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Este blog trata basicamente de ideias, se possível inteligentes, para pessoas inteligentes. Ele também se ocupa de ideias aplicadas à política, em especial à política econômica. Ele constitui uma tentativa de manter um pensamento crítico e independente sobre livros, sobre questões culturais em geral, focando numa discussão bem informada sobre temas de relações internacionais e de política externa do Brasil. Para meus livros e ensaios ver o website: www.pralmeida.org. Para a maior parte de meus textos, ver minha página na plataforma Academia.edu, link: https://itamaraty.academia.edu/PauloRobertodeAlmeida.

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quinta-feira, 26 de novembro de 2020

"O projeto Pária" do chanceler acidental - Natalie Unterstell (Época)

 PROJETO PÁRIA OU UM PÁRIA ENTRE NÓS

Falta de pragmatismo na pauta ambiental custa caro e descredibiliza nosso país

Natalie Unterstell 

Revista Época, 26/11/2020, 7h

O mundo se prepara para uma maratona de longa duração rumo ao zero carbono. Há muitos desafios, já que em todos os países existem segmentos relutantes à transição para essa nova economia. No entanto, entre vanguarda e atraso, na somatória de forças, as nações parecem convergir para um novo capítulo da história.

É notável, por essa razão, a indisposição de um país que teria tudo para entrar na corrida e se sagrar campeão: o Brasil.

Nosso país tem se mostrado desinteressado e preguiçoso. Como se tivesse sido instalado em uma arquibancada, de onde pretende assistir os demais correrem, o Brasil no máximo esperneia.

E quem nos coloca neste lugar? As autoridades que adotaram o negacionismo como forma de governo.

Expoente da ala ideológica do governo, o Ministro das Relações Exteriores (MRE), Ernesto Araújo, é um exímio implementador desse método. Recentemente, ele se disse orgulhoso da posição de pária internacional. “É bom ser pária. Esse pária aqui, esse Brasil tem conseguido resultados”.

E como um terraplanista que usa GPS, na semana passada, o MRE sob Ernesto agiu para bloquear os trabalhos de 196 países envolvidos nas negociações da Convenção de Diversidade Biológica (CDB) da ONU.

A CDB busca adotar um novo marco geral para a biodiversidade. A tarefa deveria ser concluída em 2020 mas sofreu atraso, por conta da pandemia. O Brasil, país megadiverso, seria um dos maiores interessados em se beneficiar dessa estrutura.

Ao longo de 2020, o país já havia sido acusado de dificultar as negociações. Agora, paralisou os trabalhos opondo-se à aprovação do orçamento de 2021 do secretariado da Convenção. Os diplomatas buscam esclarecer o episódio - mas não há como dissociá-lo das declarações negacionistas e isolacionistas dadas pelas principais autoridades. A diplomacia brasileira está sendo vista com desconfiança, independente do assunto que esteja tratando.

O risco (e a probabilidade, eu diria) é que essa mesma tática (de bloqueio) seja repetida nas demais Convenções da qual o Brasil participa, especialmente da Convenção Quadro da Mudança do Clima. Assim, pode prejudicar uma a uma as arenas de diálogo e de construção dos padrões globais de sustentabilidade.

Ser pária custará caro e imporá prejuízos.

As negociações ambientais globais são essencialmente econômicas. Elas emanam compromissos e regras sobre como usar o ambiente para sustentar a economia, e vice-versa.

Não à toa, após a ratificação do Acordo de Paris, em 2015, os principais bancos centrais do mundo avançaram na discussão de padrões de informação sobre riscos climáticos no sistema financeiro - o Banco Central do Brasil (BCB), inclusive. Os padrões ambientais globais dizem respeito às nossas indústrias, à agricultura bem como às políticas monetária e fiscal.

Por isso, ao longo de décadas, nossos diplomatas vieram talhando sofisticadamente as Convenções do Rio - em alusão a terem sido assinadas no Rio de Janeiro em 1992 - para estabelecer normas boas para nós e para o planeta.

Instrumentos como o Acordo de Paris são frutos de negociações árduas em que nós buscamos benefícios concretos. Permitem por exemplo que o Brasil seja pago pela comunidade internacional por resultados alcançados no controle do desmatamento. Ou seja, temos o direito reconhecido de compartilhar os custos da proteção das florestas com o resto do mundo.

E esse direito, associado ao dever de proteger florestas, foi uma solução inventiva nossa.

Quando o mundo buscava uma forma de apoiar a mitigação de emissões de gases de efeito estufa, pesquisadores brasileiros como Márcio Santilli e Paulo Moutinho inventaram o mecanismo do desmatamento compensado. Da sociedade civil, essa proposta depois virou o Fundo Amazônia e, anos depois, virou uma decisão negociada da Convenção da Mudança do Clima.

O mecanismo vale para qualquer Presidente da República, seja ele negacionista ou protagonista. Razão pela qual o governo Bolsonaro poderá anunciar que fará o maior programa de pagamentos por serviços ambientais do mundo em seu mandato: graças aos pagamentos feitos via sistema ONU como recompensa pela redução do desmate, alcançado no passado e recebido neste governo.

O atual governo só não consegue mais recursos internacionais porque não mostra resultados de redução de emissões e porque, a despeito da urgência do tema e da potência brasileira, suas intenções e ações não inspiram confiança dos parceiros internacionais.

Sim, os tempos já são outros. Se durante décadas o Brasil foi um hábil e sofisticado construtor de soluções globais, no momento, opera uma política de desconstrução, também inventiva. Áreas antes arejadas ao debate com a sociedade brasileira, tornaram-se sistemas fechados ao diálogo.

Cabe perguntar: a quem de fato serve o isolacionismo e o negacionismo no comando do país mais megadiverso do mundo? Ficar na arquibancada da história não é nosso destino. Quando conseguiremos sair desta armadilha?

https://epoca.globo.com/natalie-unterstell/coluna-projeto-paria-ou-um-paria-entre-nos-24766126

quinta-feira, 5 de novembro de 2020

Com Biden na presidência dos EUA, o que acontece com os ministros brasileiros do Meio Ambiente e Relações Exteriores?

 No que depender de Bolsonaro, eles ficam...


Se Biden vencer, ministros Salles e Araújo devem perder espaço

Com a vitória de Biden, governo Bolsonaro avalia tirar dos holofotes os ministros integrantes da ala ideológica. Seria a maneira de construir uma ponte com o democrata

Augusto Fernandes
Correio Braziliense, 05/11/2020 07:40

Com o cenário eleitoral dos Estados Unidos apontando para uma vitória de Joe Biden contra Donald Trump na corrida pela Casa Branca, o governo brasileiro avalia como deve se comportar com o país norte-americano no caso de o candidato do partido Democrata ser oficialmente declarado como o novo presidente dos EUA. Por um lado, o Planalto está mais do que ciente de que as cobranças de Biden contra a política ambiental brasileira continuarão fortes. Por outro, sabe que não poderá cortar laços com a maior potência mundial por uma eventual derrota de Trump. Ante essa situação, o presidente Jair Bolsonaro pode promover mudanças no Executivo, em nome do pragmatismo político, e abrir mão de ministros da “ala ideológica”.

Interlocutores do governo ouvidos pelo Correio dizem que os ministros das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, e do Meio Ambiente, Ricardo Salles, poderiam perder a chefia das pastas ou serem realocados para cargos de segundo escalão. Apoiadores declarados do presidente republicano, ambos auxiliares de Bolsonaro, acumulam fortes críticas dentro e fora do Brasil, seja pelo desmatamento recorde na Amazônia e no Pantanal, seja por uma política externa que levou o Brasil à condição, nas palavras de Araújo, a “pária internacional”.

Tirar Salles e Araújo dos holofotes seria importante para o Palácio do Planalto construir uma ponte com Biden, em especial no quesito meio ambiente. O democrata ameaçou “congregar o mundo” contra o Brasil para garantir que a Amazônia seja preservada. Desde o início do ano, o bioma foi atingido por 94.169 queimadas. Esse registro é 5% superior ao que foi contabilizado em 2019 inteiro, quando o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) registrou 89.176 pontos de calor na Floresta Amazônica.

Assessores de Bolsonaro reconhecem que o país pode ficar mais isolado, caso não tente se adequar ao perfil de um presidente norte-americano que não mantenha um alinhamento ideológico com o mandatário brasileiro. Dessa forma, a estratégia é encontrar a melhor maneira de Bolsonaro sinalizar a Biden que estará disposto a iniciar um diálogo.

As mudanças, contudo, não devem ser imediatas. O Executivo ainda espera a confirmação do resultado oficial. Se as urnas apontarem vitória de Biden, Bolsonaro deve aguardar até o primeiro trimestre do ano que vem para confirmar uma reforma ministerial. Enquanto isso, ele segue torcendo por Trump.

Ontem, o presidente brasileiro comentou a apoiadores que eventual vitória de Biden pode abrir espaço para uma interferência do governo norte-americano na política do Brasil. “O candidato democrata, em duas oportunidades, falou sobre a Amazônia. É isso que vocês tão querendo para o Brasil? Aí sim uma interferência de fora pra dentro”, alertou o mandatário.

Mais uma vez, Bolsonaro comentou que espera a vitória de Trump. O presidente evitou falar em derrota do republicano e disse que vai aguardar pelas decisões da Suprema Corte norte-americana. “Parece que foi judicializado o negócio lá, né. Um estado ou outro. Esperar um pouquinho. A esperança é a última que morre”, lembrou o presidente.

Reacomodação
Segundo cientistas políticos, a eleição de Biden deve impactar o Executivo brasileiro, em especial porque o Itamaraty tem sido pautado por um completo alinhamento a Trump. Diante disso, será imprescindível que o governo mude a forma de fazer política com o restante do mundo. “Bolsonaro terá de se acomodar à nova realidade. Será muito diferente com Biden, pois ele perderá o acesso privilegiado à Casa Branca. Então, há uma força no gabinete e, até certo ponto, na própria vice-presidência, de que é necessário ter uma boa relação com os EUA. Portanto, é provável que ele faça um gesto de acomodação. A mudança mais lógica seria com Araújo e Salles, que são os ministros mais desprestigiados no exterior”, analisa Eduardo Viola, professor titular de relações internacionais da Universidade de Brasília (UnB).

O cientista político Enrico Monteiro, da Queiroz Assessoria Parlamentar e Sindical, acrescenta que “a ideologia nos deixou isolados do mundo” e que Bolsonaro precisará mudar essa postura para não deixar o Brasil “completamente à margem do comércio internacional”. De acordo com ele, “isso seria péssimo para uma retomada econômica”. “Acho que a vitória do Biden vai trazer algumas reflexões: qual é o nosso posicionamento em relação a comércio internacional e qual é a nossa posição enquanto país com o maior potencial de economia verde do mundo e maior produtor do agronegócio mundial. Teremos a chance de fazer discussões que, até o presente momento, não ocorreram porque houve alinhamento automático com o Trump. Se Biden for confirmado, ele vai propor para os parceiros comerciais uma série de movimentos, sobretudo na área ambiental, aos quais o Brasil precisará se adequar.”

“Brasil não tem nada a esconder”
O vice-presidente Hamilton Mourão afirmou, ontem, que as relações entre os Estados Unidos e o Brasil precisam continuar, independentemente do resultado das eleições. De acordo com o general, cada nação tem seus interesses e o diálogo é institucional. “Nosso relacionamento é de Estado. Independe do governo que está lá. É claro que o presidente Trump é mais próximo do presidente Jair Bolsonaro. Cada nação tem seus interesses”, disse Mourão, ao embarcar com uma comitiva de diplomatas para conhecer as ações de combate do governo federal ao desmatamento na Amazônia. Quanto à viagem, Mourão disse que “o Brasil não tem nada a esconder” e que o país reconhece suas dificuldades na área ambiental. (Renato Souza)

O que dizem os especialistas?
Voto e mobilização

“A polarização política tem o efeito de mobilização dos eleitores. Os democratas saíram de casa e os idosos votaram contra o Trump pelos correios, devido à gestão dele durante a pandemia. No entanto, por outro lado, o eleitor fiel a Trump, sentindo-se desamparado por outros governos, garantiu a ele vitórias importantes como na Flórida, onde o republicano teve um voto maciçamente masculino e branco. Embora a eleição norte-americana tenha impacto no Brasil, a vitória de Trump não acrescenta em algo prático, porque quem tem o maior impacto sobre o Brasil é o próprio Brasil. Temos que fazer o dever de casa, e o governo brasileiro deve realizar diálogos e levar adiante discussões importantes de melhorias deste governo”.
Creomar de Souza, fundador da Consultoria Política Dharma

É melhor não brigar
“Esta é uma eleição histórica porque ocorre no meio de uma pandemia, com um voto antecipado robusto e significativo, além de ter um dos maiores comparecimentos para votação do período recente, considerando que, nos EUA, a votação é facultativa. No Brasil, a eleição norte-americana exerce um poder simbólico de fortalecimento do posicionamento ideológico. Bolsonaro foi eleito na mesma onda conservadora de Trump, e uma eventual vitória do republicano terá um efeito revigorante neste movimento. Não acredito que a vitória de Biden trará muitas consequências. Os dois países são grandes parceiros econômicos, e o Brasil não vai brigar com a China e os Estados Unidos ao mesmo tempo. Na prática, não altera muito quem ganha ou perde”.
Lúcio Rennó, professor do Instituto de Ciência Política da UnB

Sequência de erros
“A postura de Trump com relação à pandemia, acrescida da retórica dele em relação à Europa e à Otan, além do desprezo dele em relação a alguns assuntos — como a ocasião em que ele se recusou a apertar a mão de Angela Merkel na Casa Branca —, foram fatores que o prejudicam agora. Além disso, o movimento Black Lives Matter (Vidas Negras Importam) é pró-Biden, ainda que ele não seja o candidato dos sonhos para esse grupo. E caso Biden seja o vencedor, tanto EUA quanto Brasil devem ter bom senso para que a soberania do Brasil seja respeitada; para que o governo brasileiro reconheça os equívocos na área ambiental e mude de atitude a respeito disso.”
João Carlos Souto, professor de Direito Constitucional do Centro Universitário do DF (UDF)

O olhar do investidor
“Os Estados Unidos deram mostra de que o candidato favorito é Joe Biden. Apesar da política de Trump, favorável ao mercado interno americano, os investidores temem a guerra com a China e a beligerância com a Europa. No Brasil, isso acaba tendo um certo reflexo. Não podemos esquecer que o nosso maior parceiro comercial são os Estados Unidos — para efeito de importação e exportação, somados. A China é a maior compradora do Brasil. Qualquer movimento dos americanos afeta diretamente o Brasil. O mercado local olha esse termômetro. Mas, obviamente, existe um componente interno (no Brasil) que está afetando mais do que propriamente a eleição americana. Juntando esses dois fatores, temos altas elevadas nas Bolsas e uma volatilidade muito grande. E os espectadores, aqueles que estão com dinheiro, aguardam os passos corretos para fazer os seus investimentos.”
César Bergo, presidente do Conselho Regional de Economia e diretor da Corretora OpenInvest

Efeito covid
“Se não tivesse ocorrido a pandemia, Trump teria uma vantagem extremamente expressiva. Mas a forma como ela foi tratada pelo presidente Trump trouxe prejuízo, junto com o viés econômico, que era a grande locomotiva que poderia colocá-lo bem à frente de Joe Biden. Com uma vitória de Biden, pode ocorrer instabilidade entre EUA e Brasil em um primeiro momento. Mas ambas nações são grandes parceiras históricas, trata-se de uma parceria de Estado, não de governo. Do ponto de vista comercial, não haverá uma catástrofe.”
Rodrigo Badaró, conselheiro federal da OAB e especialista em política dos Estados Unidos

Futuro da política
“O número oito é muito importante na história mundial. Em 1918, após a Revolução Russa, o mundo tinha duas ideologias: de um lado o liberal; e de outro, o comunismo. Em 1938, o mundo teve três para escolher, com o nazismo também. A partir de 1988, o socialismo cai. É só estudar a China que dá para ver que aquelas teorias não se encaixam muito. Depois de 2008, nem o liberalismo explica mais nossa nação. Eu creio que, em 2004, houve duas mudanças significativas: a internet, que ficou mais visível a todos, e o smartphone. Nessa junção, mudamos o DNA da humanidade e, com isso, todas as questões que estamos falando talvez sejam velhas demais. Em outras palavras, quem Bolsonaro vai enfrentar em 2022, talvez a gente nem conheça ainda.”
Rafael Favetti, advogado e cientista político

https://www.correiobraziliense.com.br/mundo/2020/11/4886830-salles-e-araujo-na-mira.html?utm_source=push&&utm_medium=push


BOLSONARO DIZ QUE ERNESTO ARAÚJO TEM 'CHANCE ZERO' DE CAIR SOB BIDEN PRESIDENTE

Presidente garante permanência de ministro trumpista
Época, 05/11/2020 - 07:10 

Jair Bolsonaro tem dito a interlocutores que o trumpista Ernesto Araújo tem "chance zero" de ser demitido sob a presidência de Joe Biden.

Aliás, Bolsonaro tem mostrado resistência a mudar radicalmente e da noite para o dia seu discurso e atitude por conta de Biden.

Prefere moderar o tom aos poucos — e só se Trump perder a batalha judicial.

https://epoca.globo.com/guilherme-amado/bolsonaro-diz-que-ernesto-araujo-tem-chance-zero-de-cair-sob-biden-presidente-24729522

terça-feira, 18 de fevereiro de 2020

O Brasil a caminho da decadência - Monica de Bolle

Mônica de Boelle Foto: ÉPOCA

Monica de Bolle

Decadência 

Sociedades que não mais reconhecem no conhecimento e na sabedoria as qualidades para seus líderes podem, sim, estar decadentes 
Época, 14/02/2020 - 03:00 
E aí, o título evocou os sete pecados capitais? Não é desse tipo de decadência que se trata. A decadência sobre a qual escrevo é a definida pelo historiador e crítico cultural Jacques Barzun, falecido em 2012. Sua obra magna — Da alvorada à decadência: a história da cultura ocidental de 1500 aos nossos dias — foi publicada em 2000, quando o autor tinha 93 anos. Lembrei-me dela ao ler, no domingo passado, o ensaio de Ross Douthat no New York Times sobre seu novo livro, intitulado The decadent society (A sociedade decadente). Tanto Barzun quanto Douthat apresentam contraposições bem elaboradas à obra de Steven Pinker, O novo Iluminismo, publicada em 2018. Nesse livro, o argumento central de Pinker é que os intelectuais tendem ao pessimismo como uma espécie de atrator cognitivo — prefiro atrator ao termo mais comum, viés —, o que os leva a ignorar os progressos conquistados em diversas áreas nas últimas décadas. Tenho inúmeras críticas a essa obra específica de Pinker, mas as deixarei para outro artigo.
Voltando a Barzun. Sua definição de decadência não é moral ou estética. Sobre o termo, ele explica: “As artes como expressão da vida parecem ter sido exauridas, os estágios de desenvolvimento já foram ultrapassados. Instituições funcionam dolorosamente. A repetição e a frustração são o resultado intolerável dessa situação (...) Quando as pessoas aceitam a futilidade e o absurdo como estados normais, a cultura está decadente”. Douthat elabora: sociedades lideradas por gente mesquinha e arrogante não estão necessariamente em decadência, mas sociedades que não mais reconhecem no conhecimento e na sabedoria as qualidades para seus líderes podem, sim, estar decadentes. A decadência nem sempre leva à catástrofe, pois sociedades decadentes definidas no sentido que Barzun empresta ao termo podem perdurar por anos a fio, como revelam diversos casos históricos. Nesse sentido, a decadência é perfeitamente compatível com alguma noção de “progresso” — a tecnologia que permite maior conforto e uma sensação de ganho de eficiência é a mesma tecnologia por meio da qual nos engalfinhamos em moção perpétua nas redes sociais. Ou seja, a decadência é mais entropia do que ruptura, mais o café que esfria na mesa do que o leite derramado.
Na ciência social, campo em que incluo a economia em todas as suas vertentes, inclusive a tecnicista, há sinais de decadência. Quem são os grandes pensadores da atualidade que nos apresentam maneiras novas de refletir sobre nossos problemas? Não digo que eles não existam, mas, quando procuro referências para compreender o ressurgimento do nacionalismo, a normalização do polo mais extremado da extrema-direita, a aceitação de injustiças sociais sem a turbulência que marcou o século XX, esbarro nas mesmas pessoas extraordinárias. Hannah Arendt, Albert Hirschman, o próprio Barzun, além de tantos outros que viveram profundamente o século passado, não o atual. O caso das injustiças sociais é especialmente interessante: nos anos 1960, os movimentos pelos direitos civis se espalharam, tomando as ruas mundo afora. Hoje o que se vê é uma mobilização virtual, descontente, sim, mas, ao mesmo tempo, agressiva e desalentada, espantosamente conivente com as estruturas sociais que reproduzem a desigualdade e que não haverão de mudar sem que se desgrude da incandescência da telinha.
Entendo que se deva lançar mão deles, também. Como escrevi em um artigo para este espaço na semana passada, linhas foram cruzadas, a porteira foi aberta e a boiada já passou. A presunção de que as coisas cedo ou tarde voltarão a seu lugar e a ordem se restabelecerá é, em si, uma atitude decadente.
A decadência, como definida por Barzun, é confortável para uns e bastante penosa para outros. Para os que dependem dos minguantes programas sociais, para os que estão parados no túnel de Hirschman esperando por uma mobilidade social que desapareceu, para os jovens que precisam de mais do que a proficiência mínima em áreas fundamentais da educação, para os que vivem nas comunidades onde reinam as milícias e os crimes cometidos pela polícia, para todos os diretamente afetados por ciclos climáticos alterados pelo descaso ela certamente é penosa. Esses grupos influenciam e são influenciados pelo que chamamos de economia. Ignorar essa realidade é irresponsável e de uma profunda decadência intelectual, decadência que apenas haverá de prolongar a convergência para a entropia que hoje ocorre no Brasil e no mundo. Café em temperatura ambiente, afinal, é absolutamente insuportável.
Monica de Bolle é Pesquisadora Sênior do Peterson Institute for International Economics e professora da Universidade Johns Hopkins

domingo, 8 de setembro de 2019

Paulo Francis antecipou Trump e Bolsonaro - Gabriel Trigueiro (Época)

Ler Paulo Francis é um orgasmo de saber e conhecimento (Ricardo Bergamini).

Ignorância é o nosso grande patrimônio nacional (Paulo Francis).
O Brasil é um asilo de lunáticos onde os pacientes assumiram o controle (Paulo Francis).
A melhor propaganda anticomunista é deixar um comunista falar (Paulo Francis).
Não levo ninguém a sério o bastante para odiá-lo (Paulo Francis).

COLUNA | SAUDADES DE PAULO FRANCIS

Escritor que não deixou sucessores, Francis foi 'cancelado' pela esquerda e apropriado pela direita que ignora suas principais virtudes.

07/09/2019 - ÉPOCA


Paulo Francis é um escritor que não deixou sucessores. Nem sequer pode ser dito que, a exemplo de alguém como George Orwell, esquerda e direita disputam o seu espólio. Porque, verdade seja dita, a esquerda o "cancelou" e a direita se apropriou de maneirismos, de cacoetes muito específicos, mas ignora suas principais virtude

Em um livro pouco lido e pouco falado de Francis, Nixon x Mcgovern: As Duas Américas (1972), há uma excelente síntese do apelo de Richard Nixon: "Nixon é o que inúmeros americanos são e têm vergonha de ser: o careta preconceituoso, aquisitivo, isento de imaginação e ideias, tão inseguro de si próprio que recebe qualquer crítica aos EUA como uma ofensa pessoal. De Sinclair Lewis (em verdade, antes) em diante, essa figura protótipo da Middle America é um saco de pancada da intelectualidade que, pequena em números, influi fantasticamente na determinação do estilo e gosto das elites, dominando até o tom dos comentaristas de televisão. Nixon restabeleceu o prestígio do caretismo".

Francis prossegue e aponta, por exemplo, que um filme como Millhouse: a White Comedy, um documentário satírico sobre Nixon, foi capaz de fazer muito sucesso em Nova York, bem como em outros centros urbanos, mas que no interior inclui "o espectador entre os ofendidos". Essa é uma observação muito profunda e sofisticada, sobretudo para a época. Repare, seu livro foi publicado em 1972, e nesse momento Paulo Francis aponta para algo que mesmo nos EUA de Trump e no Brasil de Bolsonaro a classe intelectual progressista teima em não levar em consideração: a principal clivagem que há no debate público é muito menos entre esquerda e direita e muito mais relativa à classe - não à moda dos marxistas, mas classe entendida como uma variável sociológica que meio que informa, ou pelo menos condiciona, a sua percepção do mundo e da realidade (com relação à política mas principalmente à cultura e até a um determinado senso estético).

Dito de outra forma, sempre que um intelectual sóbrio demais, cosmopolita demais, respeitável demais, usando um paletó de tweed com remendos no cotovelo, desautorizava Donald Trump ou, em termos mais gerais, o trumpismo, o tiro saía pela culatra. O que era pensado como um golpe a ser desferido contra um político muito específico, acabava soando e sendo interpretado como uma afetação de classe dirigida por um intelectual esnobe, situado no topo de sua torre de marfim, com nojo do povo.

Movimento análogo ocorreu, e na verdade ainda está em curso, no Brasil com o bolsonarismo. O fato de que Francis tenha tido a perspicácia de ter decodificado essa dinâmica ainda na década de 1970, só atesta que ele, em seus melhores momentos, podia ser um observador atento e muito inteligente.

Outra dinâmica política nixoniana que, infelizmente não nos é estranha, é um certo apelo populista de valorização do homem comum, da sabedoria comum, em oposição ao discurso dos técnicos e especialistas. Ou, trocando em miúdos e sem o uso de eufemismos, uma guerra à ciência: que em determinado momento algumas pessoas mais otimistas (ingênuas?) minimizaram como meras bravatas, mas que rapidamente se deram conta de que se tratava de um conjunto de políticas públicas dotada de certa racionalidade muito específica.

Para citar apenas um caso concreto relativo ao governo Nixon, e apontado por Paulo Francis em seu livro, basta dizer que em determinado momento uma comissão sobre saúde pública, presidida pelo financista e filantropo John D. Rockefeller III, concluiu seus trabalhos com um relatório que recomendava educação sexual, uso de anticoncepcionais e aborto legalizado. "Trata-se de um estudo sociológico e não de um palpite", como Francis pontua. No entanto o relatório acabara sendo integralmente rejeitado pela presidência. Em seu lugar, qual seria a proposta alternativa adotada pelo governo Nixon? A platitude reacionária de se recuperar "os padrões morais do passado" da família americana.

É difícil ler esse tipo de coisa e não lembrar do atual governo Bolsonaro, no qual há uma desvalorização sistemática do discurso científico somada a um desejo mimético de soar como um Trump dos trópicos. Esse tipo de iniciativa fica evidente em um tópico muito específico, como a adesão de uma atitude negacionista diante do aquecimento global, e mesmo da agenda ambiental como um todo.

Em Certezas da Dúvida (1970), outro excelente livro de Francis, este uma antologia de suas colunas, ele argumenta no artigo "A Maioria Silenciosa" sobre o fato de que o conservadorismo, tão bem capitalizado por Nixon durante a década de 1970, poderia ser interpretado não meramente como uma reação política às esquerdas da época, mas mais ainda como uma espécie de reação estética a essas mesmas esquerdas. De acordo com ele, "Porque os jovens universitários e intelectuais são diferentes do resto do povo. Sabem mais, em primeiro lugar, mas isso ainda é o menos intolerável, pois é possível, até certo ponto, isolar da nossa consciência aquilo que não entendemos, e ler, ouvir e compreender só o que queremos. Impossível, porém, é evitar a visibilidade dos pacifistas e revoltosos nos EUA. Suas roupas, barbas e cabelos, hábitos sexuais e drogas, ajudaram mais a arrebanhar a 'maioria silenciosa' sob Nixon do que qualquer polêmica do Dr. Chomsky (...)".

O que a nova direita jamais admite, mas que para mim cada vez mais é um fato insofismável, é que o Paulo Francis trotskista é um Paulo Francis muito mais interessante do que o Paulo Francis, digamos, liberal-conservador. 'Early Francis' era um intelectual original, engraçado e mais rigoroso do que 'late Francis': mero pastiche de intelectual reaça americano. O Francis no início da carreira escrevia melhor, inclusive. Basta cotejar os textos do Correio da Manhã, e mesmo os do Pasquim, com os do Estadão, por exemplo.

De todo modo, Francis foi um dos maiores jornalistas que tivemos, um excelente crítico cultural e um grande analista político. Em uma época como a nossa, de inquestionável triunfo da vulgaridade estética e política, ele faz muita falta. Saudades, Paulo Francis.

GABRIEL TRIGUEIRO: É especialista em teoria política e crítica cultural. Escreve sobre política brasileira, política internacional e cultura.