poderia lembrar Ricardo contra aquele pioneiro, Adam Smith, que acreditava nas vantagens absolutas e na errônea teoria do valor trabalho, e que daí passou para o Marx). Em princípio, todo empresário deveria ser globalista, pois é do grande mundo externo que ele retira ideias, insumos e meios de produção para fazer sua oferta interna, eventualmente externa também. Todo economista sensato também deveria ser globalista, ou seja, a favor do livre comércio, o que não significa sair por aí negociando acordos de livre comércio com países like-minded; não precisa: basta orientar o seu ministro do comércio exterior a adotar a liberalização erga omnes, ou seja, unilateral, sem qualquer necessidade de estabelecer acordos mercantilistas com quaisquer outros países.
Isso seria o normal, e esses seriam os primeiros globalistas profissionais, ou seja, empresários competitivos e economistas simplesmente sensatos empenhados em colocar o país na interdependência global, a melhor situação que qualquer estadista digno desse nome poderia aspirar para o seu país. Mas, hélas, isso não vale para os empresários brasileiros e para os “economistas” do governo Trump, empenhados ferozmente em defender sua reserva de mercado e em “equilibrar”, por quaisquer meios, a balança comercial, tanto a global quanto a bilateral, uma situação impossível, teórica e praticamente (inclusive porque balança comercial não é uma preocupação microeconômica de empresários, nem deveria ser a maior questão macroeconômica a preocupar os economistas governamentais, pois existem outros componentes no balanço de pagamentos).
E quanto aos diplomatas? Ora, não seria preciso nem argumentar como, ou porque, os diplomatas são, necessariamente globalistas profissionais, até compulsórios. Não se trata apenas de conformação “genética”, se cabe alusão a qualquer “fatalidade natural”, ou de alguma “deformação de ofício”, se também cabe a expressão depreciativa; antes de qualquer outro critério, trata-se de um ambiente natural para o exercício de suas funções executivas, sobretudo no caso desses burocratas obrigatoriamente imersos no mundo da globalização. E isso não existe apenas depois da construção da ordem multilateral no pós-Segunda Guerra, ou antes, na criação da Liga das Nações, depois da Grande Guerra e com os acordos de Paris, em 1919: diplomatas integram uma das mais antigas profissões do mundo, mobilizados cada vez que soberanos mais sensatos procuravam evitar guerras ofensivas ou defensivas, em caso de tensões com soberanias vizinhas ou impérios conquistadores. Junto com os soldados, que são seus irmãos naturais e que também precisam ser naturalmente, profissionalmente globalistas, os diplomatas só existem na globalidade, na globalização, no globalismo, sendo inconcebível um diplomata “antiglobalista”.
Aliás, um diplomata antiglobalista não é apenas uma contradição nos termos, é antes de mais nada um ser ridículo, pois não se entende um profissional das relações exteriores que queira se refugiar no nacionalismo tacanho, no provincianismo rastaquera, na recusa da abertura do país a todos os tipos de interações benéficas ao povo, à economia, à cultura nacional. O que é especificamente moderno, ou contemporâneo, no globalismo diplomático, é o multilateralismo, disputando espaços preliminares com o bilateralismo triunfante até o século XIX e explodindo com vigor depois da Segunda Guerra Mundial, com a fundação da ONU e de todas as suas agências especializadas (aliás, até antes, desde Bretton Woods, que iniciou a conformação da ordem econômica multilateral do pós-guerra, que ainda é a base das relações internacionais). Um diplomata que se proclame antiglobalista é mais do que um estranho no ninho, ou um cisne negro, é sobretudo uma aberração teórica e prática, uma vez que mesmo esse ser bizarro terá de se haver com as estruturas multilaterais, portanto globais, que foram sendo estabelecidas progressivamente ao longo das últimas sete ou oito décadas.

4. Literatura globalista e antiglobalista
Literatura antiglobalista não existia até certo tempo atrás, ou então se restringia aos poucos panfletos conspiratórios, daquele mesmo nacionalismo tacanho, que provocaram tantas guerras ao longo da era moderna, até os conflitos globais da primeira metade do século XX. O nacionalismo, segundo estudiosos do tema – Hans Kohn foi o maior de todos – é um fenômeno relativamente moderno, que se desenvolve paralelamente ao crescimento da doutrina liberal, mas que assume feições exclusivistas e excludentes no curso do gradual desenvolvimento paralelo do coletivismo, em suas diversas formas econômicas e políticas, entre elas o pangermanismo, um nacionalismo proto-globalista (se assim cabe a expressão), que provocou, junto com o expansionismo imperialista, a maior guerra de todos os tempos. 
O nacionalismo, assim como o racismo – especificamente antissemita – e o culto do líder e da pátria emergiram no século XIX, tendo sido anteriormente especialmente francês, da era napoleônica – como defesa da pátria atacada pelas monarquias europeias que estavam sendo desmanteladas pelas novas ideias de soberania popular da revolução de 1789 –, tornou-se, na imediata sequência, um produto do romantismo alemão, que teve suas derivações nos círculos wagnerianos até chegar a Rosenberg e Hitler. No decorrer do século XIX, ele se confunde com um dos tipos de darwinismo social, a partir do qual a ideia de raça se torna a base fundamental da nacionalidade e do patriotismo. Em sua obra magna, A Ideia do Nacionalismo (publicada originalmente em 1944), Hans Kohn assim define o nacionalismo: 
Nationalism is a state of mind permeating the large majority of the people and claiming to permeate all its members; it recognizes the nation-State as the ideal form of political organization and the nationality as the source of all creative cultural energy and economic well-being. The supreme loyalty of man is therefore due to his nationality, as his own life is supposedly rooted in and made possible by its welfare. (Hans Kohn, The Idea of Nationalism: A Study in Its Origins and BackgroundNew York: Macmillan, 1961, p.16).

Mas antes mesmo de publicar essa sua obra magna, Hans Kohn, um promotor precoce do sionismo – depois abandonado em favor do estabelecimento de um Estado binacional na Palestina –, havia publicado, antes da guerra, uma obra, Force or Reason: issues of the Twentieth Century (Harvard University Press, 1937), na qual dizia o seguinte: 
On a shrinking earth man should concentrate all his rational forces upon the adjustment of his social and political life to the new conditions. Instead, we hear reason and reasonableness decried and the old battle cries of fierce imperialism and conflict of races raised again. (p. 96)

A despeito de discutir, em seu livro, “The Cult of Force”, “The Dethronement of Reason”, ou “The Crisis of Imperialism”, Kohn proclamava, ao lado do reconhecimento das dificuldades de se alcançar a equalização concreta das oportunidades entre os homens, sua crença nos valores civilizatórios alcançados pela sociedade contemporânea e sua esperança no prevalecimento da justiça democrática. O que se teve, infelizmente, a partir dali, foi a brutal reafirmação da força, não da razão, trazidos tanto pelo fascismo quanto pelo comunismo, dois movimentos aparentemente guiados por motivações globalistas, mas o primeiro nacionalista ao extremo, o segundo supostamente internacionalista (à sua maneira). Daí se pode perceber certa confusão teórica e conceitual entre os defensores do velho nacionalismo e os do novo antiglobalismo, tendentes a fazer crer que o nacionalismo não foi, como se acredita, o verdadeiro responsável pelas terríveis guerras que ensanguentaram o século XX, e sim forças ainda positivas, que nos poupariam de um suposto flagelo a ser provocado, não pela globalização – o que seria de toda forma inútil –, mas pelo globalismo, que pretenderia, segundo os novos arautos do antiglobalismo, da “ditadura das organizações internacionais”. 
Incapazes de sustentar suas ideias bizarras por meio de trabalhos consistentes, os defensores brasileiros do nacionalismo antiglobalista recorrem a obras de autores estrangeiros (geralmente americanos, europeus e israelenses), como se os novos manifestos nacionalistas trouxessem qualquer contribuição intelectual aos problemas de um país como o Brasil, uma nação que não enfrenta, como muitos desses países, problemas decorrentes de uma grande inserção mundial, de uma imensa atratividade imigratória, terrorismo, um multiculturalismo supostamente nocivo e outras questões próprias vinculadas às suas peculiaridades políticas e ideológicas propriamente nacionais. Assim como o afro-brasileiro é uma importação espúria de tendências peculiares ao ambiente racial dos Estados Unidos, o antiglobalismo atual constitui uma outra importação bizarra de “ideias fora do lugar”, sem qualquer sustentação ou correspondência numa elaboração intelectual própria. 
Num plano puramente “literário”, portanto, antiglobalistas tupiniquins representam bonecos de ventríloquo repetindo ideias alheias que não possuem qualquer embasamento na realidade nacional, muito menos no contexto da atividade diplomática de um país que está praticamente excluído das grandes cadeias de valor da grande interdependência econômica global, e que precisa ainda lugar para superar fortes tendências à introversão e ao espírito mercantilista que ainda permeia sua política comercial e sustenta sua política industrial. O antiglobalismo jabuticabal é, desse ponto de vista “literário”, uma aberração total no quadro de um universo conceitual que deveria apoiar sua ação diplomática e a atividade dos seus profissionais da diplomacia, que são, como já dito, “geneticamente” globalistas.
Em face de tamanha aberração, um “Manifesto Globalista” como o presente texto nem precisaria se apresentar como uma “crítica da razão pura” do globalismo, nem como uma “crítica da razão prática” do antiglobalismo, pois este é inconsistente, irrealista, ou simplesmente absurdo, em seus próprios termos. Como um país insuficientemente inserido nas grandes correntes da modernidade e da economia mundial, como é o Brasil, poderia ser antiglobalista? Como poderia suas elites dirigentes – quaisquer que sejam elas, as políticas, os donos do capital, os intelectuais formadores da opinião pública – poderiam pretender unir os destinos do país à pequena tribo de nacionalistas de extrema-direita que atuam no sentido de desmantelar a ordem mundial criada no pós-guerra e refluir as políticas nacionais para o ambiente estreito das fronteiras domésticas? A recusa do multilateralismo, como princípio fundador da diplomacia contemporânea, não é apenas ridícula, ela é sobretudo inoperante e, mais que tudo, inútil, em vista de todos os compromissos já existentes no plano prático.

5. Posição dos globalistas universalistas em face dos antiglobalistas nacionalistas 
À diferença dos antiglobalistas, os globalistas – como este que aqui escreve – não lutam para alcançar os fins egoístas e os interesses exclusivos de uma concepção territorialista de nação, ou para realizar os objetivos estreitos de uma ideia excludente de pátria. Eles se atêm a um conceito mais amplo de interesse coletivo, que não elude noções básicas do pensamento liberal em economia e em política, ou seja, individualismo e ampla defesa das liberdades democráticas, e focam não apenas em metas do momento presente, para um determinado país ou Estado-nacional, mas proclamam um visão vinculada a aspirações mais amplas, que representam, simultaneamente, o futuro da humanidade. À diferença, porém, do nascente liberalismo político do século XIX, os liberais globalistas da atualidade se pautam em muito do que proclamou o grande intelectual da diplomacia brasileira, José Guilherme Merquior, notadamente em sua última grande obra: Liberalism, Old and New (1991). Merquior sabia reconhecer a tensão já detectada desde o século XIX entre os impulsos libertários e os ímpetos igualitaristas, expressas nas correntes políticas contemporâneas. Como ele resumiu ao final desse livro: 
Como foi observado por alguns distintos sociólogos como [Raymond] Aron ou [Ralph] Dahrendorf, a nossa sociedade permanece caracterizada por uma dialética contínua, embora cambiante, entre o crescimento da liberdade e o ímpeto em direção a uma maior igualdade – e disso a liberdade parece emergir mais forte do que enfraquecida. (O Liberalismo, antigo e moderno. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1991; tradução do original em inglês por Henrique de Araújo Mesquita; p. 223)

Tal postura não tem praticamente nada de nacionalista, e muito menos de antiglobalista, mas representa o espírito do pensamento liberal, como expressão do mais puro universalismo filosófico, ou seja, tudo o que se contrapõe ao nacionalismo estreito defendido pelos antiglobalistas contemporâneos, que nada mais são do que os atuais herdeiros dos antigos nacionalistas, que produziram as grandes catástrofes do século XX. Mas não só do século XX, antes mesmo isso ocorria, como refletido nas obras de pensadores, romancistas, ativistas políticos de todos os matizes e de várias épocas.
Não é preciso remontar à famosa frase de Samuel Johnson, que ainda no século XVIII, rejeitava o patriotismo – a forma mais extrema de nacionalismo – como sendo “o último refúgio dos canalhas”, para rejeitar as formas mais extremas de exclusivismo nacional. O grande romancista russo Leon Tolstoi, assim como sua compatriota Emma Goldman, ativista da causa feminista e anarquista como ele, eram, nos albores do século XX, declaradamente antinacionalistas. Ao final da Grande Guerra, já distinguido como o grande cientista da relatividade, Albert Einstein, ao ser interrogado sobre sua nacionalidade respondeu: “Pela herança eu sou um judeu, pela cidadania um suíço, e por formação um ser humano e apenas um ser humano, sem qualquer vínculo especial a qualquer estado ou entidade nacional de qualquer tipo.” Dez anos depois, novamente questionado sobre se sentia mais como alemão ou judeu, proclamou ser contrário a qualquer tipo de nacionalismo, mesmo sob o disfarce de patriotismo: “Eu me considero um homem. O nacionalismo é uma doença infantil, o sarampo da humanidade”. 
George Orwell, um socialista antiautoritário, se expressava ao final da Segunda Guerra Mundial em termos contundentes contra o nacionalismo em suas “Notas sobre o nacionalismo” (1945). Mais perto da nossa época, o velho semanário liberal The Economist se perguntava, em seu editorial de 19 de novembro de 2016, quando da eleição de Donald Trump à presidência dos Estados Unidos, a propósito do seu grito de guerra de America First, se ele não era o “último recruta de um perigoso nacionalismo”. Estabelecendo uma comparação entre Trump e Ronald Reagan, que também tinha prometido recuperar os EUA, depois da patética presidência de Jimmy Carter, o editorial da Economist dizia: 
But there is a difference. On the eve of the vote, Reagan described America as a shining “city on a hill”. Listing all that America could contribute to keep the world safe, he dreamed of a country that “is not turned inward, but outward—toward others”. Mr Trump, by contrast, has sworn to put America First. Demanding respect from a freeloading world that takes leaders in Washington for fools, he says he will “no longer surrender this country or its people to the false song of globalism”. Reagan’s America was optimistic: Mr Trump’s is angry. (…) Civic nationalism appeals to universal values, such as freedom and equality. It contrasts with “ethnic nationalism”, which is zero-sum, aggressive and nostalgic and which draws on race or history to set the nation apart. In its darkest hour in the first half of the 20th century ethnic nationalism led to war. (“The new nationalism”, The Economist, November 19th 2016, ênfase agregada; link: https://www.economist.com/leaders/2016/11/19/the-new-nationalism)

Sintomaticamente, os antiglobalistas brasileiros, em sua adesão doentia, não aos Estados Unidos apenas, mas ao governo e à personalidade de Trump em particular, também subscrevem às mesmas ideias retrogradas e agressivas desse nacionalismo rastaquera e a um antiglobalismo tão bizarro quanto surrealista, pois que construindo um monstro metafísico a partir do multilateralismo contemporâneo, que eles se propõem combater com a sanha doentia de novos cruzados, na verdade com as armas enferrujadas e os slogans ridículos de um novo “exército de Brancaleone”. Como diria Marx, em seu famoso Manifesto, eles se prendem a velhos grilhões reacionários, não têm nenhum mundo a ganhar e pretendem fazer girar para trás a roda da História.
De minha parte, termino meu pequeno manifesto dando entusiasticamente três vivas ao globalismo! 

Paulo Roberto de Almeida



Brasília, 15 de fevereiro de 2020