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quarta-feira, 12 de agosto de 2020

Alinhamento com Trump não dá ganhos e tem custos - Otaviano Canuto

Alinhamento com Trump não dá ganhos e tem custos 

Otaviano CanutoSenior fellow do Policy Center for the New South
Entrevista a Claudio Conceição e Solange Monteirodo Rio de Janeiro
Do ponto de observação alcançado pelos vários cargos que já exerceu – que inclui de secretaria no Ministério da Fazenda do governo Lula a diretor do FMI e vice-presidente do Banco Mundial – o sergipano Otaviano Canuto vê com preocupação, mas parcimônia, os efeitos da pandemia de Covid-19. Avalia que a recuperação da economia mundial não será completa – desenhando um formato de raiz quadrada –, e que deixará alguns desafios importantes a descoberto, como a falta de universalização do acesso à saúde na maior economia mundial, fortemente afetada pelo novo coronavírus. De sua casa em Washington, de onde conversou pela internet com a Conjuntura Econômica, Canuto revelou sua preocupação com o futuro da política externa brasileira sob o contexto de alinhamento com o governo Trump, e com a capacidade do país de reverter a deterioração de sua imagem quanto ao trato com a Amazônia, no momento em que o mercado financeiro mundial passa a valorizar diretrizes ambientais em sua tomada de decisão. “Tínhamos tudo para ter os bônus de mostrar ao mundo nossa contribuição para o problema da mudança climática”, afirma.
Conjuntura Econômica — Até o momento, a política exterior do governo Bolsonaro tem sido carente de parcerias, limitando-se a sinalizar alinhamento com o governo de Donald Trump. Quais as chances de Trump sair vitorioso nas urnas, e que implicações terá ao Brasil caso o presidente norte-americano não se reeleja?
Acho que a postura de Trump em relação à pandemia vai cobrar um preço muito elevado. Há uma identificação por parte da população de que as coisas poderiam ter sido melhores se a liderança de Trump tivesse sido exercida de forma a reconhecer e ajudar a coordenar o esforço nacional de enfrentamento da pandemia. Como Bolsonaro, ele fez a aposta na pouca significância da pandemia e tentou se isentar das inevitáveis consequências das políticas de distanciamento social sobre a atividade econômica. Essa aposta aparentemente não deu retorno, como também me parece que não deu certo para o presidente Bolsonaro. Mas Bolsonaro tem sido compensado pela simpatia da massa de trabalhadores que acabou recebendo o auxílio emergencial. Já ouvi uma brincadeira sobre isso, de que a oposição no Congresso salvou Bolsonaro (ao propor um auxílio mais alto do que o sugerido inicialmente pelo governo). No caso do Trump, entretanto, não funcionou, e o estado da arte foi tal que o episódio da morte de George Floyd, e todos os levantes que se seguiram, catalisou uma insatisfação muito grande de boa parcela da população com a situação de concentração de renda. Essa insatisfação também esteve subjacente à vitória de Trump em 2016 contra o establishment político, só que agora, intensificada pela agonia do impacto da pandemia, tem tomado a direção contrária, de dar suporte a Joe Biden.
Em 2016, eu, como muita gente, queimei minha língua sobre o resultado das eleições, acompanhando madrugada adentro a apuração e o espanto com o resultado da eleição. Quero crer que, naquele momento, houve o pecado da arrogância dos democratas e de Hillary Clinton, que não foi aos counties mais duvidosos nos estados em que os democratas já tinham como ganhos. Trump estava bem calçado na orientação com big data, e desafiou os republicanos, indo aos counties democratas com um discurso que acabou motivando os eleitores dele a saírem de casa, e os potenciais eleitores dos democratas a ficarem no sofá. E aí ele ganhou naqueles counties, ganhou os estados, e virou presidente tendo menos votos, em termos absolutos, do que a Hillary.
Aquela foi uma demonstração. O Obama já tinha utilizado bem o big data – segundo ele próprio, não para manipular a opinião, mas para saber quais questões estavam na cabeça do eleitorado, que é um uso legítimo. Já no caso do pessoal da Cambridge Analytica, que deu suporte ao Trump, foi com uma posição de incitar com mensagens direcionadas à sua clientela potencial. Aparentemente, esse esquema também foi usado com sucesso em Trinidad e Tobago, um dos países com os quais trabalhei muito. Esse caso, inclusive, é tema de um documentário, Privacidade Hackeada, disponível no Netflix. Lá, a Cambridge Analytica teria enviado mensagens de tal maneira que induziu os trinidadianos de origem indiana a ir votar – como em outros países do Caribe e do Norte da América do Sul, em Trinidad e Tobago há uma associação partidária com grupos étnicos –, e os negros a cruzarem os braços. E houve uma surpresa eleitoral. Hoje não sabemos em que extensão o big data está sendo usado, e que diferença pode fazer. Mas espero que a lição tenha sido aprendida. Além do fato de que a própria pandemia muda o modus operandi da eleição, já que não tem a presença física de candidatos fazendo campanha nos counties. Até agora, a julgar pelas pesquisas, e pesquisas micro que acompanho por municípios, aparentemente Biden tem vantagem.
E como ficaria o governo Bolsonaro com uma vitória de Joe Biden?
No caso do Brasil, é um erro a tentativa de alinhamento, e de percepção do resto do mundo de alinhamento automático, como fez Bolsonaro. Não lhe dá ganhos, e tem custos. O Brasil ganha quando se pauta como países tal qual Austrália e Canadá. Outro exemplo é o de Singapura, ilha no sul da Malásia. É um país rico, de alto nível, multiétnico, composto por descendentes de chineses, malaios e indianos, com regras de equidade étnica. Seu fundador e primeiro-ministro por três décadas, o ditador Lee Kuan Yew, reconheceu certa vez no talk show de Charlie Rose que Singapura só fez sua reforma depois de consultar Deng Xiaoping. Precisava da anuência da poderosa China, até porque a China inclui em sua área de influência os lugares onde a diáspora chinesa tem presença marcante. E Deng Xiaoping autorizou, porque viu aquilo como um experimento cujo sucesso o incentivou a fazer as reformas que levaram a China aonde está. Mas por que estou lembrando isso? Porque mesmo com essa estreita ligação com a China, o atual primeiro-ministro de Singapura fez questão de declarar que, no caso da disputa entre China e Estados Unidos, não estaria alinhado a nenhum deles, pois o país quer ter relações com ambos e se beneficiar do lado benigno dessas relações. Frente a esse exemplo, faz sentido o Brasil ter alinhamento automático? Em qualquer alinhamento subordinado, os custos são maiores que os benefícios. Não é para fazer alinhamento com os Estados Unidos, e nem com a China, mas buscar o que se pode ter de melhor com cada um.
Essa neutralidade era uma característica da diplomacia brasileira até há pouco…
Exatamente. E por conta disso conseguimos ter uma voz e um papel acima do nosso peso. A atual orientação do governo tem uma postura equivocada em termos de custo-benefício para o país. Veja a atitude do presidente em relação à Amazônia. Isso está solapando as possibilidades de obtenção de acordos comerciais, inclusive, porque demos força para os argumentos dos protecionistas agrícolas na Europa, e assim por diante, em detrimento do que poderia ter sido um acordo benéfico. Não por acaso esse argumento ambiental é o que serviu para parcela do Congresso americano chutar a possibilidade de melhora nas condições de comércio entre Brasil e Estados Unidos.
Hoje o governo aposta na atração de investimento estrangeiro em concessões de infraestrutura para impulsionar o crescimento. Considera que o posicionamento do governo quanto à questão ambiental pode atrapalhar esses planos?
Ele não vai ajudar. Veja, temos que reconhecer que, por um lado, os rendimentos de papéis no Brasil vão continuar baixos. E se havia uma tendência subjacente nos países avançados, Estados Unidos e na Europa, de estagnação secular, implicando juros reais de médio e longo prazo baixos, a tentação será grande de serem canalizados para projetos como os planos do Brasil, desde que os aspectos regulatórios sejam vistos como devidamente apropriados. Mas estamos em uma situação intermediária, em que a confiança plena nessa direção não está estabelecida. Até agora o que observamos foi a saída das aplicações em juros no Brasil sem ter voltado para equity. Só temos os nacionais migrando para o mercado de ações, mas quanto aos de fora, nossos fluxos continuam negativos, pois eles só vêm depois de ter se estabelecido alguma confiança.
Nesse contexto, a atitude em relação à Amazônia não ajuda. Até porque também é preciso observar essa expansão na margem de fundos verdes, ou fundos financeiros que seguem diretrizes ambientais, sociais e de qualidade de governança. Eles estão crescendo em atração. Ainda não a ponto de fazer a massa grande de riqueza financeira aceitar rendimento menor em troca de ter segurança quanto à obediência a padrões de governança, meio ambiente e impacto social. Mas é uma tendência.
Recentemente o governo buscou compensar esse problema, através do vice-presidente Mourão, com o anúncio do banimento das queimadas por um período. Mas, até agora, a iniciativa anunciada não foi suficiente para convencer boa parte do resto do mundo de que a atitude do Brasil em relação à Amazônia voltou a ter a relativa responsabilidade que teve no passado. Teria sido melhor se o governo escolhesse atitudes mais concretas, inclusive de demissão do ministro do Meio Ambiente, e de reforçar as agências de fiscalização. Ou seja, desfazer o que foi desfeito pelo governo Bolsonaro até a entrada em cena de Mourão.
Este ano, entre março e maio foram publicados 195 atos relacionados ao tema ambiental, contra 16 no mesmo período de 2019. Isso tem levantado preocupação de empresários, que se reúnem para reclamar uma mudança de postura, afirmando ameaça aos seus negócios…
Pois é. Depois a gente se espanta: cadê o crescimento que não vem? O ganho em temos de incorporação de área da Amazônia é ínfimo em relação à perda no resto. Teríamos tudo para garantir um bom posicionamento na questão da mudança climática. Nossa matriz energética é limpa. Mesmo com as dificuldades que teremos no futuro com o lado hidrelétrico, para o que a devastação da Amazônia joga contra, pois tende a mudar o regime climático prejudicando não apenas a agricultura no Sudeste brasileiro como o regime pluviométrico e a capacidade das hidrelétricas de fornecer energia. Não fosse por isso, definitivamente a gente poderia apresentar um país com matriz energética limpa, expandindo energia eólica, matriz de biocombustíveis bem mais saudável do ponto de vista ambiental do que a que operou nos Estados Unidos com base no milho. Tínhamos tudo para ter os bônus de mostrar para o mundo nossa contribuição para o problema da mudança climática.
Se a recuperação econômica mundial não voltar ao nível pré-crise sanitária como prevê – sua estimativa é de uma recuperação no formato de raiz quadrada –, teremos o problema do desemprego estrutural acentuado, especialmente em países como o Brasil, em que a informalidade é alta. O auxílio emergencial tem amortizado esse efeito no curto prazo, mas como lidar com esse impacto daqui para a frente?
Acho que há dois legados importantes que temos que colocar na linha de frente. Um deles é o de que a preservação do auxílio emergencial é insustentável, no mínimo, pelo custo fiscal. Seria preciso um remanejo tamanho de orçamento que, se hoje a gente tem problemas com escassez de recursos públicos dado o padrão de gastos para as áreas de investimento, não parece correto gastar tanto. Mas tampouco devemos voltar aonde estávamos, apenas com o Bolsa Família e o conjunto de outros programas de seguro social, cuja eficácia temos dúvida de que seja tão forte quanto a do Bolsa Família. Idealmente, vamos chegar no final da pandemia com um programa de transferências mais amplo em termos de massa atingida, e que vai se constituir em uma espécie de renda básica – se não é universal, para uma parcela maior da população brasileira –, a partir da racionalização de programas hoje vigentes. Tem outro lado positivo desse aspecto que foi a ampliação do cadastro da população. Imagina o pesadelo de tentar fazer um esquema de transferência de renda em um país como a Nigéria, em que você tem quase 90% da população informal sem conta bancária. Embora com toda a agonia que se assistiu nas filas e das pessoas que ainda estão fora do sistema, estendemos esse cadastro, que pode ser utilizado no futuro para coleta de informações, aferição de carências de diversas parcelas do público da parte mais inferior da pirâmide de renda, e pensar políticas mais voltadas para ela. Em outros países do mundo, esse legado estará no aprimoramento do sistema de proteção social. Nos Estados Unidos, por exemplo, quero crer que a pandemia vá favorecer a pressão em relação ao problema de universalização do acesso à saúde. É incrível que o país mais poderoso do mundo, a maior economia do mundo, com renda per capita alta, tenha uma parcela substancial da população sem acesso a nenhum seguro-saúde. Na Europa, mesmo o Reino Unido, em que o sistema de proteção social é mais tímido que em países como França e Alemanha, há um seguro-saúde universal.
Ainda no campo assistencial uma segunda coisa importante como legado é fazer algo para integrar as favelas. A importância de melhorar as condições de saneamento e habitabilidade nas favelas é mais alta por conta das externalidades para quem está fora. Supondo-se que agora possamos ter problema com outros tipos de pandemia, não é inteiramente seguro o pessoal que mora em condomínios dizer que pode se isolar. A possibilidade de contágio nas vias urbanas realça a relevância para o conjunto da sociedade de ter uma atitude menos negligente com as condições sanitárias nas favelas.
No caso do desafio de reinserção da população no mercado de trabalho, considera adequada a diretriz defendida pelo governo, de ampliar a flexibilização permitindo a formalização a partir do contrato por horas trabalhadas?
Quero crer que essa flexibilização vai ajudar na incorporação. Temos uma realidade em que a configuração de tecnologia e mercado de trabalho não é como aquela durante o pós-guerra, em que você conseguia se isolar em sindicatos, brigar e ganhar. Mesmo nos países europeus, que têm sistema de proteção social forte, a criação de emprego na margem tem se revelado difícil, porque quem está dentro está protegido, mas ninguém mais consegue entrar. A ponto de os países escandinavos evoluírem na direção da chamada flex security, de prover seguridade através de mecanismos de renda básica que dão uma base de negociação por parte do assalariado, mas sem que esses mecanismos estejam associados a empregos específicos.. A realidade é que a própria revolução tecnológica está tornando difícil essa ideia de trabalhos suficientemente homogêneos e regulares. Para quem consegue estar empregado, o trabalho vai ser flexível, cambiável do ponto de vista tecnológico. Nos Estados Unidos essa realidade se impõe mais facilmente pelo regime de mercado de trabalho já ser mais flexível. O esquema promovido pela França para manutenção de emprego na pandemia, por exemplo, provendo crédito às empresas e associando-o à manutenção do emprego, foi poderoso.. Só que é temporário, no sentido de que se as mudanças resultantes da pandemia forem longas, essas vagas mantidas serão empregos zumbis. Sequer adianta forçar a barra ampliando o crédito, porque em determinado momento essas empresas vão ter que demitir funcionários que não são mais justificáveis do ponto de vista da operação do seu negócio. Esse fato, junto com a tendência à digitalização de processos, vai impor novos desafios em termos de qualificação da mão de obra – não só de requalificação, de educação, mas de uma realidade de relações de trabalho que será mais propensa a coisas como Uber do que como Ford. Nesse sentido, a flexibilização trabalhista é uma questão de imposição de realidade.
Um dos efeitos que considera da pandemia é uma “desglobalização” relativa. Como isso conversa com o conflito Estados Unidos x China, e como considera que essa tendência evoluirá com Biden ou Trump na presidência dos Estados Unidos?
Tem dois movimentos que valem a pena diferenciar. O primeiro, da lógica empresarial que rege as cadeias de valor, de fato pode ser que em alguns casos a tendência a se buscar um seguro contra riscos acabe tendo mais força do que antes em relação à eficiência. Mas isso tem limites. Se colocar toda a cadeia no espaço americano para se proteger de choques na China, ou tsunamis no Japão, pagará um custo muito grande, pois o sucesso global da China foi a redução de custos e aumento de eficiência. E adivinhe: você fica vulnerável a choques nos Estados Unidos. Veja, a Apple continua querendo operar na China. Ela ganha dinheiro lá, parte de sua linha de produção que é feita na China a favorece em termos de custos, na concorrência com produtos não Apple do lado de fora da China. Ela não vai querer mudar.
Onde, sim, pode haver mais mudanças, é do lado das políticas nacionais. Estados com setores públicos querendo garantir segurança e abastecimento em relação a áreas que consideram estratégicas. No Marrocos, o rei declarou que quer aumentar sua capacidade de produção própria de equipamentos médicos e remédios. O presidente da França, Emmanuel Macron, por sua vez, disse que desenvolveria setores essenciais estratégicos. A dúvida é saber até onde vai essa linha demarcatória. É por isso que chamo essa tendência de desglobalização relativa, pois nem tudo que aconteceu nos últimos 30 anos será desfeito. Mas, em algumas áreas, será inevitável que a rivalidade se acentue, até pela própria lógica de poder que rege a gestão pública de países, a alta tecnologia nas áreas de comunicações, de eletrônica, de bioquímica.
Isso também passa no caso dos Estados Unidos, independentemente de quem ganhe a eleição americana. Mesmo Biden, se eleito, deverá ser mais incisivo em relação à disputa tecnológica com a China do que foi Obama, por exemplo. Acho que não tem como ser diferente, pois agora a China não está mais vindo de trás. Não é mais uma questão de usar tecnologias que já existem, abrir espaço para investimento de americanos, japoneses, taiwaneses, aumentar renda e reduzir pobreza. Agora a China está disputando o topo das cadeias globais de valor, e aí a coisa muda de figura. Agora, eu diria que no caso de Biden seria uma postura por uma busca plurilateral, tal como foi com Obama, diferentemente do nacionalismo baseado apenas nos Estados Unidos, como no caso Trump. Até pela aposta equivocada de perder aliados. Ora, se quer estabelecer critérios de segurança a socializar a penetração ou participação de tecnologias chinesas na Europa, você negocia em conjunto com os europeus, e não exigindo que os europeus escolham, ou China, ou eu, como fez Trump.
A pandemia parece ter acentuado também a crise entre organismos multilaterais. Já vínhamos com problemas na OMC, agora os Estados Unidos peitaram a OMS, e a urgência na obtenção de insumos médico-hospitalares fez com que a regra do “farinha pouca meu pirão primeiro” se sobressaísse a iniciativas supranacionais de ajuda a países mais vulneráveis. O que podemos esperar daqui para frente?
Se a crise servir de catalisador para a reavaliação de postura das lideranças, podemos tentar consertar. Mas o quadro, num futuro imediato, é ruim, porque a gente ainda não tem uma forma acabada para responder às mudanças que aconteceram desde que o atual sistema foi configurado. Deixe-me explicar, usando como exemplo o campo financeiro. Nos anos em que fui vice-presidente no Banco Mundial, e diretor-executivo no FMI, vi isso de perto. Na crise financeira global, os países avançados sofreram o baque e fizeram um chamamento aos Brics para fazer parte do jogo – o que correspondeu à mudança do G7, G8 para o fortalecimento do G20, antes constituído por ministros de finanças e banqueiros centrais, tornando-se um grupo de chefes de Estado. Os Brics compareceram, particularmente a China, mais aí surgiu a demanda: seremos doadores de recursos, mas queremos reconhecimento disso nas cotas do banco. Pelos critérios usados no Banco Mundial para definir as parcelas de capital, a China deveria ficar com uma fatia maior que a do Japão, e já seria a segunda. O Japão não autorizou, nem os europeus, estes porque perderiam cadeiras. Os chineses entenderam o recado de que a estrutura não iria mudar o suficiente, e então criaram outros bancos. Primeiro o banco dos Brics, no qual os demais membros disseram não querer o tamanho de instituição que a China gostaria. Então a China aceita fazer um banco mais comedido, e cria outro, o Banco Asiático de Investimento em Infraestrutura. No caso das instituições financeiras de desenvolvimento, já há uma pluralidade, uma convivência que pode ser mais ou menos benigna. Por exemplo, nas Filipinas, um projeto de infraestrutura do Banco Mundial de gestão em inundações em Manila foi acionado pelo banco chinês, interessado em se unir. Foi ótimo, porque os filipinos tiveram mais dinheiro, e o banco asiático teve a oportunidade de ter na carteira um projeto ótimo e aprender com ele.
Esse é um exemplo concreto de um processo que tem que ser feito com a diversidade de instâncias. Mas está claro que essa não é uma solução para todos os casos. No caso da OMC, no que diz respeito a negociações comerciais, já não estava operando. Acho que haveria uma maior probabilidade de êxito em um caminho plurilateral. A busca do sufrágio universal resultou em vulnerabilidade muito grande dos pactos negociados, frente à possibilidade de um dos 164 membros dizer não. Isso foi tão forte que, não à toa, a Rodada Doha foi um fracasso completo. O sufrágio universal serve em alguns casos, como na ONU, mas para ação multilateral é complicado. E qual forma deverá tomar? Provavelmente, de uma colcha de retalhos. Não no estilo Trump, de lei da selva no lugar da regra da lei, impondo-se e ameaçando todos. Mas acho que vamos evoluir, independentemente das diversas áreas, numa convivência múltipla de instituições, de arranjos, de acordos, cada uma delas com estruturas de poder diferentes, refletindo a multipolaridade da estrutura de poder da realidade do nosso tempo.

O Brasil no cenário internacional e o futuro da diplomacia brasileira - Paulo Roberto de Almeida

Como sempre faço, cada vez que recebo um convite para alguma palestra – seja presencial, seja online, como é o hábito agora, desde o início da quarentena provocada pela pandemia –, costumo preparar um texto-guia, que nunca é lido, mas que oferece aos interessados alguma ideia mais elaborada, e mais corretamente formulada, pois que escrito com maior atenção, do que uma exposição oral, muito rápida, em tom coloquial, e sem tempo disponível para aprofundar os temas objeto do evento. Assim faço, e assim fiz para o convite que recebi poucas semanas atrás: 


[CONVITE] VII Simpósio de Direito Internacional da UFC
27/07/2020

Ilustre Professor Paulo Roberto de Almeida,

O Grupo de Estudos em Direito e Assuntos Internacionais da Universidade Federal do Ceará (GEDAI-UFC) vem por meio deste, convidá-lo, na condição de palestrante, para a 7ª edição do Simpósio de Direito Internacional da Universidade Federal do Ceará, que irá ocorrer de maneira online nos dias 19 e 20 de agosto de 2020.

Será uma honra se pudermos contar com vossa participação como um dos palestrantes do minicurso "O Brasil no cenário internacional e o futuro da diplomacia brasileira", a ser realizado de modo virtual no dia 19 de agosto, das 16h30m às 18h. 

Dentre os palestrantes até agora confirmados, temos os professores Michel Prieur (Universidade de Limoges)Alexandre Turra (Catédra UNESCO/USP)Jamile Mata Diz (Catédra Jean Monnet-UFMG), Leonardo Pasquali( Universidade de Pisa/ Catedra Jean Monet) Agnès Michelot (Presidente da Sociedade Francesa de Direito Ambiental e Professora da Universidade la Rochelle), dentre outros nomes. 

Na programação do SDI, organizamos palestras, minicursos e apresentação de trabalhos acadêmicos a ter como público alvo estudantes universitários, profissionais do Direito e atuantes em áreas que envolvam assuntos internacionais. 

Ficamos no aguardo e estamos à disposição para viabilizar esse oportuno e necessário espaço de conversa.
Com melhores cumprimentos,

Grupo de Estudos em 
Direito e Assuntos Internacionais - GEDAI
Universidade Federal do Ceará. Faculdade de Direito
Rua Meton de Alencar, s/n - Centro - Fortaleza - CE - CEP 60035-160


Para corresponder à distinção do convite, preparei este trabalho: 

3729. “O Brasil no cenário internacional e o futuro da diplomacia brasileira”, Brasília, 8 agosto 2020, 13 p. Ensaio elaborado como texto de apoio a palestra na 7ª edição do Simpósio de Direito Internacional da Universidade Federal do Ceará, a convite do Grupo de Estudos em Direito e Assuntos Internacionais da UFC (GEDAI-UFC) no dia 19 de agosto, das 16h30m às 18h. 


O Brasil no cenário internacional e o futuro da diplomacia brasileira


Paulo Roberto de Almeida
[Objetivo: palestra na 7ª edição do Simpósio de Direito Internacional da Universidade Federal do Ceará; finalidade:Grupo de Estudos em Direito e Assuntos Internacionais da UFC (GEDAI-UFC) no dia 19 de agosto, das 16h30m às 18h]

Sumário: 
1. Qual é o cenário internacional atual?
2. Como o Brasil se situa nesse cenário?
3. Quais foram, quais são, atualmente, os posicionamentos da diplomacia brasileira?
4. Os sete pecados capitais da diplomacia bolsolavista
5. A diplomacia brasileira tem futuro? Certamente, mas ainda não sabemos qual será 

1. Qual é o cenário internacional atual?
Depois de meio século de bipolaridade estrita entre as duas superpotências, na longa conjuntura da Guerra Fria – quando os Estados Unidos, líder indisputável da ordem política e econômica do pós-guerra, tinham como seu único opositor a União Soviética, com a China ainda tateando sob o maoísmo demencial –, o cenário geopolítico contemporâneo apresenta-se mais dividido do que nunca, depois de uma breve fase, nos anos 1990, de aparente supremacia unipolar e solitária dos EUA. Hoje, a ainda primeira potência econômica, militar, tecnológica e financeira, tem pelo menos dois concorrentes geopolíticos, a China ressurgente, a Rússia novamente desafiadora, a União Europeia colocada numa situação de marginalidade relativa nos grandes jogos do poder, diversos outros atores de peso em contextos regionais – como o Irã, ou a Alemanha – ou até mundial, como talvez a Índia, e cenários diversificados envolvendo economias avançadas e países emergentes, no campo político ou econômico. 
(...)

O ensaio completo pode ser visto neste link da plataforma Academia.edu: 

https://www.academia.edu/43844245/O_Brasil_no_cenario_internacional_e_o_futuro_da_diplomacia_brasileira_2020_

No momento oportuno divulgarei o link para o evento.

sábado, 18 de julho de 2020

O globalismo e seus descontentes - Paulo Roberto de Almeida


O globalismo e seus descontentes: notas de um contrarianista – Paulo Roberto de Almeida



O artigo a seguir é uma participação especial de Paulo Roberto de Almeida, doutor em Ciências Sociais pela Université Libre de Bruxelles, mestre em Planejamento Econômico pela Universidade de Antuérpia e licenciado em Ciências Sociais pela Université Libre de Bruxelles


  1. Fixando os termos do debate: a contracorrente do pensamento único
Todo processo social, todo movimento econômico, toda tendência política, sendo o produto da ação consciente ou inconsciente, deliberada ou involuntária, de indivíduos, de grupos humanos ou de qualquer entidade organizada burocraticamente, despertam naturalmente a reação adversa dos mesmos entes ou personagens, quando os processos, movimentos ou tendências contrariam benefícios consolidados, situações estabelecidas, ganhos reais ou esperados ou quaisquer outras vantagens e privilégios existentes ex ante ou simultaneamente à percepção de uma ruptura do status quo. Trata-se de fenômeno secular, senão milenar, ou seja, forças sociais emergentes provocam, inevitavelmente, sua cota de descontentes, os seus frustrados, os seus órfãos, os seus perdedores.
A revolução industrial produziu o seu quinhão de luddistas, os revoltados contra a modernização da tecelagem, com alguma destruição de teares mecânicos até que se conseguisse empregar os anacrônicos dos teares manuais nas fábricas movidas a caldeiras a vapor. A lâmpada elétrica deixou quase todos os fabricantes de velas sem crescimento da demanda e, logo, sem clientes de qualquer tipo. O automóvel aposentou cavalos, estrebarias, recolhedores de esterco nas cidades e vários outros servidores cavalares. O computador desempregou antigas datilógrafas e operadores de máquinas de calcular, presentes antigamente em quase todas as corporações e escritórios de governo. Vários outros exemplos poderiam ser citados, aliás indefinidamente.
Não foi diferente com a globalização, embora ela seja um fenômeno mais do que antiquíssimo, propriamente existente desde a pré-história, como já revelado no livro de Nayan Chanda: Bound Together: How Traders, Preachers, Adventurers, and Warriors Shaped Globalization (New Haven: Yale University Press, 2007). Mas, após décadas de alternativas antimercado, sob o socialismo real, a nova onda da globalização trouxe consigo certo número de perdedores, como resultado da nova divisão internacional do trabalho e da deslocalização de empresas e investimentos. Ela criou os descontentes da globalização, como já tinha alertado muitos anos atrás o economista indiano Jagdish Bhagwati: In Defense of Globalization (New York: Oxford University Press, 2004; edição brasileira: Em Defesa da Globalização: como a globalização está ajudando ricos e pobres; Rio de Janeiro: Elsevier-Campus, 2004).
Com o globalismo, ocorre o mesmo: assim como a expansão das economias de mercado, supostamente capitalistas (mas não se deve confundir as duas coisas, como poderia lembrar o historiador Fernand Braudel), produziu a sua cota de altermundialistas, mais conhecidos como antiglobalizadores, o monstro metafísico do globalismo também produziu o seu pequeno grupo de antiglobalistas, como é natural existir em qualquer fenômeno social, como já adiantado no primeiro parágrafo. Os antiglobalistas são, assim como os luddistas da globalização, seres deslocados pelo multilateralismo contemporâneo, aspirando defender antigas concepções de tempos passados, o nacionalismo estreito do período pré-onusiano, o bilateralismo estrito dos antigos acordos de comércio e navegação, e que pretendem, parafraseando Marx, fazer rodar para trás a roda da História.
Os conceitos e argumentos acima já balizam o espírito sob o qual foi redigida esta nota sobre os inimigos do globalismo, que eu considero um exército brancaleônico de templários, que estaria mais à vontade no terreno mitológico dos unicórnios e das sereias, ou seja, seres bizarros que pretendem se contrapor às correntes de vento ou às marés dos oceanos. Não tenho nenhuma hesitação em revelar desde já meu julgamento sobre esse patético ajuntamento de novos cruzados, depois de já ter enfrentado as hostes mais caóticas de antiglobalizadores, como exemplificado em meu livro Globalizando: ensaios sobre a globalização e a antiglobalização (Rio de Janeiro: Lumen Juris Editora, 2011), pela simples razão que eu mesmo estou acostumado a nadar contra a corrente. A caução preliminar a ser introduzida aqui é a identificação de qual globalismo se está falando: a versão “paranoica” é a que se vai discutir aqui, se é que ela tem condições de persistir em um mundo aparentemente entregue a uma marcha irrefreável de conquistas científicas. Quanto ao globalismo “normal”, é propriamente patético constatar que se pretenda lutar, num ambiente diplomático, contra a essência fundamental do trabalho dos diplomatas, o ambiente natural de nosso ganha-pão diário.
  1. Nota pessoal do ponto de vista de quem pratica ativamente o ceticismo sadio
Independentemente do tema, assunto, questão ou problema que se apresente em face de minhas aventuras intelectuais aleatórias, sou um praticante ativo, desde a adolescência pelo menos, daquela atitude que foi, pela primeira vez, sintetizada, por um professor de arqueologia ao grupo de estudantes de ginásio que o visitava na USP, pelo conceito de “ceticismo sadio”. Ele explicava a postura como sendo feita de indagações sucessivas ao objeto em exame, ou seja, questionamentos, perguntas, exame acurado das origens e dos fundamentos do problema com o qual se confronta um pesquisador qualquer, o que até parecia inadequado para um “arqueólogo”, sempre pautado pelas evidências da geologia, paleontologia e outras vertentes das ciências naturais. Nunca esqueci a lição, e sempre a cultivei, inclusive instruído desde muitos anos antes pelas leituras de Monteiro Lobato, pois resolvi ater-me à modesta racionalidade desta regra básica no trabalho intelectual: apresentado a qualquer proposição, tese ou argumento no terreno das ciências sociais aplicadas e das humanidades, busque os fundamentos, anote as evidências empíricas, questione os dados, aprofunde a pesquisa antes de aderir a qualquer proposta ou opinião que se lhe apresente, por mais “racionais” ou “evidentes” que possam parecer essas proposições oferecidas para o seu “consumo”.
Devo, entretanto, alertar que a minha atitude cética em face de questões que me são apresentadas não é doentia, ou sistematicamente aplicada a todos os problemas em análise; ela apenas se manifesta de forma racional (pelo menos espero) e de forma compatível com os dados da questão em exame. Continuei aprofundando e refinando o meu “ceticismo sadio” ao longo de toda uma vida dedicada aos estudos e pesquisas nos meus campos de interesse intelectual, que vão de uma ponta a outra das ciências humanas e sociais (inclusive ciências naturais, paleontologia, biologia e outras áreas afins ou vinculadas). Pois foi armado da mesma atitude cética que fui apresentado, não muito tempo atrás, ao tal de antiglobalismo, um movimento para o qual minha atenção foi despertada no contexto de uma diatribe involuntária mantida com o autoproclamado “filósofo” Olavo de Carvalho, a quem eu comecei a chamar de “sofista da Virgínia”, quando eu sequer desconfiava que existisse qualquer tipo de problema com a sua suposta base conceitual, o globalismo, que sempre considerei como uma espécie de equivalente ao processo bem mais conhecido da globalização (termo que os franceses rejeitam, por anglofobia visceral, preferindo o conceito de mundialização, e o seu contrário, o altermundialismo). Vou relatar brevemente como foi essa confrontação, antes de voltar a tratar do globalismo e do antiglobalismo.
No segundo semestre de 2017 – tendo já concedido uma entrevista individual, um ano antes, sobre política externa e economia do Brasil a um novo grupo de mídia – fui solicitado pelo mesmo grupo, Brasil Paralelo, a conceder uma nova entrevista, via hangout, para um programa especial, desta vez sobre o processo de globalização e o conceito de globalismo. Concordei, uma vez que costumo atender essas demandas de caráter didático, colocando minhas pesquisas acadêmicas e minha experiência de vida a serviço de um círculo maior de interessados, e para tal preparei algumas notas, seguindo um roteiro feito pelos organizadores. Essas notas sumárias – “Globalismo e globalização: os bastidores do mundo”, disponíveis no blog Diplomatizzando (link: http://diplomatizzando.blogspot.com.br/2017/12/globalizacao-e-globalismo-como.html) – foram divulgadas no próprio dia da “entrevista”, que afinal revelou-se um “diálogo” com aquele a quem passei a chamar de “Rasputin de subúrbio”: Academia.edu (link: https://www.academia.edu/39178804/Globalismo_e_globalizacao_os_bastidores_do_mundo). No seguimento do “diálogo”, o dito sofista entendeu ser seu dever ofender-me sob diversos epítetos, no que foi seguido por uma horda de seguidores fanáticos, com aqueles impropérios escatológicos que também se tornaram doravante marca registrada do próprio guru da seita, e por ele aplicados a diversos militares do governo Bolsonaro.
Num sentido inverso ao de Buffon, meu “debate” involuntário com Olavo de Carvalho demonstrou como o “estilo faz o homem”, uma vez que ele ocupou-se de me ofender em seus canais próprios, sempre endossado pelos fundamentalistas de uma nova crença: o fantasma do globalismo, como registrei em nova postagem no Diplomatizzando (link: http://diplomatizzando.blogspot.com.br/2018/01/olavo-de-carvalho-o-estilo-faz-o-homem.html). Já enfastiado por esse entrevero surrealista e inútil, dei por encerrado esse exercício desprovido de qualquer charme e interesse num “dossiê” por meio do qual disponibilizei o conjunto dos materiais relativos ao assunto, disposto a não mais voltar ao tema: “Dossiê Globalismo: Brasil Paralelo e seu seguimento”, Academia.edu (http://www.academia.edu/35667769/Dossi%C3%AA_Globalismo_Brasil_Paralelo_e_seu_seguimento). Mas, admito, o assunto é tão aborrecido que não merece atenção.
  1. Globalização real e globalismo surreal: da física à metafísica
Venho agora ao objeto principal deste texto: o globalismo e os “anti”. Não creio ser necessário discutir qualquer aspecto real – inclusive porque ele não existe – do chamado “globalismo”, em vários trabalhos considerado um sinônimo virtual do processo de globalização, este sim abundantemente mapeado na literatura acadêmica e jornalística. Na verdade, o globalismo é geralmente considerado nas diatribes dos “anti” como um tipo particular de globalização, aquela produzida sorrateiramente nas fímbrias da governança global e que se destina, na concepção dessa tribo, a retirar soberania dos Estados nacionais e atribuir toda a potestade a uma “ordem global” dotada de características similares aos grandes organismos multilaterais da atualidade, dentre eles a ONU. Não é possível discutir aqui o tema da globalização, mas permito-me uma referência a um pequeno texto meu, no qual faço uma distinção entre a globalização real, de nível “micro”, e sua vertente “macro”: “Globalização micro e macro: o que é isso?” (blog Diplomatizzandohttp://diplomatizzando.blogspot.com.br/2018/01/globalizacao-economica-e-globalizacao.html).
A primeira forma, de caráter individual ou empresarial, considero a verdadeira globalização: impessoal, irrefreável, não administrada por qualquer poder ou Estado organizado, já que correspondendo justamente ao que Adam Smith chamou de “mão invisível”, o trabalho empreendido pelos agentes econômicos diretos visando objetivos privados absolutamente egoístas, mas não coordenados entre si. A segunda forma não deveria, normalmente, corresponder ao conceito de globalização, uma vez que comporta a ação de Estados e de organismos internacionais com vistas a ordenar e controlar esse processo, não administrável por nenhuma força identificada com um objetivo predeterminado, embora se acredite que ele possa ser objeto de normas e regulamentos instituídos por burocratas nacionais ou internacionais; ou seja, se poderia classificar a forma “macro” da globalização como um esforço de antiglobalização, ou pelo menos de contenção, esforços de controle, por parte de “planejadores sociais” dos efeitos mais evidentes – alguns nefastos para certas categorias sociais – desse processo irrefreável.
Vejamos agora o conceito de “globalismo”, que é praticamente, como já dito, um sinônimo de globalização. Contudo, aos olhos de certos adeptos das teorias da conspiração, ele assume um sentido ideológico, uma vez que costuma despertar reações de cunho soberanista ou nacionalista, que é aquilo que eu costumo chamar de “metafísica do antiglobalismo”. Tanto a esquerda quanto a direita alimentaram suas versões respectivas do antiglobalismo. Na visão da esquerda, mais identificada com os franceses de um conhecido movimento anti ou altermundialista, a globalização (ou mundialização) só trouxe desgraças ao mundo: pobreza, desigualdade social, destruição da natureza e dos recursos da biodiversidade, discriminação racial e de gênero, reforço dos “poderes do grande capital” contra os interesses dos trabalhadores (argumento mais utilizado nas denúncias dos sindicatos de países avançados contra a “deslocalização”, ou seja, os investimentos diretos em países periféricos, de baixos salários), enfim um conjunto de efeitos negativos que precisam ser ativamente combatidos pelos movimentos sociais.
 Estes de fato tentaram, durante vários anos, nas manifestações ruidosas dos anos 1990 e 2000, contra as reuniões das organizações de Bretton Woods (FMI e Banco Mundial), contra as rodadas de negociações do GATT e contra a própria OMC, contra as reuniões do G7, G8, G20 e todas as cúpulas supostamente identificadas com o “capitalismo global”, como as reuniões empresariais anuais do World Economic Forum (em Davos, na Suíça), mas também nos inúmeros convescotes ruidosos reunidos sob a égide do Fórum Social Mundial (um contraponto ao Fórum de Davos), realizados durante vários anos em capitais teoricamente identificadas com suas teses “progressistas” e “por um outro mundo possível”; Porto Alegre (durante muitos anos dominada por governos do PT), Caracas durante a presidência de Hugo Chávez, e outras capitais “alternativas” serviram de cenário para esses convescotes barulhentos, mas pouco efetivos, tanto no plano doutrinal, quanto no que se refere a recomendações práticas para governos.
Como as piores desgraças da globalização não se manifestaram de forma tão evidente quanto o pretendido pelos adeptos do altermundialismo – e como, ao contrário, diversos países da periferia, especialmente na Ásia Pacífico, progrediram de modo espetacular, arrancando milhões de pessoas de uma miséria ancestral para levá-las a uma situação de pobreza aceitável, e até de moderada prosperidade –, esse movimento foi perdendo força, de modo que o antiglobalismo de esquerda deixou de ter aquele charme muito pouco discreto que ele exibia nos anos 1990 e 2000, para se prolongar apenas em pequenos núcleos de irredutíveis anticapitalistas, mais evidentes na academia do que nos movimentos políticos reais.
O que mais contribuiu para provar o fracasso prático dos antiglobalizadores – objeto de muitos artigos meus e até de um livro já referido Globalizando: ensaios sobre a globalização e a antiglobalização, reunindo o essencial do que escrevi sobre eles – e a consequente progressiva perda de influência desses “anti” de esquerda nos tempos mais recentes? Algo muito evidente: o mundo deixou de ser caracterizado pela “Grande Divergência” – o processo de aumento das disparidades de renda entre países avançados e economias periféricas, grosso modo entre a segunda revolução industrial e os anos 1980 do século XX – para adentrar no que parece ser uma “Convergência Parcial”, pelo menos envolvendo aqueles países e regiões que se inseriram de modo mais assertivo no processo de globalização capitalista. A diminuição das desigualdades entre os países não impediu, porém, um aumento (temporário?) das desigualdades dentro dos países, o que abriu uma janela de oportunidade para um economista socialista (francês, of course) que pretendeu navegar sobre glórias passadas de Karl Marx: o magnum opus de Thomas Piketty, O Capital no Século XXI, opera um mau diagnóstico sobre as origens da nova concentração de renda (considerada em sua forma unicamente financeira) e prescrições ainda piores para a superação dessa desigualdade, pela taxação dos ricos obviamente.
Estudos econométricos de um outro economista, o catalão Xavier Sala-i-Martin, professor na Columbia University, demonstraram amplamente que a desigualdade – evidente em diversos indicadores de distribuição de renda, especialmente no coeficiente de Gini – diminuiu sensivelmente a partir da terceira “onda” da globalização a partir dos anos 1980, que corresponde aproximadamente à volta da China à divisão mundial do trabalho com as reformas de Deng Xiaoping, seguida pouco depois por igual adesão por parte da Índia aos princípios mais elementares da economia de mercado, da qual ela tinha se afastado desde seu entusiasmo pelo planejamento estatal ainda nos anos 1950. A implosão final da União Soviética, em 1991, e a transição de praticamente todos os países socialistas ao velho e duro capitalismo de modo mais ou menos rápido terminou por encerrar o culto beato que mantinham acadêmicos e sindicalistas ao estatismo e à “soberania econômica nacional”, inclusive porque a volta à prosperidade de alguns desses países congelados na estagnação socialista foi real e espetacular (sobretudo na Europa).
Na América Latina, sempre alimentada por velhas teorias e doutrinas ditas “desenvolvimentistas” com muita influência nas academias e, portanto, entre as elites econômicas igualmente, os resultados foram bastante contraditórios, inclusive porque o fracasso da “década perdida” (a crise da dívida externa nos anos 1980) não foi seguido por reformas realmente profundas na maior parte dos países. Poucos dentre eles aderiram ao novo “cânone” liberal, supostamente simbolizado nas regras do “Consenso de Washington”, de modo que a conversão a economias livres de mercado foi apenas parcial – em parte no México, moderadamente na Colômbia, mais decisivamente no Chile, e tardiamente no Peru –, ao passo que grandes economias, como Argentina, Brasil e também a Venezuela, experimentaram um pouco de “neoliberalismo”, mas tornaram a recorrer às velhas receitas do estatismo e do populismo econômico, mais uma vez guiadas por demagogos de esquerda (os Kirchner, na Argentina; Lula, no Brasil; Hugo Chávez na Venezuela). De forma não surpreendente, aqueles quatro países da franja do Pacífico se engajaram mais resolutamente na globalização, e passaram a experimentar taxas de crescimento mais robustas, ao passo que os demais estagnavam, quando não recuavam no caminho da prosperidade e da inserção na economia global.
  1. Do lado da direita: todo globalismo será castigado, mesmo sem doutrina
Tudo indica, portanto, que o antiglobalismo de esquerda perdeu relevância, mantendo-se apenas em poucos nichos acadêmicos, eventualmente influentes em alguns movimentos políticos e sociais, mas desprovidos de maiores evidências capazes de sustentar uma nova escalada ascensional ao poder, como talvez tenha sido o caso localmente em certos países. Abriu-se então uma janela de oportunidade para o antiglobalismo de direita, de certa forma alimentado pelo efeitos da globalização em países avançados, nos quais as velhas indústrias da segunda revolução industrial deixaram de representar parte relevante do PIB, para abrir espaço às novas economias de serviço, apoiadas bem mais no oferecimento de bens intangíveis do que na produção de manufaturados (que foi deslocada para os países periféricos, ou “emergentes”, em grande parte na Ásia).
Ao mesmo tempo, o fracasso econômico de algumas grandes regiões, assoladas por guerras civis, como na África e no Oriente Médio, ou pelo velho populismo como na América Latina, realimentou novos fluxos migratórios, alguns espetaculares, como resultado de guerras prolongadas e afundamento econômico em Estados falidos. O fato desses novos imigrantes acudirem aos borbotões e de forma frequentemente ilegal às portas de países avançados da Europa e da América do Norte despertou – ao lado de alguns ataques espetaculares de terroristas islâmicos no próprio coração dessas velhas metrópoles coloniais, ou imperialistas – como seria de se esperar, reações xenófobas, e até racistas, por parte das populações brancas, cristãs, e relativamente afluentes nesses países. O fato de que a ONU e suas agências especializadas tendem a assumir uma postura política tendencialmente favorável ao fenômeno migratório, e pragmaticamente assistencialista no tocante ao acolhimento de refugiados econômicos e de catástrofes humanitárias, também contribuiu para a formação de uma reação negativa, por parte das populações dos países “assediados”, o que alimentou o crescimento e o reforço político de partidos e movimentos de direita, excludentes por definição, nacionalistas em sua essência, e manifestamente “antiglobalistas” no que tange à expansão contínua do multilateralismo ao longo dos primeiros setenta anos da ONU e seus órgãos assessórios.
Não existe uma “doutrina” unificada do antiglobalismo, pela simples razão de que as situações nacionais são substancialmente diversas, tanto em termos de “pressões” advindas de fluxos migratórios “não-cristãos”, quanto como resultado de trajetórias políticas nacionais bastante diferentes entre si, mesmo numa Europa supostamente “comunitária”, exibindo algumas políticas comuns de “segurança” ou de política externa, como o “espaço Schengen”, por exemplo, compreendendo, em teoria, 26 dos 28 países membros da União Europeia. Nos Estados Unidos, já pressionados por algumas dezenas de milhões de imigrantes ilegais, a maior parte latino-americanos, a situação política também se modificou sensivelmente a partir da eleição de Donald Trump, e sua assunção à presidência em janeiro de 2017; deliberadamente contrário às políticas de imigração já relativamente restritivas da administração anterior, o novo presidente começou uma ofensiva anti-imigratória simbolizada na construção de um muro na fronteira com o México, até o momento ainda não materializado por inteiro.
No plano mais global das ideias políticas é certo que o multilateralismo, em vigor durante mais de meio século sob a égide da ONU, e dos grandes empreendimentos comunitários ao estilo da EU, encontram-se temporariamente sob os ataques dos novos movimentos de direita, com seus diversos componentes políticos, étnicos, religiosos e culturais, que assumiram algum poder em diversos desses países “assediados”, com a perspectiva de que alguma associação mais flexível entre esses diversos movimentos se manifeste de forma mais ruidosa no plano político-eleitoral, sobretudo na Europa. Os casos mais evidentes se referem à Itália, à Hungria e à Polônia, não por acaso sob a vigilância das instâncias comunitárias que examinam atentamente a evolução de suas políticas nacionais nos terrenos da democracia política, das liberdades de expressão e do respeito aos direitos humanos. Talvez também não por acaso são os países escolhidos como novos “aliados políticos” do novo governo brasileiro, assumidamente de direita e partidário de uma pouco explicada adesão a valores “judaico-cristãos” que estavam, pelo menos aparentemente, esquecidos nas últimas décadas em nosso país.
  1. Teorias conspiratórias sobre o globalismo: déjà vu, all over again
Mais até que no âmbito das políticas nacionais em matéria educacional ou de direitos humanos – que praticamente não existem ou são suficientemente confusas para desafiar qualquer interpretação a respeito –, é no âmbito da política externa que se tem manifestado a mais espetacular inversão de tendências das últimas décadas, ou, mais exatamente, desde sempre, ao se ter evidências fáticas, ainda que igualmente confusas, sobre o antiglobalismo notório da nova administração diplomática brasileira. Ela está a cargo de um funcionário pouco experiente no exercício de funções de alta chefia, muito devotado às ideias da “nova direita” europeia – na verdade, de extrema direita –, e especialmente submisso aos eflúvios antiglobalistas expelidos pelo já referido “sofista da Virgínia”, que não possui nenhum discurso articulado sobre o fenômeno.
Ainda que Olavo de Carvalho não possua nenhum estudo academicamente respeitável sobre o pretenso fenômeno do globalismo, não há dúvida de que ele está na origem da formação de um pequeno grupo de discípulos, organizados em forma de seita antiglobalista, seguidores de suas diatribes – na verdade, reproduzindo tendências já presentes na nova direita americana – contra a globalização e o suposto globalismo. De fato, sem produzir qualquer conhecimento original, na completa ausência de pesquisas baseadas em fontes credíveis, ele vocaliza suspeitas há muito disseminadas em certos meios esotéricos, e as transmite a seus “discípulos” propensos a acreditar na ação obscura de determinados grupos supostamente influentes na sociedade. Completamente desprovidos de fundamentação empírica, reproduzindo verdadeiros absurdos do ponto de vista da história econômica, os poucos escritos e afirmações esparsas de Olavo de Carvalho a propósito desse globalismo fantasmagórico não apresenta nenhum dos requerimentos básicos para eventual submissão a algum journal peer-reviewed.
Sua reação epidérmica, próxima da indigência subintelectual, se parece muito com as teorias conspiratórias de alguns grupos, eventualmente conectados em rede, já detectados em algumas obras de especialistas acadêmicos, dentre eles o historiador escocês (radicado nos EUA), Niall Ferguson, em especial em um livro recente: The Square and the Tower: Networks and Power, from the Freemasons to Facebook(Londres: Penguin Books, 2018), aqui transcrito:
A suspeita cresce [entre os deslocados do mercado de trabalho] de que o mundo é controlado por redes poderosas e exclusivas: os banqueiros, o Establishment, o Sistema, os Judeus, os Maçons, os Illuminati. Quase tudo o que se escreve nessa linha é lixo. Mas seria improvável que as teorias da conspiração fossem tão persistentes se redes desse tipo não existissem.
O problema com os teóricos da conspiração é que, como deslocados ressentidos, eles invariavelmente não compreendem e deformam os meios pelos quais as redes operam. Em especial, eles tendem a acreditar que redes de elites controlam, disfarçadamente, mas facilmente, as estruturas formais de poder. Minha pesquisa – assim como minha experiência – sugere que esse não é o caso. Ao contrário, redes informais frequentemente exibem uma relação altamente ambivalente com respeito às instituições estabelecidas, e em muitos casos mesmo uma relação hostil. (tradução livre do prefácio: “O historiador em rede”)
Mas, o historiador britânico também alerta logo em seguida: “Frequentemente, grandes mudanças na história são o resultado de grupos informalmente organizados de pessoas, parcamente documentados.” Ele também indica, imediatamente, dois nos quais é formalmente envolvido, o World Economic Forum e encontros do grupo Bilderberg, este último frequentemente citado nas diatribes antiglobalistas de Olavo de Carvalho. A despeito de pertencer a muitos outros grupos e redes, na Grã-Bretanha e nos EUA, Niall Ferguson confessa candidamente que não tem “quase nenhum poder” (idem). No entanto, alguns dos exemplos examinados em seu livro chegaram a ter essa ilusão de conseguir mudar o mundo, começando, no século XVIII, pela Illuminatenorden, a Ordem dos Iluminados, na qual circularam intelectuais como Goethe e Herder. Seu fundador a chamava de Liga dos Perfeitabilistas – Bund der Perfektibilisten –, cujo objetivo era assegurar a “vitória da virtude e da sabedoria sobre a estupidez e a malícia” (Cap. 1: “The Mystery of the Illuminati”). Alcançando os Estados Unidos depois da revolução francesa, os Illuminati podem ter estado na origem do “estilo paranoico na política americana”, segundo o historiador Richard Hofstader; eles também teriam tido um papel na fundação da John Birch Society, a mais anticomunista das associações políticas americanas, assim como certa influência na obra do maior conservador cristão do país, Pat Robertson, autor do livro New World Order (1991), uma das possíveis bases do pensamento antiglobalista de Olavo de Carvalho.
Em meu debate involuntário com Olavo de Carvalho fui “presenteado” com a descrição completa do “alto comando” que, segundo essa teoria conspiratória, manda soberanamente nos destinos do mundo, já tendo colocado na teia do globalismo as mais influentes associações e os mais ricos magnatas cooptados para esse projeto sinistro. Ele me citou os Bilderbergers, os Rockefellers e os Rothschilds, além da Fabian Society e uma cesta inteira de think tanks e ONGs, todos eles engajados na consolidação da Ordem Global, inclusive por meio da ONU. Niall Ferguson resume de forma magnífica essa “teoria da conspiração” numa das passagens mais representativas de seu livro – sobre as redes que circulam em volta do poder –, ilustrando aliás seus parágrafos sobre a coalizão dos Illuminati contemporâneos com um quadro apropriado, que já reproduzimos abaixo, seguido de seu texto-síntese sobre a “conspiração para dominar o mundo”:
Um painel bastante representativo descreve os Illuminati como uma ‘elite super rica do Poder com a ambição de criar uma sociedade escrava’:
Os Illuminati possuem todos os bancos internacionais, as companhias de petróleo, as mais poderosas empresas da indústria e do comércio, eles se infiltram na política e na educação e eles dominam quase todos os governos – ou pelo menos controlam-nos. Eles possuem até mesmo Hollywood e a indústria da música… [O]s Illuminati comandam também a indústria do comércio de drogas… Os principais candidatos à Presidência são cuidadosamente escolhidos dentre as linhas ocultas de sangue de treze famílias de Illuminati… O maior objetivo é o de criar um Governo Único Mundial, com seus membros no topo para dominar o mundo na direção da escravidão e da ditadura… Eles querem criar uma ‘ameaça externa’, uma falsa Invasão Extraterrestre [a fake Alien Invasion], de forma a que os países deste mundo se declarem dispostos a se unir num Único.
A versão padrão da teoria da conspiração vincula aos Illuminati a família Rothschild, a Távola Redonda, o Grupo Bilderberg e a Comissão Trilateral – sem esquecer o administrador de fundos de risco, doador político e filantropista George Soros. (Cp. 1 de FERGUSON, ““The Mystery of the Illuminati”, in: The Square and the Tower, p. 3)
  1. A contrafação dos neoilluminati no Brasil: globalismo, climatismo, marxismo
Aqueles dispostos a assistir à “entrevista-diálogo” que mantive com Olavo de Carvalho em dezembro de 2017 ouvirão de sua própria voz as mesmas referências a esse sinistro projeto conspiratório globalista, com o desfilar nominativo daqueles mesmos personagens suspeitos de financiar dezenas de organizações – inclusive várias de esquerda, uma vez que se sabe que Soros é um “homem de esquerda” – com a meta de instaurar um governo mundial. O representante en titredo antiglobalismo no Brasil se exerce com toda a sua arrogância autosapiente neste vídeo gravado pela equipe do Brasil Paralelo, disponível no Canal YouTube (link: https://youtu.be/6Q_Amtnq34g).
Segundo os neoilluminati e seus representantes no Brasil qualquer projeto que tenda a retirar poderes dos Estados soberanos para colocá-los nas mãos de burocratas não eleitos está irremediavelmente contaminado pela ideia globalista, e deve, portanto, ser rejeitado in limine.  Encontra-se nessa situação, obviamente, o projeto comunitário da União Europeia, aliás desde sua origem no Tratado de Paris (1951) e nos tratados de Roma de 1957 e todas as suas derivações posteriores, até o de Maastricht, que criou a União Europeia em 1993, e que inclusive tentou instituir uma espécie de “governo central”, com presidente e constituição escrita. Para ser fiel a esse credo soberanista, os novos responsáveis pela política externa do Brasil deveriam, presumivelmente, recusar não só o acordo de liberalização comercial Mercosul-União Europeia, como o próprio princípio do Mercosul, cujo tratado constitutivo – assinado em Assunção, em 1991 – prevê o coroamento do atual processo de consolidação da união aduaneira por meio de um mercado comum, como no precedente europeu de 1957. O nome oficial do bloco, aliás, é “Mercado Comum do Sul”, aparentemente uma insustentável renúncia de soberania, na visão dos antiglobalistas.
O fato de que todo e qualquer tratado internacional, seja ele bilateral, regional ou multilateral, implique necessariamente uma renúncia de soberania por parte dos Estados signatários – no sentido em que eles concordam em fazer e deixar de fazer certas coisas de comum acordo, se comprometendo, portanto, a não aplicar medidas unilaterais nas áreas cobertas pelo tratado – deveria fazer com que os antiglobalistas convictos recusem a essência mesma da diplomacia, que é justamente a arte de estabelecer convivência e cooperação entre Estados, num exercício de autolimitação de seus poderes soberanos. O extremo nacionalismo, como já observado em algumas trajetórias históricas, termina por resultar na autarquia, isto é, a tentativa de se libertar de qualquer dependência com respeito a fornecedores estrangeiros, amigos ou inimigos. Exemplos conhecidos na era moderna compreendem a União Soviética – “socialismo num só país” –, a economia nazista na Alemanha sob Hitler e o próprio Brasil, em diversos períodos sob dominação militar (na era Vargas e sob a ditadura militar, 1964-85), quando também se praticou uma espécie de “stalinismo industrial”, com indústrias verticalmente integradas e basicamente dedicadas a se abastecer e a fornecer produtos para o mercado interno.
Os principais inimigos dos antiglobalistas brasileiros são, sem qualquer ordem predeterminada, os adeptos do marxismo cultural, do aquecimento global (chamado de climatismo), do comercialismo (ou seja, o comércio sem alma), do multilateralismo, do universalismo e, evidentemente, do globalismo. Todos eles passaram a ser combatidos, em nome da pureza na adesão ao novo credo oficial, muito próximo das mesmas posturas já exibidas pela nova direita europeia e pelo presidente Trump, objeto dos maiores elogios do novo chanceler ao ser considerado o “salvador do Ocidente”, em especial em sua vertente “judaico-cristã”. Ao lado dessas ameaças, persistem diversos outros equívocos teorizados especialmente para o caso do Itamaraty pelo encarregado da diplomacia bolsonarista: o nominalismo, o tematismo, o isolamento do Itamaraty da sociedade brasileira e das demais políticas públicas, e uma suposta indiferença dos diplomatas no tocante aos valores profundos do povo brasileiro, que seria conservador por excelência e, ipso facto, partidário de todas essas posturas quase que naturalmente.
Trata-se de uma agenda demolidora, stricto et lato sensi, pois para colocar o Itamaraty no mesmo diapasão que vigorou no Império até a gestão do Barão do Rio Branco – uma vez que todo o período posterior, até o governo Bolsonaro, é considerado um desvio em relação aos verdadeiros valores da sociedade brasileira –, é preciso desmantelar, literalmente, os padrões culturais e ideológicos seguidos durante esse largo período intermediário, quando a política externa e a diplomacia distanciaram-se da real identidade do povo brasileiro, praticando o terceiro-mundismo, o antiamericanismo e o antiocidentalismo.
Suprema ironia: todo esse combate contra as más ideias – de fato, a destruição da inteligência no Itamaraty – tem como justificativa a luta contra as ideologias. Soit!
Paulo Roberto de Almeida
2019