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terça-feira, 18 de janeiro de 2022

Diplomacia de Bolsonao ainda aposta no retorno de Trump - Rafael Balago (FSP)

 Como vários outros aspectos da diplomacia bolsolavista, este também é inédito: buscar alternativas estaduais — republicanas e presumivelmente trumpistas — à falta de diálogo no plano fedeal em Washington, executivo e, sobretudo, Congresso. Ou seja, a representação diplomática brasileira investindo numa mudança de lideranças políticas nos EUA, num sentido que evidentemente coincide com as aspirações da atual tropa no poder no Brasil.

Se isso ocorrer, porém, Bozo já não mais estará à frente do Estado brasileiro, ainda que possa eventualmente cumprimentar seu “amigo” Trump.

Paulo Roberto de Almeida 

Embaixador do Brasil nos EUA busca se aproximar de estados após tensão com Congresso

Nestor Forster teve encontros com governos de Carolina do Sul e Geórgia, que combatem vacinação obrigatória

Folha de S. Paulo, 18.jan.2022 às 7h00
Rafael Balago

WASHINGTON - O embaixador do Brasil em Washington, Nestor Forster, tem apostado em se aproximar de governos e entidades estaduais dos Estados Unidos, em uma estratégia para melhorar a interlocução e desviar da pressão que o Brasil tem sofrido no Congresso americano. Vários parlamentares têm feito críticas fortes ao presidente Jair Bolsonaro (PL) e pedido por um esfriamento na relação entre os dois países.

Nos últimos meses de 2021, Forster fez ao menos quatro viagens. O diplomata alternou idas a estados governados por democratas (como Connecticut e Carolina do Norte) com áreas sob comando republicano (caso de Carolina do Sul e Geórgia), mas é nestes últimos que ele tem obtido mais resultados.

Na Carolina do Sul, por exemplo, o embaixador assinou um memorando de entendimento para ampliar o comércio e a troca de investimentos entre o estado e o Brasil, no final de outubro —em 2020, negociações entre os dois movimentaram US$ 910 milhões. Foi o primeiro termo do tipo já fechado com um ente subnacional dos EUA. "Continuaremos a trabalhar juntos no comércio e nos investimentos e a fortalecer nossa parceria", disse o governador republicano Henry McMaster, ao assinar o documento.

Crítico do presidente Joe Biden, McMaster tem combatido as determinações de vacinação obrigatória impostas pela Casa Branca para controlar a pandemia de coronavírus. A Carolina do Sul foi um dos estados que processaram o governo federal e conseguiram barrar a exigência na Justiça.

"Estamos chocados com os excessos do governo Biden. Nunca vi um presidente agir além da lei como esse. Nenhum morador da Carolina do Sul deveria ter de escolher entre seu emprego e uma vacina contra a Covid-19", disse o governador, em novembro. Ele também assinou um decreto para proibir órgãos estaduais de exigir a vacinação de funcionários.

O republicano se coloca ainda como defensor de pautas conservadoras. Pediu publicamente ao superintendente de educação do estado que investigue denúncias de livros com "trechos obscenos" em bibliotecas de escolas públicas; como exemplo, citou queixas de pais sobre a obra "Gender Queer: A Memoir", de Maia Kobabe, livro em quadrinhos sobre transição de gênero. Ele também defende que a Suprema Corte revogue o direito ao aborto.

Na vizinha Geórgia, cujo governo também processou a Casa Branca para suspender as exigências de vacina, Forster se encontrou com representantes dos departamentos estaduais de Agricultura e Desenvolvimento, no começo de novembro.

Pat Wilson, comissário do Departamento de Desenvolvimento Econômico, disse à Folha ter ficado honrado com a visita do embaixador. Segundo ele, a relação do estado com o Brasil vem de longa data, pois a Geórgia tem um escritório em São Paulo há 25 anos. "Um grande número de empresas brasileiras emprega milhares de georgianos. Negócios da Taurus [fabricante de armas], da Guidoni [de extração de rochas ornamentais] e da Embraer [aviação] se tornaram parte importante da nossa comunidade", disse.

Já em estados sob comando democrata, como Carolina do Norte e Connecticut, a agenda do embaixador se concentrou em visitas a fábricas —como a da Gerdau—, universidades e centros de pesquisa locais. "Assim como o Brasil, os EUA são um país complexo, de grande diversidade regional, e é importante que a embaixada busque ampliar sua presença junto a comunidades locais", disse Forster.

As visitas fazem parte de um plano para ampliar a interlocução do Brasil com estados americanos e buscar mais parceiros fora de Washington. A determinação foi encorajada por Bolsonaro, que antes da pandemia também fez visitas aos EUA em cidades afastadas da capital.

O presidente esteve na Flórida em 2020 e um ano antes foi ao Texas —nesta última viagem, para receber um prêmio que seria entregue inicialmente em Nova York, mas teve a cerimônia alterada após pressão pública do prefeito democrata Bill de Blasio, para que Bolsonaro não fosse à cidade. Os movimentos buscavam também reforçar o alinhamento com o ex-presidente Donald Trump; o brasileiro fez campanha aberta pela reeleição do republicano, que acabou derrotado por Biden em novembro de 2020.

Para Fernanda Magnotta, pesquisadora do Cebri (Centro Brasileiro de Relações Internacionais), essa atuação de Forster pode ser parte de um novo cenário global, no qual líderes locais ampliam a atuação internacional, e também uma resposta às ações recentes de governadores brasileiros. "Eles tomaram a frente na importação de vacinas e buscando protagonismo em agendas como a do ambiente. Em Glasgow [na COP26], havia a delegação brasileira e representantes dos estados, muitas vezes dissonantes", avalia.

Funcionários da embaixada também esperam que as viagens estaduais ajudem a fortalecer as relações com parlamentares americanos no Congresso. Forster teve reuniões recentes com o senador republicano Lindsey Graham, da Carolina do Sul, e com o deputado democrata Bill Keatind, de Massachussets.

O governo brasileiro tem sido alvo de fortes críticas no Congresso dos EUA. Desde setembro, nomes democratas do Capitólio mandaram ao menos três cartas ao governo Biden, pedindo um distanciamento na relação entre os dois países. Na mais recente delas, do começo de dezembro, oito senadores democratas pediram um "reset" diplomático e acusaram Bolsonaro de ser responsável pela alta no desmatamento no Brasil e por ameaçar a democracia no país.

Como mostrou a Folha, os textos se inserem em um contexto de pressão feita por ativistas e grupos progressistas do partido do presidente americano.

O embaixador respondeu aos críticos do governo brasileiro, também com cartas, nas quais defendeu as ações de Bolsonaro e chegou a dizer que parlamentares americanos estavam mal informados.

https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2022/01/embaixador-do-brasil-nos-eua-busca-se-aproximar-de-estados-apos-tensao-com-congresso.shtml


terça-feira, 10 de agosto de 2021

A cenoura e a soberania (os EUA e o Brasil de Bolsonaro, um trompista) - Rubens Barbosa (OESP)

 A CENOURA E A SOBERANIA

Rubens Barbosa

O Estado de S. Paulo, 10/08/2021 

Na semana passada, o conselheiro de Segurança Nacional dos Estados Unidos, Jake Sullivan, visitou o Brasil e “abordou uma gama de prioridades estratégicas durante as reuniões de alto escalão com o governo brasileiro”, segundo comunicado oficial do governo dos EUA.

A aproximação com o governo Bolsonaro deve ser vista como uma ação pragmática dentro do contexto mais amplo da política externa e dos interesses geopolíticos dos EUA. A vinda da missão norte-americana de alto nível teve a ver, em especial, com o interesse do governo Biden de se contrapor a China no setor tecnológico, um dos componentes da confrontação geopolítica entre os dois países.  A exclusão das empresas chinesas do 5G na Europa, África e Américas é uma das principais prioridades da diplomacia americana.

No contexto dessa visão estratégica, o governo Biden, enfrentando oposição da ala progressista do Partido, optou por fazer um gesto ao governo Bolsonaro ao oferecer a oportunidade do Brasil se tornar um sócio global da OTAN. A entrada permitiria acesso ao programa de cooperação da aliança militar. A eventual inclusão do Brasil como “sócio global” da Otan ofereceria igualmente condições especiais para a compra de armamentos de países que integram a organização e abriria espaço para a capacitação de pessoal militar nas bases da aliança ao redor do mundo. O governo Biden já havia deixado Brasília saber que a participação de empresas chinesas inviabilizaria a cooperação na área de defesa e segurança. Não é preciso muita imaginação para entender que esse oferecimento, tem de ver com o possível apoio dos militares no governo para reverter a decisão já tomada de não restringir a participação de qualquer empresa na licitação da Anatel. Como se sabe, nessa questão há uma divisão entre os militares. De um lado, o Gabinete de Segurança Institucional (GSI) adotou publicamente uma posição contrária a participação da Chinausando argumentos de segurança nacional, mas outros membros das Forças Armadas, junto com as teles nacionais, são favoráveis, por nunca ter havido qualquer problema nas mais de duas décadas em que a empresa chinesa atua no país. Esse oferecimento, assim, foi apresentado como contrapartida ao veto à participação da Huawei no futuro mercado de 5G nacional. A relevância do mercado brasileiro e a perspectiva de influir na decisão de outros países sul-americanos são preocupações de Washington. No referido comunicado ao final da visita, ficou registrado que, em relação ao 5G, os EUA continuam a ter fortes preocupações sobre o papel potencial da Huawei na infraestrutura de telecomunicações do Brasil, bem como em outros países ao redor do mundo. A ausência de referência à posição do Brasil é positiva no sentido de que aparentemente o Brasil não cedeu, de imediato, as pressões dos EUA.

Encontra-se em gestação a reação do governo ao oferecimento de parceria global da OTAN e à pressão de Washington no tocante ao 5G. Espera-se que o estamento militar no governo deixe de lado interesses corporativos e aceite a decisão já anunciada de permitir a participação de todos. Na tomada da decisão, devem ficar claras as consequências para o Brasil de uma concessão aos EUA nessas questões.

O Brasil tem preocupação com a expansão da OTAN no Atlântico Sul, área prioritária na estratégia nacional de Defesa. O novo status poderia colocar o Brasil como instrumento dessa expansão, contrariando a política mantida até aqui, e podendo mesmo acarretar reação da Argentina em função das Malvinas.

Aceitando a pressão norte-americana, sem considerar os impactos negativos no setor de telecomunicações e no setor produtivo (indústria e agricultura), caso a regulamentação interna sobre a licitação do 5G seja alterada (por Decreto, pois não será possível modificar as regras fixadas pela Anatel, sem recomeçar todo o processo e sem audiência do TCU) e a participação de empresas chinesas fique inviabilizada, deverá haver repercussões concretas no relacionamento com a China. A questão do 5G é de crucial importância também para a China, como se viu na forte reação contra a Austrália depois do cancelamento da participação de empresas chinesas.  O governo chinês poderia tomar medidas restritivas em relação às exportações de produtos agropecuários brasileiros, investimentos no Brasil, à exportação de vacinas e de insumos farmacêuticos e aumentar sua presença econômico-comercial na América do Sul prejudicando nossos produtos.

Além disso, o atendimento dos interesses americanos não vai diminuir a pressão dos EUA no tocante à política ambiental e de mudança de clima em relação às ações ilegais na Amazônia (desmatamento, grilagem e queimadas), à direitos humanos e democracia (eleições em 2022), como explicitado no comunicado oficial.

Em vista dos interesses concretos que poderão ser afetados, o Brasil não pode senão adotar uma posição de independência no confronto tecnológico, comercial e geopolítico entre os EUA e a China. Motivações ideológicas ou geopolíticas não podem afetar os interesses do Brasil no médio e longo prazo. O Brasil em primeiro lugar.

Rubens Barbosa, presidente do IRICE


quarta-feira, 6 de janeiro de 2021

Relações Brasil Estados Unidos no governo Biden - Paulo Sotero (Interesse Nacional)

O jornalista Paulo Sotero é o mais bem informado jornalista brasileiro sobre as relações Brasil-Estados Unidos, uma vez que seguiu pessoalmente essas relações desde os anos 1990, quando saiu de Paris, onde ficou alguns anos como correspondente da Veja, e foi para Washington, onde ficou como correspondente do Estadão.

Abaixo, em primeiro lugar, um artigo escrito ANTES das eleições de novembro, discorrendo o que seriam essas relações num governo Biden em Washington. Mais abaixo, o artigo que ele escreveu para a revista Interesse Nacional, já refletindo as novas realidades pós eleitorais, mas antes da posse de Biden.

Paulo Roberto de Almeida


Biden não hostilizará o Brasil

Mas não terá tempo para Bolsonaro

PAULO SOTERO

 O Estado de São Paulo, outubro 2020


O risco imediato é que o presidente e seus asseclas declarem simpatia por Trump nas disputas eleitorais pendentes nos EUA

 

O governo de Joseph Biden não hostilizará o Brasil. Mas não terá tempo para o país enquanto arautos do trumpolavismo e passadores de boiada derem cartas em Brasília. Como pouco ou nada se espera em Washington do presidente do Brasil, a ausência dos cumprimentos protocolares ao presidente eleito dos Estados Unidos não faz diferença. Mas os comentários de Jair Bolsonaro e de membros de seu séquito sobre o processo eleitoral americano pesam e pesarão contra o país.

No momento apropriado, a futura administração em Washington buscará um diálogo construtivo com o Brasil  em duas questões prementes de interesse mútuo. A mais urgente é a contenção do vírus que tem aliados em Bolsonaro e Trump e fez dos dois países os maiores necrotérios mundiais de covid-19, com mais de 400 mil mortos entre eles — um número que pode dobrar antes de ser controlado no ano que vem. Os assessores do presidente eleito dos EUA sabem da qualidade da medicina sanitária no Brasil e de sua capacidade na produção de vacinas em escala industrial. Ajudaria, é óbvio, que o país tivesse um ministro da Saúde à altura do desafio posto pela segunda onda do vírus, que está em pleno curso no hemisfério norte e fatalmente chegará ao Brasil. 

O segundo assunto premente de interesse mútuo é a contenção do aquecimento global. Um dos primeiro atos do presidente Biden, em janeiro, será a readesão dos EUA à Convenção das Nações Unidas sobre a Mudança do Clima, que Trump abandonou. Lançada na Rio 92, a Convenção produziu um acordo histórico em Paris, em dezembro de 2015, sobre a redução voluntária pelos países signatários de suas emissões dos gases poluidores a níveis que mantenham o aquecimento da atmosfera abaixo de dois graus centígrados. As emissões brasileiras estão entre as maiores e derivam, principalmente, do desmatamento e expansão desordenada da pecuária no arco da Amazônia.

De imediato, caberá a atores e instituições da sociedade civil brasileira cultivar laços com a nova admnistração e compensar as faltas do governo, que é obviamente pior do que a nação. Brasília ajudará se evitar dar palpites sobre a crise potencialmente gravíssima gerada pela resistência de Trump em reconhecer a vitória de Biden e seu desejo de sabotar a transição. “Estou alarmado” com as ações desse “patife e fora da lei”, afirmou na última quarta-feira à MSNBC o ex-general Barry McCaffrey, ministro do governo Clinton e um dos militares mais condecorados de seu país, referindo-se a Trump. A fúria de McCaffrey, compartilhada por seus colegas ex-generais, foi provocada pela decisão de Trump de mandar embora pelo tweeter o secretário da Defesa Mark Esper e trocar o alto comando do Pentágono por ideólogos inexperientes, da mesma laia dos amadores que compõem o gabinete do ódio incrustrado no Palácio do Planalto, com o beneplácito de Bolsonaro. Trocas parecidas podem acontecer no comando da CIA, do FBI e do Departamento de Segurança Interna. Essas mudanças imprudentes, desnecessárias e injustificáveis às vésperas da troca do governo alarmam os generais e os especialistas civis em segurança nacional. O temor é que adversários dos EUA usem as oportunidades que elas obviamente oferecem e façam movimentos que requeiram uma resposta militar.

Tendo negado, durante a campanha, comprometer-se com uma transição ordeira de poder caso perdesse a eleição, Trump embarcou numa irresponsável estratégia para alimentar o caos — sua especialidade —, tumultuando a recontagem automática de votos nos estados onde perdeu por pouco e aprofundando a divisão política e o ódio racial até as vésperas do início da nova administração. O palco da contenda são as acirradas disputas por duas vagas ao Senado federal no estado da Geórgia, a serem decididas em segundo turno, na primeira semana de janeiro. Elas criam espaço para Trump continuar a fazer estragos, com a ajuda da liderança do Partido Republicano, que conseguiu aumentar sua bancada na Câmara de Representantes, onde é minoritário, e está na briga para manter a maioria no Senado, que perderá se os democratas elegerem dois senadores na Geórgia. 

Esse é o tenso contexto no qual o Brasil não se deve meter, pois nada de relevante tem a dizer ou a ganhar e muito perderá voluntariando opiniões em assuntos que não são de sua conta. Declarações de Bolsonaro prometendo “pólvora” se os EUA impuserem sanções contra o Brasil por conta do desmatamento na Amazônia preocupam, - sobretudo por revelarem o despreparo do líder brasileiro. Sanções contra o Brasil inevitavelmente virão, mas de países da Europa importadores de nossos produtos agrícolas e/ou sob a forma do sepultamento do acordo comercial Mercosul–União Europeia, já há tempo nas cordas.   

 Preocupa também a inclinação do atual comando do Itamaraty a fazer tolices, como vangloriar-se da nova posição de pária internacional. Bravatas e declarações estúpidas mostram que a presença do país na cena internacional deixou de ser indispensável. 

Jornalista, é pesquisador sênior do Brazil Institute no Wilson Center, em Washington 

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Na era Biden, o Itamaraty ‘Trumpolavista’ Ficará Falando Sozinho

 

De volta a Washington, em dezembro de 2013, depois de quase quatro anos como embaixador em Brasília, Thomas A. Shannon recordou afirmação que havia feito ao partir para a missão sobre o efeito salutar da crescente conectividade das sociedades dos dois países, já visível então, a despeito da distância e das turbulências ocasionais do diálogo oficial. “Eu disse que nossas sociedades e nossos povos — e não nossos governos — se tornariam os principais motivadores de nosso relacionamento”, lembrou Shannon, em palestra no Wilson Center. A presciente observação do diplomata, que concluiu sua carreira em 2018 como vice-secretário de Estado, descreve o desafio criado para o Brasil pela eleição à Casa Branca do centrista Joseph R. Biden e a fragorosa derrota que ele impôs ao populista de extrema-direita Donald Trump, cujo arremedo tropical, Jair Bolsonaro, permanecerá no Palácio do Planalto. Trata-se de promover e ancorar o relacionamento em interesses reais mútuos que vão além dos governos e a eles se impõem.

Biden conhece e valoriza o Brasil. Ele está ciente das complexidades do País e será assessorado por especialistas fluentes em português e conhecedores da realidade brasileira. Por temperamento e convicção, o novo líder americano não hostilizará o País e não fará preleções. Os EUA estão saindo de uma experiência política traumática, ainda não superada, que colocou em questão, dentro e fora do país, a noção de excepcionalidade americana que desde sempre inspirou a arrogância com que seus líderes falavam ao mundo.

Isso não significa, no entanto, que o novo líder americano, empenhado em reconstruir os laços de seu país com o mundo, terá tempo para as esquisitices e absurdos do “trumpolavismo” ou a má-fé e tolices dos passadores de boiadas que dão cartas em setores importantes do governo brasileiro. O mesmo se aplica à valentia retórica do próprio Bolsorano, que reagiu ao alerta feito por Biden num debate com Trump, durante a campanha, sobre “consequências econômicas significativas” que o Brasil enfrentará se não parar de “destruir a floresta [amazônica]”, afirmando que o governo responderia “com pólvora” à imposição de sanções contra o país. A troca politizou a relação bilateral no Partido Democrata, no qual o líder brasileiro não tem simpatizantes e pode, potencialmente, limitar Biden. A propósito, não faz falta a ausência de cumprimentos protocolares de Bolsonaro a Biden, que não tinham sido apresentados até o início de dezembro. Mas caíram mal e não serão facilmente relevados os irresponsáveis comentários do presidente brasileiro sobre alegações de fraude na eleição de Biden. Não se deve esperar, assim, que o novo governo em Washington priorize as relações com o Brasil.

Contenção da COVID-19 é tema mais urgente da pauta bilateral

Dois temas do tóxico legado de Trump mantêm o País no radar e exigem atenção imediata. O mais urgente é a pandemia. Transformados nos dois maiores necrotérios mundiais de Covid-19 pelo negacionismo e pela negligência de Trump e Bolsonaro, os EUA e o Brasil estão fadados a intensificar a cooperação bilateral na produção de vacinas nos próximos meses. É antiga a cooperação entre as escolas de medicina e os centros de pesquisas sanitárias dos dois países e o intercâmbio de especialistas. É reconhecida a capacidade instalada no Brasil para a produção de vacinas em escala industrial, essencial para a superação do flagelo não apenas em casa, mas nos países vizinhos e em partes da África.

O outro tema que se impõe é a questão ambiental. Ela voltará com força à pauta no dia da posse de Biden, quando sua administração notificará às partes sobre a readesão dos EUA à Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima. Numa de suas primeiras decisões, o novo líder americano reforçou o compromisso com a sustentabilidade ambiental, elevando o ex-secretário de Estado John Kerry ao novo posto de Enviado Especial para Clima, com status de ministro e amplo apoio da vasta rede de entidades científicas públicas e privadas, empresas e organizações civis dedicadas à restauração e preservação do meio ambiente. No Brasil, parece claro que essa conexão dependerá crucialmente de atores relevantes da sociedade civil presentes nas empresas e entidades do setor privado, do terceiro setor, na academia e nos meios de comunicação. Trata-se de uma tarefa de articulação estratégica de interesses concretos, com objetivos mensuráveis ao longo do tempo, como o fim do desmatamento nos grandes biomas, o reflorestamento e a adoção de métodos e tecnologias limpas na produção, transporte e comercialização de bens e serviços.

Esse trabalho já começou e vai adiantado. Ele está patente nas atividades dos setores modernos do agronegócio e começa a ganhar espaço nas discussões de políticas públicas. Em julho passado, 17 ex-ministros da Fazenda e ex-presidentes do Banco Central divulgaram declaração conjunta em defesa de uma economia de baixo carbono no país. Ainda que tardia, quando se considera que veio quase 30 anos depois da Rio 92 — a Conferência das Nações Unidas para o Meio Ambiente e o Desenvolvimento que internalizou politicamente o assunto —, a iniciativa revelou à nação a salutar descoberta pela elite econômica nacional da necessidade de incorporar dimensão ambiental às políticas de expansão do PIB e promoção da prosperidade.

Em agosto, pressionados pela urgência que o assunto ganhou com a chegada ao poder de Bolsonaro e de sua deletéria abordagem do assunto, uma centena de líderes de vários setores, que vinham conversando há tempos — entre eles os empresários Guilherme Leal, Natura e presidente a Instituto Arapyaú; Cândido Bracher, Itaú; Walter Schalka, Suzano; Marcos Molina, Marfrig; José Roberto Marinho, Grupo Globo e Instituto Humanize; e Denis Minev, Lojas Bemol, maior rede varejista da região Norte —, lançou a “Concertação pela Amazônia” com objetivos que vão além das boas intenções. O propósito é “institucionalizar um debate plural e democrático voltado ao desenvolvimento sustentável da região”, com base em diagnóstico que “subsidiará a construção de uma visão de futuro” para a Amazônia, alicerçada num “movimento que torne perene a implementação de uma agenda de desenvolvimento sustentável no território”.

É dessa iniciativa que devem sair participantes de um diálogo consequente e duradouro com organizações da sociedade americana e com a administração Biden. Os atores dos dois países nesse empreendimento cooperam há anos e têm histórico de realizações. A ex-ministra do Meio Ambiente, Izabella Teixeira, trabalhou intensamente na construção do Acordo de Paris da Convenção do Clima, em 2015, com o negociador americano Todd Stern, então líder no Conselho de Segurança da Casa Branca nas negociações. Principal autora do Código Florestal de 2012, Izabella é interlocutora respeitada pela nova administração em Washington, bem como por governos e organizações ambientais de nações líderes na Europa e pelas agências das Nações Unidas.

O fato de o governo brasileiro continuar cegamente na ignorância negacionista sobre os desafios que o País enfrenta na Amazônia, orientado pela miopia quase religiosa dos arautos locais do “antiglobalismo”, seja isso o que for, não impede o engajamento de participantes e apoiadores da concertação com atores importantes em Brasília, como o vice-presidente Hamilton Mourão, que lidera o Conselho Nacional da Amazônia Legal, e a ministra da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, Tereza Cristina da Costa Dias, ex-deputada do Mato Grosso do Sul ligada ao setor agropecuário, com quem Izabella Teixeira tem bom diálogo.

Volta da diplomacia nos EUA deixará o Itamaraty trumpista ainda mais isolado

É pelo diálogo que a nova administração Biden pretende reconstruir as relações internacionais dos EUA, fortemente danificadas por Trump. Estas voltam agora aos trilhos da diplomacia, que guiarão a reinserção do País no mundo. É assim que Washington buscará estabilizar as relações com adversários, como a decadente potência Russa, uma China ascendente ou a emergente Índia, a qual conta com bem-sucedida colônia de imigrantes e seus descendentes no País, entre as quais a vice-presidente Kamala Harris.

Nas Américas, o Canadá, aliado próximo com o qual os EUA compartilham sua maior fronteira e fortes laços culturais e econômicos forjados em séculos de história, voltará ao lugar tradicional de principal aliado no continente. Ao sul, o México, origem da maior comunidade de imigrantes do país, e a Colômbia, principal fonte do flagelo do tráfico ilícito de drogas, enraizaram conexões amplas e profundas com os EUA no último quarto de século, e terão prioridade na América de fala espanhola. Entre os demais países do hemisfério, ganharão os que celebraram acordos comerciais em décadas recentes.

Na frente interna, Biden tem a árdua missão de processar as lições da campanha que o elegeu e incorporá-las às ações da administração. Homem afável, politicamente moderado e experiente, com 44 anos no Senado e oito na vice-presidência, o novo ocupante da Casa Branca sabe que Donald Trump, embora vencido, seguirá como um fator de perturbação na vida americana.

Faltando apurar votos residuais, Biden recebeu 79,7 milhões, 6 milhões mais do que Trump, numa disputa que teve participação de 67% eleitores, a maior em 120 anos, num País onde o voto não é obrigatório e a abstenção oscila em torno dos 50%. Biden prevaleceu no placar do Colégio Eleitoral, que reflete o tamanho das populações dos 50 estados e é a conta que vale. Venceu com 306 votos eleitorais, dos 538 possíveis, o mesmo placar que Trump descreveu como “vitória esmagadora” quando bateu a ex-secretária de Estado Hillary Clinton em 2016.

Mas o triunfo de Biden não produziu um mandato político claro. A votação que Trump obteve nas urnas foi a segunda maior da história do País e municiou o republicano a permanecer no cenário como força política. Sua presença inibirá por algum tempo o surgimento e a afirmação de novos líderes nacionais no partido conservador, especialmente se ele anunciar candidatura à Casa Branca para 2024. Os planos de Trump podem ser frustrados pelos processos judiciais por corrupção, que ele, filhos e associados estão fadados a enfrentar nos próximos meses no Estado de Nova York e, eventualmente, no plano federal.

Biden afirmou que não pretende guiar-se pelo sentimento de vingança, forte entre muitos democratas, e que exacerbaria a divisão entre americanos, a qual ele precisa superar para dar efetividade ao seu governo. Mas sabe que cometerá erro crasso se ignorar o peso político de Trump e sua capacidade midiática para promover o caos e semear crises, que é parte de sua estratégia para permanecer relevante.

Some-se a isso o desempenho surpreendentemente medíocre dos democratas nas eleições parlamentares, que ocorreram simultaneamente à disputa presidencial. Na Câmara de Representantes, o partido de Biden viu a confortável maioria de mais de 30 cadeiras, num total de 435, encolher para menos de dez. Estrategistas do partido atribuíram o recuo à rejeição pelos eleitores de propostas radicais promovidas pela esquerda, como a eliminação ou redução de verbas para as polícias municipais, acusadas de fomentar o ódio racial, a aceleração das políticas de transição para energias limpas e a socialização do sistema federal de seguro saúde, que é anátema numa nação fundada na liberdade individual e no capitalismo.

Essas propostas abriram divisões entre os democratas e contribuíram para frustrar a conquista da maioria do Senado num pleito em que os republicanos tinham um maior número de cadeiras em jogo. O racha interno entre os democratas deixou a esquerda do partido frustrada e motivada a contestar a moderação de Biden. Nesse contexto, a ampla e merecida publicidade negativa que a política ambiental do governo Bolsonaro recebeu na imprensa americana e internacional torna o País alvo certeiro de críticas. Mas, as críticas podem também reduzir e envenenar o espaço para interações produtivas entre os participantes da Concertação pela Amazônia e seus aliados dentro e fora da nova administração americana.

A decisão sobre o controle do Senado, crucial para a aprovação das propostas orçamentárias do novo governo e a confirmação dos 15 membros do gabinete de ministros e dezenas de outros integrantes da alta hierarquia, incluindo embaixadores, acontecerá na primeira semana de janeiro em disputas de segundo turno pendentes no estado da Georgia. Esse é o complexo e ainda indefinido panorama que os atores brasileiros devem ter em mente em suas interações com Washington e seus interlocutores nos EUA. A entrada em cena de representantes de peso da sociedade civil brasileira será muito bem-vinda se injetar realismo e der lastro ao que os dois países podem e devem buscar juntos.

Décadas de frustrações esvaziaram relações oficiais entre Brasília
e Washington

A história das relações bilaterais mostra as limitações de tentativas de aproximação quando deixadas aos governos. O ex-presidente Fernando Collor de Mello, que ganhou o apelido de Indiana Jones na administração George H. W. Bush por seu estilo espetaculoso de agir, iniciou a abertura da economia e pôs simbólica pá de cal no programa nuclear, como queria Washington. Seu maior e último feito foi presidir a Rio-92 semanas antes de renunciar para não ser removido por impeachment, após denúncia de corrupção feita por um de seus irmãos.

Os seis anos em que Fernando Henrique e Bill Clinton coincidiram no poder levou a uma maior aproximação entre os dois países. Mas esta murchou na recusa do Brasil de embarcar na proposta americana de integração econômica regional seletiva e terminou em frustração dos dois lados. Nas presidências de Luiz Inácio Lula da Silva e de George W. Bush, que também coincidiram seis anos no poder, Brasília elegeu o projeto da Área de Livre Comércio das Américas, a Alca, que Fernando Henrique rejeitara na Terceira Cúpula das Américas, em Quebec, como alvo predileto, argumentando que o arranjo representaria a anexação da economia brasileira pela americana. A produção de etanol nos dois países foi o mote de um estreitamento de laços que viu o líder americano visitar duas vezes o Brasil antes de o governo brasileiro mudar o foco de sua política energética para o pré-sal e, com isso, labuzar-se em negócios escusos que entraram para a história como o maior escândalo de corrupção de todos os tempos.

Nos dois anos em que Barack Obama e Lula governaram simultaneamente, a China tornou-se o principal parceiro comercial do Brasil e deu-se o maior curto-circuito da história das relações bilaterais — numa fracassada tentativa de mediação pelo Brasil e a Turquia, apoiada inicialmente pelo líder americano, de um acordo nuclear entre o Irã e os cinco membros permanentes do Conselho de Segurança da ONU e a Alemanha. O grave incidente em maio de 2010, deixou mágoas nos dois países e foi superado apenas com a posse de Dilma Rousseff, em 2011. Primeira mulher presidente do Brasil e sem talento para a diplomacia, amargou episódio de espionagem americana em seu celular e na Petrobras. A revelação do embaraçoso episódio motivou a vinda do vice-presidente Biden a Brasília, em missão de panos quentes que, ironicamente, abriu caminho para o momento mais produtivo da relação bilateral. Depois de uma segunda visita de Biden para a abertura da Copa do Mundo de 2014, Dilma fez visita aos EUA em meados de 2015, na qual Obama e John Kerry, secretário de Estado, empenharam-se em garantir participação efetiva do Brasil em reunião da Convenção do Clima em dezembro em Paris.

A reunião produziu histórico acordo sobre as contribuições nacionais voluntárias de redução das emissões de CO2. A contribuição da delegação brasileira foi amplamente reconhecida em Washington e outras capitais e abriu espaços providenciais a serem explorados agora, na era Biden, para a construção de agenda produtiva por atores influentes da sociedade civil já mobilizados para a tarefa – goste ou não Bolsonaro.

 

 

quarta-feira, 11 de novembro de 2020

Relações Brasil-EUA e mudanças de presidente Trump para Biden - Paulo Roberto de Almeida

 As eleições americanas e as relações do Brasil com os Estados Unidos: da subordinação a Trump a simulações sob uma presidência Biden  

Paulo Roberto de Almeida

(www.pralmeida.orghttp://diplomatizzando.blogspot.com)

  

1. A relação Brasil-Estados Unidos: da busca de autonomia à subordinação a Trump

As interações entre os dois maiores países do hemisfério americano sempre foram marcadas por evidente assimetria, dada a magnitude do poder econômico e militar assumida pelos Estados Unidos, mas elas constituíram, de qualquer modo, a mais importante relação bilateral do Brasil desde o início do período republicano até a atualidade, nas várias interfaces nas quais se distribuem essa complexa interação (comercial, financeira, tecnológica, militar, educacional e científica, cultural, turística e, last but not the least, diplomática). 

Os Estados Unidos foram, aliás, o primeiro país – não considerando Buenos Aires – a reconhecer a independência do Brasil, em 1824, assim como os EUA estiveram entre os primeiros a reconhecer o novo regime republicano e se colocando ao seu lado em 1893, quando da revolta da Armada, por muitos considerada como uma tentativa de restauração monárquica. Essa relação já era relevante desde meados do século, já que os americanos se converteram nos principais importadores do principal produto brasileiro de exportação, o café. Mas foi a partir do início do século XX que eles se tornaram, também, financiadores competitivos, ao lado dos banqueiros britânicos, e, logo depois, em investidores diretos (a Ford montou uma montadora de seus veículos desde 1919). Essa relação foi reforçada por ocasião da Grande Depressão, quando Roosevelt busca evitar a ocupação de espaços na América Latina pelas potências nazifascistas, bem como no decorrer da Segunda Guerra Mundial e no seu imediato seguimento, quando ocorre certa “americanização do Brasil”, reforçada durante a primeira fase da Guerra Fria, mas sobretudo por ocasião do golpe militar de 1964. 

Acadêmicos costumam falar de “alinhamento automático” em relação a dois curtos períodos da diplomacia brasileira: nos anos Dutra (1946-50) e durante uma breve fase ao início dos anos 1960, por ocasião do primeiro governo dos generais. Não há consenso, porém, sobre o significado real desse tipo de conceituação, uma vez que nesses dois períodos o que o Brasil buscava, na verdade, era uma grande barganha, sempre enfatizando a necessidade de recursos para concretizar seus projetos de desenvolvimento, raramente contemplados na planilha geopolítica dos EUA, que se contentavam e recomendar abertura a investimentos estrangeiros e reformas internas.

Essa relação era definida, por FHC, como essencial e cooperativa: não obstante as boas relações políticas, mantinham-se os desacordos setoriais, a maior parte em questões de comércio e propriedade intelectual. Para Lula, igualmente, a relação era importante, mas nunca foi considerada essencial para o atingimento dos objetivos diplomáticos do seu governo, que na verdade passavam pelo afastamento do “império” do continente e pela criação de instituições sul-americanas, em substituição às hemisféricas. Seu governo não exibiu o antiamericanismo explícito da sua base esquerdista, embora houvesse uma nítida postura antiamericana em diversos setores do PT e da própria diplomacia. A despeito de diversas “caneladas” diplomáticas, Lula procurou manter uma relação de cordialidade com os presidentes dos EUA, o que foi mais evidente, paradoxalmente, com Bush Jr. do que com Obama; quanto à Dilma, ela não tinha nenhum apetite diplomático.

Antes mesmo da posse de Bolsonaro já se prometia e já se anunciava uma estreita política pró-americana, mas nunca se imaginou que tal proximidade se daria, no governo Bolsonaro, num plano de servilismo e de subordinação jamais visto, com qualquer outro país, em quase duzentos anos de exercício independente da diplomacia brasileira, em geral, e no plano bilateral em especial. A “submissão automática” como já se afirmou, não exatamente aos EUA, mas ao presidente Trump especificamente, alcançou níveis e dimensões inacreditáveis para qualquer observador das relações exteriores do Brasil. 

Essa servidão voluntária foi explicitada na famosa frase do presidente – I love you Trump – por ocasião do breve encontro na Assembleia Geral da ONU, em setembro de 2019, mas ela esteve explícita desde o primeiro dia, quando tanto o presidente como seu chanceler chegaram a dar assentimento à instalação de uma base militar americana no Brasil, no que foram imediatamente desmentidos e a ideia rechaçada pelos ministros militares. Mas essa sabujice, inaceitável para qualquer diplomata digno de respeito, foi reafirmada por diversas vezes, tanto por familiares do presidente, quanto por ele mesmo, assim como pelo chanceler, inclusive mediante notas oficiais (apoio às ações unilaterais dos EUA no Oriente Médio, ao “plano de paz” de Trump para a Palestina; ao candidato americano ao BID, etc.) e por declarações diversas ao longo de um ano e meio. 

O aspecto provavelmente mais sensível do “protetorado” exercido pelo governo Trump sobre a chancelaria bolsolavista tem se concentrado na questão da escolha da tecnologia para o sistema 5G, em relação à qual a administração americana vem exercendo inédita pressão para que a empresa chinesa Huawei – já fornecedora desde muitos anos de equipamentos de comunicações a provedores brasileiros do setor – seja excluída da qualificação para o leilão, que será postergado (em detrimento dos interesses nacionais nesse terreno). Outras questões, como a relação do Brasil com a China, de modo geral, mas também a da presença da China na região sul-americana, sobretudo na área econômica e comercial, vão continuar marcando as relações bilaterais nos anos à frente, independentemente de quem seja o presidente eleito em novembro de 2020. 

 

2. Da subordinação a Trump a possíveis desenvolvimentos sob Joe Biden

Existem muitas questões nas relações bilaterais, portanto, uma seleção é inevitável, considerando que em diplomacia uma parte passa pelo setor privado – investimentos diretos, comércio, licenças de marcas e patentes, alianças empresarias, fluxos de capitais, etc. –, mas o essencial é feito entre governos, o que depende muito dos presidentes nos dois regimes. A tabela a seguir identifica esses aspectos principais em função da transição presidencial.

 

Relações Brasil-Estados Unidos sob dois presidentes

Trump

Biden

Relações políticas de modo geral

Alegada relação pessoal não recebeu, no entanto, qualquer benesse especial; ao contrário: restrições a produtos, extração de concessões no etanol, pressão sobre China.

Não teria intenção de retaliar o Brasil, mas não haveria nenhuma empatia para com um presidente que apoiou ostensivamente seu adversário; relações cordiais, mas frias.

Comércio bilateral, possibilidade de acordo de livre comércio

Déficit comercial  continuou, fluxos diminuíram; um simples acordo de facilitação, sem impacto real no volume.

Se as possibilidades de qualquer tipo de acordo comercial eram diminutas, com os Democratas elas desaparecem por completo.

Meio Ambiente

Total convergência de opinião e posturas, inclusive na rejeição ao Acordo de Paris,  mas Bolsonaro não consumou retirada.

Biden é um ambientalista e já se pronunciou sobre a destruição na Amazônia; provocou reação em Bolsonaro; pressão continuará.

Multilateralismo

O antiglobalismo é doutrina oficial na Casa Branca e foi totalmente adotada pelo chanceler acidental, com fervor.

O Brasil ainda não se retirou da Unesco e da OMS, como Trump faz, mas se retirou do Pacto Global das Migrações. 

OCDE

OS EUA enganaram Bolsonaro e só o apoiaram depois que a Argentina virou peronista; não farão esforços por isso. 

O “apoio” americano foi anunciado com estardalhaço, mas não existe muita chance de o Brasil lograr agora esse objetivo.

OMC

Trump sabotou a OMC, deixando paralisado o seu sistema de solução de controvérsias. Não haverá nova rodada negociadora. O DG do Brasil pode ter saído por este fator.

Biden talvez restabeleça o funcionamento do órgão, concordando com novos juízes, o que é do interesse do Brasil. A política comercial do Brasil pode ficar paralisada.

China

Trump deslanchou uma guerra contra a China, mas que é apoiada não só pelos generais paranoicos, mas também por acadêmicos distinguidos. Brasil seguiu.

Biden não mudará muito a postura, pois tem preocupações similares, menos de espírito guerreiro e mais por preocupações de tipo econômico (questão do 5G).

América Latina, BID

A maior parte era considerada como sendo shithole countries, inclusive o Brasil; Venezuela era apenas questão eleitoral.

O servilismo diplomático foi o mais exacerbado na região, deixando o Brasil completamente isolado, inclusive no BID.

Terrorismo

A despeito da luta continuar, Trump quer retirar soldados do OM; assassinou um comandante iraniano no Iraque.

Biden adotará uma abordagem menos agressiva em relação ao Irã, o que dispensará o Brasil de seguir os EUA. 

Relações com a Europa, EU

Trump hostilizou os europeus, com pleno apoio de Bolsonaro e do chanceler; UE está aliviada com sua derrota.

Não é provável, mas pode ocorrer, que Biden retome projeto de acordo comercial do Atlântico Norte; Mercosul recua.

Missões de Paz da ONU

Nem se cogitou de qualquer envolvimento americano; unilateralismo absoluto.

O antimultilateralismo do chanceler colocou o Brasil nas antípodas da missão na ONU.

Temas sociais, religiosos, culturais

Agenda da direita conservadora recebeu pleno apoio de Bolsonaro, que até exacerbou no militantismo religioso.

Biden retornará a uma agenda politicamente correta, o que deixará o Brasil de Bolsonaro isolado em diversos foros mundiais. 

 

 

Paulo Roberto de Almeida

Brasília, 3790, 6 novembro de 2020

Disponível na plataforma Academia.edu (link: https://www.academia.edu/44480368/3790_As_eleicoes_americanas_e_as_relacoes_do_Brasil_com_os_Estados_Unidos_da_subordinacao_a_Trump_a_simulacoes_sob_uma_presidencia_Biden_2020_). 

 

 

quinta-feira, 5 de novembro de 2020

Com Biden na presidência dos EUA, o que acontece com os ministros brasileiros do Meio Ambiente e Relações Exteriores?

 No que depender de Bolsonaro, eles ficam...


Se Biden vencer, ministros Salles e Araújo devem perder espaço

Com a vitória de Biden, governo Bolsonaro avalia tirar dos holofotes os ministros integrantes da ala ideológica. Seria a maneira de construir uma ponte com o democrata

Augusto Fernandes
Correio Braziliense, 05/11/2020 07:40

Com o cenário eleitoral dos Estados Unidos apontando para uma vitória de Joe Biden contra Donald Trump na corrida pela Casa Branca, o governo brasileiro avalia como deve se comportar com o país norte-americano no caso de o candidato do partido Democrata ser oficialmente declarado como o novo presidente dos EUA. Por um lado, o Planalto está mais do que ciente de que as cobranças de Biden contra a política ambiental brasileira continuarão fortes. Por outro, sabe que não poderá cortar laços com a maior potência mundial por uma eventual derrota de Trump. Ante essa situação, o presidente Jair Bolsonaro pode promover mudanças no Executivo, em nome do pragmatismo político, e abrir mão de ministros da “ala ideológica”.

Interlocutores do governo ouvidos pelo Correio dizem que os ministros das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, e do Meio Ambiente, Ricardo Salles, poderiam perder a chefia das pastas ou serem realocados para cargos de segundo escalão. Apoiadores declarados do presidente republicano, ambos auxiliares de Bolsonaro, acumulam fortes críticas dentro e fora do Brasil, seja pelo desmatamento recorde na Amazônia e no Pantanal, seja por uma política externa que levou o Brasil à condição, nas palavras de Araújo, a “pária internacional”.

Tirar Salles e Araújo dos holofotes seria importante para o Palácio do Planalto construir uma ponte com Biden, em especial no quesito meio ambiente. O democrata ameaçou “congregar o mundo” contra o Brasil para garantir que a Amazônia seja preservada. Desde o início do ano, o bioma foi atingido por 94.169 queimadas. Esse registro é 5% superior ao que foi contabilizado em 2019 inteiro, quando o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) registrou 89.176 pontos de calor na Floresta Amazônica.

Assessores de Bolsonaro reconhecem que o país pode ficar mais isolado, caso não tente se adequar ao perfil de um presidente norte-americano que não mantenha um alinhamento ideológico com o mandatário brasileiro. Dessa forma, a estratégia é encontrar a melhor maneira de Bolsonaro sinalizar a Biden que estará disposto a iniciar um diálogo.

As mudanças, contudo, não devem ser imediatas. O Executivo ainda espera a confirmação do resultado oficial. Se as urnas apontarem vitória de Biden, Bolsonaro deve aguardar até o primeiro trimestre do ano que vem para confirmar uma reforma ministerial. Enquanto isso, ele segue torcendo por Trump.

Ontem, o presidente brasileiro comentou a apoiadores que eventual vitória de Biden pode abrir espaço para uma interferência do governo norte-americano na política do Brasil. “O candidato democrata, em duas oportunidades, falou sobre a Amazônia. É isso que vocês tão querendo para o Brasil? Aí sim uma interferência de fora pra dentro”, alertou o mandatário.

Mais uma vez, Bolsonaro comentou que espera a vitória de Trump. O presidente evitou falar em derrota do republicano e disse que vai aguardar pelas decisões da Suprema Corte norte-americana. “Parece que foi judicializado o negócio lá, né. Um estado ou outro. Esperar um pouquinho. A esperança é a última que morre”, lembrou o presidente.

Reacomodação
Segundo cientistas políticos, a eleição de Biden deve impactar o Executivo brasileiro, em especial porque o Itamaraty tem sido pautado por um completo alinhamento a Trump. Diante disso, será imprescindível que o governo mude a forma de fazer política com o restante do mundo. “Bolsonaro terá de se acomodar à nova realidade. Será muito diferente com Biden, pois ele perderá o acesso privilegiado à Casa Branca. Então, há uma força no gabinete e, até certo ponto, na própria vice-presidência, de que é necessário ter uma boa relação com os EUA. Portanto, é provável que ele faça um gesto de acomodação. A mudança mais lógica seria com Araújo e Salles, que são os ministros mais desprestigiados no exterior”, analisa Eduardo Viola, professor titular de relações internacionais da Universidade de Brasília (UnB).

O cientista político Enrico Monteiro, da Queiroz Assessoria Parlamentar e Sindical, acrescenta que “a ideologia nos deixou isolados do mundo” e que Bolsonaro precisará mudar essa postura para não deixar o Brasil “completamente à margem do comércio internacional”. De acordo com ele, “isso seria péssimo para uma retomada econômica”. “Acho que a vitória do Biden vai trazer algumas reflexões: qual é o nosso posicionamento em relação a comércio internacional e qual é a nossa posição enquanto país com o maior potencial de economia verde do mundo e maior produtor do agronegócio mundial. Teremos a chance de fazer discussões que, até o presente momento, não ocorreram porque houve alinhamento automático com o Trump. Se Biden for confirmado, ele vai propor para os parceiros comerciais uma série de movimentos, sobretudo na área ambiental, aos quais o Brasil precisará se adequar.”

“Brasil não tem nada a esconder”
O vice-presidente Hamilton Mourão afirmou, ontem, que as relações entre os Estados Unidos e o Brasil precisam continuar, independentemente do resultado das eleições. De acordo com o general, cada nação tem seus interesses e o diálogo é institucional. “Nosso relacionamento é de Estado. Independe do governo que está lá. É claro que o presidente Trump é mais próximo do presidente Jair Bolsonaro. Cada nação tem seus interesses”, disse Mourão, ao embarcar com uma comitiva de diplomatas para conhecer as ações de combate do governo federal ao desmatamento na Amazônia. Quanto à viagem, Mourão disse que “o Brasil não tem nada a esconder” e que o país reconhece suas dificuldades na área ambiental. (Renato Souza)

O que dizem os especialistas?
Voto e mobilização

“A polarização política tem o efeito de mobilização dos eleitores. Os democratas saíram de casa e os idosos votaram contra o Trump pelos correios, devido à gestão dele durante a pandemia. No entanto, por outro lado, o eleitor fiel a Trump, sentindo-se desamparado por outros governos, garantiu a ele vitórias importantes como na Flórida, onde o republicano teve um voto maciçamente masculino e branco. Embora a eleição norte-americana tenha impacto no Brasil, a vitória de Trump não acrescenta em algo prático, porque quem tem o maior impacto sobre o Brasil é o próprio Brasil. Temos que fazer o dever de casa, e o governo brasileiro deve realizar diálogos e levar adiante discussões importantes de melhorias deste governo”.
Creomar de Souza, fundador da Consultoria Política Dharma

É melhor não brigar
“Esta é uma eleição histórica porque ocorre no meio de uma pandemia, com um voto antecipado robusto e significativo, além de ter um dos maiores comparecimentos para votação do período recente, considerando que, nos EUA, a votação é facultativa. No Brasil, a eleição norte-americana exerce um poder simbólico de fortalecimento do posicionamento ideológico. Bolsonaro foi eleito na mesma onda conservadora de Trump, e uma eventual vitória do republicano terá um efeito revigorante neste movimento. Não acredito que a vitória de Biden trará muitas consequências. Os dois países são grandes parceiros econômicos, e o Brasil não vai brigar com a China e os Estados Unidos ao mesmo tempo. Na prática, não altera muito quem ganha ou perde”.
Lúcio Rennó, professor do Instituto de Ciência Política da UnB

Sequência de erros
“A postura de Trump com relação à pandemia, acrescida da retórica dele em relação à Europa e à Otan, além do desprezo dele em relação a alguns assuntos — como a ocasião em que ele se recusou a apertar a mão de Angela Merkel na Casa Branca —, foram fatores que o prejudicam agora. Além disso, o movimento Black Lives Matter (Vidas Negras Importam) é pró-Biden, ainda que ele não seja o candidato dos sonhos para esse grupo. E caso Biden seja o vencedor, tanto EUA quanto Brasil devem ter bom senso para que a soberania do Brasil seja respeitada; para que o governo brasileiro reconheça os equívocos na área ambiental e mude de atitude a respeito disso.”
João Carlos Souto, professor de Direito Constitucional do Centro Universitário do DF (UDF)

O olhar do investidor
“Os Estados Unidos deram mostra de que o candidato favorito é Joe Biden. Apesar da política de Trump, favorável ao mercado interno americano, os investidores temem a guerra com a China e a beligerância com a Europa. No Brasil, isso acaba tendo um certo reflexo. Não podemos esquecer que o nosso maior parceiro comercial são os Estados Unidos — para efeito de importação e exportação, somados. A China é a maior compradora do Brasil. Qualquer movimento dos americanos afeta diretamente o Brasil. O mercado local olha esse termômetro. Mas, obviamente, existe um componente interno (no Brasil) que está afetando mais do que propriamente a eleição americana. Juntando esses dois fatores, temos altas elevadas nas Bolsas e uma volatilidade muito grande. E os espectadores, aqueles que estão com dinheiro, aguardam os passos corretos para fazer os seus investimentos.”
César Bergo, presidente do Conselho Regional de Economia e diretor da Corretora OpenInvest

Efeito covid
“Se não tivesse ocorrido a pandemia, Trump teria uma vantagem extremamente expressiva. Mas a forma como ela foi tratada pelo presidente Trump trouxe prejuízo, junto com o viés econômico, que era a grande locomotiva que poderia colocá-lo bem à frente de Joe Biden. Com uma vitória de Biden, pode ocorrer instabilidade entre EUA e Brasil em um primeiro momento. Mas ambas nações são grandes parceiras históricas, trata-se de uma parceria de Estado, não de governo. Do ponto de vista comercial, não haverá uma catástrofe.”
Rodrigo Badaró, conselheiro federal da OAB e especialista em política dos Estados Unidos

Futuro da política
“O número oito é muito importante na história mundial. Em 1918, após a Revolução Russa, o mundo tinha duas ideologias: de um lado o liberal; e de outro, o comunismo. Em 1938, o mundo teve três para escolher, com o nazismo também. A partir de 1988, o socialismo cai. É só estudar a China que dá para ver que aquelas teorias não se encaixam muito. Depois de 2008, nem o liberalismo explica mais nossa nação. Eu creio que, em 2004, houve duas mudanças significativas: a internet, que ficou mais visível a todos, e o smartphone. Nessa junção, mudamos o DNA da humanidade e, com isso, todas as questões que estamos falando talvez sejam velhas demais. Em outras palavras, quem Bolsonaro vai enfrentar em 2022, talvez a gente nem conheça ainda.”
Rafael Favetti, advogado e cientista político

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BOLSONARO DIZ QUE ERNESTO ARAÚJO TEM 'CHANCE ZERO' DE CAIR SOB BIDEN PRESIDENTE

Presidente garante permanência de ministro trumpista
Época, 05/11/2020 - 07:10 

Jair Bolsonaro tem dito a interlocutores que o trumpista Ernesto Araújo tem "chance zero" de ser demitido sob a presidência de Joe Biden.

Aliás, Bolsonaro tem mostrado resistência a mudar radicalmente e da noite para o dia seu discurso e atitude por conta de Biden.

Prefere moderar o tom aos poucos — e só se Trump perder a batalha judicial.

https://epoca.globo.com/guilherme-amado/bolsonaro-diz-que-ernesto-araujo-tem-chance-zero-de-cair-sob-biden-presidente-24729522