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Este blog trata basicamente de ideias, se possível inteligentes, para pessoas inteligentes. Ele também se ocupa de ideias aplicadas à política, em especial à política econômica. Ele constitui uma tentativa de manter um pensamento crítico e independente sobre livros, sobre questões culturais em geral, focando numa discussão bem informada sobre temas de relações internacionais e de política externa do Brasil. Para meus livros e ensaios ver o website: www.pralmeida.org. Para a maior parte de meus textos, ver minha página na plataforma Academia.edu, link: https://itamaraty.academia.edu/PauloRobertodeAlmeida.

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sábado, 16 de novembro de 2024

Trump 2.0 promete um choque econômico global - Otaviano Canuto

Trump 2.0 promete um choque econômico global

Otaviano Canuto

Center for Macroeconomic Development, November 7, 2024

Se republicano sobrepujar limites legais do mercado internacional e implementar algo próximo do que prometeu, economia global sofrerá fortes impactos


A vitória eleitoral de Trump foi completa. Além do colégio eleitoral e dos votos absolutos, seu partido retomou o senado e deve manter a maioria de deputados na câmara. A execução de sua agenda, portanto, não precisará ficar limitada ao que pode fazer com medidas executivas, ganhando força para também incorporar o legislativo quando este for necessário.

Ao longo de sua campanha, Trump aludiu a vários caminhos nos quais poderia colocar sua agenda de política econômica. Espera-se que tire o pé no pedal na agenda de descarbonização presente na política econômica americana, algo que, pelo peso e tamanho da economia do país, terá impacto global. Também se espera o retorno da inclinação desfavorável à imigração na gestão pública que marcou seu primeiro mandato.

Dúvidas e apreensões estão também dirigidas a suas promessas de uso novamente de políticas comerciais sob a forma de tarifas sobre importações, em escala e abrangência geográfica e setorial maiores do que foi em seu mandato anterior. Caso isto se cumpra em intensidade próxima ao que aludiu durante a campanha, pode-se contar com algum grau e intensidade de choque sobre o país e a economia global.

Dentre outras medidas de política comercial, Trump já mencionou duas possíveis: uma tarifa de 60% sobre as importações chinesas e uma tarifa universal de 10-20% sobre todas as importações. Ao longo da campanha mencionou outras de tamanhos variados sobre produtos de outros países. Até ameaçou estabelecer tarifas de 100% sobre países que ameacem abandonar o dólar americano como moeda global de escolha.

Enquanto a administração democrata perseguiu uma “redução de risco” na exposição à economia chinesa – alegando razões de segurança nacional, mediante políticas de proteção, bloqueio de acesso à tecnologia e subsídios à produção local em semicondutores e energia limpa – pode-se dizer que os anúncios de Trump apontam na direção da busca de um “descolamento ou dissociação” total entre as duas economias.

Como em todas as políticas mercantilistas, baseadas na crença de que o adversário perde e a produção local ganha, há sempre uma subestimação dos impactos negativos sobre todos os lados, inclusive terceiros países. Como abordamos aqui em 2020, as tarifas de Trump contra a China em seu governo anterior acabaram impactando negativamente o próprio emprego manufatureiro dos EUA, para não falar da agricultura perdida para o Brasil no mercado chinês.

Para aqueles que acham que terceiros países podem se beneficiar como “conectores” entre EUA e China –como México, Vietnã, Malásia e outros têm feito desde a guerra no primeiro mandato de Trump– cumpre observar que um “descolamento” perseguido pela administração dos EUA não vai deixar tais conexões intocadas.

Trump já comparou guerras comerciais a lutas de boxe. Cabe observar que a elevação do custo de vida para os cidadãos norte-americanos como resultado das tarifas será parte do impacto sofrido pelo lado que golpeia no caso. Não por acaso, Kamala Harris chamou a proposta tarifária de Trump de imposto sobre os consumidores dos EUA”.

Tarifas são um imposto sobre importações. Trump disse que o imposto será pago por estrangeiros, ou seja, que estes absorveriam o impacto sem repasse a preços. Mas isso significaria a ausência do efeito de substituição de importações por produção local.

O resultado mais provável será a elevação de preços domésticos. Alguns alegam que os efeitos inflacionários das tarifas de Trump em seu primeiro governo foram mínimos. Contudo, as novas propostas de Trump se aplicariam a uma parcela muito maior das compras externas. O impacto nos preços será muito maior do que o relativamente modesto “protecionismo inicial” do primeiro mandato de Trump.

Cabe observar que um imposto sobre importações é, também, um imposto sobre exportações, pelo fato de que em parte as tarifas viram um custo para os exportadores que dependem de insumos importáveis. Isso necessariamente tornará tais exportações menos competitivas. Assim, as tarifas elevadas pré-anunciadas por Trump tenderão a expandir indústrias de substituição de importações menos competitivas, mas contrair as exportadoras altamente competitivas. A retaliação estrangeira contra as exportações dos EUA agravaria esse dano. Assistiu-se a tais efeitos durante a elevação de barreiras comerciais por Trump em seu primeiro mandato.

Onde resta pouca dúvida é quanto ao efeito recessivo para a economia global, particularmente com as prováveis respostas retaliatórias dos demais países. Passando por uma desaceleração chinesa, mas também em outros países. Na reunião anual do FMI em Washington, D.C., em outubro, Christine Lagarde, chefe do Banco Central Europeu, disse que novas barreiras comerciais poderiam renovar as pressões inflacionárias mundiais e reduzir o PIB global em até 9%, em seu cenário mais grave.

Uma segunda área onde Trump já deu sinais é a tributária e fiscal. No campo fiscal, o déficit público nos EUA tende a se elevar substancialmente. Isto também tende a trazer impactos macroeconômicos em escala global.

Trump mostrou inclinação para tornar permanentes todos os cortes aprovados pelo Congresso em 2017, o que será facilitado pela vitória republicana no senado e na câmara de deputados. Naquele ano os cortes nas taxas de imposto de renda corporativo foram permanentes, ao passo que os cortes nos impostos de renda individual e de herança deveriam expirar no final de 2025. Trump quer torná-los todos permanentes, além de acrescentar outros itens – como gorjetas. Trump falou em recomposição de arrecadação tributária via tarifas, mas ninguém estima ser isso possível.

No lado das despesas, mesmo cortando a despesa prevista nas leis dos semicondutores e da energia limpa (“Chips Act” e “Inflation Reduction Act – IRA ”), cortes substanciais não serão possíveis sem encolher gastos sociais, como o “Medicare”. Analistas projetam que as propostas de Trump aumentarão a dívida federal. O Comitê para um Orçamento Responsável, apartidário, estima que os planos de Trump podem adicionar US$ 7,5 trilhões.

Muitos economistas e investidores destacam um risco de um longo período de taxas de juros mais altas nos EUA. Temem que não apenas novas tarifas, mas também déficits americanos maiores, possam aumentar a pressão inflacionária dos EUA, levando o Federal Reserve a estender seu período de política monetária mais rígida.

E o Brasil? Mais imediatamente, a eleição de Trump já está trazendo impacto sobre o Brasil mediante os canais de transmissão monetária e cambial. A valorização do dólar em relação às demais moedas que já acompanhou as pesquisas eleitorais favoráveis a ele também atingiu o real. Ontem, no primeiro dia após as eleições, a desvalorização do real foi acentuada, mesmo tendo revertido até o final do dia.

O que se pode depreender para o futuro é a uma perspectiva de juros mais altos nos EUA, empinando sua curva temporal, acompanhando não só a perspectiva de inflação mais alta nos EUA, mas também de déficits públicos maiores. Mais do que nunca, aumentará a demanda de que o governo brasileiro dê sinais mais firmes de redução de seu desequilíbrio fiscal no futuro próximo, de modo a evitar que o prêmio de risco-país intensifique o efeito da valorização do dólar e das taxas de juros longas mais altas nos EUA sobre a taxa de câmbio e a inflação no Brasil.

Na área comercial, é possível até que o deslocamento de demanda agrícola chinesa dos EUA para o Brasil que ocorreu durante a guerra comercial EUA-China no primeiro governo Trump – deslocamento não revertido posteriormente – possa receber impulso adicional em novas rodadas de retaliação chinesa na guerra comercial.

O comercio bilateral Brasil-EUA evoluiu, no passado recente, de déficits do primeiro para saldos próximos de zero. A subida nas exportações agrícolas brasileiras – carne, açúcar, óleos e gorduras – e a redução nas compras brasileiras de combustíveis fósseis ajudaram naquela direção, enquanto o déficit brasileiro bilateral nas manufaturas cresceu nos últimos anos.

Há sensibilidade, por outro lado, quanto às exportações brasileiras de produtos metalúrgicos. Deve-se ter em vista as demandas por fabricantes de aço dos EUA de que tarifas sejam impostas sobre as exportações brasileiras de aço.

O Brasil não aparenta estar no foco da política comercial de Trump, como China e os “países conectores”. Mas vale notar que em uma entrevista em abril para a revista Time, Trump se referiu ao Brasil como “um país dê tarifas muito altas”. O não-alinhamento geopolítico brasileiro e as seguidas referências à substituição do dólar, porém, podem vir a aproximá-lo daquele foco.

Em resumo, as políticas comercial e fiscal no governo Trump 2.0 podem trazer choques macroeconômicos para a economia global e o Brasil. A possibilidade de desaceleração no crescimento econômico chinês, como consequência da política comercial Trump 2.0, pode vir a ser também um canal de transmissão sobre a economia brasileira através de suas exportações de commodities para aquele país.

No lado fiscal, há menor impedimento para o governo Trump 2.0. Já quanto as tarifas, há quem – como John H. Welch, CEO da Research for Emerging Markets Inc– destaque limites legais que dificultariam o cumprimento das promessas significativas feitas por Trump durante a campanha. Caso este venha a de fato a sobrepujar tais limites e implementar algo próximo do que prometeu, a economia global e o Brasil enfrentarão um verdadeiro choque macroeconômico.

 

Otaviano Canuto, 68 anos, é integrante-sênior do Policy Center for the New South, integrante-sênior não-residente do Brookings Institute e diretor do Center for Macroeconomics and Development em Washington. Foi vice-presidente e diretor-executivo no Banco Mundial, diretor-executivo no FMI e vice-presidente no BID.

 

domingo, 10 de novembro de 2024

Moedas locais dos Brics e a desdolarização - Otaviano Canuto (Poder 360)


Moedas locais dos Brics e a desdolarização

Otaviano Canuto

Poder Global, 5/11/2024

https://www.cmacrodev.com/moedas-locais-dos-brics-e-a-desdolarizacao/

Na Cúpula de Kazan, na semana passada, reuniram-se, pela primeira vez, os líderes do BRICS ampliado. Um dos objetivos anunciados foi o de avançar no uso de suas moedas nacionais em vez do dólar para pagamentos transfronteiriços, algo introduzido na cúpula que expandiu os BRICS no ano passado na África do Sul. Com efeito, foram dados passos adicionais na direção dessa desdolarização, mas a Declaração de Kazan não avançou tanto quanto o anfitrião Putin provavelmente esperava ou desejava.

Além da China e demais membros do grupo, vários países têm buscado mecanismos alternativos de pagamentos externos que reduzam a necessidade de recorrer ao dólar dos EUA ou outras moedas conversíveis. Pares de países têm acordado liquidar transações comerciais e financeiras entre si em suas moedas locais, em geral mediante acordos bilaterais entre seus bancos centrais.

Há três funções cumpridas por moedas para além de fronteiras nacionais. Antes de tudo, servem como unidade de medida de valor para faturas comerciais e preços de ativos financeiros negociados. Cumprem também o papel de meio de troca: de efetuar pagamentos pelas transações comerciais e financeiras através de fronteiras. Por fim, servem para a formação de reservas, de acumulação de valores e riqueza no exterior.

As ações dos membros dos BRICS potencialmente dizem respeito à segunda função, ou seja, a função de efetuar pagamentos transfronteiriços. Cabe observar que, embora de uma perspectiva privada agentes em geral associem a segunda e a terceira funções, há no mínimo uma parcela das transações cujo pagamento pode ser determinado pelas autoridades públicas nacionais.

Que motivações pode haver para o uso de moedas locais em tais pagamentos? Uma óbvia é a vulnerabilidade em relação a sanções para fins geopolíticos pelos países emissores e destinos de reservas externas em suas moedas. Esse é o caso de Rússia, Irã e Venezuela, objetos de sanções no passado recente – com Rússia e Irã membros e Venezuela impedida pelo Brasil. Por razões geopolíticas, China e outros estão também buscando diminuir sua vulnerabilidade a potenciais sanções contra eles. Além disso, acrescenta-se o objetivo de aumentar o uso da moeda local em transações internacionais, por si só, como claramente ocorre com a China.

Pode-se apontar um eventual ganho para um país em termos de menores estoques de reservas em moedas plenamente conversíveis – dólar, euro, iene, libra esterlina – necessários para que bancos centrais assegurem a estabilidade em seus pagamentos transfronteiriços. Neste caso, porém, vale observar também um possível custo: em relações bilaterais nas quais um país seja sistematicamente superavitário – como atualmente, por exemplo, tende a ser o Brasil em relação à China – o superavitário tende a acumular reservas externas na moeda do país no lado deficitário, em vez de fazê-lo em alguma moeda plenamente conversível e generalizadamente aceita por outros agentes em mercados cambiais.

Basta que um lado imponha o uso de moeda local nos pagamentos para que, mesmo a contragosto, os agentes privados do outro tenham que aceitá-la para tornar possível a transação. Exportadores brasileiros, por exemplo, hoje em dia não encaram mais uma conversibilidade mandatória de suas receitas para a moeda brasileira e podem dispor de sua receita em dólares ou o que quiserem. Contudo, se os chineses exigirem pagar em sua moeda, os brasileiros não terão opção se quiserem lá vender.

renminbi (RMB) chinês tem sido a moeda com maior expansão de uso mediante acordos bilaterais de pagamentos externos. No ano passado o Banco Central chinês chegou a ter acordos bilaterais de criação de linhas de troca de moedas (currency swaps) com bancos centrais de 41 países – inclusive o Brasil -, num montante de US$ 480 bilhões e com o saldo de fundos acionados em tais linhas atingindo US$ 15,6 bilhões. A China também expandiu agências de compensação no exterior.

A China tem sido capaz de usar sua moeda para liquidar metade de suas transações externas de comércio e investimento. Além disso, o RMB tem sido ocasionalmente usado em transações bilaterais entre terceiros. Algumas refinarias da Índia compraram petróleo da Rússia pagando em RMB. A Argentina, por sua vez, recorreu no ano passado a sua linha bilateral com a China para efetuar pagamento de serviço de dívida com o FMI e evitar um calote com este.

Em Kazan, O BRICS Clear – uma estrutura de liquidação e depósito transfronteiriço projetada para negociar valores mobiliários sem a necessidade de conversões para o dólar, utilizando tecnologia blockchain e tokens digitais lastreados em moedas nacionais – não chegou a ser acordado. A ver como, nos detalhes, alguns membros dos BRICS – como os Emirados Árabes Unidos e a Arábia Saudita – farão questão de garantir a integridade de suas relações com o dólar. A iniciativa tende a favorecer principalmente o uso do renminbi e menos outras moedas domésticas

Ainda assim, o impulso dado pela Rússia e pela China – os dois potenciais beneficiários de um esforço de desdolarização, seja para evitar sanções ou para internacionalizar suas moedas – foi reconhecido na Declaração de Kazan, com um acordo para realizar uma análise de viabilidade do BRICS Clear.

Um Arranjo Contingente de Reservas dos BRICS também foi incluído na declaração, com o objetivo de incluir moedas alternativas elegíveis dos BRICS nas linhas de swap existentes entre os países do bloco. Vale notar que a maioria dessas linhas de swap foram estendidas pelo Banco Popular da China e, portanto, utilizam o renminbi como veículo monetário contra cada uma das moedas locais. Isso reforça a visão de que o BRICS está se consolidando como um modelo tendo a China como centro, com raios bilaterais com os demais.

Finalmente, para apoiar o uso de moedas locais em transações financeiras entre os países dos BRICS, será desenvolvido um novo Mecanismo de Cooperação Interbancária dos BRICS. O BRICS já havia instalado, em 2010, um Mecanismo de Cooperação Interbancária para facilitar pagamentos em moedas locais por bancos do grupo. Como esse mecanismo pode promover o uso de moedas locais sem ir diretamente ao BRICS Clear ainda precisará ser mostrado.

O uso crescente de moedas locais em pagamentos externos, nos BRICS ou fora deles, será parte do que já chamamos de “desdolarização devagar e limitada”. Como parcela das reservas globais, o dólar americano caiu de um pouco acima de 70% em 2000 para um pouco abaixo de 60% em 2022. Enquanto uma moeda local não for plenamente conversível, permanecendo sujeita a regulações restringindo a liquidez e a disponibilidade de ativos – como permanece sendo o renminbi – não cumprirá a função de reserva externa de valor para o grosso dos agentes na economia global.

Por outro lado, parece haver uma “fragmentação” parcial do sistema global de pagamentos em curso…


terça-feira, 5 de março de 2024

Os desafios do crescimento econômico da China - Otaviano Canuto (Policy Center for the New South)

Os desafios do crescimento econômico da China

Otaviano Canuto

Policy Center for the New South, 2/03/2024

Xi Jinping deveria retomar proposta de seu antecessor de “rebalancear” empresas públicas e privadas para contornar desafios, escreve Otaviano Canuto.

A nota do FMI para o G-20 divulgada segunda-feira trouxe uma projeção de crescimento econômico da China de 4,6% e 4,1% para, respectivamente, este ano e o próximo. Em 2023, após a reabertura econômica com o fim da política de “Covid zero”, a taxa foi de 5,2%.

Pode-se apontar seis desafios a serem enfrentados pelo crescimento econômico chinês nos próximos anos. Primeiro, a exaustão do setor imobiliário como fator de crescimento, depois de ter chegado até a um quarto do PIB do país. Como abordamos aqui em 2021, as restrições estabelecidas pelo governo chinês para o acesso de incorporadoras ao crédito barato, por conta de preocupações quanto às proporções atingidas pela bolha imobiliária, não apenas cortaram o boom, como desnudaram a fragilidade patrimonial de incorporadoras, como se viu de cara no caso da Evergrande. Desde então, houve uma queda acentuada nas vendas de casas, nas novas construções e no investimento no setor.

Além do grau de endividamento de empresas imobiliárias frágeis, a dívida de governos locais é outro problema. Até porque suas receitas provenientes da venda de terrenos a promotores imobiliários encolheram. O grau de exposição de bancos chineses a ambos, com possíveis consequências em termos de perdas com empréstimos, poderá afetar negativamente a oferta de crédito na economia.

Um problema de demanda doméstica pelas famílias perfaz um terceiro desafio para o crescimento. Famílias chinesas assumiram dívidas pesadas para a aquisição imobiliária, durante o boom, e um corte de gastos acompanhou a turbulência imobiliária. Mesmo tendo se elevado após o fim do “Covid zero” no ano passado, o consumo permanece em trajetória abaixo daquela de antes da pandemia. Medidas de confiança do consumidor apontam isso. Investimentos privados para o mercado doméstico, assim como contratações, acompanharam tal retraimento de consumidores domésticos.

E quanto ao setor externo como forma de compensação? Um quarto desafio ao crescimento está na resistência externa a tal reforço de exportações como alternativa, dado que estas enfrentam agora a resistência que se seguiu ao acirramento da rivalidade geopolítica no exterior, especialmente nos EUA e em outras economias avançadas.

A dianteira chinesa na tecnologia de energia limpa tem, de fato, se feito acompanhar por forte expansão, por exemplo, de vendas no exterior de carros elétricos. As exportações chinesas de automóveis de passageiros ultrapassaram as japonesas, ao mesmo tempo em que empresas da China buscam reforço de posições no exterior – como a BYD no Brasil, na Hungria e em outros lugares. Mas os riscos de enfrentamento com restrições de acesso a mercados estão elevados.

Um quinto desafio diz respeito à mudança radical de humor de investidores estrangeiros. Desde o terceiro trimestre do ano passado, o balanço de pagamentos da China já registrou uma saída líquida de quase 12 bilhões de dólares em investimento direto, por conta de vendas de ativos ou não-reinvestimento de lucros.  Investimentos em carteira, ou seja, ações e títulos de dívida, também trocaram de sinal.

A insuficiência de demanda agregada na China vem se manifestando sob a forma de deflação na economia doméstica. Os preços ao consumidor estão estáveis ou em queda há meses e as empresas vêm reduzindo preços há mais de um ano. O recurso a estímulos fiscais e monetários é limitado pelos receios de suas consequências financeiras.

A demografia constitui um sexto desafio. O aumento da oferta de trabalhadores acompanhando a rápida urbanização atingiu seus limites. A queda no número de bebês há bastante tempo e o declínio da população já em curso, com parcela crescente da população fora do mercado de trabalho, significa – como em muitas outras partes do mundo – o fim do dividendo demográfico. A taxa de desemprego de jovens, atualmente elevada, constitui fonte de trabalho a ser empregado, mas isto não muda a direção na questão da proporção de chineses em idade não-produtiva.

Para entender como os quatro primeiros desafios acima se entrelaçam, vale voltar ao início da década passada. Em dezembro de 2011, quando quem vos fala era um dos vice-presidentes do Banco Mundial, estive em uma cerimônia em Pequim na qual o então presidente Hu Jintao fez uma das primeiras manifestações sobre a necessidade de um “rebalanceamento” inevitável da economia chinesa. Teria de ocorrer um gradual redirecionamento para um novo padrão de crescimento, não mais associado a taxas de investimento perto de 50% do PIB e com o consumo doméstico aumentando em relação aos investimentos e exportações.

Também, disse Hu Jintao, caberia um esforço para consolidar a inserção local nos degraus mais altos da escada do valor adicionado em cadeias de valor globais, algo que efetivamente foi buscado. Os serviços também deveriam aumentar seu peso no PIB em relação à manufatura. Não mais haveria as taxas de crescimento do PIB de dois dígitos das décadas anteriores, mas o crescimento deixaria de ser, como em 2007 havia dito o então primeiro-ministro Wen Jiabao, “instável, desequilibrado, descoordenado e insustentável”.

Dado o baixo nível do consumo doméstico no PIB (fato ainda presente) e, portanto, a dependência em relação a investimentos e saldos comerciais, a transição correria o risco de passar então por queda abrupta no ritmo de crescimento. Para afastar os receios de desaceleração abrupta, ondas de superinvestimentos impulsionados pelo crédito em infraestrutura e habitação se seguiram nos anos posteriores. Uma segunda rodada veio a ser aplicada em 2015–2017, como resposta a uma desaceleração imobiliária e ao declínio do mercado de ações. Além, claro, das políticas de expansão adotadas durante a crise pandêmica em 2020.

Com efeito, a queda nas taxas de crescimento do PIB chinês ocorreu apenas gradualmente até 6% em 2019. Agora, contudo, há o esgotamento da alavanca de superinvestimentos imobiliários e na infraestrutura. Não apenas por causa dos patamares de endividamento que acompanharam seu uso extensivo, mas também porque, na margem, seus retornos em termos de crescimento do PIB apresentaram contribuição declinante. Claramente as autoridades chinesas optaram por salvaguardar sua economia das vulnerabilidades financeiras, mesmo que ao preço de um crescimento do PIB mais baixo.

Duas reformas teriam forte efeito. Antes de tudo, reforçar a proteção social de modo a convencer chineses a poupar menos. Além disso, retomar a proposta feita por Hu Jintao em 2011 – deixada de lado por Xi Jinping – de “rebalancear” empresas públicas e privadas, com um consequente ganho de produtividade por conta das diferenças favoráveis às segundas mostradas onde operam em conjunto.

Vejamos o que dirá o relatório de trabalho econômico do governo sobre a “nova estratégia de crescimento da China e as metas do PIB”, a ser divulgado na próxima terça-feira.

Otaviano Canuto foi vice-presidente e diretor executivo no Banco Mundial, diretor executivo no FMI e vice-presidente no BID. Também foi secretário de assuntos internacionais no Ministério da Fazenda e professor da USP e da Unicamp. Atualmente é membro sênior do Policy Center for the New South, membro sênior não-residente da Brookings Institution, professor na Elliott School of International Affairs da George Washington University e professor afiliado na Universidade Mohammed VI. Fez mestrado na Concordia University em Montreal e doutorado na Unicamp, ambos em economia.


quarta-feira, 15 de novembro de 2023

A TALE OF TWO TECHNOLOGY WARS: SEMICONDUCTORS AND CLEAN ENERGY - Otaviano Canuto (Policy Brief)

 Otaviano Canuto - Center for Macroeconomics and Development


Policy Brief:
A TALE OF TWO TECHNOLOGY WARS: SEMICONDUCTORS AND CLEAN ENERGY
Otaviano Canuto
November 3, 2023

The global economic environment has changed as the U.S.—and to a less confrontational degree, the European Union—have clearly established a context of technological rivalry with China. Hindering China’s progress in the sophistication of semiconductor production has become a centerpiece of current U.S. foreign policy. While the U.S. is clearly winning the semiconductor war, the picture is different when it comes to clean-energy technology.

Both technology wars overlap with access to and refinement of critical raw materials (CRM), which are key upstream components of the corresponding value chains, encompassing mineral-rich emerging markets and developing economies. The way in which the U.S. and the European Union approach the goal of self-sufficiency, as well as access to and refinement of CRMs, will make a big difference to their stakes in the technology wars.

Introduction
(...)

Concluding remarks
The global economy currently faces risks of fragmentation, with national security among the reasons for national policies of ‘de-risking’ of supply chains, or ‘decoupling’ with China (Canuto, 2023). Such an environment encompasses technological wars as ‘proxy wars’, with sectoral landscapes differing, e.g. with respect to semiconductors and clean energy. The ways the U.S. and the European Union approach the goal of self-sufficiency, as well as access to and refinement of critical raw materials, will make a big difference for their stake in the technology wars.
https://www.cmacrodev.com/a-tale-of-two-technology-wars-semiconductors-and-clean-energy/

domingo, 24 de janeiro de 2021

Por que não o parlamentarismo? - Otaviano Canuto, Tiago Ribeiro dos Santos

 

E por que não parlamentarismo?, questionam Otaviano Canuto e Tiago Ribeiro

Sistema está ligado às conquistas sociais

Costuma ter mais liberdade política

Também é comum ser líder em inovação

Sessão de votação no Parlamento Europeu. Continente é o que tem mais países que utilizam o sistema parlamentarista© União Europeia 2018 – Parlamento Europeu (via Fotos Públicas)


23.jan.2021 (sábado) - 6h00

Nos anos 90, Francis Fukuyama decretou o fim da história em grande medida por uma percebida inevitabilidade do modelo de governo democrático representativo ocidental. Hoje vemos que a história está longe de ter chegado ao fim. Há uma percepção compartilhada entre diversos grupos de que o sistema atual precisa melhorar e poucas épocas foram tão prolíficas em produzir ideias sobre como melhor organizar a sociedade.

O exame das redes sociais, onde são comuns rosas atreladas aos nomes dos usuários, mostra que ideias de socialismo não se esgotaram com a queda do muro de Berlim. Ideias anátemas para o Brasil, como o anarco-capitalismo, ganham espaço, ainda que em nichos. Grupos como o Radical Xchange propõem votos adquiríveis em mercado a preços cada vez mais altos, enquanto outros propõem o recurso à democracia direta digital em larga escala e outros ainda o uso de loterias para a escolha dos parlamentares, em nome da representatividade máxima da população. Diante do tanto que não se sabe sobre quais efeitos esperar de algumas das propostas, cabe a pergunta: por que não o parlamentarismo?

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O parlamentarismo é, de longe, a forma de governo histórica e presentemente mais associada com as conquistas sociais prezadas pelas mais distintas ideologias. Países parlamentaristas têm mais liberdades políticas e econômicas, mas também maior igualdade em ambas as dimensões. Protegem melhor o meio ambiente, contam com mais igualdade de gênero e com menos conflitos internos. Preservam suas histórias e suas tradições, mas também são líderes em inovação.

Quando confrontadas com esses fatos, a maioria das pessoas argumenta ser absurdo atribuir ao parlamentarismo em si essas vantagens. Certamente haveria outros fatores que melhor explicariam essa coincidência – como o fato de boa parte dos regimes parlamentaristas se encontrar na Europa, enquanto a América Latina e a África são majoritariamente presidencialistas. Em livro publicado no ano passado, um de nós examina a teoria e as evidências disponíveis de diversos campos – história, ciência política, economia – e conclui que a explicação mais simples para essas diferenças é também a mais provável: o parlamentarismo está por trás de boa parte desses resultados, pois consegue minimizar consistentemente os perigos do personalismo.

Uma das objeções mais comuns é a alegação de que o país mais rico do mundo, os Estados Unidos, é presidencialista. O primeiro problema desse argumento é que, dos países presidencialistas, os Estados Unidos tradicionalmente concentraram muito menos poder no presidente. Embora o poder presidencial venha aumentando, ele ainda é mais restrito do que na maioria das democracias presidencialistas do resto do mundo. Todos os cargos ministeriais e de vice-ministros, por exemplo, dependem de sabatina do Senado norte-americano. Em decisões de âmbito mais geral e perene, a ação do poder executivo tem que ser corroborada pelo congresso.

O segundo problema do argumento é que, ainda que o presidente norte-americano fosse constitucionalmente tão poderoso quanto outros presidentes latino-americanos e africanos, a existência de exceções não invalida uma tendência geral – o fato de muitas pessoas viverem mais de cem anos apesar de fumarem diariamente não desqualifica o vínculo do cigarro com o câncer de pulmão.

O exemplo do cigarro é particularmente adequado porque os desafios que defensores do parlamentarismo encontram em sua defesa do sistema são semelhantes aos que alertavam para os perigos do cigarro em meados do século XX. Céticos, entre eles o destacado estatístico Ronald Fisher, agarravam-se à ausência de estudos randomizados para declarar que a relação causal entre cigarro e câncer de pulmão não poderia ser estabelecida. Não era realista acreditar que estudos randomizados seriam feitos com cigarros naquela época, nem é realista esperar estudos randomizados sobre formas de governo.

Se ao menos os céticos fossem consistentes em seu rigor, poderíamos concordar. Mas essa consistência é impossível. Países precisam adotar alguma forma de governo e de organização econômica e qualquer crítica de falta de estudos conclusivos aplicável ao parlamentarismo se aplica com a mesma força a todas as outras propostas na arena pública, com a diferença de que essas propostas não contam com a riqueza de teoria e evidências com que conta o parlamentarismo. Por esses motivos é que propomos a inversão do ônus da prova aos que argumentam contra a forma de organização social mais bem-sucedida da humanidade: por que não?

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Autores

Otaviano Canuto

Otaviano Canuto

Otaviano Canuto, 64 anos, é membro sênior do Policy Center for the New South, membro sênior não-residente do Brookings Institute e diretor do Center for Macroeconomics and Development em Washington. Foi vice-presidente e diretor-executivo no Banco Mundial, diretor-executivo no FMI e vice-presidente no BID. Também foi secretário de assuntos internacionais no ministério da fazenda e professor da USP e da Unicamp. Escreve para o Poder360 mensalmente, com publicação sempre aos sábados.

Tiago Ribeiro dos Santos

Tiago Ribeiro dos Santos

Tiago Ribeiro dos Santos é diplomata de carreira e autor do livro “Why Not Parliamentarism?”. As opiniões aqui expressas não representam as de qualquer instituição a que esteja vinculado.

https://www.poder360.com.br/opiniao/partidos-politicos/e-por-que-nao-parlamentarismo-questionam-otaviano-canuto-e-tiago-ribeiro/?fbclid=IwAR2DyX6zS7yFvpQB2ZFr7bVAv0HeqyxafWBxks7sXG1ntsKq9SPEy5Xq27I


quarta-feira, 12 de agosto de 2020

Alinhamento com Trump não dá ganhos e tem custos - Otaviano Canuto

Alinhamento com Trump não dá ganhos e tem custos 

Otaviano CanutoSenior fellow do Policy Center for the New South
Entrevista a Claudio Conceição e Solange Monteirodo Rio de Janeiro
Do ponto de observação alcançado pelos vários cargos que já exerceu – que inclui de secretaria no Ministério da Fazenda do governo Lula a diretor do FMI e vice-presidente do Banco Mundial – o sergipano Otaviano Canuto vê com preocupação, mas parcimônia, os efeitos da pandemia de Covid-19. Avalia que a recuperação da economia mundial não será completa – desenhando um formato de raiz quadrada –, e que deixará alguns desafios importantes a descoberto, como a falta de universalização do acesso à saúde na maior economia mundial, fortemente afetada pelo novo coronavírus. De sua casa em Washington, de onde conversou pela internet com a Conjuntura Econômica, Canuto revelou sua preocupação com o futuro da política externa brasileira sob o contexto de alinhamento com o governo Trump, e com a capacidade do país de reverter a deterioração de sua imagem quanto ao trato com a Amazônia, no momento em que o mercado financeiro mundial passa a valorizar diretrizes ambientais em sua tomada de decisão. “Tínhamos tudo para ter os bônus de mostrar ao mundo nossa contribuição para o problema da mudança climática”, afirma.
Conjuntura Econômica — Até o momento, a política exterior do governo Bolsonaro tem sido carente de parcerias, limitando-se a sinalizar alinhamento com o governo de Donald Trump. Quais as chances de Trump sair vitorioso nas urnas, e que implicações terá ao Brasil caso o presidente norte-americano não se reeleja?
Acho que a postura de Trump em relação à pandemia vai cobrar um preço muito elevado. Há uma identificação por parte da população de que as coisas poderiam ter sido melhores se a liderança de Trump tivesse sido exercida de forma a reconhecer e ajudar a coordenar o esforço nacional de enfrentamento da pandemia. Como Bolsonaro, ele fez a aposta na pouca significância da pandemia e tentou se isentar das inevitáveis consequências das políticas de distanciamento social sobre a atividade econômica. Essa aposta aparentemente não deu retorno, como também me parece que não deu certo para o presidente Bolsonaro. Mas Bolsonaro tem sido compensado pela simpatia da massa de trabalhadores que acabou recebendo o auxílio emergencial. Já ouvi uma brincadeira sobre isso, de que a oposição no Congresso salvou Bolsonaro (ao propor um auxílio mais alto do que o sugerido inicialmente pelo governo). No caso do Trump, entretanto, não funcionou, e o estado da arte foi tal que o episódio da morte de George Floyd, e todos os levantes que se seguiram, catalisou uma insatisfação muito grande de boa parcela da população com a situação de concentração de renda. Essa insatisfação também esteve subjacente à vitória de Trump em 2016 contra o establishment político, só que agora, intensificada pela agonia do impacto da pandemia, tem tomado a direção contrária, de dar suporte a Joe Biden.
Em 2016, eu, como muita gente, queimei minha língua sobre o resultado das eleições, acompanhando madrugada adentro a apuração e o espanto com o resultado da eleição. Quero crer que, naquele momento, houve o pecado da arrogância dos democratas e de Hillary Clinton, que não foi aos counties mais duvidosos nos estados em que os democratas já tinham como ganhos. Trump estava bem calçado na orientação com big data, e desafiou os republicanos, indo aos counties democratas com um discurso que acabou motivando os eleitores dele a saírem de casa, e os potenciais eleitores dos democratas a ficarem no sofá. E aí ele ganhou naqueles counties, ganhou os estados, e virou presidente tendo menos votos, em termos absolutos, do que a Hillary.
Aquela foi uma demonstração. O Obama já tinha utilizado bem o big data – segundo ele próprio, não para manipular a opinião, mas para saber quais questões estavam na cabeça do eleitorado, que é um uso legítimo. Já no caso do pessoal da Cambridge Analytica, que deu suporte ao Trump, foi com uma posição de incitar com mensagens direcionadas à sua clientela potencial. Aparentemente, esse esquema também foi usado com sucesso em Trinidad e Tobago, um dos países com os quais trabalhei muito. Esse caso, inclusive, é tema de um documentário, Privacidade Hackeada, disponível no Netflix. Lá, a Cambridge Analytica teria enviado mensagens de tal maneira que induziu os trinidadianos de origem indiana a ir votar – como em outros países do Caribe e do Norte da América do Sul, em Trinidad e Tobago há uma associação partidária com grupos étnicos –, e os negros a cruzarem os braços. E houve uma surpresa eleitoral. Hoje não sabemos em que extensão o big data está sendo usado, e que diferença pode fazer. Mas espero que a lição tenha sido aprendida. Além do fato de que a própria pandemia muda o modus operandi da eleição, já que não tem a presença física de candidatos fazendo campanha nos counties. Até agora, a julgar pelas pesquisas, e pesquisas micro que acompanho por municípios, aparentemente Biden tem vantagem.
E como ficaria o governo Bolsonaro com uma vitória de Joe Biden?
No caso do Brasil, é um erro a tentativa de alinhamento, e de percepção do resto do mundo de alinhamento automático, como fez Bolsonaro. Não lhe dá ganhos, e tem custos. O Brasil ganha quando se pauta como países tal qual Austrália e Canadá. Outro exemplo é o de Singapura, ilha no sul da Malásia. É um país rico, de alto nível, multiétnico, composto por descendentes de chineses, malaios e indianos, com regras de equidade étnica. Seu fundador e primeiro-ministro por três décadas, o ditador Lee Kuan Yew, reconheceu certa vez no talk show de Charlie Rose que Singapura só fez sua reforma depois de consultar Deng Xiaoping. Precisava da anuência da poderosa China, até porque a China inclui em sua área de influência os lugares onde a diáspora chinesa tem presença marcante. E Deng Xiaoping autorizou, porque viu aquilo como um experimento cujo sucesso o incentivou a fazer as reformas que levaram a China aonde está. Mas por que estou lembrando isso? Porque mesmo com essa estreita ligação com a China, o atual primeiro-ministro de Singapura fez questão de declarar que, no caso da disputa entre China e Estados Unidos, não estaria alinhado a nenhum deles, pois o país quer ter relações com ambos e se beneficiar do lado benigno dessas relações. Frente a esse exemplo, faz sentido o Brasil ter alinhamento automático? Em qualquer alinhamento subordinado, os custos são maiores que os benefícios. Não é para fazer alinhamento com os Estados Unidos, e nem com a China, mas buscar o que se pode ter de melhor com cada um.
Essa neutralidade era uma característica da diplomacia brasileira até há pouco…
Exatamente. E por conta disso conseguimos ter uma voz e um papel acima do nosso peso. A atual orientação do governo tem uma postura equivocada em termos de custo-benefício para o país. Veja a atitude do presidente em relação à Amazônia. Isso está solapando as possibilidades de obtenção de acordos comerciais, inclusive, porque demos força para os argumentos dos protecionistas agrícolas na Europa, e assim por diante, em detrimento do que poderia ter sido um acordo benéfico. Não por acaso esse argumento ambiental é o que serviu para parcela do Congresso americano chutar a possibilidade de melhora nas condições de comércio entre Brasil e Estados Unidos.
Hoje o governo aposta na atração de investimento estrangeiro em concessões de infraestrutura para impulsionar o crescimento. Considera que o posicionamento do governo quanto à questão ambiental pode atrapalhar esses planos?
Ele não vai ajudar. Veja, temos que reconhecer que, por um lado, os rendimentos de papéis no Brasil vão continuar baixos. E se havia uma tendência subjacente nos países avançados, Estados Unidos e na Europa, de estagnação secular, implicando juros reais de médio e longo prazo baixos, a tentação será grande de serem canalizados para projetos como os planos do Brasil, desde que os aspectos regulatórios sejam vistos como devidamente apropriados. Mas estamos em uma situação intermediária, em que a confiança plena nessa direção não está estabelecida. Até agora o que observamos foi a saída das aplicações em juros no Brasil sem ter voltado para equity. Só temos os nacionais migrando para o mercado de ações, mas quanto aos de fora, nossos fluxos continuam negativos, pois eles só vêm depois de ter se estabelecido alguma confiança.
Nesse contexto, a atitude em relação à Amazônia não ajuda. Até porque também é preciso observar essa expansão na margem de fundos verdes, ou fundos financeiros que seguem diretrizes ambientais, sociais e de qualidade de governança. Eles estão crescendo em atração. Ainda não a ponto de fazer a massa grande de riqueza financeira aceitar rendimento menor em troca de ter segurança quanto à obediência a padrões de governança, meio ambiente e impacto social. Mas é uma tendência.
Recentemente o governo buscou compensar esse problema, através do vice-presidente Mourão, com o anúncio do banimento das queimadas por um período. Mas, até agora, a iniciativa anunciada não foi suficiente para convencer boa parte do resto do mundo de que a atitude do Brasil em relação à Amazônia voltou a ter a relativa responsabilidade que teve no passado. Teria sido melhor se o governo escolhesse atitudes mais concretas, inclusive de demissão do ministro do Meio Ambiente, e de reforçar as agências de fiscalização. Ou seja, desfazer o que foi desfeito pelo governo Bolsonaro até a entrada em cena de Mourão.
Este ano, entre março e maio foram publicados 195 atos relacionados ao tema ambiental, contra 16 no mesmo período de 2019. Isso tem levantado preocupação de empresários, que se reúnem para reclamar uma mudança de postura, afirmando ameaça aos seus negócios…
Pois é. Depois a gente se espanta: cadê o crescimento que não vem? O ganho em temos de incorporação de área da Amazônia é ínfimo em relação à perda no resto. Teríamos tudo para garantir um bom posicionamento na questão da mudança climática. Nossa matriz energética é limpa. Mesmo com as dificuldades que teremos no futuro com o lado hidrelétrico, para o que a devastação da Amazônia joga contra, pois tende a mudar o regime climático prejudicando não apenas a agricultura no Sudeste brasileiro como o regime pluviométrico e a capacidade das hidrelétricas de fornecer energia. Não fosse por isso, definitivamente a gente poderia apresentar um país com matriz energética limpa, expandindo energia eólica, matriz de biocombustíveis bem mais saudável do ponto de vista ambiental do que a que operou nos Estados Unidos com base no milho. Tínhamos tudo para ter os bônus de mostrar para o mundo nossa contribuição para o problema da mudança climática.
Se a recuperação econômica mundial não voltar ao nível pré-crise sanitária como prevê – sua estimativa é de uma recuperação no formato de raiz quadrada –, teremos o problema do desemprego estrutural acentuado, especialmente em países como o Brasil, em que a informalidade é alta. O auxílio emergencial tem amortizado esse efeito no curto prazo, mas como lidar com esse impacto daqui para a frente?
Acho que há dois legados importantes que temos que colocar na linha de frente. Um deles é o de que a preservação do auxílio emergencial é insustentável, no mínimo, pelo custo fiscal. Seria preciso um remanejo tamanho de orçamento que, se hoje a gente tem problemas com escassez de recursos públicos dado o padrão de gastos para as áreas de investimento, não parece correto gastar tanto. Mas tampouco devemos voltar aonde estávamos, apenas com o Bolsa Família e o conjunto de outros programas de seguro social, cuja eficácia temos dúvida de que seja tão forte quanto a do Bolsa Família. Idealmente, vamos chegar no final da pandemia com um programa de transferências mais amplo em termos de massa atingida, e que vai se constituir em uma espécie de renda básica – se não é universal, para uma parcela maior da população brasileira –, a partir da racionalização de programas hoje vigentes. Tem outro lado positivo desse aspecto que foi a ampliação do cadastro da população. Imagina o pesadelo de tentar fazer um esquema de transferência de renda em um país como a Nigéria, em que você tem quase 90% da população informal sem conta bancária. Embora com toda a agonia que se assistiu nas filas e das pessoas que ainda estão fora do sistema, estendemos esse cadastro, que pode ser utilizado no futuro para coleta de informações, aferição de carências de diversas parcelas do público da parte mais inferior da pirâmide de renda, e pensar políticas mais voltadas para ela. Em outros países do mundo, esse legado estará no aprimoramento do sistema de proteção social. Nos Estados Unidos, por exemplo, quero crer que a pandemia vá favorecer a pressão em relação ao problema de universalização do acesso à saúde. É incrível que o país mais poderoso do mundo, a maior economia do mundo, com renda per capita alta, tenha uma parcela substancial da população sem acesso a nenhum seguro-saúde. Na Europa, mesmo o Reino Unido, em que o sistema de proteção social é mais tímido que em países como França e Alemanha, há um seguro-saúde universal.
Ainda no campo assistencial uma segunda coisa importante como legado é fazer algo para integrar as favelas. A importância de melhorar as condições de saneamento e habitabilidade nas favelas é mais alta por conta das externalidades para quem está fora. Supondo-se que agora possamos ter problema com outros tipos de pandemia, não é inteiramente seguro o pessoal que mora em condomínios dizer que pode se isolar. A possibilidade de contágio nas vias urbanas realça a relevância para o conjunto da sociedade de ter uma atitude menos negligente com as condições sanitárias nas favelas.
No caso do desafio de reinserção da população no mercado de trabalho, considera adequada a diretriz defendida pelo governo, de ampliar a flexibilização permitindo a formalização a partir do contrato por horas trabalhadas?
Quero crer que essa flexibilização vai ajudar na incorporação. Temos uma realidade em que a configuração de tecnologia e mercado de trabalho não é como aquela durante o pós-guerra, em que você conseguia se isolar em sindicatos, brigar e ganhar. Mesmo nos países europeus, que têm sistema de proteção social forte, a criação de emprego na margem tem se revelado difícil, porque quem está dentro está protegido, mas ninguém mais consegue entrar. A ponto de os países escandinavos evoluírem na direção da chamada flex security, de prover seguridade através de mecanismos de renda básica que dão uma base de negociação por parte do assalariado, mas sem que esses mecanismos estejam associados a empregos específicos.. A realidade é que a própria revolução tecnológica está tornando difícil essa ideia de trabalhos suficientemente homogêneos e regulares. Para quem consegue estar empregado, o trabalho vai ser flexível, cambiável do ponto de vista tecnológico. Nos Estados Unidos essa realidade se impõe mais facilmente pelo regime de mercado de trabalho já ser mais flexível. O esquema promovido pela França para manutenção de emprego na pandemia, por exemplo, provendo crédito às empresas e associando-o à manutenção do emprego, foi poderoso.. Só que é temporário, no sentido de que se as mudanças resultantes da pandemia forem longas, essas vagas mantidas serão empregos zumbis. Sequer adianta forçar a barra ampliando o crédito, porque em determinado momento essas empresas vão ter que demitir funcionários que não são mais justificáveis do ponto de vista da operação do seu negócio. Esse fato, junto com a tendência à digitalização de processos, vai impor novos desafios em termos de qualificação da mão de obra – não só de requalificação, de educação, mas de uma realidade de relações de trabalho que será mais propensa a coisas como Uber do que como Ford. Nesse sentido, a flexibilização trabalhista é uma questão de imposição de realidade.
Um dos efeitos que considera da pandemia é uma “desglobalização” relativa. Como isso conversa com o conflito Estados Unidos x China, e como considera que essa tendência evoluirá com Biden ou Trump na presidência dos Estados Unidos?
Tem dois movimentos que valem a pena diferenciar. O primeiro, da lógica empresarial que rege as cadeias de valor, de fato pode ser que em alguns casos a tendência a se buscar um seguro contra riscos acabe tendo mais força do que antes em relação à eficiência. Mas isso tem limites. Se colocar toda a cadeia no espaço americano para se proteger de choques na China, ou tsunamis no Japão, pagará um custo muito grande, pois o sucesso global da China foi a redução de custos e aumento de eficiência. E adivinhe: você fica vulnerável a choques nos Estados Unidos. Veja, a Apple continua querendo operar na China. Ela ganha dinheiro lá, parte de sua linha de produção que é feita na China a favorece em termos de custos, na concorrência com produtos não Apple do lado de fora da China. Ela não vai querer mudar.
Onde, sim, pode haver mais mudanças, é do lado das políticas nacionais. Estados com setores públicos querendo garantir segurança e abastecimento em relação a áreas que consideram estratégicas. No Marrocos, o rei declarou que quer aumentar sua capacidade de produção própria de equipamentos médicos e remédios. O presidente da França, Emmanuel Macron, por sua vez, disse que desenvolveria setores essenciais estratégicos. A dúvida é saber até onde vai essa linha demarcatória. É por isso que chamo essa tendência de desglobalização relativa, pois nem tudo que aconteceu nos últimos 30 anos será desfeito. Mas, em algumas áreas, será inevitável que a rivalidade se acentue, até pela própria lógica de poder que rege a gestão pública de países, a alta tecnologia nas áreas de comunicações, de eletrônica, de bioquímica.
Isso também passa no caso dos Estados Unidos, independentemente de quem ganhe a eleição americana. Mesmo Biden, se eleito, deverá ser mais incisivo em relação à disputa tecnológica com a China do que foi Obama, por exemplo. Acho que não tem como ser diferente, pois agora a China não está mais vindo de trás. Não é mais uma questão de usar tecnologias que já existem, abrir espaço para investimento de americanos, japoneses, taiwaneses, aumentar renda e reduzir pobreza. Agora a China está disputando o topo das cadeias globais de valor, e aí a coisa muda de figura. Agora, eu diria que no caso de Biden seria uma postura por uma busca plurilateral, tal como foi com Obama, diferentemente do nacionalismo baseado apenas nos Estados Unidos, como no caso Trump. Até pela aposta equivocada de perder aliados. Ora, se quer estabelecer critérios de segurança a socializar a penetração ou participação de tecnologias chinesas na Europa, você negocia em conjunto com os europeus, e não exigindo que os europeus escolham, ou China, ou eu, como fez Trump.
A pandemia parece ter acentuado também a crise entre organismos multilaterais. Já vínhamos com problemas na OMC, agora os Estados Unidos peitaram a OMS, e a urgência na obtenção de insumos médico-hospitalares fez com que a regra do “farinha pouca meu pirão primeiro” se sobressaísse a iniciativas supranacionais de ajuda a países mais vulneráveis. O que podemos esperar daqui para frente?
Se a crise servir de catalisador para a reavaliação de postura das lideranças, podemos tentar consertar. Mas o quadro, num futuro imediato, é ruim, porque a gente ainda não tem uma forma acabada para responder às mudanças que aconteceram desde que o atual sistema foi configurado. Deixe-me explicar, usando como exemplo o campo financeiro. Nos anos em que fui vice-presidente no Banco Mundial, e diretor-executivo no FMI, vi isso de perto. Na crise financeira global, os países avançados sofreram o baque e fizeram um chamamento aos Brics para fazer parte do jogo – o que correspondeu à mudança do G7, G8 para o fortalecimento do G20, antes constituído por ministros de finanças e banqueiros centrais, tornando-se um grupo de chefes de Estado. Os Brics compareceram, particularmente a China, mais aí surgiu a demanda: seremos doadores de recursos, mas queremos reconhecimento disso nas cotas do banco. Pelos critérios usados no Banco Mundial para definir as parcelas de capital, a China deveria ficar com uma fatia maior que a do Japão, e já seria a segunda. O Japão não autorizou, nem os europeus, estes porque perderiam cadeiras. Os chineses entenderam o recado de que a estrutura não iria mudar o suficiente, e então criaram outros bancos. Primeiro o banco dos Brics, no qual os demais membros disseram não querer o tamanho de instituição que a China gostaria. Então a China aceita fazer um banco mais comedido, e cria outro, o Banco Asiático de Investimento em Infraestrutura. No caso das instituições financeiras de desenvolvimento, já há uma pluralidade, uma convivência que pode ser mais ou menos benigna. Por exemplo, nas Filipinas, um projeto de infraestrutura do Banco Mundial de gestão em inundações em Manila foi acionado pelo banco chinês, interessado em se unir. Foi ótimo, porque os filipinos tiveram mais dinheiro, e o banco asiático teve a oportunidade de ter na carteira um projeto ótimo e aprender com ele.
Esse é um exemplo concreto de um processo que tem que ser feito com a diversidade de instâncias. Mas está claro que essa não é uma solução para todos os casos. No caso da OMC, no que diz respeito a negociações comerciais, já não estava operando. Acho que haveria uma maior probabilidade de êxito em um caminho plurilateral. A busca do sufrágio universal resultou em vulnerabilidade muito grande dos pactos negociados, frente à possibilidade de um dos 164 membros dizer não. Isso foi tão forte que, não à toa, a Rodada Doha foi um fracasso completo. O sufrágio universal serve em alguns casos, como na ONU, mas para ação multilateral é complicado. E qual forma deverá tomar? Provavelmente, de uma colcha de retalhos. Não no estilo Trump, de lei da selva no lugar da regra da lei, impondo-se e ameaçando todos. Mas acho que vamos evoluir, independentemente das diversas áreas, numa convivência múltipla de instituições, de arranjos, de acordos, cada uma delas com estruturas de poder diferentes, refletindo a multipolaridade da estrutura de poder da realidade do nosso tempo.