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Este blog trata basicamente de ideias, se possível inteligentes, para pessoas inteligentes. Ele também se ocupa de ideias aplicadas à política, em especial à política econômica. Ele constitui uma tentativa de manter um pensamento crítico e independente sobre livros, sobre questões culturais em geral, focando numa discussão bem informada sobre temas de relações internacionais e de política externa do Brasil. Para meus livros e ensaios ver o website: www.pralmeida.org. Para a maior parte de meus textos, ver minha página na plataforma Academia.edu, link: https://itamaraty.academia.edu/PauloRobertodeAlmeida.

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sábado, 15 de março de 2025

A história recente das relações internacionais do Brasil pelo jornalismo - Resenha do livro de M. H. Tachinardi - Paulo Roberto de Almeida (Revista CEBRI)

A história recente das relações internacionais do Brasil pelo jornalismo

Resenha do livro de Maria Helena Tachinardi "Política externa e jornalismo" (Contexto 2024)

Paulo Roberto ee Almeida 

Revista do CEBRI


ANO 3 / EDIÇÃO Nº 12
OUTUBRO - DEZEMBRO 2024
ISSN 2764-7897 (online) e 2764-7889 (impressa)

https://cebri.org/revista/br/artigo/182/a-historia-recente-das-relacoes-internacionais-do-brasil-pelo-jornalismo

O livro em questão possui méritos inegáveis, sobre os quais me estenderei em seguida, mas devo começar por protestar contra o seu título, não sei se por sugestão do editor ou se proposto pela própria autora. A obra é muito mais do que simples “política externa” e bem mais do que apenas “jornalismo”. Trata-se de um volume que, embora comportando a reprodução de matérias de jornais diários, não deixa nada a desejar a obras analíticas de autores acadêmicos sobre a vasta área de estudos por ele cobertos. O seu objeto vai muito além da política externa, no caso, basicamente brasileira, e abrange a de outros importantes países também, já que aborda a política mundial, o contexto regional do Brasil, as relações econômicas internacionais, os problemas de segurança e, bem mais importante, a transição do mundo da guerra fria, até os anos 1980, para a globalização triunfante e, logo em seguida, fraturada e retrocedida. Feito o registro, vamos à estrutura da obra e, na sequência, ao seu conteúdo, de inegável valor para jornalistas, diplomatas e para o público em geral.

A obra é muito mais do que simples “política externa” e bem mais do que apenas “jornalismo”. Trata-se de um volume que, embora comportando a reprodução de matérias de jornais diários, não deixa nada a desejar a obras analíticas de autores acadêmicos sobre a vasta área de estudos por ele cobertos.

O livro está dividido em quatro partes, grosso modo as décadas de 1970, 1980, 1990 e 2000. É precedido por um prefácio elogioso do embaixador Rubens Barbosa – frequente interlocutor da repórter e jornalista Maria Helena Tachinardi ao longo de seus diversos cargos na Secretaria de Estado e também no exterior – e, sobretudo, por três seções preliminares: um prólogo, uma importante introdução metodológica e uma seção sobre “princípios de política externa em reportagens”. São mais de duas dúzias de páginas sobre as ênfases e as definições da política externa brasileira nos anos cobertos pelos artigos, com ênfase em um período paradigmático do regime militar: a chancelaria de Gibson Barbosa, a mais atribulada das fases da política externa durante a ditadura (sequestros de embaixadores, golpes na América Latina, pretensões do Brasil a ser uma “grande potência”). As quatro partes não representam uma mera recompilação cronológica das matérias de jornal em cada uma das quatro décadas, pois que precedidas, em cada fase, por introduções sintéticas, que colocam em um contexto adequado os traços dominantes de cada uma das décadas, depois seguidas pelas reportagens cuidadosamente revistas, de molde a oferecer uma abordagem abrangente e um panorama bastante rico das principais questões mobilizando o engenho e a arte da diplomacia brasileira, assim como as atenções dos líderes das grandes potências envolvidas em cada uma delas.

Embora 90% do conteúdo do livro sejam compostos pela reprodução dos artigos escritos e publicados na imprensa diária – essencialmente a Gazeta Mercantil –, essa recompilação não é uma simples assemblagem de material recuperado nos arquivos da autora. Como Maria Helena Tachinardi não se formou apenas em uma faculdade de Jornalismo, mas estudou o espírito de sua profissão – uma verdadeira vocação – na Espanha e na França, seguiu um curso de Relações Internacionais na Sorbonne, na Universidade de Brasília (UnB) e na Universidade de Maryland (processo decisório na política externa americana), ela foi capaz de, em cada reportagem, por ela iniciada ou solicitada pelo jornal, situar as questões abordadas em um contexto histórico e geopolítico preciso, assim como de posicionar os problemas em função dos interesses brasileiros em cada uma delas. Assim, por exemplo, a primeira década, anos 1970, tem início pelos problemas dos nacionalismos provinciais e do separatismo na Espanha, o que correspondeu ao seu estágio na Universidade de Navarra, em Pamplona; veio depois nova bolsa de estudos na França, quando não apenas seguiu um curso de formação e aperfeiçoamento em um centro criado pelo fundador do Le Monde, como estendeu seu séjour para fazer um “diploma de estudos superiores” em Relações Internacionais na Universidade de Paris-I. 

Esse tipo de busca pelo aperfeiçoamento intelectual em temas de política internacional explica por que suas matérias, mesmo lidas a uma distância de quatro décadas, sejam excepcionalmente ricas de informação e de análise sobre cada uma das questões tratadas. As duas seções sobre descolonização africana dessa década recuam aos anos 1960 – a política africanista de Jânio Quadros, por exemplo – e avançam até os anos 2000, e mesmo 2020, com a continuidade dessa política nos anos Lula: nada menos do que nove artigos, que não são simples reportagens, mas verdadeiras aulas sobre a lenta construção da política africana em diferentes governos brasileiros. Essa década também trata da censura à imprensa e à imprensa alternativa no final dos anos 1970, assim como discorre sobre como o jornal libertário francês Libération passou de maoísta a capitalista.

Os anos 1980 começam, evidentemente, pela “década perdida” da América Latina, mas também pelo fim das ditaduras, e seguem os dois governos do período – Figueiredo, o último dos generais-presidentes, e Sarney, o presidente “acidental”. Tachinardi selecionou 68 artigos-reportagens cobrindo praticamente todos os problemas de política externa do Brasil, de evolução da política e da economia mundial (ascensão da Ásia, por exemplo), o reatamento do Brasil com Cuba, o início da Rodada Uruguai de negociações comerciais multilaterais (que só se concluiria em 1994), assim como os primeiros passos do processo de integração Brasil-Argentina (completado na década seguinte pela assinatura do Tratado de Assunção, criando o Mercosul). Uma das reportagens mais ilustrativas do estilo da autora é aquela sobre o “embaixador da dívida”, na verdade o chanceler Ramiro Saraiva Guerreiro, um dos profissionais mais discretos e dos mais eficientes no trato dos grandes problemas da redemocratização, entre eles a guerra das Malvinas: o “Soneca”, como era conhecido na Casa de Rio Branco, articulou a ida de Figueiredo à ONU – o primeiro presidente a abrir os debates na Assembleia Geral das Nações Unidas – e praticou o “universalismo” na política externa brasileira, “relações com todos os países independentemente de ideologias” (p. 182).

A década de 1990 tem três presidentes: Collor, o breve, cujo vice-presidente, Itamar Franco, assume na segunda metade do mandato, pelo impeachment do “caçador de marajás” (por corrupção comprovada em CPI); e Fernando Henrique Cardoso, que emendou a Constituição para introduzir a reeleição. São mais 88 artigos-reportagens, algumas coberturas completas da política externa brasileira, começando pela integração competitiva do governo Collor e seu abandono da noção obsoleta de Terceiro Mundo, indo até o fracasso da Organização Mundial do Comércio (OMC) em lançar uma nova rodada de negociações comerciais, depois do sucesso (diferido) da Rodada Uruguai, que reformou o Gatt e criou a OMC, o “terceiro pé” de Bretton Woods, atrasado em 50 anos. 

Estão ali as fricções comerciais e diplomáticas com os Estados Unidos, a mudança crucial na política ambiental do Brasil – com a conferência Rio-92 –, o início das negociações em torno do projeto americano de um acordo hemisférico de livre comércio (a Alca, implodida depois pela aliança opositora de Lula-Chávez-Kirchner) e, sobretudo e de fundamental importância, o Plano Real, o mais exitoso plano de estabilização econômica da história do Brasil, depois do Programa de Ação Econômica do Governo (PAEG), no início da ditadura, base dos progressos realizados na primeira década do regime militar, antes da derrocada que nos levou da década perdida dos anos 1980 até os anos de aceleração inflacionária da primeira metade dos anos 90. O Itamaraty esteve na crista da onda em todos esses anos, e Maria Helena contava com bons informantes na carreira, entre eles o embaixador Rubens Barbosa (que assina o elogioso prefácio) e o então ministro Fernando de Mello Barreto, que contribuiu com uma orelha igualmente reveladora:

Seus textos, precisos e fiéis às declarações das fontes entrevistadas, narram passo a passo o desenrolar da atuação diplomática e empresarial, em especial na área econômico-comercial. Historiadores e estudiosos de relações internacionais passam agora a ter acesso a um material de qualidade, revelador de nuances do posicionamento brasileiro no plano mundial.

Essa é, precisamente, uma das melhores qualidades dessa obra, uma vez que ela contém não apenas um relato minucioso da política externa e da diplomacia brasileira de cada um dos grandes eventos negociadores bilaterais, regionais e multilaterais do Brasil, mas também um enquadramento de cada processo no seu contexto histórico e geopolítico preciso. De fato, o conjunto das mais de 300 reportagens compiladas – mais os textos analíticos que precedem e se inserem na série cronológica – representam a mais abrangente exposição da atuação da diplomacia brasileira, e a das elites empresariais, sobre praticamente todos os grandes lances da política externa nacional e da política internacional, desde a Guerra Fria até os atentados terroristas que alteraram os rumos da globalização, inaugurando a era da luta contra o terrorismo mundial.

[O] conjunto das mais de 300 reportagens compiladas – mais os textos analíticos que precedem e se inserem na série cronológica – representam a mais abrangente exposição da atuação da diplomacia brasileira…

Dando sequência, e encerrando a assemblagem de matérias deste livro indispensável aos jovens diplomatas, aos jornalistas correntes e aos futuros historiadores, a década de 2000 é talvez a mais rica de todas, ainda que dominada quase que totalmente pela figura de Lula, que ganhou dois mandatos graças à inovação constitucional de FHC – o primeiro premiado pelo continuísmo. A mudança de ênfase na política externa é perfeitamente capturada em mais de 50 reportagens sobre os seus anos, depois de quase 30 no período precedente. Foi a passagem da diplomacia presidencial itamaratiana de FHC para a diplomacia personalista de Lula, secundada por um trio de assessores muito ativos: o próprio chanceler dos dois mandatos, Celso Amorim; seu secretário-geral nacionalista Samuel Pinheiro Guimarães; e o assessor presidencial partidário, o aparatchik pró-cubano Marco Aurélio Garcia (que continuaria sob Dilma Rousseff) chamado depreciativamente pelos “itamaratecas” de “chanceler para a América do Sul” (dadas as suas afinidades bolivarianas e cubanas, como coordenador do Foro de São Paulo). Foi também a conversão da política externa do universalismo globalista de FHC para a diplomacia Sul-Sul, motivada a mudar as “relações de força no mundo”, no sentido de privilegiar os grandes atores do Sul, mas que acabou se alinhando a dois impérios do Norte, a Rússia e a China. 

Independentemente do valor individual das mais de três centenas de reportagens – entre 1974 e 2015 – para uma reconstituição de episódios significativos da vida internacional do Brasil e do próprio mundo nessas quatro décadas, vale destacar o valor do “terceiro capítulo” da Introdução geral, 22 páginas de discussão dos “Princípios da política externa em reportagens”, quiçá o mais instrutivo material de análise e reflexão para os novos jornalistas e para os próprios diplomatas, jovens ou maduros. Maria Helena destaca, em primeiro lugar, com base nas declarações oficiais, os princípios de política externa do Brasil que atravessaram praticamente todos os governos do país: soberania, autodeterminação, realismo, pragmatismo, autonomia, não intervenção (p. 33). 

A continuidade desses fundamentos da diplomacia brasileira, ao longo do tempo, é realmente admirável, o que é possível de ser seguido, por exemplo, pelos discursos anuais de abertura dos debates na Assembleia Geral da ONU, objeto de três edições da coletânea cuidadosamente comentada dessas exposições por gerações de diplomatas brasileiros desde 1946, organizada pelo embaixador Luiz Felipe de Seixas Corrêa e publicada pela FUNAG. Maria Helena seleciona as declarações mais exemplares de presidentes e chanceleres a respeito daqueles princípios, também refletidos nas reações de estadistas estrangeiros em relação à diplomacia do Itamaraty, não só nos debates gerais, mas também na atuação brasileira no Conselho de Segurança, uma das mais constantes presenças (com o Japão) naquele foro decisório da ONU.

A autora reproduz, na seção “Definições da política externa brasileira”, o histórico que fez, em 14 de setembro de 1990, sobre as mudanças introduzidas nessa política desde o início do século XX até o governo Collor, confirmando a vocação integracionista do Brasil na região, mas recusando o papel de líder, posição em que parceiros estrangeiros gostariam de vê-lo. Desafios não faltaram ao longo de todas essas décadas, e eles estão ressaltados, examinados, esmiuçados nas três centenas de reportagens-analíticas, uma leitura indispensável, ao lado das declarações oficiais, a todos aqueles que pretenderem, doravante, sintetizar historicamente os principais lances da diplomacia brasileira na caminhada para a projeção internacional do país no século XXI. As conclusões, datadas de janeiro de 2024, retomam, em estilo ainda mais analítico, os grandes eixos da política externa brasileira, desde o conflito ideológico da Guerra Fria, nos anos 1970, até os tropeços da globalização na terceira década do novo século. Maria Helena destaca, em especial, um argumento do ex-chanceler Celso Lafer, para quem o desafio nas negociações internacionais conduzidas pela diplomacia profissional é o de “criar e manter um espaço para nossa autonomia, o que requer participar da elaboração de normas internacionais” (p. 486). 

No conjunto, o livro oferece um dos melhores guias atualmente disponíveis sobre como trabalham os diplomatas na manutenção dos altos padrões pelos quais o Itamaraty e o próprio Brasil são reconhecidos pelas outras diplomacias, em especial pelos vizinhos, pois que as reportagens também contam com depoimentos de interlocutores externos. Eu já havia resenhado um livro de Maria Helena Tachinardi, sobre a “guerra das patentes”, isto é, o conflito Brasil vs. EUA em propriedade intelectual, no início da agora distante década de 1990. Espero resenhar ainda a continuidade de seus trabalhos nessa interação entre jornalismo e política externa no futuro previsível. Quem mostra o seu valor tem o dever de continuar na faina já trilhada anteriormente.

Paulo Roberto de Almeida

Brasília, 4837, 28 de janeiro de 2025

Referências Bibliográficas

de Almeida, Paulo Roberto. 1993. “Um conflito conceitual”. Caderno Idéias/Livros. Jornal do Brasil, 26 de junho de 1993. Resenha de livro de Maria Helena Tachinardi, A guerra das patentes: o conflito Brasil x EUA em propriedade intelectual. São Paulo: Editora Paz e Terra, 1993.

de Almeida, Paulo Roberto. 2024. “Como explicar nossa diplomacia?” Estadão, 12 de novembro de 2024. https://www.estadao.com.br/opiniao/espaco-aberto/como-explicar-nossa-diplomacia/.

Tachinardi, Maria Helena. 1993. A guerra das patentes: o conflito Brasil x EUA sobre propriedade intelectual. Brasil: Paz e Terra.

Tachinardi, Maria Helena. 2024. Política externa e jornalismo. São Paulo: Contexto.

Recebido: 28 de janeiro de 2025

Aceito para publicação: 28 de janeiro de 2025

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sexta-feira, 1 de abril de 2022

Pensando a Ucrânia - Renato Marques (Revista CEBRI)

 PENSANDO A UCRÂNIA!


Renato L. R. Marques, embaixador do Brasil na Ucrânia entre 2003 e 2009

Revista CEBRI, 28/03/2022


A ofensiva armada da Rússia contra a Ucrânia é a face visível de uma operação muito mais complexa e articulada, que envolveu uma longa campanha prévia de desinformação e fakenews, destinada a desviar a opinião pública do que seria a maior operação bélica na Europa no século XXI, em total desconsideração aos princípios do direito internacional, à letra da Carta das Nações Unidas e a compromissos como os expressos no Memorando de Budapeste, de 1994. Naquela ocasião, a Rússia, os EUA e o Reino Unido ofereceram garantias de respeito à soberania e à integridade do território ucraniano, no contexto da devolução à Rússia, pelo regime de Kiev, do arsenal nuclear soviético existente no país.

Apesar disso, boa parte da comunidade internacional preferiu, no início, levar às últimas consequências o princípio da não intervenção nos assuntos internos dos Estados, em que pese a óbvia ameaça contra a integridade territorial e a independência da Ucrânia, em franca contradição ao art. 2.4 da Carta da ONU. Preferiu debater os inúmeros e variados argumentos manipulados por Putin para “justificar” sua programada invasão da Ucrânia e revisão do mapa geopolítico da Europa. Campanha que, coerente com os propósitos de uma “guerra híbrida”, teve o mesmo efeito que os decoys lançados por aviões quando invadem o espaço aéreo inimigo, ao promover uma interferência magnética capaz de embaralhar a leitura do radar e impossibilitar a identificação do alvo. A atenção do planeta esteve, assim, praticamente hipnotizada pelo discurso do líder russo, embora parecesse impossível ignorar que a mobilização e estacionamento, em níveis sem precedentes, de tropas e material bélico na fronteira com a Ucrânia, representava, por si só, um instrumento efetivo de intimidação e coação do país vizinho.

O mundo perdeu um tempo precioso discutindo alegações descabidas, como as infantis acusações de ameaças ucranianas à Rússia (o que lembra a fábula do Lobo e do Cordeiro), a caracterização do governo Zelensky como “nazista” (quando sabidamente ucranianos e russos são oriundos da mesma matriz étnica eslava) e as notórias deturpações históricas do tortuoso e insinuante discurso de Putin, de 12 de julho de 2021, sobre a existência de um “estado trino”, integrado por Rússia, Ucrânia e Belarus. Uma “guerra de narrativas” aparentemente impossível, ante o grande arsenal de informações hoje ao alcance de todos e a ampla cobertura midiática dos acontecimentos. Algo que, para ser minimamente compreensível, teria que ser estudado contra o pano de fundo da formação de seu principal ator, indiscutivelmente o Presidente Putin, egresso da KGB no período soviético. Daí se poderia depreender seu apego à prática da “soberania limitada”, imposta a ferro e fogo aos países da Europa Oriental à época, cujos “desvios de conduta” (como o levante anticomunista na Hungria, em 1956, e a Primavera de Praga, em 1968) acionariam o “dever internacionalista de intervenção” da URSS (rótulo com que mascarou guerras de repressão e expansão). Agregue-se a isso a permanência, ainda que subliminar, da mentalidade imperial, perceptível no discurso de Catarina, a Grande, para quem “a única maneira de defender minhas fronteiras é as expandindo” (à que a voz corrente acrescentou “a Rússia termina lá onde termina o idioma russo”). Nesse sentido, a veemente contestação, por Putin, da existência da Ucrânia é também coerente com a doutrina do Kremlin de combate sistemático à ideia de “nação”, na medida em que operava contra os interesses do internacionalismo soviético e, em última instância, da hegemonia russa. Sintomas detectados pelo diplomata e estrategista americano George Kennan, em sua passagem pela embaixada em Moscou, em 1946, quando afirmou, em seu Longo Telegrama, que a URSS não poderia manter “uma coexistência pacífica permanente com o Ocidente”, como resultado de sua “visão neurótica dos assuntos mundiais” e do “instintivo sentimento russo de insegurança”.

Nesse contexto, a reivindicação de recuar a OTAN às suas posições anteriores a 1997 faz supor que o presidente russo busca reativar os entendimentos alcançados em Ialta, em fevereiro de 1945, por Stálin, Roosevelt e Churchill, para definir zonas de influência entre os vitoriosos, em circunstâncias radicalmente distintas das atuais. Hoje, depois de consolidado o novo quadro geopolítico, com a incorporação dos países da Europa Oriental e bálticos à OTAN, sem que disso tenha resultado nenhuma ameaça real à segurança da Rússia, a proposta soa extemporânea e revanchista. Mais ainda quando é estendida, inopinadamente, à Finlândia e à Suécia, o que revela, sem meios tons, que a intenção é aplicar o conceito de “soberania limitada” aos países que considera em sua “esfera de influência”, condenados, pela lógica de Putin, a se tornar “estados tampões” entre a Rússia e a Europa. A neutralidade da OTAN, tanto agora quanto nos episódios da independência de províncias da Geórgia, em 2008, e da Ucrânia, em 2014, reafirma o caráter defensivo da Aliança. Seu erro terá sido o de anunciar uma “política de portas abertas”, e de com isso induzir a população e os governos interessados a alimentar expectativas infundadas e a avaliar equivocadamente os riscos de eventuais ações militares. Ucrânia e Geórgia tinham, desde o início, chances muito frágeis de se tornarem membros da OTAN, por se manterem em estado de guerra não-declarada com o vizinho, por terem áreas de seus territórios contestadas e, por último, por um desafortunado fatalismo geopolítico. No caso da Ucrânia, acrescente-se, a presença de uma base militar estrangeira (a base naval russa de Sebastopol, na Criméia).  

Da mesma forma, no tocante à UE, a Ucrânia teria que cumprir com os requisitos básicos enunciados em Copenhague em 1993, que incluem a problemática estabilidade de suas instituições políticas e econômicas no day after e sua capacidade de incorporar e cumprir com o acervo jurídico comunitário. De quebra, a Ucrânia colocaria em cheque o funcionamento de um dos cimentos da unidade europeia, a onerosa Política Agrícola Comum (PAC), ao incorporar um dos países mais competitivos neste setor. O ingresso no atraente clube econômico está assim comprometido por interesses potencialmente afetados dos próprios europeus e pelos elevados suprimentos energéticos russos à Europa (que tenderão a recuperar importância política, quando a opinião pública se desmobilizar, por ação do tempo e na presunção de que a Alemanha e seus parceiros não encontrem fontes alternativas confiáveis no médio prazo). A preservação da economia ucraniana na esfera de influência russa a condenará à estagnação e praticamente anulará suas oportunidades de recuperação. Com o agravante que, ao contrário da época da antiga Guerra Fria, a Rússia não oferece à Ucrânia atrativos do ponto de vista político, nem ideológico nem econômico, por abrigar um regime crescentemente autoritário, com grande intervenção do Estado na estrutura produtiva e por sua condição de exportador de commodities energéticas e agrícolas (onde são concorrentes).

Isto posto, quem se debruçar sobre a história da região, identificará, sem maiores esforços, que a Rússia “nasceu” da diáspora de contingentes do maior estado da Europa medieval, entre os séculos IX a XIII, a Rus de Kiev. Esse principado, que teve seu apogeu com Vladimir, o grande (980-1015), implantou o cristianismo ortodoxo ainda vigente na Ucrânia e na Rússia. Após a morte de seu filho, Iaroslav, o sábio (1019-1054), a Rus de Kiev passou por um longo período de lutas internas e invasões mongóis. Como resultado, seus nobres se deslocaram para outras regiões, como Moscou, que se tornou o novo centro hegemônico. Ou seja, a Rus de Kiev, com seus belos mosteiros do século XI e XII, tem uma incontestada precedência histórica sobre os demais e teve sua existência reconhecida (e não “inventada”) por Lênin, como sugerido por Putin. Por outro lado, a necessidade de proteger “grupos étnicos russos” na Ucrânia é um jogo de palavras, tendo em vista que o Velho Continente, tradicional área de emigração, adota o jus sanguinis, pelo qual a cidadania é determinada pela nacionalidade dos ascendentes paternos ou maternos das novas gerações (ao contrário do Brasil e do Novo Mundo, que adotam o jus soli, que considera nacional os nascidos no país). A russificação imposta pelo Império Russo a seus domínios desde o século XVIII e a localização de russos no leste da Ucrânia – na esteira do vazio demográfico provocado pela “Grande Fome” de 1932-1933 (Holodomor), imposta por Stálin, para promover a coletivização forçada da agricultura – tornam inevitável a presença de “russos étnicos” na região (tanto quanto de “portugueses étnicos” no Brasil). Esse argumento não teria, entretanto, o peso que tem se, desde os anos 2003-2009, não tivesse a Rússia, segundo reiteradas denúncias do governo ucraniano à época, promovido frequentes “missões consulares” para oferecer passaporte e nacionalidade russa aos locais, em preparação para o presente cenário de guerra.

Qualquer que seja o desfecho da guerra, a invasão russa já provocou impacto e efeitos previsíveis no relacionamento internacional. No campo político, expôs novamente os limites da ação da ONU, em decorrência do poder de veto das cinco potências nucleares. A ONU foi, entretanto, importante como caixa de ressonância da consciência mundial, como comprova a condenação maciça da Rússia como “país agressor”. A crise promoveu um surpreendente consenso entre os países europeus, que alcançou áreas pouco suscetíveis de acordo no passado recente, como a decisão de restringir as importações de gás e petróleo da Rússia e a concordância da Alemanha em deixar inoperante o gasoduto Nord Stream 2, que proveria mais combustíveis ao seu território e vizinhos. Como resultado, é de se esperar uma aceleração da busca de fontes alternativas de energia, em consonância com os objetivos já acordados em matéria de política ambiental. Também a OTAN, que chegara a ser ameaçada de retirada de tropas e de corte de contribuições pelo governo americano, à época de Trump, atuou com uma única voz e recuperou seu prestígio como instrumento de defesa coletiva. Mas traz, em contrapartida, um renovado clima de belicismo e o rearmamento da Alemanha. A ação militar russa desviou, por sua vez, o foco dos EUA de suas divergências com a China, que assinou uma aliança com a Rússia de alcance ainda desconhecido. A China tem interesses econômicos que transcendem, no curto prazo, seus ganhos com a desestruturação da segurança na Europa, seu mercado preferencial. No âmbito econômico, a ruptura das grandes cadeias de fornecimento estimulam o offshoring por razões de segurança e, subsidiariamente, tenderá a reforçar correntes desenvolvimentistas favoráveis a velhas políticas, como a de substituição de importações e o relançamento dos mesmos “campeões nacionais” de sempre. Em que pese o impacto atual dessas tendências, deve-se supor que ao final prevalecerá a lógica econômica e a globalização retomará, mesmo que com dificuldades, seu curso anterior. Enquanto isso, o mundo sofrerá com aumento dos preços das commodities, inflação e menor crescimento econômico. Finalmente, o grande fluxo de refugiados deverá forçar a Europa a redimensionar seu programa de apoio e a buscar a difícil acomodação desses novos contingentes à sua estrutura produtiva.

Tudo somado, a ofensiva russa ainda tem que mostrar até onde pretende avançar. O estrago já realizado não deixa margem a dúvidas quanto aos objetivos expansionistas da iniciativa. Tal como se encontra o quadro atual, pode-se apenas descartar a hipótese de manter o país inteiro sob ocupação, dado seu alto custo militar, econômico e político, ante a exacerbação inevitável dos sentimentos nacionalistas e a recusa dos ucranianos em abandonar sua assumida vocação europeia. As fricções daí decorrentes levariam a uma grave instabilidade política, com riscos de atentados, ações de guerrilha e outras formas de autodefesa. Como as forças russas não são suficientes para assegurar a terceira etapa de uma invasão, o controle da população civil, a alternativa mais provável seria a instalação de um governo fantoche, de imprecisa duração. Não está claro onde a Rússia traçará os limites de eventuais novas anexações que, mesmo se restritas ao leste, provocariam uma radical desestruturação da base industrial do país (posto que ali se concentram suas minas de carvão, usinas siderúrgicas, fábricas de turbinas, altos-fornos, tratores, indústria espacial). Se abranger os portos de Mariupol (no Mar de Azov) e de Odessa (no Mar Negro), por onde escoam as exportações de aço, fertilizantes, trigo e produtos alimentícios, estaria estrangulando a economia e inviabilizando o país. O que será aceitável para as duas Partes, quando sentarem à mesa de negociação, tendo em vista que Putin não pode abrir mão do papel de vitorioso e Zelensky não pode fazer concessões que deem a entender que todo o esforço de resistência foi em vão? Qualquer que seja o desfecho, terá um alto custo em vidas inocentes, defensores de seu torrão natal e de capital humano para o futuro. Para concluir: a generosa ajuda que vem sendo oferecida ao país pelo Ocidente está destinada a que “Ucrânia”?