E por que não parlamentarismo?, questionam Otaviano Canuto e Tiago Ribeiro
Sistema está ligado às conquistas sociais
Costuma ter mais liberdade política
Também é comum ser líder em inovação
OTAVIANO CANUTOTIAGO RIBEIRO DOS SANTOS
23.jan.2021 (sábado) - 6h00
Nos anos 90, Francis Fukuyama decretou o fim da história em grande medida por uma percebida inevitabilidade do modelo de governo democrático representativo ocidental. Hoje vemos que a história está longe de ter chegado ao fim. Há uma percepção compartilhada entre diversos grupos de que o sistema atual precisa melhorar e poucas épocas foram tão prolíficas em produzir ideias sobre como melhor organizar a sociedade.
O exame das redes sociais, onde são comuns rosas atreladas aos nomes dos usuários, mostra que ideias de socialismo não se esgotaram com a queda do muro de Berlim. Ideias anátemas para o Brasil, como o anarco-capitalismo, ganham espaço, ainda que em nichos. Grupos como o Radical Xchange propõem votos adquiríveis em mercado a preços cada vez mais altos, enquanto outros propõem o recurso à democracia direta digital em larga escala e outros ainda o uso de loterias para a escolha dos parlamentares, em nome da representatividade máxima da população. Diante do tanto que não se sabe sobre quais efeitos esperar de algumas das propostas, cabe a pergunta: por que não o parlamentarismo?
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O parlamentarismo é, de longe, a forma de governo histórica e presentemente mais associada com as conquistas sociais prezadas pelas mais distintas ideologias. Países parlamentaristas têm mais liberdades políticas e econômicas, mas também maior igualdade em ambas as dimensões. Protegem melhor o meio ambiente, contam com mais igualdade de gênero e com menos conflitos internos. Preservam suas histórias e suas tradições, mas também são líderes em inovação.
Quando confrontadas com esses fatos, a maioria das pessoas argumenta ser absurdo atribuir ao parlamentarismo em si essas vantagens. Certamente haveria outros fatores que melhor explicariam essa coincidência – como o fato de boa parte dos regimes parlamentaristas se encontrar na Europa, enquanto a América Latina e a África são majoritariamente presidencialistas. Em livro publicado no ano passado, um de nós examina a teoria e as evidências disponíveis de diversos campos – história, ciência política, economia – e conclui que a explicação mais simples para essas diferenças é também a mais provável: o parlamentarismo está por trás de boa parte desses resultados, pois consegue minimizar consistentemente os perigos do personalismo.
Uma das objeções mais comuns é a alegação de que o país mais rico do mundo, os Estados Unidos, é presidencialista. O primeiro problema desse argumento é que, dos países presidencialistas, os Estados Unidos tradicionalmente concentraram muito menos poder no presidente. Embora o poder presidencial venha aumentando, ele ainda é mais restrito do que na maioria das democracias presidencialistas do resto do mundo. Todos os cargos ministeriais e de vice-ministros, por exemplo, dependem de sabatina do Senado norte-americano. Em decisões de âmbito mais geral e perene, a ação do poder executivo tem que ser corroborada pelo congresso.
O segundo problema do argumento é que, ainda que o presidente norte-americano fosse constitucionalmente tão poderoso quanto outros presidentes latino-americanos e africanos, a existência de exceções não invalida uma tendência geral – o fato de muitas pessoas viverem mais de cem anos apesar de fumarem diariamente não desqualifica o vínculo do cigarro com o câncer de pulmão.
O exemplo do cigarro é particularmente adequado porque os desafios que defensores do parlamentarismo encontram em sua defesa do sistema são semelhantes aos que alertavam para os perigos do cigarro em meados do século XX. Céticos, entre eles o destacado estatístico Ronald Fisher, agarravam-se à ausência de estudos randomizados para declarar que a relação causal entre cigarro e câncer de pulmão não poderia ser estabelecida. Não era realista acreditar que estudos randomizados seriam feitos com cigarros naquela época, nem é realista esperar estudos randomizados sobre formas de governo.
Se ao menos os céticos fossem consistentes em seu rigor, poderíamos concordar. Mas essa consistência é impossível. Países precisam adotar alguma forma de governo e de organização econômica e qualquer crítica de falta de estudos conclusivos aplicável ao parlamentarismo se aplica com a mesma força a todas as outras propostas na arena pública, com a diferença de que essas propostas não contam com a riqueza de teoria e evidências com que conta o parlamentarismo. Por esses motivos é que propomos a inversão do ônus da prova aos que argumentam contra a forma de organização social mais bem-sucedida da humanidade: por que não?