A história recente das relações internacionais do Brasil pelo jornalismo
Paulo Roberto ee Almeida
Revista do CEBRI
O livro em questão possui méritos inegáveis, sobre os quais me estenderei em seguida, mas devo começar por protestar contra o seu título, não sei se por sugestão do editor ou se proposto pela própria autora. A obra é muito mais do que simples “política externa” e bem mais do que apenas “jornalismo”. Trata-se de um volume que, embora comportando a reprodução de matérias de jornais diários, não deixa nada a desejar a obras analíticas de autores acadêmicos sobre a vasta área de estudos por ele cobertos. O seu objeto vai muito além da política externa, no caso, basicamente brasileira, e abrange a de outros importantes países também, já que aborda a política mundial, o contexto regional do Brasil, as relações econômicas internacionais, os problemas de segurança e, bem mais importante, a transição do mundo da guerra fria, até os anos 1980, para a globalização triunfante e, logo em seguida, fraturada e retrocedida. Feito o registro, vamos à estrutura da obra e, na sequência, ao seu conteúdo, de inegável valor para jornalistas, diplomatas e para o público em geral.
A obra é muito mais do que simples “política externa” e bem mais do que apenas “jornalismo”. Trata-se de um volume que, embora comportando a reprodução de matérias de jornais diários, não deixa nada a desejar a obras analíticas de autores acadêmicos sobre a vasta área de estudos por ele cobertos.
O livro está dividido em quatro partes, grosso modo as décadas de 1970, 1980, 1990 e 2000. É precedido por um prefácio elogioso do embaixador Rubens Barbosa – frequente interlocutor da repórter e jornalista Maria Helena Tachinardi ao longo de seus diversos cargos na Secretaria de Estado e também no exterior – e, sobretudo, por três seções preliminares: um prólogo, uma importante introdução metodológica e uma seção sobre “princípios de política externa em reportagens”. São mais de duas dúzias de páginas sobre as ênfases e as definições da política externa brasileira nos anos cobertos pelos artigos, com ênfase em um período paradigmático do regime militar: a chancelaria de Gibson Barbosa, a mais atribulada das fases da política externa durante a ditadura (sequestros de embaixadores, golpes na América Latina, pretensões do Brasil a ser uma “grande potência”). As quatro partes não representam uma mera recompilação cronológica das matérias de jornal em cada uma das quatro décadas, pois que precedidas, em cada fase, por introduções sintéticas, que colocam em um contexto adequado os traços dominantes de cada uma das décadas, depois seguidas pelas reportagens cuidadosamente revistas, de molde a oferecer uma abordagem abrangente e um panorama bastante rico das principais questões mobilizando o engenho e a arte da diplomacia brasileira, assim como as atenções dos líderes das grandes potências envolvidas em cada uma delas.
Embora 90% do conteúdo do livro sejam compostos pela reprodução dos artigos escritos e publicados na imprensa diária – essencialmente a Gazeta Mercantil –, essa recompilação não é uma simples assemblagem de material recuperado nos arquivos da autora. Como Maria Helena Tachinardi não se formou apenas em uma faculdade de Jornalismo, mas estudou o espírito de sua profissão – uma verdadeira vocação – na Espanha e na França, seguiu um curso de Relações Internacionais na Sorbonne, na Universidade de Brasília (UnB) e na Universidade de Maryland (processo decisório na política externa americana), ela foi capaz de, em cada reportagem, por ela iniciada ou solicitada pelo jornal, situar as questões abordadas em um contexto histórico e geopolítico preciso, assim como de posicionar os problemas em função dos interesses brasileiros em cada uma delas. Assim, por exemplo, a primeira década, anos 1970, tem início pelos problemas dos nacionalismos provinciais e do separatismo na Espanha, o que correspondeu ao seu estágio na Universidade de Navarra, em Pamplona; veio depois nova bolsa de estudos na França, quando não apenas seguiu um curso de formação e aperfeiçoamento em um centro criado pelo fundador do Le Monde, como estendeu seu séjour para fazer um “diploma de estudos superiores” em Relações Internacionais na Universidade de Paris-I.
Esse tipo de busca pelo aperfeiçoamento intelectual em temas de política internacional explica por que suas matérias, mesmo lidas a uma distância de quatro décadas, sejam excepcionalmente ricas de informação e de análise sobre cada uma das questões tratadas. As duas seções sobre descolonização africana dessa década recuam aos anos 1960 – a política africanista de Jânio Quadros, por exemplo – e avançam até os anos 2000, e mesmo 2020, com a continuidade dessa política nos anos Lula: nada menos do que nove artigos, que não são simples reportagens, mas verdadeiras aulas sobre a lenta construção da política africana em diferentes governos brasileiros. Essa década também trata da censura à imprensa e à imprensa alternativa no final dos anos 1970, assim como discorre sobre como o jornal libertário francês Libération passou de maoísta a capitalista.
Os anos 1980 começam, evidentemente, pela “década perdida” da América Latina, mas também pelo fim das ditaduras, e seguem os dois governos do período – Figueiredo, o último dos generais-presidentes, e Sarney, o presidente “acidental”. Tachinardi selecionou 68 artigos-reportagens cobrindo praticamente todos os problemas de política externa do Brasil, de evolução da política e da economia mundial (ascensão da Ásia, por exemplo), o reatamento do Brasil com Cuba, o início da Rodada Uruguai de negociações comerciais multilaterais (que só se concluiria em 1994), assim como os primeiros passos do processo de integração Brasil-Argentina (completado na década seguinte pela assinatura do Tratado de Assunção, criando o Mercosul). Uma das reportagens mais ilustrativas do estilo da autora é aquela sobre o “embaixador da dívida”, na verdade o chanceler Ramiro Saraiva Guerreiro, um dos profissionais mais discretos e dos mais eficientes no trato dos grandes problemas da redemocratização, entre eles a guerra das Malvinas: o “Soneca”, como era conhecido na Casa de Rio Branco, articulou a ida de Figueiredo à ONU – o primeiro presidente a abrir os debates na Assembleia Geral das Nações Unidas – e praticou o “universalismo” na política externa brasileira, “relações com todos os países independentemente de ideologias” (p. 182).
A década de 1990 tem três presidentes: Collor, o breve, cujo vice-presidente, Itamar Franco, assume na segunda metade do mandato, pelo impeachment do “caçador de marajás” (por corrupção comprovada em CPI); e Fernando Henrique Cardoso, que emendou a Constituição para introduzir a reeleição. São mais 88 artigos-reportagens, algumas coberturas completas da política externa brasileira, começando pela integração competitiva do governo Collor e seu abandono da noção obsoleta de Terceiro Mundo, indo até o fracasso da Organização Mundial do Comércio (OMC) em lançar uma nova rodada de negociações comerciais, depois do sucesso (diferido) da Rodada Uruguai, que reformou o Gatt e criou a OMC, o “terceiro pé” de Bretton Woods, atrasado em 50 anos.
Estão ali as fricções comerciais e diplomáticas com os Estados Unidos, a mudança crucial na política ambiental do Brasil – com a conferência Rio-92 –, o início das negociações em torno do projeto americano de um acordo hemisférico de livre comércio (a Alca, implodida depois pela aliança opositora de Lula-Chávez-Kirchner) e, sobretudo e de fundamental importância, o Plano Real, o mais exitoso plano de estabilização econômica da história do Brasil, depois do Programa de Ação Econômica do Governo (PAEG), no início da ditadura, base dos progressos realizados na primeira década do regime militar, antes da derrocada que nos levou da década perdida dos anos 1980 até os anos de aceleração inflacionária da primeira metade dos anos 90. O Itamaraty esteve na crista da onda em todos esses anos, e Maria Helena contava com bons informantes na carreira, entre eles o embaixador Rubens Barbosa (que assina o elogioso prefácio) e o então ministro Fernando de Mello Barreto, que contribuiu com uma orelha igualmente reveladora:
Seus textos, precisos e fiéis às declarações das fontes entrevistadas, narram passo a passo o desenrolar da atuação diplomática e empresarial, em especial na área econômico-comercial. Historiadores e estudiosos de relações internacionais passam agora a ter acesso a um material de qualidade, revelador de nuances do posicionamento brasileiro no plano mundial.
Essa é, precisamente, uma das melhores qualidades dessa obra, uma vez que ela contém não apenas um relato minucioso da política externa e da diplomacia brasileira de cada um dos grandes eventos negociadores bilaterais, regionais e multilaterais do Brasil, mas também um enquadramento de cada processo no seu contexto histórico e geopolítico preciso. De fato, o conjunto das mais de 300 reportagens compiladas – mais os textos analíticos que precedem e se inserem na série cronológica – representam a mais abrangente exposição da atuação da diplomacia brasileira, e a das elites empresariais, sobre praticamente todos os grandes lances da política externa nacional e da política internacional, desde a Guerra Fria até os atentados terroristas que alteraram os rumos da globalização, inaugurando a era da luta contra o terrorismo mundial.
[O] conjunto das mais de 300 reportagens compiladas – mais os textos analíticos que precedem e se inserem na série cronológica – representam a mais abrangente exposição da atuação da diplomacia brasileira…
Dando sequência, e encerrando a assemblagem de matérias deste livro indispensável aos jovens diplomatas, aos jornalistas correntes e aos futuros historiadores, a década de 2000 é talvez a mais rica de todas, ainda que dominada quase que totalmente pela figura de Lula, que ganhou dois mandatos graças à inovação constitucional de FHC – o primeiro premiado pelo continuísmo. A mudança de ênfase na política externa é perfeitamente capturada em mais de 50 reportagens sobre os seus anos, depois de quase 30 no período precedente. Foi a passagem da diplomacia presidencial itamaratiana de FHC para a diplomacia personalista de Lula, secundada por um trio de assessores muito ativos: o próprio chanceler dos dois mandatos, Celso Amorim; seu secretário-geral nacionalista Samuel Pinheiro Guimarães; e o assessor presidencial partidário, o aparatchik pró-cubano Marco Aurélio Garcia (que continuaria sob Dilma Rousseff) chamado depreciativamente pelos “itamaratecas” de “chanceler para a América do Sul” (dadas as suas afinidades bolivarianas e cubanas, como coordenador do Foro de São Paulo). Foi também a conversão da política externa do universalismo globalista de FHC para a diplomacia Sul-Sul, motivada a mudar as “relações de força no mundo”, no sentido de privilegiar os grandes atores do Sul, mas que acabou se alinhando a dois impérios do Norte, a Rússia e a China.
Independentemente do valor individual das mais de três centenas de reportagens – entre 1974 e 2015 – para uma reconstituição de episódios significativos da vida internacional do Brasil e do próprio mundo nessas quatro décadas, vale destacar o valor do “terceiro capítulo” da Introdução geral, 22 páginas de discussão dos “Princípios da política externa em reportagens”, quiçá o mais instrutivo material de análise e reflexão para os novos jornalistas e para os próprios diplomatas, jovens ou maduros. Maria Helena destaca, em primeiro lugar, com base nas declarações oficiais, os princípios de política externa do Brasil que atravessaram praticamente todos os governos do país: soberania, autodeterminação, realismo, pragmatismo, autonomia, não intervenção (p. 33).
A continuidade desses fundamentos da diplomacia brasileira, ao longo do tempo, é realmente admirável, o que é possível de ser seguido, por exemplo, pelos discursos anuais de abertura dos debates na Assembleia Geral da ONU, objeto de três edições da coletânea cuidadosamente comentada dessas exposições por gerações de diplomatas brasileiros desde 1946, organizada pelo embaixador Luiz Felipe de Seixas Corrêa e publicada pela FUNAG. Maria Helena seleciona as declarações mais exemplares de presidentes e chanceleres a respeito daqueles princípios, também refletidos nas reações de estadistas estrangeiros em relação à diplomacia do Itamaraty, não só nos debates gerais, mas também na atuação brasileira no Conselho de Segurança, uma das mais constantes presenças (com o Japão) naquele foro decisório da ONU.
A autora reproduz, na seção “Definições da política externa brasileira”, o histórico que fez, em 14 de setembro de 1990, sobre as mudanças introduzidas nessa política desde o início do século XX até o governo Collor, confirmando a vocação integracionista do Brasil na região, mas recusando o papel de líder, posição em que parceiros estrangeiros gostariam de vê-lo. Desafios não faltaram ao longo de todas essas décadas, e eles estão ressaltados, examinados, esmiuçados nas três centenas de reportagens-analíticas, uma leitura indispensável, ao lado das declarações oficiais, a todos aqueles que pretenderem, doravante, sintetizar historicamente os principais lances da diplomacia brasileira na caminhada para a projeção internacional do país no século XXI. As conclusões, datadas de janeiro de 2024, retomam, em estilo ainda mais analítico, os grandes eixos da política externa brasileira, desde o conflito ideológico da Guerra Fria, nos anos 1970, até os tropeços da globalização na terceira década do novo século. Maria Helena destaca, em especial, um argumento do ex-chanceler Celso Lafer, para quem o desafio nas negociações internacionais conduzidas pela diplomacia profissional é o de “criar e manter um espaço para nossa autonomia, o que requer participar da elaboração de normas internacionais” (p. 486).
No conjunto, o livro oferece um dos melhores guias atualmente disponíveis sobre como trabalham os diplomatas na manutenção dos altos padrões pelos quais o Itamaraty e o próprio Brasil são reconhecidos pelas outras diplomacias, em especial pelos vizinhos, pois que as reportagens também contam com depoimentos de interlocutores externos. Eu já havia resenhado um livro de Maria Helena Tachinardi, sobre a “guerra das patentes”, isto é, o conflito Brasil vs. EUA em propriedade intelectual, no início da agora distante década de 1990. Espero resenhar ainda a continuidade de seus trabalhos nessa interação entre jornalismo e política externa no futuro previsível. Quem mostra o seu valor tem o dever de continuar na faina já trilhada anteriormente.
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 4837, 28 de janeiro de 2025
Referências Bibliográficas
de Almeida, Paulo Roberto. 1993. “Um conflito conceitual”. Caderno Idéias/Livros. Jornal do Brasil, 26 de junho de 1993. Resenha de livro de Maria Helena Tachinardi, A guerra das patentes: o conflito Brasil x EUA em propriedade intelectual. São Paulo: Editora Paz e Terra, 1993.
de Almeida, Paulo Roberto. 2024. “Como explicar nossa diplomacia?” Estadão, 12 de novembro de 2024. https://www.estadao.com.br/opiniao/espaco-aberto/como-explicar-nossa-diplomacia/.
Tachinardi, Maria Helena. 1993. A guerra das patentes: o conflito Brasil x EUA sobre propriedade intelectual. Brasil: Paz e Terra.
Tachinardi, Maria Helena. 2024. Política externa e jornalismo. São Paulo: Contexto.
Recebido: 28 de janeiro de 2025
Aceito para publicação: 28 de janeiro de 2025
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