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Este blog trata basicamente de ideias, se possível inteligentes, para pessoas inteligentes. Ele também se ocupa de ideias aplicadas à política, em especial à política econômica. Ele constitui uma tentativa de manter um pensamento crítico e independente sobre livros, sobre questões culturais em geral, focando numa discussão bem informada sobre temas de relações internacionais e de política externa do Brasil. Para meus livros e ensaios ver o website: www.pralmeida.org. Para a maior parte de meus textos, ver minha página na plataforma Academia.edu, link: https://itamaraty.academia.edu/PauloRobertodeAlmeida.

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segunda-feira, 9 de agosto de 2021

O padrão Bolsonaro nas exportações: primário, extrativista, destruidor e ilegal (Cedeplar)

 Mudanças no Padrão de Exportações Brasileiras entre 2016-2020: o Brasil na contramão do mundo

João P. Romero, Danielle Carvalho, Arthur Queiroz e Ciro Moura

Cedeplar - UFMG, 2021

Sumário Executivo:

• A diversificação brasileira caiu de 196 indústrias competitivas em 2016 para 167 em 2020, num universo de 999 indústrias.

• A quantidade de produtos competitivos aumentou somente no grupo de produtos primários, passando de 47 em 2016 para 49 em 2020.

• A participação dos produtos primários na pauta exportadora aumentou de 37,2% em 2016 para 44,3% em 2020.

• A participação dos produtos de média e alta tecnologia na pauta exportadora caiu de 20,2% para 14,2% e de 5,2% para 3,1%, respectivamente.

• A quantidade exportada de madeira bruta aumentou 205% entre 2018 e 2020, acumulando impressionante aumento de 542% desde 2016.

• A quantidade exportada de ouro aumentou 30% entre 2018 e 2020, montante expressivo para as características do produto.

• O crescimento das exportações de madeira e ouro geram um alerta de que uma parte desse crescimento possa ser oriundo de atividades ilegais.

• Ao contrário de Europa e Estados Unidos, o atual governo do Brasil segue uma estratégia de crescimento focada em setores primários e baseados em recursos naturais, que estão associados a maior intensidade de emissões de gases de efeito estufa e maior degradação ambiental, em detrimento de setores de maior intensidade tecnológica, que geram mais crescimento com menores impactos ambientais.

1 Introdução

Nos últimos anos, acumularam-se evidências a respeito dos efeitos positivos do aumento do nível de complexidade econômica para o desenvolvimento econômico. Os resultados seminais de Hausmann et al. (2014) apontaram que o aumento da complexidade prevê crescimento significativo da taxa de crescimento da renda per capita no futuro. Hartmann et al. (2017) mostraram que o aumento da complexidade contribui também para reduzir a desigualdade de renda. Por fim, Mealy e Teitelboym (2020) e Romero e Gramkow (2021) apontaram que maior complexidade conduz também à redução de impactos ambientais.

(…)

Para entender os movimentos da complexidade da economia brasileira, portanto, torna-se crucial monitorar os movimentos das exportações. A presente nota analisa a evolução da composição das exportações brasileiras entre 2016-2020, com um foco no comércio internacional de madeira bruta e ouro, e as políticas adotadas no Brasil que estão contribuindo para os resultados encontrados e as implicações das mudanças observadas.

2 Análise dos dados

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(…)

3 Discussão: Brasil na contramão do mudo

A agenda de combate à mudança climática alcançou seu pico nas discussões de políticas econômicas voltadas à retomada do crescimento pós-pandemia. As estratégias de crescimento verde dos Estados Unidos e da União Europeia estão diretamente relacionadas ao fato de estar ganhando força o argumento de que a proteção ambiental na verdade colabora para maior crescimento econômico, e não o contrário (Malerba e Lee, 2020). Na Europa foi aprovado um pacote de 1,8 trilhões de euros para financiar políticas industriais e tecnológicas associadas a inovações que reduzam o impacto ambiental da atividade humana (European Commission, 2021). Nos Estados Unidos o Plano Biden direcionou outros 2 trilhões de dólares para o financiamento de projetos de infraestrutura e pesquisa voltados a aumentar a eficiência produtiva de forma ambientalmente sustentável (The New York Times, 2021).

(…)

No governo Bolsonaro, porém, prevalece uma visão ultrapassada sobre a relação entre meio ambiente e economia. Para o governo, políticas de proteção ambiental representam entraves ao desenvolvimento econômico. Dessa forma, segundo o vice-presidente Hamilton Mourão, o ex-ministro Ricardo Salles estaria atuando corretamente ao adotar o que chamou de “ visão economicista” da gestão do meio ambiente (Época, 2021).

Contudo, a gestão de Ricardo Salles foi alvo de inúmeras críticas de especialistas em meio ambiente. Primeiro, em função da suspensão de multas ambientais a partir de um decreto federal. Depois, devido à eliminação da necessidade de autorização específica para exportação de madeira de origem nativa, como estabelecia a IN 15/2011. Além disso, Salles também foi acusado de favorecer o garimpo em áreas protegidas e em unidades de conservação, por ter exonerado o diretor de fiscalização ambiental do Ibama que havia paralisado operações de garimpo e exploração ilegal de madeira em terras indígenas no Pará (OECOa, 2021; OECOb, 2021).

(…)


4 ConsideraçõesFinais

Na última década, mudanças produtivas e tecnológicas associadas a políticas de mitigação da mudança climática passaram a ser entendidas como um novo motor de crescimento e desenvolvimento. Exemplo disso são as propostas de investimentos na recuperação da Europa e dos EUA, direcionadas para as políticas de inovação e investimentos verdes.

No entanto, o Brasil caminha em um sentido oposto. As políticas apresentadas desde o início do governo Bolsonaro priorizaram um capitalismo predatório, com foco em setores primários e baseados em recursos naturais, em detrimento de setores de média e alta intensidade tecnológica. A produção de primários e bens baseados em recursos primários está associada a maior intensidade de emissões de gases de efeito estufa e de degradação ambiental. Além disso, são produtos que possuem baixa complexidade e, como identificado em vários estudos, geram menor dinamismo comparativamente a produtos de maior intensidade tecnológica.

Dentre os produtos com menor intensidade tecnológica que tiveram um crescimento nas exportações nos últimos anos estão a madeira bruta e o ouro. Esses são produtos que têm preocupado ambientalistas no Brasil, por serem fontes importantes de degradação ambiental na Amazônia.

O ex-ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, foi alvo de críticas exatamente em função de medidas que beneficiaram madeireiros e garimpeiros ilegais. Assim, o crescimento nas exportações de madeira e ouro geram um alerta de que uma parte desse crescimento possa ser oriundo de atividades ilegais.

Apesar da saída de Ricardo Salles do Ministério do Meio Ambiente, a expectativa de construção de políticas de desenvolvimento ambientalmente sustentáveis no governo Bolsonaro é mínima. Joaquim Álvaro Pereira Leite, que assumiu como Ministro do Meio Ambiente, é ex-conselheiro da Sociedade Rural Brasileira (SRB), uma das principais entidades que representam o setor agropecuário, que se apresenta constantemente em embates com políticas e legislações ambientais (Exame, 2021).

A continuidade de políticas que priorizem o capitalismo predatório em detrimento do avanço em setores mais tecnológicos e mais limpos, além de gerar maior degradação ambiental, pode ser um entrave para o próprio desenvolvimento econômico do Brasil no futuro próximo.

Referências

BBC. Entenda investigação contra Ricardo Salles autorizada pelo STF que apura suspeita de atrapalhar PF. 2021. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/brasil-57346129 Acesso em: 25 jun. 2021.

(…)






sexta-feira, 9 de abril de 2021

Politica Externa: vai mudar de fato? - Creomar de Souza

 

Muda-se tudo, mas se altera algo?

Como bem cita Lampedusa em sua magistral obra ‘Il Gattopardo’, algumas vezes as coisas precisam mudar para permanecerem iguais 
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As últimas semanas foram intensas em Brasília. A troca repentina de uma série de ministros deixou muita gente perplexa. Passado o susto das águas de março que alteraram a foto do ministério Bolsonaro, é legítimo perguntar se as mudanças são reais ou apenas mais um exemplo da famosa citação do Gattopardo de Lampedusa segundo a qual para que tudo fique na mesma, é preciso que alguma coisa mude.

O caso do Itamaraty, em particular, suscita dúvidas. Afinal, a Chancelaria havia se transformado, nos últimos dois anos, em espaço privilegiado de atuação do discurso ideológico que elegeu o presidente da República. Por afinidade política ou interesse em tornar-se político, o ex-Chanceler Araújo incorporou o papel de militante a serviço de uma causa. Neste processo, nitidamente, a política externa foi colocada a serviço da mobilização de setores mais extremos do bolsonarismo. 

Esse movimento, que teve sua serventia político-eleitoral, nunca redundou em um avanço real de temas importantes para o desenvolvimento nacional. Ao contrário, acarretou prejuízos evidentes no momento em que o país mais precisava de canais diplomáticos azeitados com parceiros e organismos internacionais. Não por acaso, o capítulo final do Embaixador Araújo foi marcado por um confronto desnecessário com o Senado Federal e uma carta de demissão construída às pressas diante de um cenário de descarte concreto. 

Posse do novo Ministro de Estado das Relações Exteriores, Embaixador Carlos Alberto Franco França. Foto: Gustavo Magalhães/MRE/Fotos Públicas
Posse do novo Ministro de Estado das Relações Exteriores, Embaixador Carlos Alberto Franco França. Foto: Gustavo Magalhães/MRE/Fotos Públicas

O novo ministro, Carlos França, assume com essa carga negativa, sucedendo um Chanceler que procurou implementar uma ruptura com as tradições do Itamaraty. O discurso de posse do novo Chanceler, por contraste com seu antecessor, foi como uma lufada de ar fresco, uma sinalização à normalidade, à ponderação e ao pragmatismo. Teria sido um discurso apenas correto em tempos normais, mas diante da comparação com o que se via no Itamaraty, assumiu ares de grande peça retórica. Foi possível ouvir de longe uma grande suspiro coletivo de alívio dos diplomatas de carreira.

De fato, em seu discurso de posse, França enfileirou conceitos que evocam a melhor tradição do Ministério.  Ao falar da importância do multilateralismo, da necessidade de construir pontes com o mundo e do uso da diplomacia como elemento de solução de controvérsias, gerou uma sensação de normalidade que permite relação direta com a substituição de Pazuello por Queiroga na Saúde. 

O discurso, por mais que tenha sido bem recebido, não foi suficiente para superar certa desconfiança em quem conhece como funciona Brasília e, em particular, como a política externa esteve sob uma tutela de núcleo bolsonarista desde o início do governo. E neste ponto há um elemento importante a ser lembrado: “na relação entre um ministro e o presidente, só um dos dois é demissível, e não é o presidente”. Este axioma serve para lembrar que muito da lealdade do antecessor de França deveu-se à percepção de que era uma peça de fácil substituição na engrenagem política do Palácio do Planalto. 

Esta percepção, obviamente, levou a um processo de sinergia e alguma submissão intelectual aos desígnios da família presidencial em termos de concepção de mundo. Ciente deste processo e do destino do seu antecessor, tal como um faquir, França tem o desafio cotidiano de não ser espetado pela cama em que decidiu deitar-se. E neste verdadeiro malabarismo que é ser ministro no Brasil de 2021, o ministro deverá pesar constantemente eventuais ajustes em nome dos interesses do país e os limites do que seria aceitável pelo próprio presidente e seus conselheiros em política externa, o próprio filho e deputado Eduardo e o assessor palaciano Filipe Martins, que segue no cargo. 

Se prevalecer a tutela palaciana, as ideias vertidas por França em seu discurso de posse não passarão de palavras ao vento e nossa diplomacia adentrará o terreno descrito por Lampedusa. A mudança não passará de uma pantomima, um teatrinho para ganhar tempo com uma aparência momentânea de normalidade. É preciso que o bom discurso do Ministro se traduza em posições concretas e ações palpáveis, de modo que  nossa diplomacia, despida da ideologia excêntrica que lhe corroeu a alma, possa contribuir efetivamente para o enfrentamento das urgências em matéria de saúde, segurança e prosperidade.


sexta-feira, 20 de novembro de 2020

Mudanças de Regime Econômico na História do Brasil, Quadro, 1808-2020

 Mudanças de Regime Econômico na História do Brasil, 1808-2020

 

Paulo Roberto de Almeida

(www.pralmeida.orghttp://diplomatizzando.blogspot.com)

Atualização do quadro publicado neste trabalho:

2701. “Mudanças de regime econômico na história do Brasil: transformações estruturais, evolução institucional”, Hartford, 25 outubro 2014, 44 p. Publicado na Revista de Economia Política e História Econômica (ano 10, n. 34, agosto de 2015, p. 169-225; ISSN: 1807-2674; link para a revista: https://sites.google.com/site/rephe01/em pdf: https://drive.google.com/file/d/0B2cUT02EXXyLVHRrSDNldTJHTzg/view).

 

 

Mudanças de Regime Econômico na História do Brasil

 

Anos

Eventos e processos políticos, orientações econômicas e sociais; resultados

Arranjos políticos predominantes, grupos de interesse, personalidades

Iniciativas e medidas de política econômica e características principais da fase

I – Economia escravista, agrário-exportadora, 1808-1888

1808-1844

Fim do regime colonial abertura dos portos; relações comerciais; 

D. João; Imperador Pedro I; ministros do Primeiro Reinado

Tratados de comércio; pressões inglesas; tarifas reduzidas

1844-1888

Abolição do Tráfico; redução progressiva da escravidão; abolição;

Alves Branco; Gabinetes do Segundo Reinado; Pedro II, Princesa Isabel

Tarifas elevadas; protecionismo; incentivos à imigração

II –Trabalho Assalariado, início da industrialização, 1888-1930

1888-1914

Forte imigração; surtos industriais; medidas protecionistas; aumento da dívida externa; primeiros investimentos estrangeiros

Proprietários de terras; tribunos; magistrados; presidentes; alguns industriais; bancos estrangeiros

Adoção de políticas econômicas de ajuste; vantagens dadas à indústria nacional; apoio à cultura do café; 

1918-1930

Expansão do café; apelo a capitais estrangeiros; envolvimento da classe média na política;

Presidentes, governadores estaduais; industriais, políticos, magistrados; investidores estrangeiros

Defesa do café; início da mudança da esfera britânica para a hegemonia americana;

III – Emergência do Estado intervencionista, políticas pró-industrialização

1930-1945

Constituição de 1934: aumento do nacionalismo econômico; intervenção estatal na economia;

Presidente e ditador Getúlio Vargas; líderes militares; ideólogos nacionalistas

Forte intervenção do Estado na economia; industrialização introvertida

1946-1964

Criação de empresas do Estado; câmbio múltiplo; inflação; Brasília

Presidentes Vargas; Juscelino Kubitschek; Jânio Qadros, Goulart

Planejamento estatal, reformas econômicas; gastos públicos

IV – Estado produtor, exacerbação da substituição de importações

1964-1979

Golpe militar; impulso da ação econômica  estatal; protestos; guerrilha;

Presidentes militares; equipe de planejamento

Reformas em todos os setores; grande impulso industrial; estatais

1979-1985

Choques do petróleo e crises financeiras; protestos democráticos

Presidentes militares; ministros Fazenda; bancos estrangeiros

Dívida externa, crises cambiais; aceleração da inflação; 

 

Anos

Eventos e processos políticos, orientações econômicas e sociais; resultados

Arranjos políticos predominantes, grupos de interesse, personalidades

Iniciativas e medidas de política econômica e características principais da fase

V – Instabilidade macroeconômica, planos de estabilização, abertura

1985-1994

Democratização; nova Constituição; planos de estabilização, crises;

Presidentes Sarney e Collor; várias equipes econômicas

Descontrole monetário; diversas moedas; perda de credibilidade; abertura

1994-2002

Plano Real: estabilidade e abertura econômica, diversas crises externas

Presidente FHC; ministro Pedro Malan, equipe econômica

Desindexação econômica; privatizações; regulação estatal; ajuste fiscal

VI – Distribuição social; retorno ao Estado interventor e introvertido

2002-2016

Novo reforço do Estado; políticas distributivistas; redução da pobreza; proteção comercial; despesas em excesso; desequilíbrios

Presidentes Lula e Dilma; líderes do PT; políticas equivocadas do lado da demanda; keynesianismo; baixo investimentos;

Intervencionismo estatal; expansão dos subsídios sociais; introversão econômica; desequilíbrios fiscais; recessão econômica;

VII – Retorno a políticas de gradualismo no ajuste fiscal; limites a gastos

2016-2018

Retorno ao gradualismo e políticas de austeridade; correção de desajustes e desequilíbrios fiscais acumulados em 2012-16

Presidente Michel Temer, ministro da Fazenda Henrique Meirelles e presidente do BC Ilan Goldfajn conduzem forte política de ajuste fiscal

Emenda constitucional de limite de gastos; reforma laboral; início de reforma previdenciária; inversão dos gastos crescentes; baixo crescimento;

 

2019

Promessas de abertura econômica e comercial, de privatização sem resultados efetivos; diplomacia ideológica e servil aos EUA (Trump)

Populismo de direita com presidente Bolsonaro; ministro “liberal” Paulo Guedes: muita retórica; ideólogos reacionários na política externa; desastres

Reforma previdenciária conduzida no Congresso; governo confuso e inoperante nas políticas; divisão acentuada do país; autoritarismo;

2020

Pandemia da Covid-19 desorganizou todo o processo de elaboração de políticas econômicas, obrigando a intervenções emergenciais de sustentação de empresas e auxílios sociais; aumento dos déficits orçamentários e da dívida pública.

Elaboração: Paulo Roberto de Almeida (18/02/2014; 20/11/2020)

 


Paulo Roberto de Almeida

Brasília, 3795: 20/11/2020

Disponível na plataforma Academia.edu (link: https://www.academia.edu/44538064/3795_Mudan%C3%A7as_de_Regime_Economico_na_Historia_do_Brasil_2020_).

 

quarta-feira, 11 de novembro de 2020

Relações Brasil-EUA e mudanças de presidente Trump para Biden - Paulo Roberto de Almeida

 As eleições americanas e as relações do Brasil com os Estados Unidos: da subordinação a Trump a simulações sob uma presidência Biden  

Paulo Roberto de Almeida

(www.pralmeida.orghttp://diplomatizzando.blogspot.com)

  

1. A relação Brasil-Estados Unidos: da busca de autonomia à subordinação a Trump

As interações entre os dois maiores países do hemisfério americano sempre foram marcadas por evidente assimetria, dada a magnitude do poder econômico e militar assumida pelos Estados Unidos, mas elas constituíram, de qualquer modo, a mais importante relação bilateral do Brasil desde o início do período republicano até a atualidade, nas várias interfaces nas quais se distribuem essa complexa interação (comercial, financeira, tecnológica, militar, educacional e científica, cultural, turística e, last but not the least, diplomática). 

Os Estados Unidos foram, aliás, o primeiro país – não considerando Buenos Aires – a reconhecer a independência do Brasil, em 1824, assim como os EUA estiveram entre os primeiros a reconhecer o novo regime republicano e se colocando ao seu lado em 1893, quando da revolta da Armada, por muitos considerada como uma tentativa de restauração monárquica. Essa relação já era relevante desde meados do século, já que os americanos se converteram nos principais importadores do principal produto brasileiro de exportação, o café. Mas foi a partir do início do século XX que eles se tornaram, também, financiadores competitivos, ao lado dos banqueiros britânicos, e, logo depois, em investidores diretos (a Ford montou uma montadora de seus veículos desde 1919). Essa relação foi reforçada por ocasião da Grande Depressão, quando Roosevelt busca evitar a ocupação de espaços na América Latina pelas potências nazifascistas, bem como no decorrer da Segunda Guerra Mundial e no seu imediato seguimento, quando ocorre certa “americanização do Brasil”, reforçada durante a primeira fase da Guerra Fria, mas sobretudo por ocasião do golpe militar de 1964. 

Acadêmicos costumam falar de “alinhamento automático” em relação a dois curtos períodos da diplomacia brasileira: nos anos Dutra (1946-50) e durante uma breve fase ao início dos anos 1960, por ocasião do primeiro governo dos generais. Não há consenso, porém, sobre o significado real desse tipo de conceituação, uma vez que nesses dois períodos o que o Brasil buscava, na verdade, era uma grande barganha, sempre enfatizando a necessidade de recursos para concretizar seus projetos de desenvolvimento, raramente contemplados na planilha geopolítica dos EUA, que se contentavam e recomendar abertura a investimentos estrangeiros e reformas internas.

Essa relação era definida, por FHC, como essencial e cooperativa: não obstante as boas relações políticas, mantinham-se os desacordos setoriais, a maior parte em questões de comércio e propriedade intelectual. Para Lula, igualmente, a relação era importante, mas nunca foi considerada essencial para o atingimento dos objetivos diplomáticos do seu governo, que na verdade passavam pelo afastamento do “império” do continente e pela criação de instituições sul-americanas, em substituição às hemisféricas. Seu governo não exibiu o antiamericanismo explícito da sua base esquerdista, embora houvesse uma nítida postura antiamericana em diversos setores do PT e da própria diplomacia. A despeito de diversas “caneladas” diplomáticas, Lula procurou manter uma relação de cordialidade com os presidentes dos EUA, o que foi mais evidente, paradoxalmente, com Bush Jr. do que com Obama; quanto à Dilma, ela não tinha nenhum apetite diplomático.

Antes mesmo da posse de Bolsonaro já se prometia e já se anunciava uma estreita política pró-americana, mas nunca se imaginou que tal proximidade se daria, no governo Bolsonaro, num plano de servilismo e de subordinação jamais visto, com qualquer outro país, em quase duzentos anos de exercício independente da diplomacia brasileira, em geral, e no plano bilateral em especial. A “submissão automática” como já se afirmou, não exatamente aos EUA, mas ao presidente Trump especificamente, alcançou níveis e dimensões inacreditáveis para qualquer observador das relações exteriores do Brasil. 

Essa servidão voluntária foi explicitada na famosa frase do presidente – I love you Trump – por ocasião do breve encontro na Assembleia Geral da ONU, em setembro de 2019, mas ela esteve explícita desde o primeiro dia, quando tanto o presidente como seu chanceler chegaram a dar assentimento à instalação de uma base militar americana no Brasil, no que foram imediatamente desmentidos e a ideia rechaçada pelos ministros militares. Mas essa sabujice, inaceitável para qualquer diplomata digno de respeito, foi reafirmada por diversas vezes, tanto por familiares do presidente, quanto por ele mesmo, assim como pelo chanceler, inclusive mediante notas oficiais (apoio às ações unilaterais dos EUA no Oriente Médio, ao “plano de paz” de Trump para a Palestina; ao candidato americano ao BID, etc.) e por declarações diversas ao longo de um ano e meio. 

O aspecto provavelmente mais sensível do “protetorado” exercido pelo governo Trump sobre a chancelaria bolsolavista tem se concentrado na questão da escolha da tecnologia para o sistema 5G, em relação à qual a administração americana vem exercendo inédita pressão para que a empresa chinesa Huawei – já fornecedora desde muitos anos de equipamentos de comunicações a provedores brasileiros do setor – seja excluída da qualificação para o leilão, que será postergado (em detrimento dos interesses nacionais nesse terreno). Outras questões, como a relação do Brasil com a China, de modo geral, mas também a da presença da China na região sul-americana, sobretudo na área econômica e comercial, vão continuar marcando as relações bilaterais nos anos à frente, independentemente de quem seja o presidente eleito em novembro de 2020. 

 

2. Da subordinação a Trump a possíveis desenvolvimentos sob Joe Biden

Existem muitas questões nas relações bilaterais, portanto, uma seleção é inevitável, considerando que em diplomacia uma parte passa pelo setor privado – investimentos diretos, comércio, licenças de marcas e patentes, alianças empresarias, fluxos de capitais, etc. –, mas o essencial é feito entre governos, o que depende muito dos presidentes nos dois regimes. A tabela a seguir identifica esses aspectos principais em função da transição presidencial.

 

Relações Brasil-Estados Unidos sob dois presidentes

Trump

Biden

Relações políticas de modo geral

Alegada relação pessoal não recebeu, no entanto, qualquer benesse especial; ao contrário: restrições a produtos, extração de concessões no etanol, pressão sobre China.

Não teria intenção de retaliar o Brasil, mas não haveria nenhuma empatia para com um presidente que apoiou ostensivamente seu adversário; relações cordiais, mas frias.

Comércio bilateral, possibilidade de acordo de livre comércio

Déficit comercial  continuou, fluxos diminuíram; um simples acordo de facilitação, sem impacto real no volume.

Se as possibilidades de qualquer tipo de acordo comercial eram diminutas, com os Democratas elas desaparecem por completo.

Meio Ambiente

Total convergência de opinião e posturas, inclusive na rejeição ao Acordo de Paris,  mas Bolsonaro não consumou retirada.

Biden é um ambientalista e já se pronunciou sobre a destruição na Amazônia; provocou reação em Bolsonaro; pressão continuará.

Multilateralismo

O antiglobalismo é doutrina oficial na Casa Branca e foi totalmente adotada pelo chanceler acidental, com fervor.

O Brasil ainda não se retirou da Unesco e da OMS, como Trump faz, mas se retirou do Pacto Global das Migrações. 

OCDE

OS EUA enganaram Bolsonaro e só o apoiaram depois que a Argentina virou peronista; não farão esforços por isso. 

O “apoio” americano foi anunciado com estardalhaço, mas não existe muita chance de o Brasil lograr agora esse objetivo.

OMC

Trump sabotou a OMC, deixando paralisado o seu sistema de solução de controvérsias. Não haverá nova rodada negociadora. O DG do Brasil pode ter saído por este fator.

Biden talvez restabeleça o funcionamento do órgão, concordando com novos juízes, o que é do interesse do Brasil. A política comercial do Brasil pode ficar paralisada.

China

Trump deslanchou uma guerra contra a China, mas que é apoiada não só pelos generais paranoicos, mas também por acadêmicos distinguidos. Brasil seguiu.

Biden não mudará muito a postura, pois tem preocupações similares, menos de espírito guerreiro e mais por preocupações de tipo econômico (questão do 5G).

América Latina, BID

A maior parte era considerada como sendo shithole countries, inclusive o Brasil; Venezuela era apenas questão eleitoral.

O servilismo diplomático foi o mais exacerbado na região, deixando o Brasil completamente isolado, inclusive no BID.

Terrorismo

A despeito da luta continuar, Trump quer retirar soldados do OM; assassinou um comandante iraniano no Iraque.

Biden adotará uma abordagem menos agressiva em relação ao Irã, o que dispensará o Brasil de seguir os EUA. 

Relações com a Europa, EU

Trump hostilizou os europeus, com pleno apoio de Bolsonaro e do chanceler; UE está aliviada com sua derrota.

Não é provável, mas pode ocorrer, que Biden retome projeto de acordo comercial do Atlântico Norte; Mercosul recua.

Missões de Paz da ONU

Nem se cogitou de qualquer envolvimento americano; unilateralismo absoluto.

O antimultilateralismo do chanceler colocou o Brasil nas antípodas da missão na ONU.

Temas sociais, religiosos, culturais

Agenda da direita conservadora recebeu pleno apoio de Bolsonaro, que até exacerbou no militantismo religioso.

Biden retornará a uma agenda politicamente correta, o que deixará o Brasil de Bolsonaro isolado em diversos foros mundiais. 

 

 

Paulo Roberto de Almeida

Brasília, 3790, 6 novembro de 2020

Disponível na plataforma Academia.edu (link: https://www.academia.edu/44480368/3790_As_eleicoes_americanas_e_as_relacoes_do_Brasil_com_os_Estados_Unidos_da_subordinacao_a_Trump_a_simulacoes_sob_uma_presidencia_Biden_2020_).