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Este blog trata basicamente de ideias, se possível inteligentes, para pessoas inteligentes. Ele também se ocupa de ideias aplicadas à política, em especial à política econômica. Ele constitui uma tentativa de manter um pensamento crítico e independente sobre livros, sobre questões culturais em geral, focando numa discussão bem informada sobre temas de relações internacionais e de política externa do Brasil. Para meus livros e ensaios ver o website: www.pralmeida.org. Para a maior parte de meus textos, ver minha página na plataforma Academia.edu, link: https://itamaraty.academia.edu/PauloRobertodeAlmeida.

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quarta-feira, 20 de novembro de 2024

Arnaldo Godoy me comble d’honneurs, mais je n’en sort pas gonflé

 Que puis-je dire?

A PAULO ROBERTO DE ALMEIDA, AO ENSEJO DE SEUS 75 ANOS

Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

Nós, amigos e leitores de Paulo Roberto de Almeida, festejamos, nessa semana, os 75 anos de nosso Farol. Cético, diferente, irreverente, provocador, Paulo Roberto já transitou por todos os campos ideológicos, e sempre convergiu para um campo próprio. Não é preso a igrejinha alguma. A exemplo do inesquecível Barão de Itararé, o apostolado de Paulo (não o de Tarso, mas o do nosso diplomata) é o apostolado do lado oposto.

Conheci Paulo Roberto em uma banca de dissertação de mestrado do Ceub; e já se vão mais de dez anos. Me chamou a atenção a sua prosa calma, seu feitio iconoclasta de quem quebra imagens, mas que o faz com delicadeza. Muitos anos antes de que se falasse sobre guerras culturais, Paulo escancarava sua irritação para com certos textos dos frankfurtianos do exílio e dos pós-estruturalistas. Tem que ter estômago para lê-los, especialmente hoje. Com Paulo Roberto assumi essa realidade, sem medo de patrulhamento.

Paulo lembrava-me o argumento do “niilismo de cátedra”, livro de José Guilherme Merquior, referência de minha geração. Refiro-me a um texto de Paulo Roberto, sobre o encardido tema do “marco teórico” que, de acordo com uma tradição escolástica do tempo do onça, seria o único abre-te-sésamo para uma dissertação/tese de alguma grandeza. A irritação de Paulo Roberto para com esse postulado revelava um pesquisador que sabe o que fala, que sabe quando fala, que sabe para quem fala e, principalmente, que sabe se fala, ou se não se fala. Paulo Roberto conhece o argumento imbatível do silêncio.

Tudo em Paulo Roberto é muito diferente. Educado numa tradição carregada de materialismo histórico, com Paulo Roberto fui entender que o materialismo histórico é pura teoria, e que é uma pura teoria que a prática e o realismo repudiam.

Paulo Roberto tem todo o glamour do diplomata, sua carreira e uma de suas vocações. Quem de nós, que vivíamos lendo o tempo todo, e todo o tempo, não quisermos um dia sê-lo. Paulo era a materialização do sonho de uma geração, ainda obstinada pela falácia de que todo barbudinho do Itamaraty (como muitos eram negativamente referidos nos anos 70) era um fragmento vivo de Guimarães Rosa ou de João Cabral de Mello Neto. Foi através de Paulo Roberto que conheci Gelson Fonseca Júnior, um grande intelectual, e foi com Paulo Roberto que ouvi pela primeira vez sobre a obra de Carlos Henrique Cardim, especialista em Rui Barbosa.

Paulo Roberto, mais do que todos nós, leu tudo, e leu todos. Disse que sua esposa, Carmen, leu mais do que ele. Não duvido. Paulo Roberto lembra- me um Roberto Campos mais contido, e que faz de sua atividade professoral uma lanterna na popa. E aqui não vai nenhuma inferência inversa ao livro do grande memorialista de nossa vida política e econômica.

Eu sempre tive dificuldade em definir Paulo Roberto. Sociólogo, economista, diplomata, crítico literário, professor, Paulo é na verdade um polímata; é fio da meada sensível de uma tradição hoje em extinção, que certamente tem suas origens naquele grego de ombros largos que ensinava na Academia, que foi escravizado no Mediterrâneo, que foi libertado e que nos legou o espírito altaneiro. Falo de Platão, o autor da Carta VII, monumento da filosofia ocidental. É que Platão, com toda metafísica explicativa de nossa condição, espécie de uma religião para os mais refinados, está na outra ponta dessa tradição.

Historiador de nossa diplomacia, Paulo não temeu aquele que foi tão breve, e que jocosamente nomeou de “o Breve”, e que tanto o incomodou. Crítico da esquerda, e da direita, porque sabe que ambas, quando radicais, estão fora de centro, Paulo sobressai-se como uma referência equilibrada e segura de nossos problemas e dilemas.

Entre os incontáveis textos de Paulo Roberto tenho comigo aqui uma introdução a uma coletânea de estudos sobre Thomas Sowell, intelectual norte- americano que se impôs como um aniquilador de falácias ideológicas. Em nosso ambiente cultural, no mais das vezes tão disperso e retraído, Paulo Roberto de Almeida protagoniza papel idêntico, ainda que o faça de modo reservado, introvertido.

Paulo Roberto de Almeida é, na essência, um homem simples. É um homem de livros e de ideias. Creio que se pudesse escolher, Paulo passaria a vida transitando dos balcões das livrarias, para a sombra das prateleiras dos sebos, a buquinar alguma raridade. Ou dirigindo, pois foi no volante que, com sua inseparável Carmen, andou boa parte desse mundo.

Paulo Roberto de Almeida é, acima de tudo, um espírito inquieto e um pensador livre. Sua trajetória intelectual e profissional é marcada pela recusa ao dogmatismo e pela busca incessante por perguntas e respostas que desafiam as convenções e que rompam com as amarras do pensamento único.

Ao celebrarmos seus 75 anos, não apenas festejamos a longevidade de um Amigo e Mestre, mas reafirmamos o valor de uma vida dedicada ao conhecimento e ao debate, sempre no contexto de uma imensa honestidade intelectual.

Nessa data, deixo meu afetuoso abraço ao aniversariante, extensivo a Carmen, sua esposa, e a toda a família.

Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy
Brasília, 19/11/2024

segunda-feira, 13 de maio de 2024

Arnaldo Godoy homenageou Ronaldo Poletti

 EM HOMENAGEM A RONALDO POLETTI

 

Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

 

Faleceu em Brasília o Dr. Ronaldo Poletti. Humanista, homem de letras, jurista, professor, historiador, Poletti foi um polímata, um homem de conhecimento múltiplo e profundo. Na Universidade de Brasília lecionou Direito Romano, Introdução ao Estudo do Direito e Filosofia do Direito. Deixou-nos, entre outros, um de nossos primeiros estudos de controle de constitucionalidade das leis. É de sua autoria o volume sobre a Constituição de 1934, editado pelo Senado Federal. 

De agosto de 1984 a março de 1985, Ronaldo Poletti conduziu a advocacia consultiva federal, na qualidade de consultor geral da República. Poletti alçou esse altíssimo cargo, na continuidade de intensa vida pública. Essa experiência, temperada por superlativo preparo cultural, justificou a indicação, em época particularmente difícil da vida política brasileira, que então vivenciava a transição pacífica para a ordem civil. Poletti participou intensamente da formulação dos arranjos institucionais que sobreviriam. Deixou marcas na construção do novo direito brasileiro.

Poletti veio de São Paulo para Brasília, no início da década de 1970, já com registro intenso de atuação pública. Formado em Direito pela Universidade do Largo de São Francisco, em 1966, Poletti advogou no foro de São Paulo até 1969. À época, chefiou o departamento jurídico da Associação Brasileira de Revendedores Autorizados de Veículos (Abrave).

Ainda em 1969, muito jovem, com 27 anos, Poletti foi nomeado promotor em São Paulo, após aprovação em concurso público. Poletti fora aprovado em segundo lugar. Como membro do Ministério Público do Estado de São Paulo, Poletti, atuou em Penápolis, Bilac, bem como na capital do estado.

Em Brasília, Poletti atuou no Ministério da Justiça, onde, entre outros, foi consultor jurídico, de 1972 a 1979. Ao longo da década de 1970, Poletti representou o Brasil em conferência sobre repressão aos entorpecentes, em Buenos Aires; presidiu grupo de trabalho interministerial sobre ocupação de áreas rurais; presidiu comissão interministerial que tratou de legislação sobre concessão de títulos de utilidade pública a entidades de direito privado; coordenou grupo de trabalho que elaborou anteprojeto de lei complementar relativa à criação do estado do Mato Grosso do Sul; participou ativamente de comissão que elaborou anteprojeto de lei sobre desapropriações. Em 1983, Poletti foi nomeado Diretor-Geral de Secretaria do Supremo Tribunal Federal.

À frente da Consultoria-Geral da República, Poletti tratou de vários assuntos de muita importância. Estudou a acumulação de emprego de médico do antigo Inamps com o de médico do trabalho. Nesse parecer, Poletti revelou-se como um realista, afirmando, por exemplo, que “a compatibilidade de horário deve ser examinada pela Administração, em cada caso, de maneira rigorosa; ela não deve ser meramente formal; em relação a isto devem também ser observadas as normas relativas à medicina e à segurança do trabalho, bem como aquelas atinentes aos direitos dos trabalhadores”.

Poletti opinou também sobre reajustamento de preços em contratos de obra, a propósito de decisões presidenciais pendentes, e que deviam aguardar pronunciamento das respectivas autoridades ministeriais. Nesse parecer, Poletti estudou profundamente o instituto da avocação, que trata com muito equilíbrio, sobremodo no contexto dos tempos em que vivíamos.

A propósito da estruturação jurídica de fundação mantenedora de estabelecimento de ensino superior, especialmente no que se referia a submissão de estatutos a aprovação governamental, Poletti explicitou a natureza jurídica das fundações. Trata-se de parecer seminal no contexto de uma história das ideias no direito administrativo brasileiro. Datado de 10 de dezembro de 1984 o referido parecer cuidava também da atuação do Conselho Federal de Educação, no sentido de que este “há de velar para que as atuações das entidades mantenedoras não repercutam negativamente no campo do ensino”.

Romanista, historiador do Direito, dissertou sobre a vertente romanista da dicotomia entre direito público e privado quando, no mestrado, foi orientado pelo Professor Inocêncio Mártires Coelho. Ronaldo Poletti doutorou-se também pela Faculdade de Direito da Universidade de Brasília, onde lecionou por muitos anos. No dia 14 de dezembro de 2011 Poletti proferiu palestra em tema de Reflexões sobre a Justiça, tratando da democracia social, da igualdade, da liberdade, da fraternidade e da jurisdição. 

Atencioso, gentil, afável, acessível, lhano, Poletti faz parte de uma linhagem intelectual que metaforicamente diríamos que remonta aos alunos da academia de Platão. 

À frente do Instituto Histórico e Geográfico do Distrito Federal Poletti foi um gestor incansável. Um homem de fibra, um líder, uma permanente inspiração, uma voz de comando, que nos deixa saudosos.


domingo, 24 de março de 2024

E por falar em Lincoln Gordon, minha homenagem a ele, no seu 90 aniversário - Paulo Roberto de Almeida

 Elogio a um Andarilho do Século XX: Homenagem ao Embaixador Lincoln Gordon em seu 90º aniversário

Paulo Roberto de Almeida

 

Nonagenários estão se tornando mais comuns em nossos dias, bem mais, é verdade, entre as mulheres do que entre os homens. Não é todavia ainda muito frequente a comemoração dos 90 anos de alguém em plena saúde física e vigor mental, sendo por isso motivo de grande satisfação participar de um evento como este, o nonagésimo aniversário do Embaixador Lincoln Gordon. Tenho não apenas o imenso prazer de estar presente neste aniversário, como sinto-me no direito de esperar que ele também possa estar presente em minha festa de 90 anos, daqui a exatamente 37 anos.

Nonagenários, eu dizia, são mais frequentes atualmente, mas eles não o eram no século que atravessou, e ao qual sobreviveu, o professor e diplomata Lincoln Gordon. O “breve século XX” – no dizer de Eric Hobsbawm, pois começou apenas em 1914 e já tinha terminado em 1989 – foi também, para todos os efeitos humanos, um dos mais mortíferos e destruidores de toda a história da civilização humana sobre este planeta. Algumas dezenas de milhões de indivíduos – e também espécies animais, não esqueçamos, assim como cidades inteiras – foram eliminados da face da terra pelas máquinas mortíferas criadas pelo homem: canhões, armas químicas e nucleares, ou então simples machetes foram usados para eliminar “excedentes demográficos”, substituindo-se às igualmente devastadoras epidemias naturais, hoje menos comuns do que nos séculos precedentes.

O embaixador Lincoln Gordon, um andarilho de quase todo o século XX, foi portanto um sobrevivente, algo mais fácil de ser, sendo americano, do que se tivesse nascido em alguma outra região, não apenas nos continentes do hemisfério meridional, mas igualmente do outro lado do Atlântico. Apenas para ficar nas hecatombes e processos destruidores mais “eficientes” deste breve século XX, vamos listar de maneira algo impressionista os eventos e catástrofes a que sobreviveu o nosso personagem. 

Tendo se atrasado por um ano para o naufrágio do Titanic (1912), o evento que simbolizou durante tanto tempo – de certa forma até hoje – a impotência humana em face de certos fenômenos naturais, o Embaixador Lincoln Gordon conseguiu também escapar incólume de muitos desastres provocados pela mão do homem (ou sobreviveu, no sentido positivo, a outros tantos eventos políticos e sociais). Minha lista pessoal comportaria os seguintes fatos e processos a que sobreviveu ou dos quais escapou Lincoln Gordon:

 

1)    à Primeira Guerra Mundial;

2)    aos dez dias que abalaram o mundo e ao nascimento do sistema soviético;

3)    à gripe espanhola e à NEP leninista;

4)    ao tratado de Versalhes e suas consequências econômicas;

5)    a proibição do álcool nos Estados Unidos;

6)    às consequências econômicas dos senhores Churchill, Coolidge e Hoover;

7)    à crise de 1929 e à estupidez protecionista da Tarifa Hawley-Smoth;

8)    a estudos em Harvard, em Oxford e a uma Europa em processo de nazificação;

9)    ao fim do padrão-ouro e à teoria geral da intervenção dos governos na economia;

10) ao filme “Gone with the Wind” e a J. Edgar Hoover;

11) a Pearl Harbor, a uma grande guerra quente e à toda a Guerra Fria;

12) ao nascimento, crise e fim posterior do sistema de Bretton-Woods;

13) ao macartismo de MacCarthy e ao existencialismo de Jean-Paul Sartre;

14) aos coquetéis da vida diplomática e à Aliança para o Progresso;

15) à crise dos foguetes em Cuba e aos longos discursos de Fidel;

16) aos discursos do Brizola, à inflação brasileira e à morte de John Kennedy; 

17) à Revolução Cultural Chinesa e ao debate estruturalismo versus monetarismo;

18) a Woodstock, a Richard Milhous Nixon e a vários aumentos e quedas do dólar;

19) aos ecologistas anti-econômicos e aos politicamente corretos de modo geral;

20) ao sistema DOS e depois ao Windows, inventados por Bill Gates;

21) à queda do muro do Berlim e ao desaparecimento do sistema soviético; 

22) ao fim das ideologias, à morte das religiões e ao fim da História;

23) a dois choques do petróleo, a dois ou três blackouts e a muitas crises financeiras; 

24) a novos e repetidos discursos do Brizola e à transformação do PT em partido socialdemocrata e,

25) finalmente, como que provando que a evolução intelectual não segue uma linha reta nem é irreversível, ele tem sobrevivido, mais ou menos bem, ao imenso arsenal de globobagens dos atuais anti-globalizadores, ludditas de uma nova era e arautos de uma volta a tempos que nunca existiram.

 

Por tudo isso, e ainda por muitos eventos mais, que falhamos em registrar aqui, podemos ver no embaixador Lincoln Gordon um sobrevivente do século 20, mas também um jovem andarilho do século 21, como todos nós aliás. Comparando sua vida com a de muitos outros seres humanos, dentre os mais de 3 bilhões de habitantes deste planeta, ele pode se considerar como um verdadeiro felizardo, pois que finalmente produziu um rico legado de realizações intelectuais e práticas que enriqueceu esta mesma humanidade.

Mas para enriquecer ainda um pouco mais a parte de felicidade de seus muitos amigos e admiradores, ele precisaria avançar e terminar, o quanto antes, o seu projeto de depoimento pessoal para a história. Nele teremos um quadro das ideias, dos principais eventos e das realizações concretas que formulou, a que assistiu, ou de que participou, ao longo de uma longa vida rica de experiências marcantes nos campos político, econômico, diplomático e intelectual.

Portanto, ele não está autorizado a se aposentar antes de terminar a redação de suas memórias do século passado, bem como suas reflexões para este nosso século, como testemunha e pensador que foi, e ainda é, de um mundo em transformação.

Longa vida ao embaixador Lincoln Gordon!

 

Paulo Roberto de Almeida

Washington, 7 de setembro de 2003

Texto entregue com um presente (livro de Peter Watson, The Modern Mind) ao Emb. Lincoln Gordon em almoço com Paulo Sotero e John Williamson no National Press Club, dia 9/09/2003.

 

 

sexta-feira, 23 de fevereiro de 2024

Luiz Werneck Vianna: homenagem de um estudante que conviveu com ele - Rodrigo Estrela

Meu amigo e colega Rodrigo Estrela, acaba de me enviar um belo texto afetivo, de suas lembranças com o, e do sociólogo Luiz Werneck Vianna. Reproduzo aqui o que ele me escreveu:

Fiquei feliz com a sua menção a ele no Blog Diplomatizzando

(aqui: Luiz Jorge Werneck Vianna, obituários (enviados por Maurício David)

Conheci o Werneck eu tinha 15 anos incompletos, era um adolescente iniciando minha militância nos estertores do velho PCB. Lembro-me bem de uma palestra com ele na UERJ, em 1990, em seminário sobre o futuro do partidão, às vésperas daquele que seria seu IX Congresso. Eu era um moleque, mas jamais esqueci o que ele falara, e que me marcou profundamente: a única chance de nós (“nós”, evidentemente, significava “os comunistas”) sobrevivermos naqueles tempos, meses após a queda do Muro de Berlim, era por meio da superação política da ruptura leninista com a tradição social-democrata, aquele efeito colateral da Revolução Russa e da Primeira Guerra, e investirmos fortemente no que de melhor a política de frente ampla antifascista havia oferecido ao Ocidente, no século XX, a construção do estado de bem-estar social, com suas políticas de saúde, educação e habitação universais. 

Ouvir aquilo aos 16 anos, pouco tempo após a promulgação da Carta de 1988, seria uma espécie de passaporte para minha militância; valeria como uma orientação para a distância que – como comunista – sempre tomei do “esquerdismo” como “doença infantil”. Vindo do maior leninista brasileiro, que também era o maior dos gramscianos não ideológicos, se tornou uma lição inesquecível.   

Na cola do Werneck, e com amigos até hoje presentes, no Rio eu assisti atentamente às últimas reuniões do grupo carioca da revista Presença, que uniu em suas páginas gente como Leandro Konder, José Guilherme Merquior, e tantos outros de um tempo em que o Brasil ainda contava com muitos verdadeiros intelectuais. As reuniões eram no sebo do cartunista Ferdo – Fernando de Carvalho, também falecido, há poucos anos – em sobrado antigo, quase em ruínas, na Lapa, em cima de um Açougue. Discutíamos conjuntura em meio ao odor de mofo dos livros velhos que se misturava ao cheiro de carne crua que subia do térreo. 

Quando eu ia pra casa, no distante subúrbio de Bangu, cruzava com as meninas de vida não-tão-fácil que por ali perambulavam. Werneck foi-me grande e querido amigo e conselheiro e o primeiro intelectual que verdadeiramente admirei. Werneck era o meu Berlinguer – na falta de melhor comparação. 

Foi ele quem me aconselhou generosamente, como sempre fazia, a cursar economia na UFRJ, em lugar de direito (“afinal, foi na economia que o Marx ficou, pense bem”), me levantou a autoestima, como era de seu feitio, para que eu fizesse a prova do IRBr, em cuja aprovação eu próprio não poderia, naqueles tempos, acreditar – vindo de onde vinha. Werneck me pôs em contato com outros mestres. Por seu intermédio, conheci Conceição Tavares, que me deu o primeiro emprego, de assessor parlamentar, pelos idos de 94. No curso de economia da UFRJ tornei-me amigo, irmão, um filho-adotivo do professor Carlos Lessa, outro gigante intelectual brasileiro.

Mas, para além do pós-leninismo, herdei do Werneck convicções sobre o lugar do Brasil no Ocidente. Esse lugar meio torto e às vezes incômodo, feito de espírito ibérico e matéria americana. Esse Ocidente não-ocidentalista, mas Ocidente, de toda maneira. Com Werneck aprendi inicialmente a apaixonar-me pelas gerações de brasileiros que pensaram o Brasil, sem os preconceitos hoje tão presentes em certa militância que se diz “de esquerda”. 

Em 2005 ou 2006, não me lembro ao certo, levei o Werneck a Brasília para falar no primeiro curso para diplomatas sul-americanos, que ajudei a organizar na Secretaria-Geral do Itamaraty, na altura terceiro-secretário, sob a batuta do também inesquecível Samuel Pinheiro Guimarães, que nos deixou há menos de um mês.

Me sinto mais órfão esses dias. E mais velho também.

Rodrigo Estrela

23/022024

sábado, 3 de fevereiro de 2024

Homenagem a Antonio Augusto Cançado Trindade - Sergio Eduardo Moreira Lima (Revista de Direito da USP)

 https://www.revistas.usp.br/rfdusp/index


Por um direito universal da humanidade

Autores

  • Sérgio Eduardo Moreira LimaEmbaixador
  • Revista da Faculdade de Direito da USP, n. 117, 2023, 327-338

DOI: 

https://doi.org/10.11606/issn.2318-8235.v117p327-338

Palavras-chave: 

Direito Internacional, Jusnaturalismo, Visão Humanista, Positivismo, Valores universais, Consciência humana, Força e direito, O indivíduo como sujeito do Direito Internacional, Contribuição a um novo Jus Gentium, Reconhecimento do legado de Cançado Trindade: por um Direito Universal para a Humanidade.

RESUMO

O artigo é uma homenagem a Antônio Cançado Trindade, jurista, professor e magistrado brasileiro, como parte da reflexão sobre a importância de seu pensamento e de seu legado. Ao situá-lo dentro das tradições e da doutrina latino-americana e no direito internacional contemporâneo, busca-se estabelecer diferenças e explicar o reconhecimento internacional de sua obra, considerada original e inovadora. Inspirado em concepções jusnaturalistas, dedicou sua vida à humanização e à universalização do Direito Internacional, colocando a pessoa humana em lugar antes ocupado apenas pelo Estado. Sua crítica ao positivismo justifica-se ainda mais diante do reiterado abuso da força em conflitos, como o da invasão do Iraque, em 2003, ou a guerra da Rússia na Ucrânia, em 2022, com a anexação de territórios, ao arrepio da lei. As ameaças de Moscou de uso de armas de destruição em massa mostram a atualidade do voto dissidente do jurista na Corte Internacional de Justiça e sua brilhante defesa da Obrigação Universal do Desarmamento Nuclear. Foi o único internacionalista latino-americano a ser consagrado pela prestigiosa coleção Doctrine(s), em 2012, com edição sobre a importância de seu pensamento. Ficou ali reconhecido de forma eloquente o que Cançado Trindade representa: a defesa da ideia de que o direito internacional não é aquele baseado na vontade dos estados soberanos, ao qual se quis tantas vezes e por tanto tempo reduzir, mas o que se está tornando de forma irresistível, no que ele deveria ter sido sempre: um direito universal da humanidade, no qual a pessoa humana deve ser o beneficiário último (JOUANNET, 2012).

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BIOGRAFIA DO AUTOR

Sérgio Eduardo Moreira Lima, Embaixador

Embaixador. Serviu na Missão nas Nações Unidas e nas Embaixadas em Washington, Lisboa, Londres, Tel Aviv, Oslo, Budapeste e Camberra. Foi Diretor do Instituto de Pesquisas de Relações Internacionais (IPRI) e Presidente da Fundação Alexandre de Gusmão (FUNAG). É membro da OAB. Bacharel em Direito pela UERJ. Mestre em Direito Internacional Público (UIO). Curso de Altos Estudos em Diplomacia pelo IRBr.

REFERÊNCIAS

BRASIL. Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional. Mensagem n. 516/2018. [Submete à consideração do Congresso Nacional o texto do Tratado para a Proibição das Armas Nucleares, assinado em Nova York, em 20 de setembro de 2017]. Relator: Deputado Luiz Carlos Hauly. Portal da Câmara dos Deputados, Brasília, DF, 2018. Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1699697&filename=Parecer-CREDN-2018-12-11

CENTRO DE HISTÓRIA E DOCUMENTAÇÃO DIPLOMÁTICA. II Conferência da Paz, Haia 1907: a correspondência telegráfica entre o Barão do Rio Branco e Rui Barbosa. Brasília, DF: Fundação Alexandre de Gusmão, 2014. Disponível em: https://funag.gov.br/biblioteca-nova/produto/loc_pdf/157/1/conferencia_da_paz_haia_1907:_a_correspondencia_telegrafica_entre_o_barao_do_rio_branco_e_rui_barbosa_ii

JOUANNET, Emmanuelle. Préface. In: TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. Le droit international pour la personne humaine. Paris: A. Pedone, 2012. (Collection Doctrine(s), IREDIES). 

MEDEIROS, Antônio Paulo Cachapuz de (org.). Pareceres dos consultores jurídicos do Itamaraty. Brasília, DF: Senado Federal, 2004. v. 8: (1985-1990). (Coleção Brasil 500 Anos). Disponível em: https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/1044/000577958_v8.pdf?sequence=35&isAllowed=y

TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. A guerra como crime. Correio Braziliense, Brasília, DF, 14.550, 20 mar. 2003. Opinião, p. 5. Disponível em: http://memoria.bn.br/docreader/DocReader.aspx?bib=028274_05&pagfis=34320

TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. A obrigação universal de desarmamento nuclear. Brasília, DF: Fundação Alexandre de Gusmão, 2017a. Disponível em: https://funag.gov.br/biblioteca-nova/produto/loc_pdf/347/1/obrigacao_universal_de_desarmamento_nuclear_a

TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. Le droit international pour la personne humaine. Paris: A. Pedone, 2012a. (Collection Doctrine(s), IREDIES). 

TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. Memorial por um novo jus gentium, o direito internacional da humanidade. Revista da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, n. 45, p. 17-36, 2004. Disponível em: https://www.direito.ufmg.br/revista/index.php/revista/article/view/1284/1217

TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. O direito internacional em um mundo em transformação: ensaios, 1976-2001. Rio de Janeiro, Renovar, 2002. 

TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. Reflexões sobre a perenidade da doutrina dos “pais fundadores” do direito internacional. Revista da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, n. 80, p. 15-50, jan./jun. 2022. Disponível em: https://www.direito.ufmg.br/revista/index.php/revista/article/view/2261/2015

TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. Repertório da prática brasileira do direito internacional público: período 1889-1898. 2. ed. Brasília, DF: Fundação Alexandre de Gusmão, 2012b. Disponível em: https://funag.gov.br/biblioteca-nova/produto/loc_pdf/471/1/repertorio_da_pratica_brasileira_do_direito_internacional_publico_-_periodo_1889-1898

TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. Repertório da prática brasileira do direito internacional público: período 1899-1918. 2. ed. Brasília, DF: Fundação Alexandre de Gusmão, 2012c. Disponível em: https://funag.gov.br/biblioteca-nova/produto/loc_pdf/468/1/repertorio_da_pratica_brasileira_do_direito_internacional_publico_-_periodo_1899-1918

TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. Repertório da prática brasileira do direito internacional público: período 1919-1940. 2. ed. Brasília, DF: Fundação Alexandre de Gusmão, 2012d. Disponível em: https://funag.gov.br/biblioteca-nova/produto/loc_pdf/470/1/repertorio_da_pratica_brasileira_do_direito_internacional_publico_-_periodo_1919-1940

TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. Repertório da prática brasileira do direito internacional público: período 1941-1960. 2. ed. Brasília, DF: Fundação Alexandre de Gusmão, 2012e. Disponível em: https://funag.gov.br/biblioteca-nova/produto/loc_pdf/472/1/repertorio_da_pratica_brasileira_do_direito_internacional_publico_-_periodo_1941-1960

TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. Repertório da prática brasileira do direito internacional público: período 1961-1981. 2. ed. Brasília, DF: Fundação Alexandre de Gusmão, 2012f. Disponível em: https://funag.gov.br/biblioteca-nova/produto/loc_pdf/467/1/repertorio_da_pratica_brasileira_do_direito_internacional_publico_-_periodo_1961-1981

TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. Repertório da prática brasileira do direito internacional público: índice geral analítico. 2. ed. Brasília, DF: Fundação Alexandre de Gusmão, 2012g. Disponível em: https://funag.gov.br/biblioteca-nova/produto/loc_pdf/469/1/repertorio_da_pratica_brasileira_do_direito_internacional_publico_-_indice_geral_analitico

TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. The universal obligation of nuclear disarmament. Brasília, DF: Fundação Alexandre de Gusmão, 2017b. Disponível em: https://funag.gov.br/biblioteca-nova/produto/loc_pdf/348/1/universal_obligation_of_nuclear_disarmament_the

VITORIA, Francisco de. Relectiones: sobre os índios e sobre o poder civil. Brasília, DF: Editora Universidade de Brasília, 2016. Disponível em: http://funag.gov.br/loja/download/relectiones_sobre_os_indios_e_sobre_o_poder_civil.pdf

Ler a íntegra no seguinte link: 

https://doi.org/10.11606/issn.2318-8235.v117p327-338



segunda-feira, 27 de novembro de 2023

Homenagem do Centro Brasileiro de Relações Internacionais (CEBRI) a Alberto da Costa e Silva, diplomata, poeta, ensaísta, memorialista e historiador brasileiro.

 O Centro Brasileiro de Relações Internacionais (CEBRI) manifesta profundo pesar pelo falecimento do diplomata, poeta, ensaísta, memorialista e historiador brasileiro, Alberto da Costa e Silva. 

Reconhecido como um dos mais proeminentes intelectuais do país, Alberto era membro da Academia Brasileira de Letras e dedicou-se intensamente ao estudo da cultura e história africanas, tendo atuado como embaixador do Brasil por quatro anos na Nigéria e no Benim. Sua contribuição para o entendimento e apreciação da herança africana é um legado que perdurará através de suas obras e realizações.

Alberto teve uma longa e relevante carreira diplomática, atuando como embaixador em Portugal (1986-1990), na Colômbia (1990-1993) e no Paraguai (1993-1995). Além disso, ocupou o cargo de Inspetor-Geral do Ministério das Relações Exteriores entre 1995 e 1998.

Alberto deixou um vasto legado literário, composto por quase 40 livros, abrangendo poesia, ensaios, memórias e história e foi um intelectual engajado com as questões contemporâneas. Foi eleito para a Academia Brasileira de Letras em 2000 e atuou como seu presidente em 2002 e 2003. Sua notável carreira acadêmica e seus estudos sobre a história africana culminaram em 2014 com o Prêmio Camões, o mais prestigiado reconhecimento literário em língua portuguesa.

Recentemente, um artigo sobre Alberto da Costa e Silva foi publicado na 6ª edição da CEBRI-Revista, com seção especial dedicada ao continente africano. Nele, a autora Marina de Mello e Souza ressalta a importância da obra do Embaixador para o estudo da História da África. Leia o artigo aqui.

O CEBRI transmite suas sinceras condolências à família, especialmente aos seus três filhos, Elza Maria, Antonio Francisco e Pedro Miguel, bem como aos seus sete netos e bisneta.

A partida de Alberto da Costa e Silva representa uma perda tanto para a diplomacia quanto para a cultura brasileira. Sua obra, porém, permanece viva, especialmente para as gerações futuras interessadas no estudo da África, um continente de extrema relevância para o Brasil e sua política externa.

sábado, 31 de dezembro de 2022

Pelé, o insuperável - Veja

 VEJA

Edson Arantes do Nascimento, 23/10/1940 - 29/12/2022

Campeão da Copa do Mundo aos 17 anos, bicampeão aos 21, tricampeão aos 29, onze vezes artilheiro do Campeonato Paulista (em seu tempo a competição mais importante do nosso futebol, ao lado do Campeonato Carioca), dez vezes campeão estadual, seis vezes campeão do Brasil, duas vezes campeão da Libertadores das Américas, duas vezes campeão mundial de clubes. 

Em toda a trajetória profissional, somou 1.281 gols, reconhecidos pela Fifa. O rei do futebol será eterno, mesmo tendo abandonado os gramados há décadas. Em 1974, aos 22 minutos do primeiro tempo de um jogo contra a Ponte Preta de Campinas na Vila Belmiro, sem nenhum roteiro planejado, ajoelhou-se de repente no meio do gramado. Com os braços abertos, virou o corpo em direção aos quatro cantos do estádio onde jogou na maior parte da carreira, em um modesto agradecimento de adeus. 

Foi assim que Pelé aposentou sua camisa branca do Santos, o único clube que havia defendido. Ele a vestira 1 116 vezes durante dezoito anos. Com ela, o número 10 às costas, fizera 1 091 gols. São marcas que nenhum jogador alcançou ou viria a atingir. Beira a impossibilidade que alguém venha a superá-las. 

Nenhum brasileiro, em qualquer campo de atividade, atingiu nem de longe sua dimensão e prestígio. A fama ultrapassou qualquer fronteira. Um gênio, simplesmente. Sem comparações possíveis. 

Veio do nada e tudo conquistou.

domingo, 29 de maio de 2022

Antonio Augusto Cançado Trindade: algumas resenhas e minha homenagem ao grande jurista

 Minha homenagem aos colegas, aos intelectuais em geral, consiste, geralmente, numa atenta leitura de suas obras e no oferecimento, sem qualquer pedido externo ou intenção de publicação, de uma ou mais resenhas sobre suas obras. Foi o que fiz em relação às obras do grande amigo, consultor jurídico e eminente juiz de cortes internacionais Antonio Augusto Cançado Trindade. Alguns exemplos aqui abaixo, mas devem ter mais, perdidos em meus arquivos.

Paulo Roberto de Almeida

A Prática do Direito Internacional no Brasil:

uma visão histórica da diplomacia brasileira

 

Antonio Augusto Cançado Trindade:

Repertório da Prática Brasileira do Direito Internacional Público

(Brasília: Fundação Alexandre de Gusmão, 1984 a 1988)

 

Seqüência dos Volumes (ano de publicação):

1. Índice Geral Analítico (1987)

2. Período 1889-1898 (1988)

3. Período 1899-1918 (1986)

4. Período 1919-1940 (1984)

5. Período 1941-1960 (1984)

6. Período 1961-1981 (1984)

 

A América Latina tem, reconhecidamente, uma longa tradição em matéria de Direito Internacional Público. Mesmo os não especialistas saberiam reconhecer a importância da contribuição continental nesse terreno bastando, por exemplo, fazer referência ao princípio do uti possidetis, à cláusula Calvo, à doutrina Drago (ambas, aliás, suscitadas por um problema cruelmente atual, o da dívida externa dos países latino-americanos), ao instituto do asilo diplomático ou ao conceito de mar patrimonial. 

O Brasil, por sua vez, possui longa prática diplomática, alicerçada em sólida e igualmente longa tradição jurídico-legal, o que tornou sua política externa respeitada internacionalmente e merecedora da confiança dos demais membros do sistema inter-estatal contemporâneo. 

A codificação da tradição internacionalista latino-americana deveria, assim, representar um subsídio indispensável ao processo de elaboração do Direito Internacional Público, ramo do direito em constante evolução e transformação. Em que pese, porém, a existência de alguns bons manuais de Direito Internacional Público elaborados no contexto latino-americano — dentre os quais destacaríamos o do brasileiro Hildebrando Accioly e o do chileno Fernando Gamboa Serazzi — e dedicados à evolução doutrinária e jurisprudencial do chamado jus gentium, os especialistas e observadores da já referida tradição ressentiam-se da falta de codificação similar para a prática dos Estados no campo das relações diplomáticas e do Direito Internacional Público. Essa lacuna, pelo menos no que concerne o Brasil, vem sendo preenchida pelo extraordinário trabalho solitário do eminente internacionalista Antonio Augusto Cançado Trindade, professor de Direito Internacional Público da Universidade de Brasília e do Instituto Rio Branco e Consultor Jurídico do Ministério das Relações Exteriores.

A obra que ora se apresenta sob os auspícios da Fundação Alexandre de Gusmão, do Itamaraty, integra uma série de volumes dedicados ao tema da prática diplomática brasileira, cobrindo diversos períodos, desde o início da República até os dias atuais. Autor de vasta produção especializada no campo do Direito Internacional Público, incluindo, além de numerosos artigos e monografias publicados nos principais periódicos do mundo, dois outros volumes editados pela Universidade de Brasília — Princípios do Direito Internacional Contemporâneo (1981) e O Esgotamento de Recursos Internos no Direito Interrnacional (1984, cuja versão original foi agraciada com o Premio Yorke, da Universidade de Cambridge) — o Professor Cançado Trindade realizou, com os vários livros editados até aqui, um esforço altamente meritório e rigorosamente inédito não apenas nos anais do Direito Internacional brasileiro, como na história jurídica da América Latina e do Terceiro Mundo.

Com efeito, apesar da existencia de Relatórios de Chancelarias, bem como de Coleções de Atos Internacionais publicados por diversos Governos do continente, não havia, até o presente momento, um Repertório, organizado de forma lógica e sistemática, da prática diplomática corrente de algum Estado latino-americano. O Brasil junta-se, assim, aos poucos países do hemisfério norte que coletam em seus Digests ou Repértoires anuais os elementos mais significativos de suas práticas nacionais respectivas em matéria de Direito Internacional Público e de relações diplomáticas. 

A importância do trabalho do Professor Cançado Trindade para o Brasil e para as demais nações do continente é tanto maior que a divulgação sistemática e selecionada da prática diplomática brasileira contribui para projetar num âmbito mais amplo os interesses econômicos, políticos e diplomáticos propriamente nacionais ou regionais, sobretudo aquelas posições de princípio ligadas à lenta elaboração de uma nova ordem econômica internacional (de que a Convenção sobre o Direito do Mar é um marcante exemp1o) .

Mas, em que consiste exatamente o Repertório da Prática Brasi1eira do Direito Irternacional Público, este “ciclópico trabalho” — segundo a feliz caracterização empregada pelo Embaixador João Hermes Pereira de Araújo —, que cobre o conjunto das relações internacionais do Brasil entre 1889 e 1981? A estrutura dos cinco volumes substantivos é basicamente idêntica, com pequenas variações em função do período tratado, consistindo de nove partes articuladas em torno das seguintes rubricas: 

 

l) Fundamentos do Direito Internacional, destacando-se, nos princípios que regem as relações amistosas entre os Estados, a “soberania permanente sobre recursos naturais”, de introdução mais recente; 

2) Atos Internacionais, cobrindo a ampla processualística dos tratados entre Estados e organizações; 

3) Condição dos Estados, envolvendo reconhecimento, jurisdição, imunidades, responsabilidade internacional e sucessão de Estados; 

4) Regulamentação dos Espaços, territorial, marítimo, aéreo e espacial; 

5) Organizações Internacionais; 

6) Condição dos Indivíduos, compreendendo direitos humanos e direito de asilo; 

7) Solução Pacífica de Controvérsias e Desarmamento, inclusive, para o período recente, um capítulo para a questão do terrorismo; 

8) Conflitos Armados e Neutralidade; 

9) miscelânea, abrigando, entre outros temas, cláusula da Nação-Mais-Favorecida e, em acordo com os novos tempos, Multinacionais e Segurança Econômica Coletiva. 

 

Em cada um desses grandes blocos de problemas do Direito Internacional Público abriga-se um manancial extraordinário de informações e documentos de referência sobre a prática brasileira nos períodos delineados. De certa forma, é a própria história de nossa política externa que está sendo contada nessas páginas retiradas de memoranda, telegramas de instruções, discursos em conferências e trechos de relatórios do Itamaraty.

A periodização adotada por Cançado Trindade para repartir cronologicamente esses 92 anos de prática brasileira do Direito Internacional Público, se parece atender mais a critérios de conveniência do que propriamente razões de ordem metodológica ou historiográfica, tem pelo menos o inegável mérito de sublinhar a notável continuidade e constância de posições demonstradas pela prática diplomática do Brasil, a despeito mesmo de rupturas na ordem política e constitucional em alguns momentos fortes (1930, 1937, 1964) de nosso itinerário republicano. 

Fica aliás a sugestão, para um ulterior volume de interpretação e de comentários sobre a prática diplomática agora repertoriada, de proceder-se a uma análise diacrônica comparativa sobre as posições adotadas pelo Brasil em face de desafios similares em momentos diversos de nossa história. Esses materiais também fornecem abundante matéria-prima não só aos historiadores diplomáticos e aos estudiosos das relações internacionais do Brasil, como também aos juristas interessados num embasamento histórico-jurisprudencial dos princípios sempre sustentados pelo Brasil em cortes internacionais e em organismos multilaterais.

Estabelecida a divisão temática, vejamos com que tipo de “matéria-prima” trabalhou Cançado Trindade na monumental compilação que agora esta chegando a seu termo. O simples enunciado dos diversos tipos de fontes documentais dá uma ideia da grandiosidade do esforço empreendido pelo brilhante internacionalista: a maior parte dos textos selecionados é proveniente de material impresso oficial do Itamaraty, consistindo de relatórios anuais encaminhados à Presidência da República, pareceres jurídicos dos Consultores do Itamaraty, correspondência e expedientes de serviço (notas trocadas com outras Chancelarias, declarações de beligerância, documentos internos ostensivos, memoranda não publicados etc.), discursos e pronunciamentos do Ministro das Relações Exteriores, intervenções de delegados brasileiros em conferências especializadas ou em sessões de organizações internacionais e demais declarações oficiais do Governo brasileiro sobre temas de relações internacionais, incluindo-se declarações conjuntas de natureza bilateral. Figuram ainda, neste vasto e completo repertório, discursos pronunciados por parlamentares nos plenários do Senado Federal e da Câmara dos Deputados, bem como exposições e debates realizados em suas respectivas Comissões de Relações Exteriores por ocasião do comparecimento do Chanceler brasileiro. 

Imagine-se as dificuldades do trabalho engajado por Cançado Trindade: não bastasse o critério de escolha e seleção da documentação disponível — tarefa por si só angustiante para o honnête homme e quase um tormento para o scholar consciencioso, que trabalha sobre uma verdadeira mina de preciosidades documentais — deve-se levar em conta a verdadeira multiplicidade de vias para o acesso às fontes e o caráter frequentemente confidencial dos documentos compulsados. Ainda que a maior parte da documentação reunida estivesse sob forma impressa, o distanciamento em relação a nossa época a torna quase que inédita, entregue que estava, nas últimas décadas, a um outro tipo de “crítica roedora”. 

Como bem disse o Embaixador Jose Sette Câmara, Cançado Trindade “conseguiu condensar uma imensa área de informação que estava dispersa e perdida na poeira dos arquivos do Itamaraty”. Mesmo que nosso reconhecimento de pesquisadores não se esgote neste aspecto específico do garimpo documental, somos todos gratos a Cançado Trindade por esse longo convívio com “traças literárias” de diversas épocas, dispensando-nos de igual frequentação. No caso do volume relativo aos anos 1899-1918, que cobre, inter alia, a gestão do Barão do Rio Branco, alguns documentos são efetivamente inéditos, pois que entre 1903 e 1911 não foi publicado o Relatório do MRE.

No que se refere à substância mesma do material selecionado, os documentos escolhidos são altamente significativos e esclarecedores da posição oficial brasileira sobre os grandes temas do Direito Internacional Público, permitindo igualmente ao historiador uma visão evolutiva da política externa brasileira em diversas questões cruciais de nosso relacionamento internacional. 

A título de exemplo, comparecem nos diversos volumes problemas tão diversos como o “discurso do delegado Salvador de Mendonça ao término dos trabalhos da I Conferência Internacional Americana” (período 1889-1898), quando na verdade essa reunião inaugural do sistema panamericano tinha sido iniciada em Washington quando o Brasil ainda era uma monarquia; um “excerto do Relatório do Itamaraty sobre o Reconhecimento pelo Brasil do Governo Provisório da Rússia, em 9 de Abril de 1917” (1899-1918); o “discurso do representante do Brasil, Mello Franco, de 10 de junho de 1926, sobre a retirada do Brasil da Liga das Nações” (1919-1940); o telegrama enviado por Giraud e de Gaulle a Getúlio Vargas a propósito do “Reconhecimento pelo Brasil do Comitê Francês de Libertação Nacional, em 1943” (1941-1960); ou a “Nota de Denúncia do Acordo de Assistência Militar Brasil-Estados Unidos, de 11 de março de 1977” (1961-1981), começo de um período de deterioração nas relações bilaterais.

Como se não bastasse tal riqueza documental, Cançado Trindade ainda brinda-nos, em cada um dos respectivos capítulos introdutivos aos volumes editados, com excelentes análises descritivas e críticas sobre o estudo das práticas nacionais de Direito Internacional Público e o papel dos repertórios sistemáticos no processo de codificação progressiva nesse campo, que dão testemunho, por elas mesmas, da excepcional erudição, saber jurídico e aggiornamentobibliográfico do (então) jovem Consultor Jurídico do Itamaraty. 

Esses textos, que mereceriam uma eventual unificação metodológica e publicação independente, são, nominalmente (pela ordem cronológica de sua redação), os seguintes: “Os repertórios nacionais do Direito Internacional e a sistematização da prática dos Estados” (1961-1981), “A expansão da prática do Direito Internacional” (1941-1960), “A emergência da prática do Direito Internacional” (1919-1940), “Necessidade, sentido e método do estudo da prática dos Estados em matéria de Direito Internacional” (1899-1918) e “A sistematização da prática dos Estados e a reconstrução do jus gentium” (1889-1898). Todos esses textos introdutórios, extremamente ricos em sua própria densidade metodológica e de contextualização, justificariam uma outra resenha crítica, que não caberia contudo nos limites deste trabalho de apresentação. Eles constituem, ademais, um registro atualizado e sintético da experiência de outros países em matéria de repertórios de prática diplomática, permitindo uma visão global da diversidade metodológica e conceitual ainda vigente nos registros nacionais de Direito Internacional Público.

Os quatro volumes substantivos cobrindo o longo período de 1899 a 1981 são precedidos de um Índice geral analítico, absolutamente indispensável ao pesquisador sistemático, aquele interessado, por exemplo, numa perspectiva comparada, no longo prazo, das posições adotadas pelo Brasil em relação ao instituto da arbitragem. Atendendo parcialmente a recomendação do Professor Alexandre Charles Kiss, autor do Repértoire francês, no sentido de que seja providenciada uma edição em francês e em inglês do Index e do sumário dos livros editados, esse volume compreende também um índice cumulativo em inglês e em francês. Ele também traz a relação de todos os ministros de Estado das relações exteriores, dos secretários-gerais e dos consultores jurídicos do Itamaraty (a partir de 1899). Mas, tendo sido publicado em 1986, o Índice deixou no entanto de fora o período coberto pelo primeiro volume da série, referente aos anos 1889-1898, uma vez que este veio a luz ulteriormente, em 1988. Como ressaltado na nota introdutória e explicativa a esse Índice, os critérios de escolha e de classificação das entradas (em ordem alfabética e comportando subitens) buscaram seguir, tanto quanto possível, uma padronização uniforme para facilitar a pesquisa.

Seria dispensável, por tão óbvia, fazer sugestão ao Ministério das Relações Exteriores para que inscreva no programa de trabalho da Fundação Alexandre de Gusmão a atualização periódica do Repertório iniciado pelo Professor Cançado Trindade. Nestes tempos de Internet, parece evidente, também, que esse importante conjunto de documentos passe a figurar na home page do Ministério, como o faz, por exemplo, o State Departement em relação ao “US Foreign Relations Series” ou os National Archives para inúmeros textos de referência histórica (formato Gopher, suscetível de uma rápida transferência via FTP).

A prática diplomática brasileira, inclusive a que foi escrita pelo próprio Cançado Trindade na Consultoria Jurídica do Itamaraty, merece, sem dúvida alguma, ser melhor conhecida no âmbito internacional. Sejamos, literalmente, internacionalistas assumidos!

 

[Brasília: 04.04.96]

[Relação de Trabalhos n° 520]

[1a. versão, Brasília: 29.12.86; Relação de Trabalhos n° s 142 e 144;

publicada, em versão integral, na revista Humanidades

 (Brasília, Ano IV, nº 12, fevereiro-abril 1987, pp. 119-120),

e, em versão resumida no suplemento literário Cultura,

do jornalO Estado de São Paulo

(São Paulo, ano VII, n° 376, 11.07.87, p. 11)]

[Relação de Publicados nº s 035 e 041]

 

 

520. “A Prática do Direito Internacional no Brasil: uma visão histórico-sistemática das bases jurídicas da política externa brasileira no período republicano”, Brasília, 4 abril 1996, 8 p. Resenha revista e ampliada de Antonio Augusto Cançado Trindade: Repertório da Prática Brasileira do Direito Internacional Público, 1889-1981(Brasília: Fundação Alexandre de Gusmão, 1984 a 1988), com referência a diversas outras obras do autor. Incorporado ao volume Política externa e relações internacionais do Brasil: uma seleção de leituras (Brasília: edição do autor, abril de 1996, 241 p.), consistindo de estudos e resenhas publicados ou inéditos.

 

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Antônio Augusto Cançado Trindade: 

Os tribunais internacionais contemporâneos

(Brasília: FUNAG, 2013, 136 p.; ISBN 978-85-7631-424-0; Coleção Em Poucas Palavras); publicado no Boletim da Associação dos Diplomatas Brasileiros, Prata da Casa: (Ano 20, n. 83, outubro-novembro-dezembro 2013, p. 35-36; ISSN: 0104–8503). Divulgado no blog Diplomatizzando (link: http://diplomatizzando.blogspot.com/2013/12/prata-da-casa-mais-mini-resenhas-de.html)

 

            O autor, eminente jurista mineiro, já foi consultor jurídico do Itamaraty (na redemocratização), presidente da Corte Interamericana de Direitos Humanos, em San José, e é, atualmente, um dos juízes da Corte Internacional de Justiça, na Haia. Autor de uma obra impressionante no campo do Direito Internacional, em várias línguas, em pouco mais de cem páginas ele realiza a proeza de sintetizar os fundamentos e o funcionamento dos diversos tribunais existentes no plano multilateral, nem todos de jurisdição obrigatória, mas possuindo, cada vez mais competência para realizar uma defesa efetiva dos direitos humanos, lutar contra a impunidade e aproximar a comunidade humana do ideal de justiça internacional. Esses órgãos reafirmam a unidade fundamental do direito internacional e o primado do direito sobre a força bruta. Uma síntese admirável, pelo melhor autor possível.

 

“Visita do Professor Cançado Trindade, juiz da CIJ, à Funag-IPRI”, Brasília, 8 setembro 2016, 2 p. Registro da visita de cortesia do Juiz da Corte Internacional de Justiça, Prof. Antônio Augusto Cançado Trindade, ao presidente da Funag e ao Diretor do Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais, IPRI, com entrega de seus últimos livros. Postado com foto e capas de livros no blog Diplomatizzando (http://diplomatizzando.blogspot.com.br/2016/09/visita-do-professor-a-cancado-trindade.html)

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A construção do direito internacional do Brasil a partir dos pareceres dos consultores jurídicos do Itamaraty: do Império à República


Cadernos de Política Exterior (Brasília: Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais, Funag-MRE; ano II, n. 4, segundo semestre 2016, p. 241-298; ISSN: 2359-5280; link: http://funag.gov.br/loja/download/1186-cadernos-de-politica-exterior-ano-2-volume-4.pdf).

Excertos: 

(...)

O primeiro Consultor na redemocratização foi o professor Antônio Augusto Cançado Trindade, já autor, a despeito de relativamente jovem, de vasta obra no campo do direito internacional. Segundo Cachapuz de Medeiros, que prefacia o vol. VIII (1985-1990):

 Foi um dos mais dinâmicos, produtivos e eficientes consultores com que o Itamaraty contou. 

Seu legado à “Casa de Rio Branco” constitui uma coleção de mais de duzentos circunstanciados pareceres.” (p. 11)

 

Sua atividade coincidiu também com o processo de reconstitucionalização do Brasil, por meio do Congresso constituinte de 1987-88, o que determinou que ele fosse ouvido nas comissões que se ocuparam dos princípios que regem as relações internacionais do país e o processo de celebração de tratados. Continua ainda o ex-Consultor Cachapuz de Medeiros: 

Valiosa foi igualmente a contribuição do Professor Cançado Trindade na fundamentação jurídica para a adesão do Brasil aos tratados gerais de proteção aos direitos humanos, notadamente os dois Pactos de Direitos humanos das Nações Unidas e a Convenção Americana sobre Direitos Humanos. (p. 11-12)

 

De 22 de maio de 1985 a 12 de março de 1990, Cançado Trindade assinou alentados pareceres, praticamente todos recheados de notas de rodapé, milhares delas, referenciando obras relevantes de cada uma das áreas examinadas especificamente, o que praticamente nunca tinha sido visto nos textos dos antigos consultores, que se contentavam em citar, no corpo do texto, um ou outro tratadista mais conhecido. Em outros termos, Cançado Trindade elevou a arte da consultoria jurídica à condição de scholarly work, de trabalho científico no pleno conceito da expressão, representando assim, uma acumulação inédita de citações eruditas nos trabalhos da chancelaria brasileira, sem esquecer suas reflexões de alto conteúdo intelectual, que honram não só a inteligência da Consultoria Jurídica como também ajudaram a construir, ou a reforçar, a própria credibilidade e reconhecida excelência do Itamaraty. 

Esse aparato remissivo não compila apenas a doutrina ou a teoria jurídica nos campos tocados pelo bisturi analítico extremamente sofisticado de Cançado Trindade, ou densos estudos de ciência do direito, mas referencia igualmente, e precisamente, documentos  pertinentes das instituições multilaterais e muitos materiais da própria chancelaria brasileira, o que converte cada parecer seu num instrumento de trabalho (para os diplomatas) e de pesquisa (para os acadêmicos) utilíssimo para quem aprecia, ou para quem necessita, valer-se desse manancial de conhecimento prático para instruir obrigações funcionais ou outros deveres intelectuais. Sem qualquer objetivo encomiástico, mas ao contrário, apenas como reconhecimento objetivo, a gestão de Cançado Trindade à frente da Consultoria Jurídica do Itamaraty foi excepcional em todas as dimensões e sentidos desse termo. Sua colaboração se completa, mas não termina, pela utilíssima compilação da prática brasileira do direito internacional público, objeto de vários volumes do seu Repertório, analisado mais abaixo.

(...)

8. O Repertório da prática brasileira do direito internacional público: obra única

Finalmente, uma resenha bibliográfica como a que aqui se apresenta em torno das publicações da Funag em matéria de direito internacional não estaria completa sem uma menção substantiva à principal contribuição de um dos maiores internacionalistas jurídicos do Brasil e do mundo, o Professor Antônio Augusto Cançado Trindade. A própria existência da Funag, enquanto maior editora brasileira de livros de relações internacionais – e a maior provedora, a título gratuito, de materiais de estudo para candidatos à carreira diplomática, e de pesquisa para estudantes e professores da área – tem como marca inaugural, entre 1984 e 1987, a publicação dos cinco volumes do Repertório, republicados em nova e revista edição em 2012[1], por ocasião dos 40 anos da Funag e centenário da morte do Barão do Rio Branco. O Barão foi devidamente e competentemente homenageado, pela Funag, com a republicação de suas obras completas[2] e por uma obra coletiva feita a partir do seminário em sua homenagem[3]). A importância substantiva do Repertório de Cançado Trindade para o estudo e a pesquisa em torno da tradição jurídica da diplomacia brasileira merece, tanto quanto as obras do Barão, uma avaliação pormenorizada de seu conteúdo, no que ele pode esclarecer quanto à evolução da prática brasileira nessa construção coletiva que é o direito internacional no e do Brasil, no contexto regional e internacional.

A América Latina sempre exibiu, sabidamente, boa tradição em matéria de Direito Internacional Público, podendo-se fazer referência ao princípio do uti possidetis, à cláusula Calvo, à doutrina Drago (aliás bastante adequadas a um problema recorrente dos países latino-americanos, o da dívida externa), ao instituto do asilo diplomático ou a outros conceitos na mesma vertente. A diplomacia brasileira, por sua vez, adquiriu, a partir de suas raízes lusitanas, uma prática negociadora relativamente precoce (como evidenciado no trabalho de Alexandre de Gusmão), experiência diplomática alicerçada em sólida e igualmente longa tradição jurídico-legal, o que tornou sua política externa respeitada internacionalmente e merecedora da confiança dos demais membros do sistema interestatal contemporâneo. 

A codificação da tradição internacionalista latino-americana deveria, assim, representar um subsídio indispensável ao processo de elaboração do Direito Internacional Público, ramo do direito em constante evolução e transformação. Em que pese, porém, a existência de bons manuais de Direito Internacional Público elaborados no contexto latino-americano e dedicados à evolução doutrinária e jurisprudencial do chamado jus gentium, a comunidade pesquisadora ou praticante se ressentia até o início dos anos 1980 da falta de uma sistematização da prática dos Estados no campo das relações diplomáticas e do Direito Internacional Público. Essa lacuna, pelo menos no que concerne o Brasil, foi preenchida desde essa época, pelo extraordinário trabalho de compilação efetuado pelo eminente internacionalista Cançado Trindade, então professor de Direito Internacional Público da Universidade de Brasília e do Instituto Rio Branco e primeiro consultor jurídico do Itamaraty na redemocratização.[4]

Cabe apenas lamentar, que passados todos estes anos, o Brasil continue a ser o único país latino-americano a contar com uma ferramenta desse tipo para os estudos especializados e a consulta da memória jurídica da prática dos Estados em matéria de direito internacional público. Já autor de vasta produção especializada no campo do Direito Internacional Público, incluindo, além de numerosos artigos e monografias publicados nos principais periódicos do mundo, muitos livros publicados em várias línguas, o Professor Cançado Trindade realizou, com o Repertório, um esforço altamente meritório e rigorosamente inédito não apenas nos anais do direito internacional brasileiro, como na história jurídica da América Latina.

Com efeito, apesar da existência de Relatórios de Chancelarias, bem como de Coleções de Atos Internacionais publicados por diversos governos do continente, não havia, até aquele momento, um Repertório, organizado de forma lógica e sistemática, da prática diplomática corrente de algum Estado latino-americano. O Brasil junta-se, assim, aos poucos países do hemisfério norte que coletam em seus Digests ou Repértoires anuais os elementos mais significativos de suas práticas nacionais respectivas em matéria de Direito Internacional Público e de relações diplomáticas. 

A importância do trabalho do Professor Cançado Trindade para o Brasil e para as demais nações do continente é tanto maior que a divulgação sistemática e selecionada da prática diplomática brasileira contribui para projetar num âmbito mais amplo os interesses econômicos, políticos e diplomáticos propriamente nacionais ou regionais, sobretudo aquelas posições de princípio ligadas à lenta elaboração de uma nova ordem econômica internacional, com o reforço progressivo dos países emergentes.

Mas, em que consiste exatamente o Repertório da Prática Brasileira do Direito Internacional Público, este “ciclópico trabalho” – segundo a feliz caracterização empregada pelo Embaixador João Hermes Pereira de Araújo –, que cobre o conjunto das relações internacionais do Brasil entre 1889 e 1981? A estrutura dos cinco volumes substantivos é basicamente idêntica, com pequenas variações em função do período tratado, consistindo de nove partes articuladas em torno das seguintes rubricas: 

l) Fundamentos do direito internacional, destacando-se, nos princípios que regem as relações amistosas entre os Estados, a “soberania permanente sobre recursos naturais”, de introdução mais recente; 

2) Atos internacionais, cobrindo a ampla processualística dos tratados entre Estados e organizações; 

3) Condição dos Estados, envolvendo reconhecimento, jurisdição, imunidades, responsabilidade internacional e sucessão de Estados; 

4) Regulamentação dos espaços, territorial, marítimo, aéreo e espacial; 

5) Organizações internacionais; 

6) Condição dos indivíduos, compreendendo direitos humanos e direito de asilo; 

7) Solução pacífica de controvérsias e desarmamento, inclusive, para o período recente, um capítulo para a questão do terrorismo; 

8) Conflitos armados e neutralidade; 

9) miscelânea, abrigando, entre outros temas, cláusula da nação-mais-favorecida e multinacionais e segurança econômica coletiva. 

 

Em cada um desses grandes blocos de problemas do direito internacional público abriga-se um manancial extraordinário de informações e documentos de referência sobre a prática brasileira nos períodos delineados. De certa forma, é a própria história da política externa brasileira que é contada nessas páginas retiradas de memoranda, de telegramas de instruções, de discursos em conferências e de trechos dos relatórios anuais do Itamaraty.

A periodização adotada por Cançado Trindade para repartir cronologicamente os 92 anos dessa edição da prática brasileira do direito internacional público, se parece atender mais a critérios de conveniência do que propriamente razões de ordem metodológica ou historiográfica, tem pelo menos o inegável mérito de sublinhar a notável continuidade e constância de posições demonstradas pela prática diplomática do Brasil, a despeito mesmo de rupturas na ordem política e constitucional em alguns momentos fortes (1930, 1937, 1964) do itinerário republicano nacional. 

Poder-se-ia talvez sugerir, num volume ulterior de interpretação e de comentários sobre a prática diplomática ali repertoriada, uma análise diacrônica comparativa sobre as posições adotadas pelo Brasil em face de desafios similares em momentos diversos de nossa história. Os materiais ali coletados também fornecem abundante matéria-prima não só aos historiadores diplomáticos e aos estudiosos das relações internacionais do Brasil, como também aos juristas interessados num embasamento histórico-jurisprudencial dos princípios sempre sustentados pelo Brasil em cortes internacionais e em organismos multilaterais.

Estabelecida a divisão temática, vejamos com que tipo de “matéria-prima” trabalhou Cançado Trindade na monumental compilação que infelizmente ainda carece de atualização e complementação cronológica. O simples enunciado dos diversos tipos de fontes documentais dá uma ideia da grandiosidade do esforço empreendido pelo brilhante internacionalista: a maior parte dos textos selecionados é proveniente de material impresso oficial do Itamaraty, consistindo de relatórios anuais encaminhados à Presidência da República, pareceres jurídicos dos Consultores do Itamaraty, correspondência e expedientes de serviço (notas trocadas com outras Chancelarias, declarações de beligerância, documentos internos ostensivos, memoranda não publicados etc.), discursos e pronunciamentos do Ministro das Relações Exteriores, intervenções de delegados brasileiros em conferências especializadas ou em sessões de organizações internacionais e demais declarações oficiais do Governo brasileiro sobre temas de relações internacionais, incluindo-se declarações conjuntas de natureza bilateral. Figuram ainda, neste vasto e completo repertório, discursos pronunciados por parlamentares nos plenários do Senado Federal e da Câmara dos Deputados, bem como exposições e debates realizados em suas respectivas Comissões de Relações Exteriores por ocasião do comparecimento do Chanceler brasileiro. 

Imagine-se as dificuldades do trabalho engajado por Cançado Trindade: não bastasse o critério de escolha e seleção da documentação disponível – tarefa por si só angustiante para o honnête homme e quase um tormento para oscholar consciencioso, que trabalha sobre uma verdadeira mina de preciosidades documentais – deve-se levar em conta a verdadeira multiplicidade de vias para o acesso às fontes e o caráter frequentemente confidencial dos documentos compulsados. Ainda que a maior parte da documentação reunida estivesse sob forma impressa, o distanciamento em relação a nossa época a torna quase que inédita, entregue que estava, nas últimas décadas, a um outro tipo de “crítica roedora”. 

Como bem disse o Embaixador Jose Sette Câmara, Cançado Trindade “conseguiu condensar uma imensa área de informação que estava dispersa e perdida na poeira dos arquivos do Itamaraty”. Mesmo que nosso reconhecimento de pesquisadores não se esgote neste aspecto específico do garimpo documental, somos todos gratos a Cançado Trindade por esse longo convívio com “traças literárias” de diversas épocas, dispensando-nos de igual frequentação. No caso do volume relativo aos anos 1899-1918, que cobre, inter alia, a gestão do Barão do Rio Branco, alguns documentos são efetivamente inéditos, pois que entre 1903 e 1911, como se sabe, o Barão não cuidou de preparar e publicar os tradicionais relatórios anuais do MRE.

No que se refere à substância mesma do material selecionado, os documentos escolhidos são altamente significativos e esclarecedores da posição oficial brasileira sobre os grandes temas do direito internacional público, permitindo igualmente ao historiador uma visão evolutiva da política externa brasileira em diversas questões cruciais do relacionamento internacional. 

A título de exemplo, comparecem nos diversos volumes problemas tão diversos como o “discurso do delegado Salvador de Mendonça ao término dos trabalhos da I Conferência Internacional Americana” (período 1889-1898), quando, incidentalmente, essa reunião inaugural do sistema pan-americano tinha sido iniciada em Washington quando o Brasil ainda era uma monarquia; um “excerto do Relatório do Itamaraty sobre o Reconhecimento pelo Brasil do Governo Provisório da Rússia, em 9 de Abril de 1917” (1899-1918); o “discurso do representante do Brasil, Mello Franco, de 10 de junho de 1926, sobre a retirada do Brasil da Liga das Nações” (1919-1940); o telegrama enviado por Giraud e de Gaulle a Getúlio Vargas a propósito do “Reconhecimento pelo Brasil do Comitê Francês de Libertação Nacional, em 1943” (1941-1960); ou a “Nota de Denúncia do Acordo de Assistência Militar Brasil-Estados Unidos, de 11 de março de 1977” (1961-1981), começo de um período de deterioração nas relações bilaterais.

Como se não bastasse tal riqueza documental, Cançado Trindade ainda nos brinda, em cada um dos respectivos capítulos introdutivos aos volumes editados, com excelentes análises descritivas e críticas sobre o estudo das práticas nacionais de Direito Internacional Público e o papel dos repertórios sistemáticos no processo de codificação progressiva nesse campo, que dão testemunho, por elas mesmas, da excepcional erudição, saber jurídico e aggiornamentobibliográfico do (então) jovem Consultor Jurídico do Itamaraty. Esses textos, que mereceriam uma eventual unificação metodológica e publicação independente, são, nominalmente (pela ordem cronológica de sua redação), os seguintes: 

“Os repertórios nacionais do Direito Internacional e a sistematização da prática dos Estados” (1961-1981); 

“A expansão da prática do Direito Internacional” (1941-1960); 

“A emergência da prática do Direito Internacional” (1919-1940); 

“Necessidade, sentido e método do estudo da prática dos Estados em matéria de Direito Internacional” (1899-1918) e 

“A sistematização da prática dos Estados e a reconstrução do jus gentium” (1889-1898). 

 

Todos esses textos introdutórios, extremamente ricos em sua própria densidade metodológica e de contextualização, justificariam uma resenha crítica, que não caberia contudo nos limites deste trabalho de apresentação. Eles constituem, ademais, um registro atualizado e sintético da experiência de outros países em matéria de repertórios de prática diplomática, permitindo uma visão global da diversidade metodológica e conceitual ainda vigente nos registros nacionais de Direito Internacional Público.

Os volumes substantivos, cobrindo o longo período de 1899 a 1981, são complementados por um Índice geral analítico, absolutamente indispensável ao pesquisador sistemático, aquele interessado, por exemplo, numa perspectiva comparada, no longo prazo, das posições adotadas pelo Brasil em relação ao instituto da arbitragem. Atendendo parcialmente a recomendação do Professor Alexandre Charles Kiss, autor do Repértoire francês, no sentido de que seja providenciada uma edição em francês e em inglês do Index e do sumário dos livros editados, esse volume compreende também um índice cumulativo em inglês e em francês. Ele também traz a relação de todos os ministros de Estado das relações exteriores, dos secretários-gerais e dos consultores jurídicos do Itamaraty (a partir de 1899). Como ressaltado na nota introdutória e explicativa a esse Índice, os critérios de escolha e de classificação das entradas (em ordem alfabética e comportando subitens) buscaram seguir, tanto quanto possível, uma padronização uniforme para facilitar a pesquisa.

Seria dispensável, por tão óbvia, fazer sugestão para que a Funag inscreva no seu programa de trabalho a atualização periódica do Repertório iniciado pelo Professor Cançado Trindade. Os volumes, sobretudo a edição revista e atualizada nos textos de expediente, publicada em 2012, já constam da Biblioteca Digital da Fundação (ver: http://funag.gov.br/loja/), como por sinal já fazem, por exemplo, para seus materiais o Departamento de Estado em relação ao US Foreign Relations Series ou os National Archives para inúmeros textos de referência histórica.

 



[1] Cançado Trindade, Antônio Augusto. Repertório da Prática Brasileira do Direito Internacional Público; vol. I: período 1889-1898; vol. II: período 1899-1918; vol. III: período 1919-1940; vol. IV: período 1941-1960; vol. V: período 1961-1981Índice Geral Analítico. 2a. ed.: Brasília: Funag, 2012.

[2] Gomes Pereira, Manoel (ed.). Coleção Barão do Rio Branco. Brasília: Funag, 2012, 9 vols.

[3] Ver Gomes Pereira, Manoel (org.). Barão do Rio Branco: 100 anos de memória. Brasília: Funag, 2012.

[4] Ver Cançado Trindade, Antônio Augusto, Repertório da Prática Brasileira do Direito Internacional Público, de 1889-1981, Brasília: Fundação Alexandre de Gusmão, em 6 volumes, de 1984 a 1988; a sequência exata do ano de publicação de cada um dos volumes foi esta: período 1961-1981: 1984; período 1941-1960: 1984; período 1919-1940: 1984; período 1899-1918: 1986; Índice Geral Analítico: 1987; período 1889-1898: 1988.