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sexta-feira, 1 de abril de 2022

Pensando a Ucrânia - Renato Marques (Revista CEBRI)

 PENSANDO A UCRÂNIA!


Renato L. R. Marques, embaixador do Brasil na Ucrânia entre 2003 e 2009

Revista CEBRI, 28/03/2022


A ofensiva armada da Rússia contra a Ucrânia é a face visível de uma operação muito mais complexa e articulada, que envolveu uma longa campanha prévia de desinformação e fakenews, destinada a desviar a opinião pública do que seria a maior operação bélica na Europa no século XXI, em total desconsideração aos princípios do direito internacional, à letra da Carta das Nações Unidas e a compromissos como os expressos no Memorando de Budapeste, de 1994. Naquela ocasião, a Rússia, os EUA e o Reino Unido ofereceram garantias de respeito à soberania e à integridade do território ucraniano, no contexto da devolução à Rússia, pelo regime de Kiev, do arsenal nuclear soviético existente no país.

Apesar disso, boa parte da comunidade internacional preferiu, no início, levar às últimas consequências o princípio da não intervenção nos assuntos internos dos Estados, em que pese a óbvia ameaça contra a integridade territorial e a independência da Ucrânia, em franca contradição ao art. 2.4 da Carta da ONU. Preferiu debater os inúmeros e variados argumentos manipulados por Putin para “justificar” sua programada invasão da Ucrânia e revisão do mapa geopolítico da Europa. Campanha que, coerente com os propósitos de uma “guerra híbrida”, teve o mesmo efeito que os decoys lançados por aviões quando invadem o espaço aéreo inimigo, ao promover uma interferência magnética capaz de embaralhar a leitura do radar e impossibilitar a identificação do alvo. A atenção do planeta esteve, assim, praticamente hipnotizada pelo discurso do líder russo, embora parecesse impossível ignorar que a mobilização e estacionamento, em níveis sem precedentes, de tropas e material bélico na fronteira com a Ucrânia, representava, por si só, um instrumento efetivo de intimidação e coação do país vizinho.

O mundo perdeu um tempo precioso discutindo alegações descabidas, como as infantis acusações de ameaças ucranianas à Rússia (o que lembra a fábula do Lobo e do Cordeiro), a caracterização do governo Zelensky como “nazista” (quando sabidamente ucranianos e russos são oriundos da mesma matriz étnica eslava) e as notórias deturpações históricas do tortuoso e insinuante discurso de Putin, de 12 de julho de 2021, sobre a existência de um “estado trino”, integrado por Rússia, Ucrânia e Belarus. Uma “guerra de narrativas” aparentemente impossível, ante o grande arsenal de informações hoje ao alcance de todos e a ampla cobertura midiática dos acontecimentos. Algo que, para ser minimamente compreensível, teria que ser estudado contra o pano de fundo da formação de seu principal ator, indiscutivelmente o Presidente Putin, egresso da KGB no período soviético. Daí se poderia depreender seu apego à prática da “soberania limitada”, imposta a ferro e fogo aos países da Europa Oriental à época, cujos “desvios de conduta” (como o levante anticomunista na Hungria, em 1956, e a Primavera de Praga, em 1968) acionariam o “dever internacionalista de intervenção” da URSS (rótulo com que mascarou guerras de repressão e expansão). Agregue-se a isso a permanência, ainda que subliminar, da mentalidade imperial, perceptível no discurso de Catarina, a Grande, para quem “a única maneira de defender minhas fronteiras é as expandindo” (à que a voz corrente acrescentou “a Rússia termina lá onde termina o idioma russo”). Nesse sentido, a veemente contestação, por Putin, da existência da Ucrânia é também coerente com a doutrina do Kremlin de combate sistemático à ideia de “nação”, na medida em que operava contra os interesses do internacionalismo soviético e, em última instância, da hegemonia russa. Sintomas detectados pelo diplomata e estrategista americano George Kennan, em sua passagem pela embaixada em Moscou, em 1946, quando afirmou, em seu Longo Telegrama, que a URSS não poderia manter “uma coexistência pacífica permanente com o Ocidente”, como resultado de sua “visão neurótica dos assuntos mundiais” e do “instintivo sentimento russo de insegurança”.

Nesse contexto, a reivindicação de recuar a OTAN às suas posições anteriores a 1997 faz supor que o presidente russo busca reativar os entendimentos alcançados em Ialta, em fevereiro de 1945, por Stálin, Roosevelt e Churchill, para definir zonas de influência entre os vitoriosos, em circunstâncias radicalmente distintas das atuais. Hoje, depois de consolidado o novo quadro geopolítico, com a incorporação dos países da Europa Oriental e bálticos à OTAN, sem que disso tenha resultado nenhuma ameaça real à segurança da Rússia, a proposta soa extemporânea e revanchista. Mais ainda quando é estendida, inopinadamente, à Finlândia e à Suécia, o que revela, sem meios tons, que a intenção é aplicar o conceito de “soberania limitada” aos países que considera em sua “esfera de influência”, condenados, pela lógica de Putin, a se tornar “estados tampões” entre a Rússia e a Europa. A neutralidade da OTAN, tanto agora quanto nos episódios da independência de províncias da Geórgia, em 2008, e da Ucrânia, em 2014, reafirma o caráter defensivo da Aliança. Seu erro terá sido o de anunciar uma “política de portas abertas”, e de com isso induzir a população e os governos interessados a alimentar expectativas infundadas e a avaliar equivocadamente os riscos de eventuais ações militares. Ucrânia e Geórgia tinham, desde o início, chances muito frágeis de se tornarem membros da OTAN, por se manterem em estado de guerra não-declarada com o vizinho, por terem áreas de seus territórios contestadas e, por último, por um desafortunado fatalismo geopolítico. No caso da Ucrânia, acrescente-se, a presença de uma base militar estrangeira (a base naval russa de Sebastopol, na Criméia).  

Da mesma forma, no tocante à UE, a Ucrânia teria que cumprir com os requisitos básicos enunciados em Copenhague em 1993, que incluem a problemática estabilidade de suas instituições políticas e econômicas no day after e sua capacidade de incorporar e cumprir com o acervo jurídico comunitário. De quebra, a Ucrânia colocaria em cheque o funcionamento de um dos cimentos da unidade europeia, a onerosa Política Agrícola Comum (PAC), ao incorporar um dos países mais competitivos neste setor. O ingresso no atraente clube econômico está assim comprometido por interesses potencialmente afetados dos próprios europeus e pelos elevados suprimentos energéticos russos à Europa (que tenderão a recuperar importância política, quando a opinião pública se desmobilizar, por ação do tempo e na presunção de que a Alemanha e seus parceiros não encontrem fontes alternativas confiáveis no médio prazo). A preservação da economia ucraniana na esfera de influência russa a condenará à estagnação e praticamente anulará suas oportunidades de recuperação. Com o agravante que, ao contrário da época da antiga Guerra Fria, a Rússia não oferece à Ucrânia atrativos do ponto de vista político, nem ideológico nem econômico, por abrigar um regime crescentemente autoritário, com grande intervenção do Estado na estrutura produtiva e por sua condição de exportador de commodities energéticas e agrícolas (onde são concorrentes).

Isto posto, quem se debruçar sobre a história da região, identificará, sem maiores esforços, que a Rússia “nasceu” da diáspora de contingentes do maior estado da Europa medieval, entre os séculos IX a XIII, a Rus de Kiev. Esse principado, que teve seu apogeu com Vladimir, o grande (980-1015), implantou o cristianismo ortodoxo ainda vigente na Ucrânia e na Rússia. Após a morte de seu filho, Iaroslav, o sábio (1019-1054), a Rus de Kiev passou por um longo período de lutas internas e invasões mongóis. Como resultado, seus nobres se deslocaram para outras regiões, como Moscou, que se tornou o novo centro hegemônico. Ou seja, a Rus de Kiev, com seus belos mosteiros do século XI e XII, tem uma incontestada precedência histórica sobre os demais e teve sua existência reconhecida (e não “inventada”) por Lênin, como sugerido por Putin. Por outro lado, a necessidade de proteger “grupos étnicos russos” na Ucrânia é um jogo de palavras, tendo em vista que o Velho Continente, tradicional área de emigração, adota o jus sanguinis, pelo qual a cidadania é determinada pela nacionalidade dos ascendentes paternos ou maternos das novas gerações (ao contrário do Brasil e do Novo Mundo, que adotam o jus soli, que considera nacional os nascidos no país). A russificação imposta pelo Império Russo a seus domínios desde o século XVIII e a localização de russos no leste da Ucrânia – na esteira do vazio demográfico provocado pela “Grande Fome” de 1932-1933 (Holodomor), imposta por Stálin, para promover a coletivização forçada da agricultura – tornam inevitável a presença de “russos étnicos” na região (tanto quanto de “portugueses étnicos” no Brasil). Esse argumento não teria, entretanto, o peso que tem se, desde os anos 2003-2009, não tivesse a Rússia, segundo reiteradas denúncias do governo ucraniano à época, promovido frequentes “missões consulares” para oferecer passaporte e nacionalidade russa aos locais, em preparação para o presente cenário de guerra.

Qualquer que seja o desfecho da guerra, a invasão russa já provocou impacto e efeitos previsíveis no relacionamento internacional. No campo político, expôs novamente os limites da ação da ONU, em decorrência do poder de veto das cinco potências nucleares. A ONU foi, entretanto, importante como caixa de ressonância da consciência mundial, como comprova a condenação maciça da Rússia como “país agressor”. A crise promoveu um surpreendente consenso entre os países europeus, que alcançou áreas pouco suscetíveis de acordo no passado recente, como a decisão de restringir as importações de gás e petróleo da Rússia e a concordância da Alemanha em deixar inoperante o gasoduto Nord Stream 2, que proveria mais combustíveis ao seu território e vizinhos. Como resultado, é de se esperar uma aceleração da busca de fontes alternativas de energia, em consonância com os objetivos já acordados em matéria de política ambiental. Também a OTAN, que chegara a ser ameaçada de retirada de tropas e de corte de contribuições pelo governo americano, à época de Trump, atuou com uma única voz e recuperou seu prestígio como instrumento de defesa coletiva. Mas traz, em contrapartida, um renovado clima de belicismo e o rearmamento da Alemanha. A ação militar russa desviou, por sua vez, o foco dos EUA de suas divergências com a China, que assinou uma aliança com a Rússia de alcance ainda desconhecido. A China tem interesses econômicos que transcendem, no curto prazo, seus ganhos com a desestruturação da segurança na Europa, seu mercado preferencial. No âmbito econômico, a ruptura das grandes cadeias de fornecimento estimulam o offshoring por razões de segurança e, subsidiariamente, tenderá a reforçar correntes desenvolvimentistas favoráveis a velhas políticas, como a de substituição de importações e o relançamento dos mesmos “campeões nacionais” de sempre. Em que pese o impacto atual dessas tendências, deve-se supor que ao final prevalecerá a lógica econômica e a globalização retomará, mesmo que com dificuldades, seu curso anterior. Enquanto isso, o mundo sofrerá com aumento dos preços das commodities, inflação e menor crescimento econômico. Finalmente, o grande fluxo de refugiados deverá forçar a Europa a redimensionar seu programa de apoio e a buscar a difícil acomodação desses novos contingentes à sua estrutura produtiva.

Tudo somado, a ofensiva russa ainda tem que mostrar até onde pretende avançar. O estrago já realizado não deixa margem a dúvidas quanto aos objetivos expansionistas da iniciativa. Tal como se encontra o quadro atual, pode-se apenas descartar a hipótese de manter o país inteiro sob ocupação, dado seu alto custo militar, econômico e político, ante a exacerbação inevitável dos sentimentos nacionalistas e a recusa dos ucranianos em abandonar sua assumida vocação europeia. As fricções daí decorrentes levariam a uma grave instabilidade política, com riscos de atentados, ações de guerrilha e outras formas de autodefesa. Como as forças russas não são suficientes para assegurar a terceira etapa de uma invasão, o controle da população civil, a alternativa mais provável seria a instalação de um governo fantoche, de imprecisa duração. Não está claro onde a Rússia traçará os limites de eventuais novas anexações que, mesmo se restritas ao leste, provocariam uma radical desestruturação da base industrial do país (posto que ali se concentram suas minas de carvão, usinas siderúrgicas, fábricas de turbinas, altos-fornos, tratores, indústria espacial). Se abranger os portos de Mariupol (no Mar de Azov) e de Odessa (no Mar Negro), por onde escoam as exportações de aço, fertilizantes, trigo e produtos alimentícios, estaria estrangulando a economia e inviabilizando o país. O que será aceitável para as duas Partes, quando sentarem à mesa de negociação, tendo em vista que Putin não pode abrir mão do papel de vitorioso e Zelensky não pode fazer concessões que deem a entender que todo o esforço de resistência foi em vão? Qualquer que seja o desfecho, terá um alto custo em vidas inocentes, defensores de seu torrão natal e de capital humano para o futuro. Para concluir: a generosa ajuda que vem sendo oferecida ao país pelo Ocidente está destinada a que “Ucrânia”?

quinta-feira, 24 de novembro de 2016

Globalizacao e Integracao Regional - Renato Marques (Interesse Nacional)

Globalização e Integração Regional

Renato Marques
Revista Interesse Nacional (ano 9, n. 35, outubro-dezembro 2016, p. 27-35)

     As mudanças anunciadas pelo novo Governo – com seus inevitáveis desdobramentos na condução da política externa – constituem um momento oportuno para rever os critérios que orientaram a condução da diplomacia nacional, marcada nos últimos anos pela excessiva ênfase no relacionamento Sul-Sul, pela busca de um acordo na malograda Rodada Doha da OMC, pelo estímulo à improvável concertação de posições no âmbito dos BRICS e por iniciativas em favor da multipolaridade, entendida como uma forma de enfraquecer o poder dos EUA em escala mundial. A reinserção internacional do Brasil tem assim que ser repensada, da mesma forma que a agenda econômica deve criar condições para superar constrangimentos de longa data, que limitam e condicionam nossas opções externas, como os impostos pelo oneroso “custo Brasil”, pelas ineficiências resultantes de nossa histórica adesão a políticas industriais e comerciais de viés protecionista, agravadas por um quadro de decisões macroeconômicas recentes, equivocadas ou mal executadas. Por razões alheias à nossa vontade, esse aggiornamento terá que ser feito em um cenário internacional que, embora em recuperação, é certamente menos favorável do que o anterior à crise financeira de 2008, quando se multiplicavam as grandes cadeias transnacionais em âmbito global.

     O fato é que o Brasil se manteve à margem dessa extraordinária reestruturação produtiva, que envolveu todo tipo de bens e serviços, valendo-se de sofisticados recursos logísticos, das facilidades oferecidas pela Internet e do intenso fluxo de capitais propiciado pelos mercados financeiros globais. Apesar dessa conjugação favorável de fatores e de o comércio internacional ter crescido a taxas sempre superiores às do PIB (exceto em 2009), o dogmatismo míope do grupo no poder e a falta de competitividade de nossa indústria agiram como um freio à concertação de acordos para abertura de novos mercados. Na contramão das tendências mundiais, nos mantivemos aferrados a velhas fórmulas, que asseguraram sobrevida a uma política industrial calcada em subsídios e exonerações e que revigoraram o protecionismo arraigado na cultura nacional. Não por acaso, essas medidas foram contraproducentes e incapazes de “compensar” os efeitos da sobrevalorização do Real e da concorrência avassaladora da China. Nesse contexto, o setor industrial sofreu uma forte retração e boa parte da demanda interna gerada pela política expansionista dos últimos anos terminou sendo aproveitada por fornecedores externos. Ao mesmo tempo, a emergência da Ásia (e da China, em particular) como grande mercado importador de alimentos e polo de investimentos em infraestrutura,  tornou nossa pauta de exportações excessivamente concentrada em commodities agrícolas e minerais, de baixo valor agregado.

Novo cenário mundial
     O novo cenário mundial,  a partir de 2009, ressente-se não apenas de uma lenta retomada do comércio internacional (em torno de 3% nos últimos anos), mas também dos efeitos negativos dos ressentimentos dos que se consideram prejudicados pela “má distribuição dos ganhos” acumulados durante as últimas décadas do processo de globalização. O inusitado, desta feita, é que – ao contrário dos tempos em que as teorias cepalinas da “dependência” centravam seu fogo contra as propaladas “perdas internacionais” ou criticavam a “condenação” das economias dos países subdesenvolvidos à condição de “periferia dos grandes centros industriais” – são os EUA e a Europa ocidental que abrem suas baterias contra a perda de empregos e de capital para as economias ditas “emergentes” (sobretudo para a China). As acusações abrangem diversas “práticas que afetam a concorrência”, como baixos salários, câmbio deprimido, frouxo ambiente regulatório, escassas exigências ambientais, reduzida proteção trabalhista e de seguridade social. Seu pecado capital seria proporcionar alta rentabilidade  para os investidores (ao contrário do que ocorre nos ambientes muito mais regulados e taxados, típicos das economias maduras).

Como resultado, as empresas reveem suas estratégias de internacionalização das cadeias produtivas e surgem nos países desenvolvidos focos de resistência ao livre comércio, à celebração de novos acordos preferenciais e até àqueles tidos como o estado da arte. O NAFTA, por exemplo, foi  acusado por Trump de causar graves prejuízos à economia norte-americana. Antecipa assim, se eleito, medidas para a repatriação de empresas, capitais e empregos perdidos para o México e para a China, entre outros, aos que se propõe deslanchar uma guerra comercial sem tréguas. A Parceria Trans-Pacífico (TPP, na sigla em inglês), apesar de suas 5.500 páginas de normas e regulamentos - que abrangem disposições sobre a proteção de investimentos, patentes, recursos naturais e direitos trabalhistas - foi atacada publicamente pelas lideranças republicana e democrata, receosas de uma possível “concorrência desleal”, de manipulações de câmbio e, em última instância, de seu impacto negativo sobre o emprego nos EUA. A Parceria Transatlântica para o Comércio e Investimentos (TTIP, relativa aos entendimentos EUA/Europa), perdeu o apoio da candidata democrata, o que deixa a iniciativa sem defensores aparentes, tendo em conta que já era alvo dos conhecidos humores protecionistas do outro lado do Atlântico.

     Essas posições refletem uma nova cartilha, marcada por um discurso defensivo  tanto da parte da “direita populista” (em contraste com a apologia do liberalismo econômico, tradicionalmente identificado com o ideário da facção majoritária do Partido Republicano)  como das correntes “liberais” (empenhadas em uma difícil costura política entre o establishment democrata e sua ala mais à esquerda, mobilizada pela oratória anti-Wall Street do socialista Bernie Sanders). Ambos os candidatos disputam o voto das fileiras de jovens excluídos do mercado de trabalho, dos que sofreram com a migração de empregos para redutos mais atrativos e do contingente de blue collars deslocados por inovações tecnológicas  que reduzem a necessidade de mão-de-obra, ao mesmo tempo que aumentam a produtividade.

     Não surpreende assim que o argumento reducionista prevalecente atribua aos acordos globais e inter-regionais favorecer sobretudo as grandes corporações transnacionais, em detrimento da robustez econômica dos países desenvolvidos participantes e da qualidade de vida de seus trabalhadores. Um efeito perceptível desse fenômeno seria a “convergência salarial” em curso, refletida nos aumentos espetaculares da remuneração na China, em contraste com os níveis praticados nos EUA (onde se mantiveram basicamente estáveis, mas declinantes em termos relativos). O que explicaria porque o tema da “desigualdade” - talvez pela primeira vez - domine o discurso dos dois principais contendores. No caso de Trump - que se propõe a resgatar o padrão de vida e os valores da classe média branca americana - por oportunismo ou clarividência; no caso de Hillary – à caça dos votos afro-americanos e hispânicos -  por coerência com o histórico apoio dos democratas às causas das minorias e para atender os reclamos dos contingentes de desempregados de indústrias tornadas fantasmas .

     No Velho Continente, a exígua vitória da decisão em favor da saída do Reino Unido da União Europeia (conhecida como Brexit) responde a um somatório de causas, embora sejam maliciosamente debitadas quase que exclusivamente a maquinações da direita eurocética. O que significa desconsiderar tanto a crença crescente nesses países de que a globalização é a culpada pela perda dos empregos das classes de baixa renda e de menor qualificação, quanto o desconforto com a integração regional. A UE e sua política social são responsabilizadas por estímulos à imigração (implícitos nos planos de reassentamento), e por sua incapacidade, reticência ou indisposição de conter as sucessivas levas de refugiados (oriundos de áreas conflagradas no Oriente Médio e na África), vistos como uma sobrecarga fiscal e como potencial massa de manobra para os organizadores de atentados terroristas na Europa. Além disso, os súditos de Sua Majestade – acostumados à menor interferência do Estado após as reformas introduzidas no período Thatcher - terão reagido também  ao discurso dos que estimam haver uma excessiva interferência dos eurocratas em Bruxelas na regulamentação da vida dos cidadãos e das empresas (de que os critérios para definir o ângulo da curvatura do pepino são a aberração mais eloquente). Reclamam ademais do custo abusivo de manutenção da máquina administrativa europeia e de seus programas assistenciais, de duvidosos resultados.

Europa e Mercosul
     Na prática, a saída do Reino Unido enfraquece as correntes liberais dentro da UE, sem alterar substancialmente a postura negociadora do bloco, marcada pela resistência de 13 de seus membros (sob a liderança da França), contrários à abertura de seu mercado aos transgênicos americanos, à inclusão de carne e açúcar na pauta em exame com o Mercosul e a qualquer revisão dos mecanismos de apoio da Política Agrícola Comum. Do lado positivo, o resultado do referendo abre uma janela de oportunidades para a celebração de futuros entendimentos comerciais com Londres, desvencilhada das manobras obstrucionistas da guarda pretoriana agrícola. Do ponto de vista filosófico, o Brexit reflete também uma fermentação política contrária ao estatismo, ao protecionismo  e ao intervencionismo, próprios da concepção francesa da Europa (em contraponto à “perspectiva liberal-clássica”, tradicionalmente associada aos países nórdicos, anglo-saxões e à Alemanha). Desde o Tratado de Roma, de 1957, essas duas visões desfrutam de um equilíbrio teórico: por um lado, o acordo fundacional consagrou as quatro liberdades (livre circulação de bens, serviços, capitais e pessoas); por outro, outorgou à Comissão, em Bruxelas, o poder legislativo e a gerência da Política Agrícola Comum, com sua cornucópia de subsídios. E esse é o grande tema subjacente, mais do que saber se o voto inglês foi mais uma manifestação da Pérfida Álbion ou uma afirmação regressiva do Estado-nação.
     Guardadas as devidas proporções, pode-se afirmar que alguns dos fatores em jogo na Europa estiveram presentes no surgimento do projeto, inicialmente bilateral e depois mais amplo, que veio a ser o Mercosul. Lá, tratava-se de criar as condições para que novas guerras fratricidas não mais ocorressem na região. Para tanto, era fundamental a aliança entre a Alemanha e a  França, dois dos principais protagonistas e rivais do tabuleiro europeu. A preocupação com a política e com a segurança regionais, no contexto da Guerra Fria, foram assim o pano de fundo para o fomento de sinergias econômicas capazes de cimentar a nova parceria. Da mesma forma aqui, na nossa região, buscava-se - no day after dos regimes militares que batiam em retirada no Brasil e na Argentina -, promover interesses econômicos conjuntos, como forma de viabilizar o aproveitamento de uma latente complementaridade nos campos industrial (de que resultaram os acordos sobre bens de capital e automobilístico) e agrícola (com a imposição de quotas crescentes de importação de trigo argentino, em substituição a outros fornecedores tradicionais). No campo político, as iniciativas estavam basicamente voltadas para desarticular as divergências (Itaipu e Corpus) e as desconfianças (desenvolvimento dos programas nucleares nacionais)  e assim criar condições para que o processo de  redemocratização em curso nos dois países avançasse sem transtornos. A pedra-de-toque dessa reaproximação foram as visitas que os Presidentes Sarney (em 1987) e Alfonsin (em 1988) fizeram às centrais nucleares de Pilcaniyeú e Aramar,  atos que tiveram o efeito de promover uma importante distensão no campo militar. De quebra, os entendimentos alcançados bilateralmente esvaziaram a lógica da supérflua disputa por influência política e econômica na região.

Sinais invertidos
Às similitudes na origem se contrapõem as diferenças atuais. Mercosul e União Europeia vivem, de alguma forma, turbulências com sinais invertidos. A UE enfrenta o desafio da inédita saída de um de seus membros; o Mercosul está às voltas com o ingresso irregular de um novo sócio, que não compartilha o regime de livre iniciativa que caracterizou o espírito do momento fundacional do bloco, que não colocou em vigor a normativa básica de seus tratados constitutivos e que não atende adequadamente aos imperativos da “cláusula democrática” (voltada para o desestímulo do ressurgimento de regimes ditatoriais). Além disso, a Zona do Euro teve um crescimento médio de 1,6% no ano passado (índice modesto, mas que começa a causar inveja); no mesmo período, os integrantes do  Mercosul penaram um crescimento negativo, à exceção do Paraguai que alcançou 1,5% positivo. O Reino Unido desfruta de um bom cenário econômico interno (apesar das previsões catastrofistas veiculadas pela ótica hegemônica); o Brasil está às voltas com uma transição política tumultuada pelos simpatizantes do ancien régime e empenhado na difícil tarefa de reverter os elevados déficits nos gastos públicos e em promover uma drástica redução da expressiva taxa de desemprego, herdados do governo anterior. Nessas condições, é natural que fiquem em segundo plano as polêmicas em torno ao Mercosul, cujas regras de resto nunca tiveram a força de suas congêneres europeias no sistema jurídico de seus sócios (que sempre recusaram delegar poderes decisórios a órgãos supranacionais).  

     O abandono da postura terceiro-mundista, típica da era petista, torna possível uma reflexão no tocante ao Mercosul e uma avaliação de sua funcionalidade para o país. Exercício que deveria começar por tentar entender a verdadeira personalidade do Mercosul, sobretudo agora que tanto se fala em resgatar seu sentido original. O primeiro passo poderia ser o exame de uma questão central, relativa ao alcance da expressão “mercado comum”, adotada nos sucessivos instrumentos integracionistas, como forma de enfrentar uma questão ontológica importante: de que Mercosul estamos falando? Daquele que emerge da letra ou do espírito dos tratados ditos “fundacionais”? (Desses, posso dar testemunho, na medida em que tive a oportunidade de participar ativamente de todos os negociados entre 1989 e 1999). Daquele Mercosul difuso que prevalece no imaginário popular? Daquele que foi contaminado progressivamente pela doutrina elaborada pela academia, pelos comentários dos analistas políticos engajados e por ações de nítido viés ideológico-partidário ao longo dos últimos 13 anos? Para tanto, será necessário distinguir entre o que foi a mens legislatoris e o que foi sendo enxertado ao longo de sua existência pelos formadores de opinião e pela ação dos sucessivos governos.

Mercado comum
     Para começar, nossa intelligentsia oficial (também conhecida pelo binômio “artistas e intelectuais”), animada por uma visão utópica e igualitária das relações internacionais, propôs, desde o início, mimetizar a experiência europeia e transplantar, de forma quase automática, as instituições e os mecanismos comunitários para a região. Dentre os juristas, alguns expoentes se inclinaram pela supranacionalidade, por apego filosófico a uma visão internacionalista, que submeteria o Brasil aos ditames de uma burocracia regional, que presumiam capaz de atuar como fator de equilíbrio e defesa do interesse comum, em um mundo panglossiano perfeito. Os integracionistas históricos e os políticos à esquerda, por seu turno, repudiaram o abandono das “medidas compensatórias” do passado, em uma antevisão do surgimento posterior de programas assistencialistas, perdulários e ineficazes, do tipo Fundo de Convergência Estrutural (FOCEM), e da guinada conceitual e ideológica que contaminou todo o espectro da política externa da região, sob a inspiração e, em muitos casos, o estímulo do bolivarianismo chavista venezuelano.

     Os documentos firmados desde os primórdios do Mercosul refletem a influência desses pontos de vista, embora nem sempre os tenham acolhido. O Programa de Integração e Cooperação Econômica (PICE, de 1986), por exemplo, era de inspiração nitidamente dirigista e se propunha a integrar os territórios do Brasil e da Argentina em um “espaço econômico comum”. Seu funcionamento exigia uma intensa intervenção governamental (para fixar quotas de comércio administrado, compensar déficits comerciais, via desgravação de novos produtos ou do aumento de suas margens de preferência e, até mesmo, para viabilizar investimentos no Brasil, em condições preferenciais). Essa visão foi radicalmente alterada com a assinatura, em julho de 1990, durante a visita do Presidente Collor à Argentina, da Ata de Buenos Aires, que introduziu uma nova metodologia para a liberalização do comércio (através de “reduções tarifárias generalizadas, lineares e automáticas”), com vistas a um novo (e ambicioso) “objetivo final”: o estabelecimento de um “mercado comum” até 31/12/94 (dentro ainda, portanto, dos mandatos de Collor e Menen, embora o cronograma adotado se limitasse a assegurar a implantação de uma zona de livre comércio bilateral naquele prazo). Essa linha programática era coerente com a abertura comercial em curso nos dois países e com o desejo de criar condições para enfrentar os desafios impostos pela “formação de grandes espaços econômicos e a globalização do cenário econômico internacional” (temas que se mantiveram na ordem do dia, embora tenham sido menosprezados pela “diplomacia ativa e altiva” em favor de uma aliança Sul-Sul, que nos tornou primus inter pares, mas na Segunda Divisão).
         Os entendimentos acordados na Ata foram posteriormente transpostos para o Acordo de Complementação Econômica nº 14, no âmbito da ALADI, que os “legalizou” para efeitos do GATT. Mais comedido, o ACE-14 registrou que o cronograma adotado visava a “facilitar a criação das condições necessárias para o estabelecimento do mercado comum”. A redação manteve o lip service à grande causa do “mercado comum”, mas em tom menor, uma vez que foi acertada em um ambiente desprovido da pompa e circunstância da “diplomacia presidencial” (prática decantada em prosa e verso que, quando posta ao serviço do “culto da personalidade”, como nos anos- Lula, acarreta enormes riscos, ante a tentação, quase irresistível, de “fazer história” ou, em uma versão mais pedestre, ganhar as manchetes do noticiário das oito, na tevê).

Tratado de Assunção
     O Tratado de Assunção, assinado a 26/3/91 - formulado com a participação dos novos sócios, Paraguai e Uruguai - foi o resultado do trabalho de negociadores imbuídos da indisfarçada pretensão de quebrar a cadeia de reiterados fracassos integracionistas ensaiados na região, caracterizados por acordos dotados de altos propósitos irrealizáveis e amparados por uma retórica latino-americanista de grande ressonância, mas escassos resultados. O que não evitou que o TA registrasse excessos (ou “liberdades poéticas”, como os qualifiquei em meu livro “Duas Décadas de Mercosul”, de 2011), no estilo do que se buscava evitar. Tanto nos seus consideranda, como em seu artigo 1º, que estipula que o “mercado comum” estaria concluído até 31 de dezembro de 1994, e que, nesse prazo, seriam implantadas a “livre circulação de bens, serviços e fatores produtivos”, “a tarifa externa comum e a adoção de uma política comercial comum”, “a coordenação de posições em foros econômico-comerciais”, bem como a “coordenação de políticas macroeconômicas e setoriais entre os Estados Partes – de comércio, exterior, agrícola, industrial, fiscal, monetária, cambial e de capitais, de serviços, alfandegária, de transportes e comunicações...” – objetivos demasiado ambiciosos mesmo hoje, passados 25 anos!

     Na prática, o TA resgatou os critérios automáticos de abertura de mercados, adaptou-os à nova dimensão quadrilateral e consagrou mecanismos adequados ao livre-cambismo apregoados por todos seus integrantes. Natural assim que adotasse conceitos novos e superadores dos cacoetes típicos dos convênios da ALALC/ALADI, como os “tratamentos diferenciados” em favor de “países de menor desenvolvimento econômico relativo”. Paraguai e Uruguai desfrutaram, excepcionalmente, de “diferenças pontuais de ritmo” para a desgravação de seus produtos, mas não mais como regra ou como seu direito natural. Além disso, o TA estabeleceu, como princípio, a “reciprocidade de direitos e obrigações”, o que gerou amplas críticas dos fundamentalistas da integração, para quem o acordo estava calcado em um “conceito equivocado de uma igualdade inexistente”. As negociações para a definição da Tarifa Externa Comum (TEC), concluídas durante o Conselho de Ouro Preto, em 1994, foram complexas, dada a disparidade de estruturas produtivas entre os Quatro e os interesses daí resultantes. Não surpreende assim que a TEC ainda sofra inúmeras “perfurações”, como decorrência de “listas de exceções” e outras formas de descumprir sua aplicação. É de se destacar, entretanto, que a definição da TEC, em Ouro Preto, era ansiosamente esperada pelo setor produtivo nacional, dado seu receio de que o Mercosul se restringisse a uma zona de livre comércio, o que permitiria a importação de bens de capital, matérias primas e outros insumos de extra-zona, com tarifa zero, e a internação posterior do produto final no mercado brasileiro, valendo-se de baixos custos de produção.
          O descrito acima reflete basicamente a agenda do Mercosul que prevaleceu até pelo menos 2003, apesar  dos altos e baixos em sua implementação e do persistente contencioso comercial, sobretudo entre Brasil e Argentina. Com a mudança de paradigma introduzida pelo Governo Lula, o Mercosul progressivamente abandonou sua vocação econômica e comercial (nunca plenamente realizada) e se transformou em um (também incompleto) experimento político e social. Nessa nova roupagem, o Mercosul suspendeu o Paraguai, invocando a “cláusula democrática” (em desrespeito à normativa constitucional vigente naquele país), e facilitou o ingresso da Venezuela bolivariana, sem o cumprimento de todos os critérios requeridos para sua adesão. A polêmica em torno à presidência pro-tempore rotativa venezuelana neste segundo semestre é, assim, um subcapítulo inevitável dos vícios legais perpetrados no primeiro episódio.

Ajuste aos novos tempos
     Apesar desses desenvolvimentos, o Mercosul permanece, como toda construção humana, uma obra em aberto, passível de aperfeiçoamento e correções de rumo. Não creio que esteja na mente de seus críticos mais severos a hipótese de um Braxit, seja porque é um instrumento válido de coordenação de posições em nosso entorno imediato (o que lhe confere um importante peso diplomático); seja por suas inegáveis realizações em diversos campos, sobretudo o comercial; seja porque organismos regionais latino-americanos são como o diamante - para sempre (alguns sobrevivem em estado letárgico, outros beirando a catalepsia, mas não morrem jamais).
        Caberia assim um esforço de ajuste aos novos tempos. A propalada intenção de permitir a cada um dos sócios a celebração de acordos individuais de livre comércio, via emenda da Decisão 32, ocupa o primeiro lugar na pauta. Desde logo, visa a objetivos coerentes com o interesse nacional brasileiro (e, provavelmente, também com o dos demais, à exceção da Venezuela). Apesar disso, do ponto de vista estritamente formal, não há como escapar à conclusão de que uma emenda nesse sentido, se aprovada, tornará virtualmente letra morta o instituto da união aduaneira (qualquer que seja o eufemismo – ou ausência dele - que se venha a adotar para sua vendagem externa). Daí a precedência e a importância que adquire na agenda. Outras medidas mereceriam igualmente ser revistas. Uma delas é o FOCEM, de forma a não insistir em políticas onerosas, que não vingaram sequer na origem, como comprova o insucesso dos sucessivos planos de apoio da UE ao Mezzogiorno italiano. O alto custo político da iniciativa recairia sobre o Brasil, na condição de principal contribuinte para o Fundo.
       No mesmo diapasão, seria aconselhável rever os critérios de intervenção regional do BNDES, que vinha financiando projetos alheios ao interesse nacional (caso do porto de Mariel, em Cuba) e contrários ao interesse nacional (caso de um porto em águas profundas em Rocha, no Uruguai, que desviará cargas do porto de Rio Grande, sem que este ao menos seja objeto dos mesmos mimos pelo Banco). Em um plano mais abrangente, caberia descontinuar – sem jamais perder a ternura, é claro – o elevado quinhão de “generosidade” implícito na política externa do período petista, que – diga-se a bem da verdade - transcendeu as fronteiras do Mercosul e provavelmente esteve a serviço de uma causa perdida (a obtenção de uma cadeira permanente no Conselho de Segurança das Nações Unidas). Essa medida depende apenas da vontade soberana nacional e não necessariamente configura incumprimento de pactos, pois não decorre de compromissos pré-acordados nem dispõe de um campo pré-definido de aplicação, tendo constituído mais bem um ethos político e ideológico do partido então no poder.

Reforma do Mercosul
     Outro ponto importante diz respeito à preservação da intergovernabilidade e do sistema de decisão por consenso, que constituem verdadeiras “cláusulas pétreas” no âmbito do Mercosul. Esses pilares do TA correm o risco de serem afetados pela proliferação de novas instituições e foros, que criam novos espaços decisórios, ampliam a forma e conteúdo do bloco e pressionam em favor da internalização coercitiva de normas, sob o manto da “legitimidade” e da “governança”. Ocorre assim uma nova institucionalização, de geração quase espontânea, que não se submete a uma estratégia de longo prazo, desenhada - como corresponderia – ao nível da política de Estado. O Mercosul assume, inadvertidamente, uma feição institucional cada vez mais próxima de um mercado comum em estágio avançado, nos moldes europeus, o que sobrecarrega seu orçamento e estimula a proliferação de cargos destituídos de materialidade, dada a natureza intergovernamental do bloco. Além disso, o inchaço institucional que acompanhou a expansão da pauta política e social está em descompasso com seu crescente insucesso comercial (só nos primeiros sete meses do corrente ano, registra-se uma contração de 14% nas nossas vendas, índice que inclui a redução de 63% nas exportações para a Venezuela). Iniciativas na área institucional tenderão, entretanto, a provocar reações adversas em todos os sócios do Mercosul (Brasil incluído), na medida em que contrariariam vários interesses corporativos e pessoais.
      Tudo somado, não será tarefa fácil a reforma do Mercosul. Sem perder esse objetivo de vista, seria sensato dar andamento simultâneo a iniciativas urgentes  e práticas, como a adaptação casuística de nosso regime em matéria de proteção de investimentos, de propriedade intelectual, serviços e compras governamentais a padrões aceitáveis em escala mundial, como forma de criar as pré-condições para uma inserção efetiva nas grandes cadeias globais de produção e de intercâmbio. Afinal, o clima para as negociações de novos acordos comerciais tenderá a retomar seu curso, passadas as turbulências típicas da campanha eleitoral nos EUA. Trump – se eleito -  deverá (como Reagan antes dele) aterrissar sua retórica no mundo real (onde atuam importantes contrapesos, no Capitólio e na Suprema Corte) e se adaptar aos imperativos impostos pela geopolítica e pelas relações internacionais. Hillary conhece bem os meandros da máquina administrativa de Washington e das forças atuantes no cenário externo, o que faz supor que seu programa refletirá mais de perto o pensamento estratégico da cúpula militar e os interesses dos círculos econômicos e financeiros, próximos do Partido Democrata. O que não significa dizer que a retórica antiliberal predominante não afetará a diplomacia comercial futura. Na UE, a tendência será que - uma vez consolidada a incipiente recuperação da zona do Euro - se restabeleça a busca de novos acordos, com uma equação custo-benefício não muito distante da prevalecente no período anterior (ou seja, com suas propostas de abertura no campo industrial e resistências no setor agrícola). As perspectivas de crescimento das exportações para a China - empenhada em aumentar o poder de compra de sua nova classe média – são uma boa notícia, apesar de acentuar a concentração de nossa pauta em bens primários.

Políticas internas
     Em suma, a recuperação da competitividade de nossos setores produtivos (e a consequente diversificação de nossa pauta de exportações) só será alcançada através da restauração dos fundamentos da economia brasileira. O  que implica recuperar nossas contas públicas e criar um ambiente propício à retomada dos investimentos. Resultados que dependem da aprovação das propostas de ajuste (vistas como impopulares por políticos cujo horizonte é, em geral, a próxima eleição) e outras reformas indispensáveis, mas que vão no sentido contrário do apego de parcela considerável dos brasileiros ao Estado assistencialista (sentimento que não parece fadado a desaparecer do nosso universo político). No cenário internacional, não é provável que sejam atendidos os apelos do último comunicado do G-20, do início de setembro, contra “toda forma de protecionismo no comércio exterior e nos investimentos”. Os países terão assim que concentrar suas iniciativas em políticas internas que coloquem em ordem suas economias e que confiram competitividade ao seu parque produtivo, sem o que as empresas não desfrutarão de condições realísticas de inserção nas grandes cadeias globais. A celebração de novos acordos comerciais, pelo Governo, pode coadjuvar esse esforço, mas estes, sozinhos, não serão capazes de assegurar os resultados que todos esperamos, tanto em âmbito regional como global.

  Renato Marques é embaixador aposentado. Durante sua carreira, serviu nas Representações do Brasil na Alalc, Aladi, Comunidades Europeias, e Embaixada em Washington. Secretário do Comércio Exterior (dez/1992-fev/1994). Chefe do Departamento de Integração do Itamaraty (1994-1999).

quinta-feira, 7 de abril de 2016

O Mercosul em dois tempos - Renato Marques (ex-negociador pelo Brasil)

Renato Marques tem um livro sobre o Mercosul, que eu recomendo:
Duas Décadas de Mercosul (São Paulo: Aduaneiras, 2011, 368 p.; ISBN: 978-85-7129-581-0).
Fiz uma resenha desse livro, quando de sua primeira publicação, em edição do autor, na Ucrânia, e essa resenha está em meu livro "Prata da Casa", que pode ser acessado nestes links:
página do livro: https://www.academia.edu/5763121/Prata_da_Casa_os_livros_dos_diplomatas_Edicao_de_Autor_2014_; link direto para download do arquivo em pdf: https://www.academia.edu/attachments/34209509/download_file?s=work_strip&ct=MTQwNzAwODExOCwxNDA3MDExMjI5LDc4NTEwNjY; divulgado neste link: http://diplomatizzando.blogspot.com/2014/07/prata-da-casa-os-livros-dos-diplomatas.html; disponível em Researchgate.net: https://www.researchgate.net/publication/269701236_Prata_da_Casa_os_livros_dos_diplomatas?ev=prf_pub. 
Paulo Roberto de Almeida  


EL MERCOSUR EN DOS TIEMPOS
Renato L. R. Marques
El Litoral (Santa Fe, Argentina), 8/04/2016

Los negociadores del Tratado de Assunción - que ha creado el Mercosur, hacen 25 años - tendrán distintos motivos para celebrar la fecha, según sus expectativas y motivaciones. Habiendo integrado ese grupo desde sus comienzos, creo no cometer equívocos al decir que todos los integrantes de los equipos técnicos – en que pesen sus diferencias puntuales - estuvieran movidos por un sentimiento de participación en un grand design, en un proyecto histórico y transcendiente, que iba más allá de la tradicional coreografia integracionista latino-americana, marcada por una retórica grandiloquente y minguados resultados. Nutrian así una firme convicción de que el proyecto deberia firmarse progresivamente, sin atropellos, vale decir, sin atender a los reclamos de los que insistian en que mimetizase el modelo europeo desde su início y adoptase inmediatamente instituciones supranacionales, como las creadas por el Tratado de Roma. De esas visiones maximalistas – típicas del character romántico de los ensayos integracionistas anteriores – surgieran las críticas iniciales a la institucionalidad en gestación.
Buscabase superar años de retraso en el aprovechamiento de las complementariedades regionales, cerceadas por viejos planes de sustitución de importaciones y rivalidades politicas. Así como promover la competencia a través de la apertura de los mercados intraregionales y de su mayor exposición al exterior. No por acaso, vários sectores de las economias de cada uno de los sócios se mobilizó, en un primer momento, contra la iniciativa.
Las mudanzas sufridas por el proyecto original son facilmente explicables por los cambios hacia la izquierda ocurridos en los gobiernos de la region. La dimensión económico y comercial del Mercosur cedió lugar a una cresciente orientación política y social, al punto del Mercosur tornarse casi un accesorio de instituciones más recientes, como la UNASUR. La vocación autárquica y proteccionista de eses régimenes accentuaron la proliferación de medidas restrictivas al comercio intra-bloco, generaron una cresciente desarmonización del Arancel Externo Comum (AEC) y no han creado mecanismos para facilitar la deseada complementariedad. El grán éxito apuntado en el comércio automotivo poco o nada debe a los gobiernos. Su intercámbio está regido por distintos Acuerdos de Complementación Económica en el ámbito de ALADI (fuera por lo tanto del Mercosur), que reflejan la estratégia de distribución espacial de la producción de las multinacionales en la región, con reglas de administración del comércio no siempre acceptadas por la OMC,  pero que operan con la misma funcionalidad verificada en los viejos Acuerdos Sectoriales de la extinta ALALC – de los cuales, el de maquinas de oficina es el gran modelo. No sorprende así que las exportaciones brasileñas para el grupo estén al nível de 2006, cuando alcanzó US$ 12 mil millones, y que el ritmo de crescimiento de nuestro comércio con la región esté muy abajo del registrado con otras partes del mundo. Como si no fuera poco, el Mercosur favoreció incursiones políticas controvertidas al suspender el Paraguay y al promover el ingreso de Venezuela con critérios de naturaleza más ideológicos que técnicos.
Todo eso parece alertar para la necesidad de rever las condiciones de funcionamiento del Mercosur, para que pueda retomar sus objetivos originales de estímulo a las actividads económicas de sus sócios y de aprovechamiento de las ventajas comparativas regionales. Para eso, el Mercosur no debe cerrarse en sí mismo y sí actuar como un instrumento para facilitar la inserción de sus integrantes en las grandes cadenas de producción globales. Esto implicará una mayor liberdad de acción para sus miembros, de modo a evitar las dificuldads de negociación impuestas por el hetereogeneo conjunto. Tratase de liberar el dinamismo de cada una de las economias ante los desafios impuestos por una coyuntura que seguramente no es propícia a todos en este momento. Para tanto el Mercosur tendrá que superar su crisis y buscar una nueva identidade, más apropriada a los nuevos tiempos. Caso contrario, el Mercosur – a pesar de todo el ruído generado – tenderá a se conformar a más un producto de esos sucesivos partos de los montes de la malograda história de la integración regional latino-americana.
                                                              
Renato L. R. Marques es Embajador retirado y negociador de los principales acuerdos constitutivos del Mercosur, desde los primórdios en 1989 hasta 1999.


sexta-feira, 1 de maio de 2015

Pelo criacionismo inclusivo, integral, nao discriminatorio, politicamente correto - Renato Marques

Um colega e amigo, o embaixador Renato Marques, gaúcho de faca na bota (mas não por isso), e de língua ainda mais afiada, escritor primoroso -- de quem já resenhei dois livros, e de quem estou aguardando outros três -- de larga experiência na diplomacia (conta, mas não muito) e de mais larga experiência ainda na vida prática, desses que pensam, e que não esconde o que pensa, ouviu o galo do criacionismo cantar, e sabe onde, lá pelos seus pagos, aquelas terras do analista de Bagé (ainda que ele seja de Rio Grande, o que é um outro romance), ouviu o galo cantar, como eu dizia, e pretende colaborar com tão insígne projeto que visa ensinar a essas crianças gaúchas -- mas por que só elas?; as de outros estados não merecem? -- que Deus trabalhou duro para criar o céu e a terra e tudo o que nela se plantou e procriou, e mais as baratas e percevejos (essa ele podia ter dispensado, o distraído), e acha que o projeto do criacionismo educativo está muito restritivo.
Ele pretende ampliá-lo, da forma como vocês poderão ler aqui abaixo.
Concordo, e vou propor que o mesmo se faça em São Paulo -- essa terra que me viu nascer, e que eu ingrato abandonei -- em Brasília, no Maranhão -- o estado mais bem administrado do Brasil -- e todas as demais paragens desta terra de Deus, que ninguém escapa do seu olho implacável, e de seus impostos e penitências.
Vejamos como vai ser a tramitação legislativa de todos esses projetos, que só visam tornar o Brasil e os brasileiros mais inteligentes, pela justa competição entre teorias científicas e outras meia-boca.
Pois vamos a ela:

On May 1, 2015, at 22:10, renato l. r. marques <xxxxx@xxxxx.com> wrote:

Caro Paulo
Peço me informar onde posso propor adendos ao projeto de lei em curso na Assembleia Legislativa do RGS que obriga as escolas gaúchas a ensinar que o mundo foi criado por Deus.


Gostaria de propor os seguintes adendos:


1- comprovado isso, saber em que condições trabalhou 6 dias, contrariamente aos direitos do trabalhador ( hoje justamente celebrados) de descansos e de horários regulados pela lei trabalhista. O simples fato de ter trabalhado 6 dias já comprova pelo menos o direito a horas extras, em conformidade com a CLT;


2- aproveitar o ensejo e exigir a difusão do fato de que Papai Noel existe. Como sabidamente habita o Polo Norte, exigir que , por solidariedade com o Terceiro Mundo e as economias emergentes, passe a morar metade do ano no Polo Norte,  metade no Polo Sul. Exigir ademais que não restrinja suas atividades distributivistas às casas com lareira, hoje em desuso;


3- nada mais justo que confirmar a existência do Saci Pererê e exigir do SUS que lhe forneça uma perna mecânica.


Estou convicto da justiça de tais demandas. Falta-me o canal para poder incluí-las no projeto em curso.
Abraço

Renato L R Marques


Retomo (PRA):
Eu também tenho adendos a propor (sobre as baratas e percevejos, entre outras coisas), mas vou redigir meu Addendum depois.

segunda-feira, 12 de janeiro de 2015

O Bolivarianismo e a diplomacia grupal - Renato Marques

A propósito da recente reunião do Focalal (Foro de Coordenação entre a Ásia e a América Latina) realizada em Beijing, o embaixador Renato Marques formulou observações em correspondência a amigos, que reproduzo a seguir, com sua autorização.
Paulo Roberto de Almeida 

Bolivar e a diplomacia grupal
 
As críticas pertinentes sobre a "diplomacia grupal" que hoje predomina no País (de que é exemplo nossa inclusão no comboio que acaba de visitar a China, em busca de financiamentos e favores do novo Império) me levam a divulgar algumas pérolas do pensamento bolivariano, que une a todo o grupo.

Esse pequeno levantamento é oportuno na medida em que o Brasil tornou-se hoje um grande satélite bolivariano, em que pese o contraditório que possa parecer nossa adesão a essa ideologia. Não apenas porque nos diminui politicamente e porque se dá ao arrepio das desconfianças que o próprio Bolívar então nutria pelo Império (no caso, o dos Orleans e  Bragança, visto como expansionista e aliado das monarquias europeias, de que a América Espanhola se libertava).

Hoje corremos o risco de realizar o sonho de Bolívar, não só de ressuscitar (e nos incorporarmos) à Grande Colômbia, mas também de erodirmos a solidez das instituições democráticas (que ele desprezava).
Não por acaso, o novo profeta que o PT vai impondo nos discursos e nos manuais escolares, admitia, em seu Manifesto de Cartagena, que "as instituições totalmente representativas não convêm a nosso caráter, nossos costumes e nosso saber atual" ("atual" que não deve estar muito distante do de hoje).

Bolívar adotou abertamente a ditadura e a centralização (ao contrário da democracia e do federalismo, como destaca Niall Ferguson). "Nossos concidadãos", diz Bolívar, "não estão capacitados a exercer plenamente seus direitos porque lhes faltam as virtudes políticas que caracterizam os verdadeiros republicanos" (algo que certamente não faltava a Bolívar, disposto a exercê-los em nome dos incultos).

Coerentemente, afirma "estar convencido até a medula que a América não pode ser dirigida a não ser por um déspota esclarecido".
Pela mesma lógica, no dito Manifesto, pondera que "não podemos nos permitir colocar as leis acima dos chefes nem os princípios acima dos homens".
Sua incorporação dos negros, mulatos e índios às forças libertadoras se deu via promessas incumpridas, como única forma de vencer as resistências e desconfianças que nutriam pelos "criollos" (e não por convicções raciais).

Em carta escrita em seus últimos dias, antes de morrer de tuberculose, em dezembro de 1830, fez um "testamento político" no qual proclama que:

"reinou vinte anos durante os quais alcançou algumas certezas:

1) a América (do Sul)  é ingovernável por nós;

2) os que se põem a serviço de uma revolução aram o mar;

3) a única coisa que se pode fazer na América é emigrar;

4) este país cairá inelutavelmente nas mãos de massas libertárias e passará logo depois, sem perceber, às mãos de pequenos tiranos, de todas as cores e raças;

5) quando tivermos terminado de cometer todos os crimes imagináveis e de nos matarmos entre nós, com grande ferocidade, os europeus perderão até mesmo o interesse de nos conquistar;

6) se alguma região do mundo é candidata a retomar o caos primitivo, está será a América na sua derradeira hora".


O Bolívar que frequenta imponente, em bronze e em espírito, os corredores do Palácio Itamaraty mereceria ser melhor estudado e mais lido, antes de nos enrolarmos em sua bandeira e de nos engajarmos em sua ideologia.
A Venezuela é emblemática desse risco.

Renato L. R. Marques

quinta-feira, 13 de março de 2014

Crimeia: formalmente ucraniana, de fato russa - uma sintese por Renato Marques

Renato Marques, um diplomata que foi embaixador do Brasil em Kiev, manda, para um amigo, e teve a bondade de partilhar comigo, sua brevíssima análise da situação atual, e futura, da península da Crimeia, numa síntese genial demais para ficar apenas entre amigos.
Tenho o prazer de divulgá-la aqui:


Quanto à Crimeia, me parece que a "solução" é mais ou menos óbvia, dependendo do bom senso das partes e das questões a serem submetidas pelo referendo. 
Em princípio, o referendo aprova o aprofundamento da autonomia da Crimeia, sem seu desmembramento do território ucraniano. 
O Ocidente - que reluta em impor sanções à Rússia, não só por sua dependência energética, mas também porque tem importantes interesses empresariais no pais - se dá por satisfeito. 
A República da Crimeia passa a desfrutar de maiores poderes de autogestão (e permite o aumento do número de navios e tropas russas na península, o que satisfaz Moscou). 
A Rússia passa a ter, na prática, um protetorado sobre a Crimeia, sem ter que pagar o preço político de uma anexação (que tampouco realizou na Abkasia e na Ossetia do Sul) e alcança seus objetivos estratégicos (que é o que lhe importa). 
Os EUA ficam como "aliados" do novo governo ucraniano, cujos integrantes, no passado, sob as ordens de Iustchenko, não revelaram grande realismo político. Tal como no passado, vocalizarão esse apoio até o ponto em que isso não implique uma confrontação aberta e direta contra a outra superpotência nuclear.  
A Ucrânia mantêm sua integridade territorial, mas sai perdendo na prática, na medida em que a Crimeia rompe, a rigor, o regime de estado unitário prevalecente na Ucrânia. 
O pleito ucraniano se esvazia do ponto de vista estritamente jurídico. 
E todos  ficam mais ou menos felizes. Ou assim pelo menos parecerá.

Renato Marques
12/03/2014

quinta-feira, 2 de agosto de 2012

O Mercosul ja nao e' mais o que era - Renato Marques

Um texto pessoal, corajoso, objetivo (a despeito de alguns adjetivos) e sobretudo sensato, sobre o estado atual do Mercosul, se de estado se trata...
Paulo Roberto de Almeida

A encruzilhada do Mercosul

Renato L. R. Marques, 2/08/2012
Os negociadores dos tratados constitutivos do Mercosul foram, em seu tempo, criticados por agir com timidez e não adotar todos os instrumentos econômicos, políticos e sociais em vigor na Europa, modelo para muitos do que deveria ser um programa de integração regional. Para os açodados e românticos "integracionistas latino-americanos" de plantão, o Mercosul deveria ter, desde logo, instituições supranacionais, um Parlamento e um Tribunal, apesar do caráter inter-governamental do agrupamento que surgia e das disparidades entre as economias que o integravam. Da mesma forma, insinuavam a conveniência da constituição de fundos para o desenvolvimento regional (nos moldes do atual FOCEM), sem que tivessem sequer concluído, com êxito, essa missão dentro do seu próprio território nacional. Essa corrente maximalista sempre deu margem a uma avaliação do Mercosul como um projeto institucionalmente incompleto, prejudicado por um "déficit democrático" e voltado exclusivamente para a expansão do comércio intra-regional ("neoliberal" era o rótulo mais simpático que merecia desde essa ótica). Como esses críticos não buscassem alcançar uma inserção competitiva do país no mercado internacional - preocupados que estavam e estão em apenas proteger setores ineficientes em suas respectivas economias - desmereciam os efeitos positivos da complementariedade regional e seu impacto na otimização dos custos de produção entre os países integrantes do Tratado de Assunção. Para eles, o Mercosul deveria ser o "passe de mágica" que nenhuma das economias soube produzir isoladamente. O fato de que o Brasil era (e é) a maior economia do grupo lhes dava (e dá) uma sensação inebriante de auto-confiança e poder, que justificaria que assumíssemos, desde logo, uma posição de "benefactor" (proposta revestida de uma impecável retórica de solidariedade regional, alicerçada nos ambiciosos propósitos embutidos no parágrafo único do artigo 4 de nossa Constituição).
O Mercosul, tal como projetado, era (e é) um esquema de integração essencialmente econômico e comercial (nisso concordamos). Sua crescente metamorfose em instrumento político (simbolizada pela adoção da "claúsula democrática", em 1996) e posteriormente social (com a Declaração Sociolaboral de 1998, depois ampliada pelos programas introduzidos a partir do Governo Lula, como o FOCEM) revelam não sua evolução, mas sua dificuldade em consolidar os propósitos originais dos "founding fathers" (claramente perceptíveis na proliferação de acordos de restrição voluntária, na ampliação das listas de exceção à TEC e em outras transgressões dos receituários do livre comércio e da união aduaneira). Forçoso é admitir também que o Mercosul não foi muito pródigo na assinatura de acordos com países fora da região (o único concluído, com Israel, está longe de integrar a lista dos "dez mais" do comércio exterior dos Quatro). A culpa, em geral atribuída a nossos sócios, é também brasileira, em função de nossas limitações negociais, por pressão de setores internos vulneráveis à concorrência externa. Nessas condições, o Mercosul já vinha perdendo progressivamente consistência conceitual e funcionalidade para os interesses nacionais.
As alterações introduzidas no desenho original do Tratado de Assunção, com a adoção de medidas de promoção do desenvolvimento regional voltadas para a superação das assimetrias regionais (eufemismo para a adoção de instrumentos para reduzir as desigualdes econômicas entre seus membros), obrigará o país a acompanhar o ritmo de comboio imposto pelas economias menos desenvolvidas (mormente agora, quando se anuncia a próxima incorporação de Equador, Bolívia, Guiana e Suriname, países cujos interesses econômicos estão longe de ser coincidentes com os do setor produtivo nacional). O Mercosul - abalado juridicamente de morte pelo ingresso da Venezuela ao arrepio da lei e politicamente pela crescente presença bolivariana (com todas as implicações em termos de relacionamento externo) - deixa definitivamente de ser um instrumento para o desenvolvimento econômico e comercial e passa a se constituir em um grande programa assistencial brasileiro. Sua ampliação, nessas condições, o torna cada vez mais um "alter ego" da UNASUL, cujas identidades começam a se confundir. A estabilidade política, econômica e social na região é um indiscutível e legítimo objetivo de nossa política externa, mas ao adotar as medidas destinadas a alcançar esse propósito via organismos multilaterais, perde-se o controle das iniciativas e submete-se o país a uma camisa de força indesejada.
Além disso, embarcamos em uma iniciativa já malograda na Europa, conforme está nitida e dramaticamente comprovado pela crise da eurozona e pelo reiterado desperdício de recursos (até a pouco quase infinitos) em regiões como o Mezzogiorno italiano (a Sicília ameaça neste momento "default" e compromete os planos de austeridade do governo Monti). Décadas de aplicação de uma cornucópia de recursos comunitários na Europa mediterrânea produziram apenas economias vulneráveis, destituídas de sustentabilidade própria. Fica assim exposto à luz do dia o artificialismo do sistema assistencial a essas economias (via fundos estruturais que nunca promoveram um desenvolvimento real, nem a competitividade desejada). Os grandiosos investimentos na infra-estrutura dessas regiões são hoje um grande monumento à prodigalidade em tempos de bonanza. A rede viária implantada é totalmente descolada da existência de atividades econômicas rentáveis (serviram apenas aos interesses das grandes empreiteras locais).
A crise atual da eurozona expõe assim os limites do solidarismo econômico e revela o irrealismo das propostas de igualitarismo regional. Onde estão as novas Alemanhas? (esta, afetada pelo mau desempenho das economias da região, está inclusive ameaçada de perder seu grau de investimento AAA). O bloco europeu também teve esgarçada sua solidez pela admissão apressada, em caráter político, de países que não haviam concluído as reformas internas necessárias para atender às exigências técnicas de seus protocolos de adesão, de acordo com os requerimentos europeus. É como se a Alemanha tivesse que incorporar novas Alemanhas Orientais, com seus modelos industriais ineficientes, sobreemprego e, muitas vezes, uma generosa legislação social .
O Brasil deveria fazer uma leitura correta desses acontecimentos, de forma a não repetir os erros acumulados além-mar. E também repensar o Mercosul. A TEC está hoje pulverizada, como resultado de repetidas perfurações, como reflexo das distintas estruturas produtivas e do atendimento a nossos setores menos competitivos, carentes de proteção. Por outro lado, o custo dos novos programas regionais será crescente e recairá sobre o Brasil (ainda inebriado com os superávits minguantes de suas exportações de "commodities" agrícolas e minerais). Os novos mercados - mesmo quando significativos, como é o caso da Venezuela - estariam ao alcance das exportações brasileiras via acordos de livre comércio. A estrutura produtiva dos novos sócios torna improvável sua adoção da TEC do Mercosul, tal como hoje definida, o que faz supor a apresentação de repetidos pedidos de revisão. A Venezuela é um país essencialmente importador (sobretudo nas condições atuais, em que sua competitividade está ameaçada por sucessivas estatizações). O que banca suas compras externas é a conta petróleo. Supor que esse país adotará uma tarifa externa compatível com os interesses brasileiros é ingenuidade ou má fé. Os demais (Equador, Bolívia, Suriname e Guiana) representam economias menos dinâmicas do que a paraguaia (marcada por sua vocação estritamente comercial até agora) e certamente estarão ainda menos propensos a adotar uma TEC de inspiração brasileira, por razões absolutamente compreensíveis (basta ver seu quadro produtivo interno).
A regressão do Mercosul a uma simples área de livre comércio - embora politicamente onerosa - eximiria o Brasil de compromissos indesejados e resguardaria nossos principais interesses (posto que a região absorve boa parte das exportações brasileiras de maior valor agregado). Essa medida liberaria nossos sócios (atuais e futuros) para eventuais acordos com a China ou os EUA. No caso chinês, entretanto, suas exportações tenderão - graças aos baixos salários ainda praticados e à desvalorização de sua moeda - a superar, com espetaculares saltos olímpicos, a barreira tarifária do Mercosul .
No Brasil, a China já tem livre trânsito nos setores de eletroeletrônicos, componentes para a indústria e bens de capital, que integram o esforço produtivo nacional (nesse caso, valendo-se de nossas próprias exceções à TEC e a nossos ex-tarifários). Supõe-se que o mesmo ocorra nos demais sócios, que certamente se valem de suas exceções para isentar de tarifas os produtos não produzidos( que são em maior número do que no Brasil). O impacto da eliminação da TEC não tenderia assim a ser de grande monta e propiciaria ao Brasil, desvencilhado dos programas multilaterais assistencialistas, produzir seu Plano Marshall para a região com nome próprio (e não através de recursos postos à disposição de uma burocracia regional voltada para interesses não necessariamente coincidentes com os nossos). O principal ator, na nova configuração, seria o BNDES que, em última instância, é quem paga a conta (para não mencionar o contribuinte brasileiro). Passaríamos assim a ter uma liberdade de ação e de critérios mais condizente com os interesses nacionais.
Renato L. R. Marques - 1/8/2012

segunda-feira, 14 de maio de 2012

O "futuro" do Mercosul em debate - Renato Marques

Recebi, junto com nova cópia do artigo do Alto Comissário (ops, perdão, Representante) do Mercosul, Samuel Pinheiro Guimarães, as observações que transcrevo abaixo do colega diplomata Renato Luis Rodrigues Marques, que foi responsável pela integração bilateral Brasil-Argentina e depois pelo seguimento do processo na primeira fase do Mercosul.
Mas, impõem-se as reservas de sempre: eles se expressa a título pessoal, não como diplomata, como eu sempre faço, aliás: mesmo sendo diplomata, nunca deixei de pensar e, por vezes, de expressar o que penso, como cidadão, não como diplomata. Não concordo, absolutamente, com os que dizem que o diplomata só tem, e só pode ter, uma única opinião, a do Governo. Enquanto diplomata, ele precisa seguir instruções, o que não deveria impedi-lo de expressar, internamente, suas ideais e opiniões para a formulação dessas mesmas instruções. Como cidadão, ele tem o direito de pensar o que quer. Impõem-se, como sempre, as reservas de praxe: o diplomata não tem o direito de expressar em público suas opiniões, em temas da agenda diplomática corrente, sem a devida autorização dos seus superiores. Um pouco como no Vaticano... (e tem de ser assim).
O que não quer dizer que ele não pode debater ideias -- não instruções -- de colegas diplomatas quando expostas abertamente em público. Se por acaso penetrar em temas da agenda diplomática corrente, tem o dever de pedir autorização. Por vezes dão, por vezes não, como no Vaticano...
Paulo Roberto de Almeida 


Comentários do Embaixador Renato Luis Rodrigues Marques ao artigo em anexo:
(ele se refere ao artigo de Samuel Pinheiro Guimarães, “O Futuro do Mercosul”. Ele foi publicado no número inaugural da revista Austral, Revista Brasileira de Estratégia e Relações Internacionais (Porto Alegre, UFRGS, Programa de Pós-Graduação em Estudos Estratégicos Internacionais da UFRGS, vol. 1, n. 1, jan.-jun. 2012, p. 13-22; disponível neste link: http://seer.ufrgs.br/austral/article/view/27989/16627).

As afirmações de nosso Alto Representante no Mercosul, no artigo "O Futuro do Mercosul", publicado na revista Austral. edição jan/jun de 2012, da UFRGS, distorcem fatos históricos de domínio público. Com a mesma ligeireza de pensamento, falseiam tanto os objetivos que nortearam a criação do Mercosul, como as razões que fundamentaram a abertura de mercado nos países da região no início da década dos 90. A abertura das economias não foi motivada por um desejo quase freudiano de "contribuição voluntária ao processo de globalização" , mas como uma fórmula para - entre outros objetivos concorrentes - abater a hiperinflação que corroía o poder de compra dos assalariados e desmontar mamutes estatais inoperantes, que funcionavam como grande cabides de emprego, sem vantagens para os contgribuintes a que deveriam servir. Nos tempos da EMBRATEL, o telefone era tão caro e raro que constava da lista de bens na declaração anual de imposto de renda de alguns privilegiados. Hoje está universalizado ao ponto que o número de aparelhos é praticamente o mesmo que o de habitantes do país. Pode-se criticar a forma como essas privatizações ocorreram na região - em alguns casos apenas substituindo o monopólio estatal pelo privado - mas é inegável que suas economias se modernizaram e ampliaram as oportunidade de trabalho (o que não se confunde com emprego) em cada país.
Da mesma forma, o Mercosul nunca foi pensado como um aplainador de assimetrias, mas como um instrumento de inserção competitiva para essas economias no mercado internacional ( e é sob esse ângulo que deve ser avaliado). A conclusão seria que o Mercosul é uma área de livre comércio incompleta e uma união aduaneira imperfeita, tão frágil quanto os acordos seletivos de livre comércio  celebrados com os EUA e a União Europeia pelos países da região. O programa automotivo, apregoado como modelo no artigo, é um arranjo de controle de mercado das multinacionais do setor - e não um paradigma de cooperação econômica a ser imitado, pois opera contra os interesses dos consumidores. Além disso, o Brasil, se está disposto a ajudar o desenvolvimento da Bolívia, Equador, Suriname e Guiana, certamente dispõe dos meios para fazê-lo bilateralmente, sem os constrangimentos de uma camisa de força supranacional.  Apenas seria de esperar que nossa "pujança econômica" (implícita no programa) pudesse pelo menos tentar antes realizar a tarefa internamente, via redução das desigualdades regionais no próprio Brasil. 
Finalmente, embora seja inegável o êxito do modelo econômico chinês - calcado na exploração da mão-de-obra e na ausência de seguridade social (para não mencionar as restrições à liberdade política no país) - dificilmente poderia ser mimetizado no Brasil, na medida em que  representaria um retrocesso nas conquistas sociais já alcançadas, estaria em contradição com o programa de todos os partidos políticos e ao arrepio das aspirações democráticas da população como um todo (que não estaria disposta a injetar maior estabilidade à nossa "trajetória econômica e política" através da adoção de "um sistema político colegiado e de ascensão gradual dos membros do Partido Comunista às posições de alta responsabilidade no Bureau Político do Comitê Central" - ou seu equivalente tupiniquim).       

Renato L.R. Marques
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