Logo após ter sido declarado novamente candidato a Presidente da Federação Russa, Vladimir Putin anunciou, em outubro passado, proposta de novos vínculos para um espaço pós-soviético, que sugere caminho no sentido de uma “União das Repúblicas do Exterior Próximo”. Em sua dimensão política, a idéia poderá não ser mal recebida por dirigentes de países emancipados da URSS, em 1991, que anseiam por emular a forma de governança ditada por Moscou, como recurso para manterem-se no poder. Em algumas dessas capitais, tratar-se-ía apenas de retocar vícios herdados e preservados, a partir da independência da União Soviética. O artigo, a seguir, não pretende tratar, em detalhes, das implicações econômicas de tal proposta.
O retorno ao ordenamento antigo poderia ser conveniente para lideranças que desejam se manter no poder, por exemplo, ao Norte e Sul do Cáucaso. Neste lado da cordilheira, a real preocupação é evitar que a turbulência que se vive, no momento, no Oriente Médio e África do Norte, possa afetar a conveniente situação de inércia regional, como resultado de manifestações locais a favor de maiores direitos políticos. O ressurgimento do paradigma soviético de governança, reitera-se, seria oportuno para lideranças que se sentem ameaçadas.
O artigo de Putin “Um novo projeto de integração para a Eurasia: o futuro que nasce hoje”2, sugere, nessa perspectiva, algo mais parecido com roteiro de um bem organizado retorno a um passado saudoso, do que movimento em direção a novo objetivo. Isto porque, durante a existência da URSS, Moscou dirigia todos os detalhes da organização político-sócio-econômica das Repúblicas Socialistas, entre as quais se incluíam as “Transcaucasianas”3. A réplica deste mesmo projeto permeia a descrição da proposta do ex e futuro Presidente da Federação Russa.
Assim, Vladimir Putin retoma, com o conceito da União Eurasiática, a defesa da fusão de mecanismos de integração existentes, com vistas à criação de um pólo de poder no mundo contemporâneo e ponto entre a Europa e a região da Ásia e Pacífico. O líder russo revela que a meta é chegar a “patamar superior de integração”4. Na prática, isso significaria a reconstrução de relações com os países do “exterior próximo”, que integravam tanto o Império Russo, quanto a União Soviética.
Lembra-se que, durante a existência da URSS, enquanto novas “Repúblicas”, traçadas a partir de Moscou, foram se consolidando, classes dirigentes fortaleceram-se com métodos de governança soviéticos, tais como julgamentos e execuções sumários, e “desaparecimentos”. Na medida em que estas “modalidades de controle social” íam se incorporando aos hábitos locais, vínculos de cumplicidades congelavam elites que se mantinham no poder, às custas do emprego da violência contra seus próprios nacionais.
Pode ser oportuno, neste ponto, recordar, em linhas gerais, como se consolidaram os vínculos russo-caucasianos. Seria possível estabelecer 1820, segundo bibliografia disponível, como marco de partida para este cenário, quando o Império Persa renunciou a suas pretensões quanto à área, enquanto os otomanos também perderam aqui sua autoridade. A partir de então, à exceção de curto período – entre 1918 e 1921 – após a Revolução Bolchevique e a guerra civil que se seguiu, o Norte e Sul do Caúcaso permaneceram sob a dominação russa, até a desintegração da União Soviética.
Hoje, a parte Meriodional integra a Federação Russa e a Austral é composta por Azerbaijão, Armênia e Georgia, ainda sujeitos a forte influência econômica, de políticas energéticas e de segurança emanadas de Moscou.
Ressalta-se, a propósito, que não se considera aqui estar esta região “predestinada” a ser controlada pela longínqua Moscou. Aos russos, como se sabe, coube um custo enorme para garantir seu domínio. A consolidação das fronteiras imperiais, até as margens do Mar Cáspio, consumiu uma centena de anos, com atos que, hoje, seriam considerados genocidas, como a queima de povoados caucasianos, assassinatos da população nativa e deportações maciças. Lembra-se que, até os dias atuais, movimentos de insurgência continuam a desafiar a autoridade russa na Chechênia e Daguestão.
Ocorreu, como se sabe, longa evolução, desde os tempos quando o Império Russo, em sua fase modernizadora sob Pedro “o Grande”, expandiu-se, a partir do Mar Negro, rumo ao Cáspio. Os novos invasores consideravam, então, ser aquela região habitada por populações primitivas, incluindo muçulmanos, pagãos e até adeptos do Cristianismo. Tratava-se de gente que escravizava mulheres européias, saqueavam comerciantes e tribos diversas que guerreavam entre si. Eram, portanto, “bárbaros” que deveriam ser “civilizados” pelas forças imperiais russas.
Tal postura perduraria até meados do século XIX, quando noticiário na Europa Ocidental e América do Norte começou a divulgar a luta dos povos das altitudes do Cáucaso contra os invasores russos. Criou-se, então uma certa analogia entre o que se passava nesta parte do mundo com o que acontecia nas fronteiras do “West” dos EUA. Tinha início uma fase de romantismo alimentado por autores renomados como Pushkin e Tolstoy, ao descreverem a “nobreza” daqueles povos, vítimas de atrocidades dos dirigentes em Moscou. “Fast foward”, e chega-se à segunda metade do século XX, quando a União Soviética procura fortalecer seu “caráter multicultural”, como etapa natural no sentido da “tomada definitiva do poder pelo proletariado”.
Buscava-se, então, criar condições regionais que refletissem a forma como russos e outros cidadãos soviéticos concebiam seu próprio país. Grupos de danças da região Transcaucasiana, com suas vestimentas típicas, o vinho da Georgia, o brandy da Armênia e os tapetes do Azerbaijão, tornaram-se símbolos daquele parte da URSS, bem como da “maneira soviética de ser e sentir”. Daí, este exotismo todo ser, naquele período, celebrado e satirizado, ao invés de temido. Filmes populares consolidavam a boa índole e naturalidade das pessoas do Sul da URSS, bem como as boas maneiras e ânsia de vida de suas populações.
Tais manifestações artísticas, no entanto, gradativamente passaram a ter conteúdo de protesto quanto à ausência de liberdades. Emblemático foi o lançamento do filme “Repentance”, uma das obras mais significativas do final do período soviético. Dirigido por Tengiz Abuladze, nacional da Georgia, em 1986, a película cinematográfica aborda a política de violência e disputas territoriais, resultantes de ambições pessoais que levaram populações da URSS à ruína. O enredo trata da morte de um Sr. Varlam, prefeito autoritário de município não identificado, naquele país, ao Sul do Cáucaso. Após o enterro, a população local verifica que o corpo continua ressurgindo, em diferentes lugares, como se tivesse “vida própria”. Descobre-se, finalmente, que uma mulher, cuja família havia sido vítima de crueldades do falecido dirigente, era a responsável, após cada renovado enterro, pelo reaparecimento do cadáver. Levada a julgamento, a cidadã é considerada insana. Mas, perante o tribunal, a acusada consegue fazer denúncias que desmoralizam o ex-Prefeito Varlam. O filme transmitia a mensagem inconfundível de que, então, a União Soviética tinha que assumir o seu passado autoritário, para que “os fantasmas de seus tiranos” deixassem de assombrar o processo de reformas político-econômicas exigidas no país.
Assim, no que diz respeito ao Cáucaso – mesmo com a independência de Azerbaijão, Armênia e Georgia - no final da década de 1990 e início dos anos 2000, velhos hábitos ligados à doutrina estalinista de governança perduravam, apesar do colapso da estrutura do Estado Soviético. Da mesma forma que o enredo do “Repentance”, citado acima, reivindicações herdadas do período de hegemonia da URSS, sobre esta região, continuavam a ressurgir, sem que mitos daquelas sete décadas de escuridão tivessem sido enterrados – como o corpo do falecido Prefeito Verlam.
Ao mesmo tempo, partes do Cáucaso, mantinham práticas antigas de governança. Isto tem sido possível, em virtude do legado do pensamento estalinista de vincular nações a territórios, bem como à disponibilidade de armamento russo, deixado para trás, quando do recuo de seus exércitos, alimentando, assim, a capacidade de destruição mútua das partes que identificavam conflitos históricos, entre si, reais ou imaginários.
Cabe retornar, neste ponto, ao argumento mencionado nos parágrafos iniciais, no sentido de que seria conveniente, para autoridades ao Norte e Sul do Cáucaso, o ressurgimento do paradigma soviético. Conforme se procurou argumentar, normas de conduta e cumplicidades então cultivadas continuam a sustentar regimes políticos nesta região, que se sentem, no momento, ameaçados pelas turbulências causadas pelo arco de instabilidade no Norte da África e Oriente Médio.
É a conveniência da promessa de estabilidade – cabe ressaltar – oferecida pela proposta de Putin que agrada autoridades destas ex-Repúblicas Soviéticas. Afinal acena-se com um “patamar superior de integração” com a reconstrução das relações com os países do “exterior próximo”, que integravam o Império Russo e a URSS.
Seria possível, então, a partir da formação desta nova “União de Repúblicas”, poder contar com o apoio de Moscou, caso a juventude local queira livrar-se da persistente invocação, pelas classes dirigentes, de passado cheio de massacres – ocorridos ou não – sem referência a projeto de paz futuro, como forma de controle social. Haveria, então, a possibilidade de manter esta realidade opressiva, sem o evento de manifestações em defesa de liberdades individuais.
Autocratas e Oligarcas, uní-vos! – seriam as novas palavras de ordem, emanadas de Moscou. A utopia a ser agora perseguida, no espaço pós-soviético, representaria “um futuro que nasceu”, com apelo a público bastante distinto daquele proletário, há quase um século, e beneficiaria, hoje, os que pretendem se perpetuar no poder, no Norte e Sul do Cáucaso.
Paulo Antônio Pereira Pinto é diplomata. Primeiro Embaixador do Brasil residente em Baku, Azerbaijão. Serviu, anteriormente, como Cônsul-Geral em Mumbai, entre 2006 e 2009 e, a partir de 1982, durante vinte anos, na Ásia Oriental, sucessivamente, em Pequim, Kuala Lumpur, Cingapura, Manila e Taipé. Na década de 1970 trabalhou, na África, nas Embaixadas em Libreville, Gabão, e Maputo, Moçambique e foi Encarregado de Negócios em Pretória, África do Sul. As opiniões expressas são de sua inteira responsabilidade e não refletem pontos de vista do Ministério das Relações Exteriores (papinto2006@gmail.com)