Originalmente, este foi o primeiro texto da série "Volta ao Mundo em 25 Ensaios", elaborado ainda no final de 2009 e publicado em janeiro de 2010, dando início a estas reflexões sobre o mundo atual.
A republicação pelo site Ordem Livre está sendo feito de maneira aleatória, sem atender ao ordenamento e encadeamento dos textos que eu havia organizado originalmente. Ao final, colocarei os textos em sua sequência lógica, na ordem original, por meio de uma listagem cronológica e temática. Isso é importante, pois o raciocício histórico, teórico e substantivo foi sendo construído gradativamente, até chegar nas conclusões.
Paulo Roberto de Almeida
Imaginemos um viajante estratosférico, vindo para a Terra em
sua espaçonave, procurando compreender o que vê, em aproximações
sucessivas. Primeiro visualizaria aquele planeta azul de que falam os
astronautas, depois veria enormes manchas cinzas ou verdes, segundo os
oceanos focalizados, manchas interrompidas aqui e ali por grandes ou
pequenas massas de cores distintas, correspondendo às regiões dos cinco
ou seis continentes entrevistos do espaço: verde para as densas
florestas tropicais, o amarelo ou ocre dos espaços desérticos, as
tonalidades mais claras das regiões temperadas e o branco dos pólos.
Depois, teria a grande variedade de cores exibida pelas implantações
agrícolas e construções urbanas das distintas sociedades humanas.
Chegando mais perto, ele veria que algumas dessas explorações rurais
exibem um quadriculado perfeito, correspondendo ao que chamamos de
agronegócio, enquanto outras estão dispersas em vastas zonas de
ocupações irregulares, com muita destruição dos recursos naturais em
volta e alguma degradação ambiental: são as unidades de exploração
familiar, de subsistência e de baixa produtividade, geralmente nas
regiões tropicais. Quanto às zonas urbanas, nosso viajante
extraterrestre teria todos os tipos de paisagens: enormes cidades
modernas, repletas de grandes edifícios modernos, cortadas por vias
expressas; pequenas cidades do interior, de arquitetura mais
tradicional; e uma variedade de grandes ou pequenas cidades com todos os
tipos de habitações: condomínios de luxo, mansões espetaculares, mas
também favelas urbanas e ajuntamentos periféricos, revelando a imensa
desigualdade da condição humana nas sociedades que se distribuem por
todas essas regiões e continentes.
Planando, agora, a baixa altura sobre essas cidades, nosso visitante
exterior teria todas as combinações possíveis à sua disposição: pessoas
de alta renda se deslocando em carros de luxo ou em helicópteros
pessoais, cidadãos de classe média fazendo compras em shoppings
multicoloridos pelos neons atrativos, trabalhadores especializados
concentrados em fábricas ou escritórios, empregados informais em
situação de exploração abjeta em negócios não registrados, capitalistas
do campo aqui, agricultores miseráveis e trabalhadores volantes ali, em
regiões de agricultura primitiva e de baixa produtividade. Nas ruas e
semáforos, ele se depararia com carros fechados, passantes apressados,
vendedores de ocasião e uma quantidade variável de pedintes andrajosos,
dependendo do país ou região que estivesse sobrevoando. Nas zonas
tropicais os contrastes seriam certamente mais fortes do que nas
temperadas, embora as migrações humanas, legais e clandestinas, venham
colorindo todo o planeta de todas as gradações possíveis no imenso leque
de riquezas e misérias humanas.
Este é o nosso mundo, rico e miserável ao mesmo tempo, contraditório
nas situações econômicas e nos regimes políticos, variado pelas línguas e
religiões, mas unificado pelos mesmos desejos humanos de algumas coisas
muito simples: comida, segurança, bem-estar material, boa saúde,
disponibilidade de bens úteis à existência e alguma perspectiva de
melhora no curso da própria geração. Todos aspiram a essas mesmas
coisas, em graus variáveis de necessidade ou ambição, assim como todos
desejam um bem intangível, um pouco mais difícil de ser "entregue": a
felicidade humana; isto é, a realização de outros sentimentos ainda mais
subjetivos: o amor, o afeto, a satisfação pessoal no convívio com entes
queridos.
Se ao nosso viajante do exterior fosse facultado pesquisar livremente
entre os terráqueos as fontes e as razões daquela sensação que os
anglo-saxões chamam de
fulfilling (e que os franceses designam por
accomplissement),
ele constataria que a condição básica para sua realização é
simplesmente esta: a liberdade de escolha. Poder escolher onde morar,
definir uma profissão, realizar-se como ser social, dispor de uma renda
suficiente para fazer suas próprias opções em termos daqueles bens
materiais e ofertas culturais que melhor atendam sua personalidade,
deslocar-se livremente pelo planeta para visitar templos, museus,
florestas e praias, comer em bons restaurantes, comprar roupas vistosas e
confortáveis, ser atendido nos melhores hospitais e poder conversar
livremente e relacionar-se com quem encontrar pela frente, ou
simplesmente ficar sentado em frente da televisão, sem outras
preocupações do que a certeza de que se dispõe de seres amados em volta
de si, que lhe dão a segurança de uma vida tranquila, sem os
sobressaltos de guerras, violência, delinquência ou catástrofes de
qualquer tipo.
Esse talvez seja o conjunto de requisitos materiais e imateriais que
poderiam definir aquilo que chamamos de felicidade humana, algo ainda
raro em nossos tempos. Ela não está diretamente correlacionada ao PIB
per capita ou ao IDH dos países, embora não se possa descartar a imensa
interface que existe entre, de um lado, um nível satisfatório de renda e
de serviços públicos (como a assistência à saúde, por exemplo), bem
como um provimento adequado de educação de base para o enfrentamento dos
problemas mais comezinhos da vida humana; e, de outro, essa sensação
d’accomplissement,
que se aproxima, em parte, da felicidade. A felicidade é a liberdade de
você poder escolher o que lhe faz ser feliz, e para isso é preciso
dispor de um mínimo (ou provavelmente mais do que isso) de meios
materiais.
O fato é que a imensa maioria dos seres humanos, talvez dois terços
de um planeta com mais de seis bilhões de habitantes, não dispõe da
simples liberdade de escolher onde trabalhar, onde morar, como garantir
sua segurança alimentar, física ou até a satisfação de necessidades as
mais simples: água potável, saneamento básico, transporte acessível,
escolas e hospitais de qualidade, sem mencionar a liberdade de escolher
quem definirá as regras que impactarão a sua vida no trabalho, na
disponibilidade da renda pessoal, na habitação e na segurança,
justamente. Uma das explicações aventadas para essas imensas
desigualdades distributivas e de acesso aos bens materiais e intangíveis
é a de que os ricos são ricos porque extraíram sua riqueza dos pobres,
povos ou países pobres dominados e explorados pelos cidadãos ricos dos
países ricos, cabendo, portanto, liquidar com a dominação e com essa
exploração para corrigir imediatamente as iniquidades existentes.
Esse simplismo e esse maniqueísmo já não são mais aceitáveis hoje em
dia (se algum dia o foram), bastando, aliás, que o nosso extraterrestre
examine a situação do Haiti, tanto a partir da estratosfera – de onde
ele veria a mesma ilha, Hispaniola, perfeitamente dividida numa porção
verde, à direita, e numa mancha ocre e desolada do lado esquerdo, que
corresponde exatamente ao Haiti –, quanto no plano histórico-político,
posto que o Haiti foi a primeira colônia da América Latina a se libertar
da dominação européia, ainda no final do século 18. Pois bem, o Haiti
nunca foi explorado diretamente por potências estrangeiras desde então,
constituindo uma nação independente que escolheu o seu próprio caminho
para o subdesenvolvimento e para a degradação ambiental. Uma mistura de
elites insensíveis e população miserável, jamais educada para explorar
os recursos naturais de forma sustentável, representou a “receita”
terrível que levou o Haiti à situação que ele exibe hoje: não só um
Estado falido, mas uma sociedade arrasada pela degradação ambiental e
pela desestruturação social. Em uma palavra: uma população sem qualquer
liberdade de escolha, a não ser (embora precariamente) a de emigrar e de
tentar refazer a vida em outros países.
O Haiti não é o que é hoje por excesso de “exploração capitalista”,
como querem alguns, mas provavelmente pela insuficiência de “exploração”
capitalista, pela incapacidade de suas elites de inserir o país nos
amplos circuitos da economia mundial, de onde poderiam vir a tecnologia,
os capitais, a inovação e, sobretudo, as idéias que permitiriam ao país
um pouco de progresso, de prosperidade, enfim, um pouquinho de
felicidade humana. O erro fatal do Haiti foi ter se isolado da
comunidade internacional, da economia mundial, e preservado estruturas
defasadas, feitas de má educação, de escassos valores cívicos, baixa
integração social. Tudo isso deixou o Haiti num patamar de baixa
produtividade do trabalho humano, com reduzidas possibilidades de
crescimento econômico e, atualmente, com poucas saídas para sua inserção
internacional. Povos atrasados são feitos, antes de mais nada, de
países isolados. A geografia e a história confirmam essa verdade
elementar.
Olhando o mundo de maneira desprevenida, nosso extraterrestre veria
que os países mais abertos à inovação, ao comércio, aos intercâmbios
ilimitados com todos os demais povos são também as sociedades e nações
mais avançadas e progressistas, de maior nível de renda e com um grau de
‘felicidade humana’ um pouco maior. Isso só se alcança com liberdade de
escolha, e esta depende fundamentalmente de quão aberto é o país ao
exterior. Nosso viajante exterior, mesmo sem ser especialmente educado
em economia ou sem dispor de estatísticas completas, não teria muita
dificuldade em concluir que a liberdade individual, a liberdade de
dispor de seus bens sem que alguém (ou o próprio Estado) ameace tomá-los
de maneira arbitrária, a liberdade de poder transacionar esses bens (ou
a sua própria força de trabalho) sem muitas restrições impostas por
governos intrusivos, essas qualidades são as que criam povos ricos,
sociedades prósperas e amantes da paz.
Falaremos em maior detalhe sobre tudo isso mais adiante...
* Publicado originalmente em 18/01/2010.