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quarta-feira, 12 de agosto de 2020

Alinhamento com Trump não dá ganhos e tem custos - Otaviano Canuto

Alinhamento com Trump não dá ganhos e tem custos 

Otaviano CanutoSenior fellow do Policy Center for the New South
Entrevista a Claudio Conceição e Solange Monteirodo Rio de Janeiro
Do ponto de observação alcançado pelos vários cargos que já exerceu – que inclui de secretaria no Ministério da Fazenda do governo Lula a diretor do FMI e vice-presidente do Banco Mundial – o sergipano Otaviano Canuto vê com preocupação, mas parcimônia, os efeitos da pandemia de Covid-19. Avalia que a recuperação da economia mundial não será completa – desenhando um formato de raiz quadrada –, e que deixará alguns desafios importantes a descoberto, como a falta de universalização do acesso à saúde na maior economia mundial, fortemente afetada pelo novo coronavírus. De sua casa em Washington, de onde conversou pela internet com a Conjuntura Econômica, Canuto revelou sua preocupação com o futuro da política externa brasileira sob o contexto de alinhamento com o governo Trump, e com a capacidade do país de reverter a deterioração de sua imagem quanto ao trato com a Amazônia, no momento em que o mercado financeiro mundial passa a valorizar diretrizes ambientais em sua tomada de decisão. “Tínhamos tudo para ter os bônus de mostrar ao mundo nossa contribuição para o problema da mudança climática”, afirma.
Conjuntura Econômica — Até o momento, a política exterior do governo Bolsonaro tem sido carente de parcerias, limitando-se a sinalizar alinhamento com o governo de Donald Trump. Quais as chances de Trump sair vitorioso nas urnas, e que implicações terá ao Brasil caso o presidente norte-americano não se reeleja?
Acho que a postura de Trump em relação à pandemia vai cobrar um preço muito elevado. Há uma identificação por parte da população de que as coisas poderiam ter sido melhores se a liderança de Trump tivesse sido exercida de forma a reconhecer e ajudar a coordenar o esforço nacional de enfrentamento da pandemia. Como Bolsonaro, ele fez a aposta na pouca significância da pandemia e tentou se isentar das inevitáveis consequências das políticas de distanciamento social sobre a atividade econômica. Essa aposta aparentemente não deu retorno, como também me parece que não deu certo para o presidente Bolsonaro. Mas Bolsonaro tem sido compensado pela simpatia da massa de trabalhadores que acabou recebendo o auxílio emergencial. Já ouvi uma brincadeira sobre isso, de que a oposição no Congresso salvou Bolsonaro (ao propor um auxílio mais alto do que o sugerido inicialmente pelo governo). No caso do Trump, entretanto, não funcionou, e o estado da arte foi tal que o episódio da morte de George Floyd, e todos os levantes que se seguiram, catalisou uma insatisfação muito grande de boa parcela da população com a situação de concentração de renda. Essa insatisfação também esteve subjacente à vitória de Trump em 2016 contra o establishment político, só que agora, intensificada pela agonia do impacto da pandemia, tem tomado a direção contrária, de dar suporte a Joe Biden.
Em 2016, eu, como muita gente, queimei minha língua sobre o resultado das eleições, acompanhando madrugada adentro a apuração e o espanto com o resultado da eleição. Quero crer que, naquele momento, houve o pecado da arrogância dos democratas e de Hillary Clinton, que não foi aos counties mais duvidosos nos estados em que os democratas já tinham como ganhos. Trump estava bem calçado na orientação com big data, e desafiou os republicanos, indo aos counties democratas com um discurso que acabou motivando os eleitores dele a saírem de casa, e os potenciais eleitores dos democratas a ficarem no sofá. E aí ele ganhou naqueles counties, ganhou os estados, e virou presidente tendo menos votos, em termos absolutos, do que a Hillary.
Aquela foi uma demonstração. O Obama já tinha utilizado bem o big data – segundo ele próprio, não para manipular a opinião, mas para saber quais questões estavam na cabeça do eleitorado, que é um uso legítimo. Já no caso do pessoal da Cambridge Analytica, que deu suporte ao Trump, foi com uma posição de incitar com mensagens direcionadas à sua clientela potencial. Aparentemente, esse esquema também foi usado com sucesso em Trinidad e Tobago, um dos países com os quais trabalhei muito. Esse caso, inclusive, é tema de um documentário, Privacidade Hackeada, disponível no Netflix. Lá, a Cambridge Analytica teria enviado mensagens de tal maneira que induziu os trinidadianos de origem indiana a ir votar – como em outros países do Caribe e do Norte da América do Sul, em Trinidad e Tobago há uma associação partidária com grupos étnicos –, e os negros a cruzarem os braços. E houve uma surpresa eleitoral. Hoje não sabemos em que extensão o big data está sendo usado, e que diferença pode fazer. Mas espero que a lição tenha sido aprendida. Além do fato de que a própria pandemia muda o modus operandi da eleição, já que não tem a presença física de candidatos fazendo campanha nos counties. Até agora, a julgar pelas pesquisas, e pesquisas micro que acompanho por municípios, aparentemente Biden tem vantagem.
E como ficaria o governo Bolsonaro com uma vitória de Joe Biden?
No caso do Brasil, é um erro a tentativa de alinhamento, e de percepção do resto do mundo de alinhamento automático, como fez Bolsonaro. Não lhe dá ganhos, e tem custos. O Brasil ganha quando se pauta como países tal qual Austrália e Canadá. Outro exemplo é o de Singapura, ilha no sul da Malásia. É um país rico, de alto nível, multiétnico, composto por descendentes de chineses, malaios e indianos, com regras de equidade étnica. Seu fundador e primeiro-ministro por três décadas, o ditador Lee Kuan Yew, reconheceu certa vez no talk show de Charlie Rose que Singapura só fez sua reforma depois de consultar Deng Xiaoping. Precisava da anuência da poderosa China, até porque a China inclui em sua área de influência os lugares onde a diáspora chinesa tem presença marcante. E Deng Xiaoping autorizou, porque viu aquilo como um experimento cujo sucesso o incentivou a fazer as reformas que levaram a China aonde está. Mas por que estou lembrando isso? Porque mesmo com essa estreita ligação com a China, o atual primeiro-ministro de Singapura fez questão de declarar que, no caso da disputa entre China e Estados Unidos, não estaria alinhado a nenhum deles, pois o país quer ter relações com ambos e se beneficiar do lado benigno dessas relações. Frente a esse exemplo, faz sentido o Brasil ter alinhamento automático? Em qualquer alinhamento subordinado, os custos são maiores que os benefícios. Não é para fazer alinhamento com os Estados Unidos, e nem com a China, mas buscar o que se pode ter de melhor com cada um.
Essa neutralidade era uma característica da diplomacia brasileira até há pouco…
Exatamente. E por conta disso conseguimos ter uma voz e um papel acima do nosso peso. A atual orientação do governo tem uma postura equivocada em termos de custo-benefício para o país. Veja a atitude do presidente em relação à Amazônia. Isso está solapando as possibilidades de obtenção de acordos comerciais, inclusive, porque demos força para os argumentos dos protecionistas agrícolas na Europa, e assim por diante, em detrimento do que poderia ter sido um acordo benéfico. Não por acaso esse argumento ambiental é o que serviu para parcela do Congresso americano chutar a possibilidade de melhora nas condições de comércio entre Brasil e Estados Unidos.
Hoje o governo aposta na atração de investimento estrangeiro em concessões de infraestrutura para impulsionar o crescimento. Considera que o posicionamento do governo quanto à questão ambiental pode atrapalhar esses planos?
Ele não vai ajudar. Veja, temos que reconhecer que, por um lado, os rendimentos de papéis no Brasil vão continuar baixos. E se havia uma tendência subjacente nos países avançados, Estados Unidos e na Europa, de estagnação secular, implicando juros reais de médio e longo prazo baixos, a tentação será grande de serem canalizados para projetos como os planos do Brasil, desde que os aspectos regulatórios sejam vistos como devidamente apropriados. Mas estamos em uma situação intermediária, em que a confiança plena nessa direção não está estabelecida. Até agora o que observamos foi a saída das aplicações em juros no Brasil sem ter voltado para equity. Só temos os nacionais migrando para o mercado de ações, mas quanto aos de fora, nossos fluxos continuam negativos, pois eles só vêm depois de ter se estabelecido alguma confiança.
Nesse contexto, a atitude em relação à Amazônia não ajuda. Até porque também é preciso observar essa expansão na margem de fundos verdes, ou fundos financeiros que seguem diretrizes ambientais, sociais e de qualidade de governança. Eles estão crescendo em atração. Ainda não a ponto de fazer a massa grande de riqueza financeira aceitar rendimento menor em troca de ter segurança quanto à obediência a padrões de governança, meio ambiente e impacto social. Mas é uma tendência.
Recentemente o governo buscou compensar esse problema, através do vice-presidente Mourão, com o anúncio do banimento das queimadas por um período. Mas, até agora, a iniciativa anunciada não foi suficiente para convencer boa parte do resto do mundo de que a atitude do Brasil em relação à Amazônia voltou a ter a relativa responsabilidade que teve no passado. Teria sido melhor se o governo escolhesse atitudes mais concretas, inclusive de demissão do ministro do Meio Ambiente, e de reforçar as agências de fiscalização. Ou seja, desfazer o que foi desfeito pelo governo Bolsonaro até a entrada em cena de Mourão.
Este ano, entre março e maio foram publicados 195 atos relacionados ao tema ambiental, contra 16 no mesmo período de 2019. Isso tem levantado preocupação de empresários, que se reúnem para reclamar uma mudança de postura, afirmando ameaça aos seus negócios…
Pois é. Depois a gente se espanta: cadê o crescimento que não vem? O ganho em temos de incorporação de área da Amazônia é ínfimo em relação à perda no resto. Teríamos tudo para garantir um bom posicionamento na questão da mudança climática. Nossa matriz energética é limpa. Mesmo com as dificuldades que teremos no futuro com o lado hidrelétrico, para o que a devastação da Amazônia joga contra, pois tende a mudar o regime climático prejudicando não apenas a agricultura no Sudeste brasileiro como o regime pluviométrico e a capacidade das hidrelétricas de fornecer energia. Não fosse por isso, definitivamente a gente poderia apresentar um país com matriz energética limpa, expandindo energia eólica, matriz de biocombustíveis bem mais saudável do ponto de vista ambiental do que a que operou nos Estados Unidos com base no milho. Tínhamos tudo para ter os bônus de mostrar para o mundo nossa contribuição para o problema da mudança climática.
Se a recuperação econômica mundial não voltar ao nível pré-crise sanitária como prevê – sua estimativa é de uma recuperação no formato de raiz quadrada –, teremos o problema do desemprego estrutural acentuado, especialmente em países como o Brasil, em que a informalidade é alta. O auxílio emergencial tem amortizado esse efeito no curto prazo, mas como lidar com esse impacto daqui para a frente?
Acho que há dois legados importantes que temos que colocar na linha de frente. Um deles é o de que a preservação do auxílio emergencial é insustentável, no mínimo, pelo custo fiscal. Seria preciso um remanejo tamanho de orçamento que, se hoje a gente tem problemas com escassez de recursos públicos dado o padrão de gastos para as áreas de investimento, não parece correto gastar tanto. Mas tampouco devemos voltar aonde estávamos, apenas com o Bolsa Família e o conjunto de outros programas de seguro social, cuja eficácia temos dúvida de que seja tão forte quanto a do Bolsa Família. Idealmente, vamos chegar no final da pandemia com um programa de transferências mais amplo em termos de massa atingida, e que vai se constituir em uma espécie de renda básica – se não é universal, para uma parcela maior da população brasileira –, a partir da racionalização de programas hoje vigentes. Tem outro lado positivo desse aspecto que foi a ampliação do cadastro da população. Imagina o pesadelo de tentar fazer um esquema de transferência de renda em um país como a Nigéria, em que você tem quase 90% da população informal sem conta bancária. Embora com toda a agonia que se assistiu nas filas e das pessoas que ainda estão fora do sistema, estendemos esse cadastro, que pode ser utilizado no futuro para coleta de informações, aferição de carências de diversas parcelas do público da parte mais inferior da pirâmide de renda, e pensar políticas mais voltadas para ela. Em outros países do mundo, esse legado estará no aprimoramento do sistema de proteção social. Nos Estados Unidos, por exemplo, quero crer que a pandemia vá favorecer a pressão em relação ao problema de universalização do acesso à saúde. É incrível que o país mais poderoso do mundo, a maior economia do mundo, com renda per capita alta, tenha uma parcela substancial da população sem acesso a nenhum seguro-saúde. Na Europa, mesmo o Reino Unido, em que o sistema de proteção social é mais tímido que em países como França e Alemanha, há um seguro-saúde universal.
Ainda no campo assistencial uma segunda coisa importante como legado é fazer algo para integrar as favelas. A importância de melhorar as condições de saneamento e habitabilidade nas favelas é mais alta por conta das externalidades para quem está fora. Supondo-se que agora possamos ter problema com outros tipos de pandemia, não é inteiramente seguro o pessoal que mora em condomínios dizer que pode se isolar. A possibilidade de contágio nas vias urbanas realça a relevância para o conjunto da sociedade de ter uma atitude menos negligente com as condições sanitárias nas favelas.
No caso do desafio de reinserção da população no mercado de trabalho, considera adequada a diretriz defendida pelo governo, de ampliar a flexibilização permitindo a formalização a partir do contrato por horas trabalhadas?
Quero crer que essa flexibilização vai ajudar na incorporação. Temos uma realidade em que a configuração de tecnologia e mercado de trabalho não é como aquela durante o pós-guerra, em que você conseguia se isolar em sindicatos, brigar e ganhar. Mesmo nos países europeus, que têm sistema de proteção social forte, a criação de emprego na margem tem se revelado difícil, porque quem está dentro está protegido, mas ninguém mais consegue entrar. A ponto de os países escandinavos evoluírem na direção da chamada flex security, de prover seguridade através de mecanismos de renda básica que dão uma base de negociação por parte do assalariado, mas sem que esses mecanismos estejam associados a empregos específicos.. A realidade é que a própria revolução tecnológica está tornando difícil essa ideia de trabalhos suficientemente homogêneos e regulares. Para quem consegue estar empregado, o trabalho vai ser flexível, cambiável do ponto de vista tecnológico. Nos Estados Unidos essa realidade se impõe mais facilmente pelo regime de mercado de trabalho já ser mais flexível. O esquema promovido pela França para manutenção de emprego na pandemia, por exemplo, provendo crédito às empresas e associando-o à manutenção do emprego, foi poderoso.. Só que é temporário, no sentido de que se as mudanças resultantes da pandemia forem longas, essas vagas mantidas serão empregos zumbis. Sequer adianta forçar a barra ampliando o crédito, porque em determinado momento essas empresas vão ter que demitir funcionários que não são mais justificáveis do ponto de vista da operação do seu negócio. Esse fato, junto com a tendência à digitalização de processos, vai impor novos desafios em termos de qualificação da mão de obra – não só de requalificação, de educação, mas de uma realidade de relações de trabalho que será mais propensa a coisas como Uber do que como Ford. Nesse sentido, a flexibilização trabalhista é uma questão de imposição de realidade.
Um dos efeitos que considera da pandemia é uma “desglobalização” relativa. Como isso conversa com o conflito Estados Unidos x China, e como considera que essa tendência evoluirá com Biden ou Trump na presidência dos Estados Unidos?
Tem dois movimentos que valem a pena diferenciar. O primeiro, da lógica empresarial que rege as cadeias de valor, de fato pode ser que em alguns casos a tendência a se buscar um seguro contra riscos acabe tendo mais força do que antes em relação à eficiência. Mas isso tem limites. Se colocar toda a cadeia no espaço americano para se proteger de choques na China, ou tsunamis no Japão, pagará um custo muito grande, pois o sucesso global da China foi a redução de custos e aumento de eficiência. E adivinhe: você fica vulnerável a choques nos Estados Unidos. Veja, a Apple continua querendo operar na China. Ela ganha dinheiro lá, parte de sua linha de produção que é feita na China a favorece em termos de custos, na concorrência com produtos não Apple do lado de fora da China. Ela não vai querer mudar.
Onde, sim, pode haver mais mudanças, é do lado das políticas nacionais. Estados com setores públicos querendo garantir segurança e abastecimento em relação a áreas que consideram estratégicas. No Marrocos, o rei declarou que quer aumentar sua capacidade de produção própria de equipamentos médicos e remédios. O presidente da França, Emmanuel Macron, por sua vez, disse que desenvolveria setores essenciais estratégicos. A dúvida é saber até onde vai essa linha demarcatória. É por isso que chamo essa tendência de desglobalização relativa, pois nem tudo que aconteceu nos últimos 30 anos será desfeito. Mas, em algumas áreas, será inevitável que a rivalidade se acentue, até pela própria lógica de poder que rege a gestão pública de países, a alta tecnologia nas áreas de comunicações, de eletrônica, de bioquímica.
Isso também passa no caso dos Estados Unidos, independentemente de quem ganhe a eleição americana. Mesmo Biden, se eleito, deverá ser mais incisivo em relação à disputa tecnológica com a China do que foi Obama, por exemplo. Acho que não tem como ser diferente, pois agora a China não está mais vindo de trás. Não é mais uma questão de usar tecnologias que já existem, abrir espaço para investimento de americanos, japoneses, taiwaneses, aumentar renda e reduzir pobreza. Agora a China está disputando o topo das cadeias globais de valor, e aí a coisa muda de figura. Agora, eu diria que no caso de Biden seria uma postura por uma busca plurilateral, tal como foi com Obama, diferentemente do nacionalismo baseado apenas nos Estados Unidos, como no caso Trump. Até pela aposta equivocada de perder aliados. Ora, se quer estabelecer critérios de segurança a socializar a penetração ou participação de tecnologias chinesas na Europa, você negocia em conjunto com os europeus, e não exigindo que os europeus escolham, ou China, ou eu, como fez Trump.
A pandemia parece ter acentuado também a crise entre organismos multilaterais. Já vínhamos com problemas na OMC, agora os Estados Unidos peitaram a OMS, e a urgência na obtenção de insumos médico-hospitalares fez com que a regra do “farinha pouca meu pirão primeiro” se sobressaísse a iniciativas supranacionais de ajuda a países mais vulneráveis. O que podemos esperar daqui para frente?
Se a crise servir de catalisador para a reavaliação de postura das lideranças, podemos tentar consertar. Mas o quadro, num futuro imediato, é ruim, porque a gente ainda não tem uma forma acabada para responder às mudanças que aconteceram desde que o atual sistema foi configurado. Deixe-me explicar, usando como exemplo o campo financeiro. Nos anos em que fui vice-presidente no Banco Mundial, e diretor-executivo no FMI, vi isso de perto. Na crise financeira global, os países avançados sofreram o baque e fizeram um chamamento aos Brics para fazer parte do jogo – o que correspondeu à mudança do G7, G8 para o fortalecimento do G20, antes constituído por ministros de finanças e banqueiros centrais, tornando-se um grupo de chefes de Estado. Os Brics compareceram, particularmente a China, mais aí surgiu a demanda: seremos doadores de recursos, mas queremos reconhecimento disso nas cotas do banco. Pelos critérios usados no Banco Mundial para definir as parcelas de capital, a China deveria ficar com uma fatia maior que a do Japão, e já seria a segunda. O Japão não autorizou, nem os europeus, estes porque perderiam cadeiras. Os chineses entenderam o recado de que a estrutura não iria mudar o suficiente, e então criaram outros bancos. Primeiro o banco dos Brics, no qual os demais membros disseram não querer o tamanho de instituição que a China gostaria. Então a China aceita fazer um banco mais comedido, e cria outro, o Banco Asiático de Investimento em Infraestrutura. No caso das instituições financeiras de desenvolvimento, já há uma pluralidade, uma convivência que pode ser mais ou menos benigna. Por exemplo, nas Filipinas, um projeto de infraestrutura do Banco Mundial de gestão em inundações em Manila foi acionado pelo banco chinês, interessado em se unir. Foi ótimo, porque os filipinos tiveram mais dinheiro, e o banco asiático teve a oportunidade de ter na carteira um projeto ótimo e aprender com ele.
Esse é um exemplo concreto de um processo que tem que ser feito com a diversidade de instâncias. Mas está claro que essa não é uma solução para todos os casos. No caso da OMC, no que diz respeito a negociações comerciais, já não estava operando. Acho que haveria uma maior probabilidade de êxito em um caminho plurilateral. A busca do sufrágio universal resultou em vulnerabilidade muito grande dos pactos negociados, frente à possibilidade de um dos 164 membros dizer não. Isso foi tão forte que, não à toa, a Rodada Doha foi um fracasso completo. O sufrágio universal serve em alguns casos, como na ONU, mas para ação multilateral é complicado. E qual forma deverá tomar? Provavelmente, de uma colcha de retalhos. Não no estilo Trump, de lei da selva no lugar da regra da lei, impondo-se e ameaçando todos. Mas acho que vamos evoluir, independentemente das diversas áreas, numa convivência múltipla de instituições, de arranjos, de acordos, cada uma delas com estruturas de poder diferentes, refletindo a multipolaridade da estrutura de poder da realidade do nosso tempo.

segunda-feira, 22 de julho de 2019

Bolsonaro: cenas de servilismo explícito em relação a Trump


Irã: Bolsonaro fala grosso com governadores da “Paraíba” e fino com Trump

Reinaldo Azevedo
22/07/2019 06h17 
O navio iraniano Bavand próximo ao porto de Paranaguá, no Paraná (Foto: João Andrade/Reuters)

"Existe esse problema, os EUA, de forma unilateral, têm embargos levantados contra o Irã. As empresas brasileiras foram avisadas por nós desse problema e estão correndo risco nesse sentido. Eu, particularmente, estou me aproximando cada vez mais do [presidente dos EUA, Donald] Trump."
Essa soma de anacolutos só compreensível com alguma boa-vontade saiu da mente divinal do presidente Jair Bolsonaro. É um espanto. Navios iranianos que trouxeram ureia ao Brasil e voltariam a seu país carregados de milho estão impedidos de partir porque sem combustível. A Petrobras se nega a lhes fornecer o produto em razão de embargos impostos pelos EUA ao Irã.
É uma piada. As medidas não alcançam a venda de alimentos e remédios. Assim, o Brasil está sendo mais trumpista do que o próprio Donald Trump.
A empresa Eleva, responsável pela carga dos navios, recorreu à Justiça para tenta obrigar o abastecimento. Perdeu em primeira instância, venceu em segunda, mas a União recorreu. E o caso foi parar no Supremo. Raquel Dodge, procuradora-geral da República, em manifestação enviada ao tribunal, defendeu o não-abastecimento.
É impressionante! As sanções americanas atingem o setor de petróleo. É uma estupidez que a medida alcance a venda de combustíveis para navios que transportam alimentos. Se estes não se incluem entre os itens sancionados, de algum modo precisam chegam àquele país. Sem combustível, como seria possível?
A coisa é de tal sorte ridícula que países como China, Índia, Itália, Japão, Turquia, Coreia do Sul e Índia, que compram petróleo iraniano, podem continuar a fazê-lo para não criar um impacto nos preços internacionais. Mas o Brasil, que vende milho, soja e ração animal ao Irã, estará proibido, então, de exportar commodities agrícolas.
Entenderam? Donald Trump é agora quem decide com quem o Brasil pode fazer comércio. E assim é porque Bolsonaro "está se aproximado cada vez mais" e "particularmente" do presidente norte-americano, segundo a voz do mandatário brasileiro.
Eis aí evidenciada a diferença entre um país aliado e outro que se coloca como mero sabujo dos interesses do "sinhozinho".
Cadê a chamada "bancada ruralista" para protestar? Se o Brasil não pode vender seu milho para o Irã, um dos principais destino do que produzimos aqui, vai vender para quem?
Bolsonaro fala grosso com governadores da "Paraíba" e fino com Trump.
Aliás, na presença daquele a quem trata como chefe, mal consegue esconder o ar de encantamento basbaque e a cara de aliado servil.
E quem vai pagar a conta é o Brasil.
E olhem que o fritador de hambúrguer ainda nem é o nosso embaixador…

Política externa: o servilismo aos EUA, em sua forma mais sabuja

‘Estamos alinhados à política dos EUA’, diz Bolsonaro sobre navios iranianos

Duas embarcações estão no Paraná 
Aguardam abastecimento da Petrobras
Jair Bolsonaro disse nesse domingo que o Brasil está alinhado às políticas do governo dos Estados Unidos Sérgio Lima/Poder360 – 4.jul.2019
Poder 360, 22.jul.2019 (segunda-feira) - 7h34
O presidente Jair Bolsonaro disse no domingo (21.jul.2019) que o Brasil está alinhado à política dos EUA de sanção econômica contra o Irã. Bolsonaro foi questionado por jornalistas sobre duas embarcações iranianas que estão no porto de Paranaguá (PR) e que aguardam abastecimento da Petrobras.
“Sabe que nós estamos alinhados à política deles. Então, fazemos o que tem de fazer”, disse o presidente.
Os navios Bavand e Termeh estão parados desde o início de junho, aguardando abastecimento. As embarcações vieram ao Brasil carregadas de ureia e deveriam retornar ao Irã carregando milho brasileiro.
Por temer represália dos Estados Unidos, a Petrobras não abasteceu as embarcações.
A procuradora-geral da República, Raquel Dodge, deu parecer favorável à Petrobras na última semana. Dodge argumenta que a empresa pode obter o produto de outra forma.

sexta-feira, 29 de março de 2019

Política externa: à margem dos interesses nacionais - Editorial O Globo

Política externa está à margem dos interesses nacionais

Viagem de Bolsonaro a Israel é opção pelo alinhamento à agenda de Trump no Oriente Médio

Editorial O GLobo, 29/03/2019

Prevista para amanhã, a viagem do presidente Jair Bolsonaro a Israel é relevante porque deverá expor contradições de um projeto de política externa claramente incoerente nos fundamentos com os interesses do Estado brasileiro.
A principal motivação da visita presidencial é a opção pelo alinhamento mecânico à agenda de Donald Trump no Oriente Médio. Não se cuidou de analisar as implicações nem mesmo nas relações com as nações árabes e o Irã, compradores de metade da proteína animal produzida no Brasil.
Além de condicionar a diplomacia brasileira à lista de necessidades da Casa Branca, a viagem tem a conveniência política de reforçar laços com frações do ativismo neopentecostal e do ultraconservadorismo judaico, aliados eleitorais de Bolsonaro.
Tudo isso sob uma insólita concepção de Estado que o chanceler Ernesto Araújo tentou traduzir em Washington, há duas semanas. “Quando os cidadãos olham e enxergam apenas o Estado, isso não os transforma” — disse, no seu esforço de dar sentido lógico à atual política externa. “Porque o Estado não gera sentimentos” — continuou—, “e o ser humano é movido por sentimentos. Mas quando olham e enxergam a nação, surge um potencial incrível de criar energia e de unificar o país.”
Arrematou lembrando o slogan eleitoral de Bolsonaro: “‘Deus acima de todos’. Aqui se introduz a concepção de uma realidade vertical, onde o ser humano sabe que possui uma dimensão espiritual e onde a vida não se reduz às leis da física. Com esse lema, o presidente está reconfigurando a realidade brasileira. Com apenas oito palavras está enfrentando o sistema. Um sistema que produziu, por exemplo, uma relação de indiferença ou de hostilidade para com os Estados Unidos”.
Seria uma formulação cômica se não tivesse o caráter de anúncio de quem governa um país regido por Constituição laica, independente de fé religiosa. A ideia de transferência da Embaixada do Brasil de Tel-Aviv para Jerusalém, por exemplo, confronta diretamente esse fundamento laicista da Carta, sem que seja possível indicar serventia a um só interesse nacional concreto.
Ao contrário, desde o enunciado rompe-se um compromisso de ponderação e equidistância preservado desde 1947, quando Oswaldo Aranha presidiu a sessão da ONU que levou à criação do Estado de Israel e de um Estado árabe, ainda inexistente.
Bolsonaro deveria visitar um símbolo desse legado de ponderação e equidistância, que ameaça destruir. No centro de Jerusalém há uma praça chamada Oswaldo Aranha. Fica próxima ao cemitério muçulmano.

quarta-feira, 26 de dezembro de 2018

Relacionamento Brasil-EUA, com realismo - Rubens Barbosa

ALINHAMENTO AUTOMÁTICO OU INTERESSE NACIONAL
Rubens Barbosa
O Estado de S. Paulo, 25/12/2018

A nova geopolítica nas relações hemisféricas abre oportunidades para a expansão das relações Brasil-EUA que não existiram em nenhum outro momento nas últimas décadas. As duas maiores democracias no hemisfério, como é normal, têm interesses e valores convergentes, mas também outros divergentes, que impediam uma maior aproximação entre os dois governos. Razões ideológicas, nos últimos anos, impediram que matérias de nosso interesse fossem tratadas, com prejuízo direto ao cidadão comum e a projetos de grande alcance. 
As relações políticas e diplomáticas do Brasil com os EUA a partir de 2019 devem passar por radical transformação. Declarações do presidente eleito de que "as relações com os EUA ganharão prioridade", de Eduardo Bolsonaro de que "o Brasil está pronto a trabalhar com os EUA em todas as frentes, por convicção de que há grande convergência entre os objetivos e a visão de mundo das duas nações" abrem caminho para uma relação claramente afirmativa. O chanceler designado, Ernesto Araújo, já disse que "o céu é o limite na relação bilateral e que temos de pensar grande para dar um salto qualitativo na aproximação com Washington, o que permitirá fazermos coisas que seriam impensáveis". Em uma perspectiva de médio e longo prazo, parece ser de nosso interesse a ampliação da relação, dentro de ambiente de respeito mutuo e de confiança restaurada, desde que sempre fique claro que nem tudo o que bom para os Estados Unidos é bom para o Brasil. Brasil e EUA devem superar os estereótipos e preconceitos recíprocos e têm de definir o que desejam da relação com o outro. As assimetrias em todos os setores entre Brasil e EUA tornam difícil aceitar que os objetivos globais e a visão de mundo das duas nações sejam comuns, especialmente com as politicas norte-americanas em relação à China, a Síria e ao conflito Israel-Palestina, por exemplo. Um alinhamento automático - não esperado, nem desejado pelos EUA - poderia materializar-se em algumas decisões como a mudança da embaixada brasileira para Jerusalém, ou em politicas globais (mudança de clima, direitos humanos, migração, comércio) - seria um deserviço à politica externa e aos interesses mais amplos do paEis.
            Como desdobramento dessa nova realidade, não será surpresa se os EUA responderem positivamente aos acenos de Brasilia a Washington. As recentes visitas ao Brasil do vice-presidente Mike Pence, do ex-Ministro da Defesa Jim Mattis, e do Subsecretário do Tesouro Sullivan, começaram a modificar a percepção de Washington sobre o Brasil. Alto funcionário da vice-presidência dos EUA declarou que “há um esforço consciente do governo americano, vindo do topo da hierarquia, para uma aproximação com o Brasil.” A percepção é de que a eleição de Bolsonaro traz alguém disposto a ser parceiro”. Washington pode perguntar como o Brasil e os EUA poderiam trabalhar juntos?
O foco da relação Brasil-EUA é basicamente econômico-comercial. Clara mensagem está sendo dada pelo novo governo com a abertura da economia, com meta para o crescimento das relações comerciais, hoje ainda abaixo do potencial das duas economias, e o estímulo do investimento de companhias norte-americanas a partir de novos marcos regulatórios.  
Tendo sido embaixador nos EUA por quase cinco anos, seguindo orientação dos governos FHC e parte do primeiro mandato de Lula, procurei desenvolver ações que resultassem em maior aproximação entre os dois países. Em termos de comércio, de investimentos e mesmo no cenário internacional, o Brasil só teria a ganhar com uma relação mais próxima da única superpotência global. A condição para tanto será definir muito claramente nossos objetivos e nossa agenda nos entendimentos bilaterais. O levantamento do bloqueio de Washington ao pedido de adesão à OCDE, a finalização do acordo de salvaguardas tecnológicas que viabilizará o Centro de Lançamentos de Satélites e restrições protecionistas a produtos nacionais são hoje as principais prioridades. 
Na área política e diplomática, a possibilidade de encontros regulares em alto nível presidencial, poderia facilitar o entendimento entre o Brasil e os EUA no encaminhamento de questões pendentes na América do Sul, como a crise política, econômica e social na Venezuela. O desconvite ao governo de Caracas para a posse presidencial não contribuirá para que o Brasil colabore construtivamente para uma solução pacifica e democrática. Nos organismos internacionais, políticos, financeiros e comerciais, em que o Brasil mantém uma posição de influência, apesar de ter abaixado a voz em algumas áreas, o entendimento poderá ser proveitoso para os dois lados. 
Com visão de futuro, seria de interesse do setor privado dos dois países se o Brasil passasse a receber dos EUA o mesmo tratamento da Coréia, da Índia e da Turquia. Nestes casos, prevaleceram evidentes considerações de natureza estratégica e militar. A motivação no caso do Brasil seria o interesse dos EUA em incrementar uma efetiva parceria com o Brasil nas áreas de comércio e investimento, sobretudo em setores como defesa, espaço e nuclear para permitir o acesso as empresas brasileiras a tecnologias sensíveis na cooperação bilateral. 
Segundo estudos otimistas do National Intelligence Council, de WDC, em 2025, o Brasil será uma potência econômica global entre as cinco maiores economias em termos de PIB.  Nesse cenário, a posição do Brasil na região tenderá a tornar-se cada vez mais ativa e importante. A emergência do Brasil como uma potência econômica colocará novos desafios para a política externa e para a política comercial externa do Brasil, o que poderá contribuir para a construção de uma madura e profícua parceria com os EUA.  
Chegou o momento de um “novo” normal nas relações do Brasil com os EUA.

Rubens Barbosa, presidente do Instituto de Relações Internacionais e Comércio Exterior (IRICE)