Globalização e
Integração Regional
Renato Marques
Revista Interesse Nacional (ano 9, n. 35,
outubro-dezembro 2016, p. 27-35)
As mudanças anunciadas pelo novo Governo –
com seus inevitáveis desdobramentos na condução da política externa –
constituem um momento oportuno para rever os critérios que orientaram a
condução da diplomacia nacional, marcada nos últimos anos pela excessiva ênfase
no relacionamento Sul-Sul, pela busca de um acordo na malograda Rodada Doha da
OMC, pelo estímulo à improvável concertação de posições no âmbito dos BRICS e
por iniciativas em favor da multipolaridade, entendida como uma forma de
enfraquecer o poder dos EUA em escala mundial. A reinserção internacional do
Brasil tem assim que ser repensada, da mesma forma que a agenda econômica deve
criar condições para superar constrangimentos de longa data, que limitam e
condicionam nossas opções externas, como os impostos pelo oneroso “custo
Brasil”, pelas ineficiências resultantes de nossa histórica adesão a políticas
industriais e comerciais de viés protecionista, agravadas por um quadro de
decisões macroeconômicas recentes, equivocadas ou mal executadas. Por razões
alheias à nossa vontade, esse aggiornamento
terá que ser feito em um cenário internacional que, embora em recuperação, é
certamente menos favorável do que o anterior à crise financeira de 2008, quando
se multiplicavam as grandes cadeias transnacionais em âmbito global.
O fato é que o Brasil se manteve à margem
dessa extraordinária reestruturação produtiva, que envolveu todo tipo de bens e
serviços, valendo-se de sofisticados recursos logísticos, das facilidades
oferecidas pela Internet e do intenso fluxo de capitais propiciado pelos
mercados financeiros globais. Apesar dessa conjugação favorável de fatores e de
o comércio internacional ter crescido a taxas sempre superiores às do PIB (exceto
em 2009), o dogmatismo míope do grupo no poder e a falta de competitividade de
nossa indústria agiram como um freio à concertação de acordos para abertura de
novos mercados. Na contramão das tendências mundiais, nos mantivemos aferrados a
velhas fórmulas, que asseguraram sobrevida a uma política industrial calcada em
subsídios e exonerações e que revigoraram o protecionismo arraigado na cultura
nacional. Não por acaso, essas medidas foram contraproducentes e incapazes de
“compensar” os efeitos da sobrevalorização do Real e da concorrência avassaladora
da China. Nesse contexto, o setor industrial sofreu uma forte retração e boa
parte da demanda interna gerada pela política expansionista dos últimos anos
terminou sendo aproveitada por fornecedores externos. Ao mesmo tempo, a
emergência da Ásia (e da China, em particular) como grande mercado importador
de alimentos e polo de investimentos em infraestrutura, tornou nossa pauta de exportações excessivamente
concentrada em commodities agrícolas
e minerais, de baixo valor agregado.
Novo
cenário mundial
O novo cenário mundial, a partir de 2009, ressente-se não apenas de
uma lenta retomada do comércio internacional (em torno de 3% nos últimos anos),
mas também dos efeitos negativos dos ressentimentos dos que se consideram
prejudicados pela “má distribuição dos ganhos” acumulados durante as últimas
décadas do processo de globalização. O inusitado, desta feita, é que – ao
contrário dos tempos em que as teorias cepalinas da “dependência” centravam seu
fogo contra as propaladas “perdas internacionais” ou criticavam a “condenação”
das economias dos países subdesenvolvidos à condição de “periferia dos grandes centros
industriais” – são os EUA e a Europa ocidental que abrem suas baterias contra a
perda de empregos e de capital para as economias ditas “emergentes” (sobretudo
para a China). As acusações abrangem diversas “práticas que afetam a
concorrência”, como baixos salários, câmbio deprimido, frouxo ambiente regulatório,
escassas exigências ambientais, reduzida proteção trabalhista e de seguridade
social. Seu pecado capital seria proporcionar alta rentabilidade para os investidores (ao contrário do que
ocorre nos ambientes muito mais regulados e taxados, típicos das economias
maduras).
Como resultado, as empresas reveem
suas estratégias de internacionalização das cadeias produtivas e surgem nos
países desenvolvidos focos de resistência ao livre comércio, à celebração de
novos acordos preferenciais e até àqueles tidos como o estado da arte. O NAFTA,
por exemplo, foi acusado por Trump de
causar graves prejuízos à economia norte-americana. Antecipa assim, se eleito,
medidas para a repatriação de empresas, capitais e empregos perdidos para o
México e para a China, entre outros, aos que se propõe deslanchar uma guerra
comercial sem tréguas. A Parceria Trans-Pacífico (TPP, na sigla em inglês), apesar
de suas 5.500 páginas de normas e regulamentos - que abrangem disposições sobre
a proteção de investimentos, patentes, recursos naturais e direitos
trabalhistas - foi atacada publicamente pelas lideranças republicana e
democrata, receosas de uma possível “concorrência desleal”, de manipulações de
câmbio e, em última instância, de seu impacto negativo sobre o emprego nos EUA.
A Parceria Transatlântica para o Comércio e Investimentos (TTIP, relativa aos
entendimentos EUA/Europa), perdeu o apoio da candidata democrata, o que deixa a
iniciativa sem defensores aparentes, tendo em conta que já era alvo dos
conhecidos humores protecionistas do outro lado do Atlântico.
Essas posições refletem uma nova cartilha,
marcada por um discurso defensivo tanto da
parte da “direita populista” (em contraste com a apologia do liberalismo econômico,
tradicionalmente identificado com o ideário da facção majoritária do Partido
Republicano) como das correntes “liberais”
(empenhadas em uma difícil costura política entre o establishment democrata e sua ala mais à esquerda, mobilizada pela
oratória anti-Wall Street do
socialista Bernie Sanders). Ambos os candidatos disputam o voto das fileiras de
jovens excluídos do mercado de trabalho, dos que sofreram com a migração de
empregos para redutos mais atrativos e do contingente de blue collars deslocados por inovações tecnológicas que reduzem a necessidade de mão-de-obra, ao
mesmo tempo que aumentam a produtividade.
Não surpreende assim que o argumento
reducionista prevalecente atribua aos acordos globais e inter-regionais
favorecer sobretudo as grandes corporações transnacionais, em detrimento da robustez
econômica dos países desenvolvidos participantes e da qualidade de vida de seus
trabalhadores. Um efeito perceptível desse fenômeno seria a “convergência
salarial” em curso, refletida nos aumentos espetaculares da remuneração na
China, em contraste com os níveis praticados nos EUA (onde se mantiveram basicamente
estáveis, mas declinantes em termos relativos). O que explicaria porque o tema
da “desigualdade” - talvez pela primeira vez - domine o discurso dos dois
principais contendores. No caso de Trump - que se propõe a resgatar o padrão de
vida e os valores da classe média branca americana - por oportunismo ou
clarividência; no caso de Hillary – à caça dos votos afro-americanos e
hispânicos - por coerência com o histórico
apoio dos democratas às causas das minorias e para atender os reclamos dos
contingentes de desempregados de indústrias tornadas fantasmas .
No Velho Continente, a exígua vitória da
decisão em favor da saída do Reino Unido da União Europeia (conhecida como Brexit) responde a um somatório de
causas, embora sejam maliciosamente debitadas quase que exclusivamente a maquinações
da direita eurocética. O que significa desconsiderar tanto a crença crescente
nesses países de que a globalização é a culpada pela perda dos empregos das
classes de baixa renda e de menor qualificação, quanto o desconforto com a
integração regional. A UE e sua política social são responsabilizadas por
estímulos à imigração (implícitos nos planos de reassentamento), e por sua
incapacidade, reticência ou indisposição de conter as sucessivas levas de refugiados
(oriundos de áreas conflagradas no Oriente Médio e na África), vistos como uma
sobrecarga fiscal e como potencial massa de manobra para os organizadores de atentados
terroristas na Europa. Além disso, os súditos de Sua Majestade – acostumados à
menor interferência do Estado após as reformas introduzidas no período Thatcher
- terão reagido também ao discurso dos
que estimam haver uma excessiva interferência dos eurocratas em Bruxelas na
regulamentação da vida dos cidadãos e das empresas (de que os critérios para
definir o ângulo da curvatura do pepino são a aberração mais eloquente).
Reclamam ademais do custo abusivo de manutenção da máquina administrativa
europeia e de seus programas assistenciais, de duvidosos resultados.
Europa e Mercosul
Na prática, a saída do Reino Unido
enfraquece as correntes liberais dentro da UE, sem alterar substancialmente a
postura negociadora do bloco, marcada pela resistência de 13 de seus membros
(sob a liderança da França), contrários à abertura de seu mercado aos
transgênicos americanos, à inclusão de carne e açúcar na pauta em exame com o
Mercosul e a qualquer revisão dos mecanismos de apoio da Política Agrícola
Comum. Do lado positivo, o resultado do referendo abre uma janela de
oportunidades para a celebração de futuros entendimentos comerciais com
Londres, desvencilhada das manobras obstrucionistas da guarda pretoriana agrícola.
Do ponto de vista filosófico, o Brexit
reflete também uma fermentação política contrária ao estatismo, ao protecionismo e ao intervencionismo, próprios da concepção
francesa da Europa (em contraponto à “perspectiva liberal-clássica”,
tradicionalmente associada aos países nórdicos, anglo-saxões e à Alemanha).
Desde o Tratado de Roma, de 1957, essas duas visões desfrutam de um equilíbrio
teórico: por um lado, o acordo fundacional consagrou as quatro liberdades
(livre circulação de bens, serviços, capitais e pessoas); por outro, outorgou à
Comissão, em Bruxelas, o poder legislativo e a gerência da Política Agrícola
Comum, com sua cornucópia de subsídios. E esse é o grande tema subjacente, mais
do que saber se o voto inglês foi mais uma manifestação da Pérfida Álbion ou uma
afirmação regressiva do Estado-nação.
Guardadas as devidas proporções, pode-se
afirmar que alguns dos fatores em jogo na Europa estiveram presentes no
surgimento do projeto, inicialmente bilateral e depois mais amplo, que veio a
ser o Mercosul. Lá, tratava-se de criar as condições para que novas guerras
fratricidas não mais ocorressem na região. Para tanto, era fundamental a
aliança entre a Alemanha e a França,
dois dos principais protagonistas e rivais do tabuleiro europeu. A preocupação
com a política e com a segurança regionais, no contexto da Guerra Fria, foram
assim o pano de fundo para o fomento de sinergias econômicas capazes de
cimentar a nova parceria. Da mesma forma aqui, na nossa região, buscava-se - no
day after dos regimes militares que
batiam em retirada no Brasil e na Argentina -, promover interesses econômicos
conjuntos, como forma de viabilizar o aproveitamento de uma latente complementaridade
nos campos industrial (de que resultaram os acordos sobre bens de capital e
automobilístico) e agrícola (com a imposição de quotas crescentes de importação
de trigo argentino, em substituição a outros fornecedores tradicionais). No
campo político, as iniciativas estavam basicamente voltadas para desarticular
as divergências (Itaipu e Corpus) e as desconfianças (desenvolvimento dos
programas nucleares nacionais) e assim criar
condições para que o processo de
redemocratização em curso nos dois países avançasse sem transtornos. A
pedra-de-toque dessa reaproximação foram as visitas que os Presidentes Sarney
(em 1987) e Alfonsin (em 1988) fizeram às centrais nucleares de Pilcaniyeú e
Aramar, atos que tiveram o efeito de
promover uma importante distensão no campo militar. De quebra, os entendimentos
alcançados bilateralmente esvaziaram a lógica da supérflua disputa por
influência política e econômica na região.
Sinais invertidos
Às
similitudes na origem se contrapõem as diferenças atuais. Mercosul e União
Europeia vivem, de alguma forma, turbulências com sinais invertidos. A UE enfrenta
o desafio da inédita saída de um de seus membros; o Mercosul está às voltas com
o ingresso irregular de um novo sócio, que não compartilha o regime de livre
iniciativa que caracterizou o espírito do momento fundacional do bloco, que não
colocou em vigor a normativa básica de seus tratados constitutivos e que não
atende adequadamente aos imperativos da “cláusula democrática” (voltada para o
desestímulo do ressurgimento de regimes ditatoriais). Além disso, a Zona do
Euro teve um crescimento médio de 1,6% no ano passado (índice modesto, mas que
começa a causar inveja); no mesmo período, os integrantes do Mercosul penaram um crescimento negativo, à
exceção do Paraguai que alcançou 1,5% positivo. O Reino Unido desfruta de um bom
cenário econômico interno (apesar das previsões catastrofistas veiculadas pela
ótica hegemônica); o Brasil está às voltas com uma transição política
tumultuada pelos simpatizantes do ancien
régime e empenhado na difícil tarefa de reverter os elevados déficits nos
gastos públicos e em promover uma drástica redução da expressiva taxa de
desemprego, herdados do governo anterior. Nessas condições, é natural que fiquem
em segundo plano as polêmicas em torno ao Mercosul, cujas regras de resto nunca
tiveram a força de suas congêneres europeias no sistema jurídico de seus sócios
(que sempre recusaram delegar poderes decisórios a órgãos supranacionais).
O abandono da postura terceiro-mundista, típica
da era petista, torna possível uma reflexão no tocante ao Mercosul e uma
avaliação de sua funcionalidade para o país. Exercício que deveria começar por
tentar entender a verdadeira personalidade do Mercosul, sobretudo agora que
tanto se fala em resgatar seu sentido original. O primeiro passo poderia ser o
exame de uma questão central, relativa ao alcance da expressão “mercado comum”,
adotada nos sucessivos instrumentos integracionistas, como forma de enfrentar uma
questão ontológica importante: de que Mercosul estamos falando? Daquele que
emerge da letra ou do espírito dos tratados ditos “fundacionais”? (Desses, posso
dar testemunho, na medida em que tive a oportunidade de participar ativamente
de todos os negociados entre 1989 e 1999). Daquele Mercosul difuso que
prevalece no imaginário popular? Daquele que foi contaminado progressivamente
pela doutrina elaborada pela academia, pelos comentários dos analistas
políticos engajados e por ações de nítido viés ideológico-partidário ao longo
dos últimos 13 anos? Para tanto, será necessário distinguir entre o que foi a mens legislatoris e o que foi sendo
enxertado ao longo de sua existência pelos formadores de opinião e pela ação
dos sucessivos governos.
Mercado comum
Para começar, nossa intelligentsia oficial (também conhecida pelo binômio “artistas e intelectuais”),
animada por uma visão utópica e igualitária das relações internacionais, propôs,
desde o início, mimetizar a experiência europeia e transplantar, de forma quase
automática, as instituições e os mecanismos comunitários para a região. Dentre
os juristas, alguns expoentes se inclinaram pela supranacionalidade, por apego
filosófico a uma visão internacionalista, que submeteria o Brasil aos ditames
de uma burocracia regional, que presumiam capaz de atuar como fator de
equilíbrio e defesa do interesse comum, em um mundo panglossiano perfeito. Os
integracionistas históricos e os políticos à esquerda, por seu turno, repudiaram
o abandono das “medidas compensatórias” do passado, em uma antevisão do surgimento
posterior de programas assistencialistas, perdulários e ineficazes, do tipo
Fundo de Convergência Estrutural (FOCEM), e da guinada conceitual e ideológica
que contaminou todo o espectro da política externa da região, sob a inspiração
e, em muitos casos, o estímulo do bolivarianismo chavista venezuelano.
Os documentos firmados desde os primórdios
do Mercosul refletem a influência desses pontos de vista, embora nem sempre os
tenham acolhido. O Programa de Integração e Cooperação Econômica (PICE, de
1986), por exemplo, era de inspiração nitidamente dirigista e se propunha a integrar
os territórios do Brasil e da Argentina em um “espaço econômico comum”. Seu funcionamento
exigia uma intensa intervenção governamental (para fixar quotas de comércio
administrado, compensar déficits comerciais, via desgravação de novos produtos
ou do aumento de suas margens de preferência e, até mesmo, para viabilizar
investimentos no Brasil, em condições preferenciais). Essa visão foi
radicalmente alterada com a assinatura, em julho de 1990, durante a visita do
Presidente Collor à Argentina, da Ata de Buenos Aires, que introduziu uma nova
metodologia para a liberalização do comércio (através de “reduções tarifárias
generalizadas, lineares e automáticas”), com vistas a um novo (e ambicioso)
“objetivo final”: o estabelecimento de um “mercado comum” até 31/12/94 (dentro
ainda, portanto, dos mandatos de Collor e Menen, embora o cronograma adotado se
limitasse a assegurar a implantação de uma zona de livre comércio bilateral
naquele prazo). Essa linha programática era coerente com a abertura comercial
em curso nos dois países e com o desejo de criar condições para enfrentar os
desafios impostos pela “formação de grandes espaços econômicos e a globalização
do cenário econômico internacional” (temas que se mantiveram na ordem do dia,
embora tenham sido menosprezados pela “diplomacia ativa e altiva” em favor de
uma aliança Sul-Sul, que nos tornou primus
inter pares, mas na Segunda Divisão).
Os entendimentos acordados na Ata
foram posteriormente transpostos para o Acordo de Complementação Econômica nº
14, no âmbito da ALADI, que os “legalizou” para efeitos do GATT. Mais comedido,
o ACE-14 registrou que o cronograma adotado visava a “facilitar a criação das
condições necessárias para o estabelecimento do mercado comum”. A redação
manteve o lip service à grande causa
do “mercado comum”, mas em tom menor, uma vez que foi acertada em um ambiente
desprovido da pompa e circunstância da “diplomacia presidencial” (prática
decantada em prosa e verso que, quando posta ao serviço do “culto da
personalidade”, como nos anos- Lula, acarreta enormes riscos, ante a tentação,
quase irresistível, de “fazer história” ou, em uma versão mais pedestre, ganhar
as manchetes do noticiário das oito, na tevê).
Tratado de Assunção
O Tratado de Assunção, assinado a 26/3/91
- formulado com a participação dos novos sócios, Paraguai e Uruguai - foi o
resultado do trabalho de negociadores imbuídos da indisfarçada pretensão de
quebrar a cadeia de reiterados fracassos integracionistas ensaiados na região, caracterizados
por acordos dotados de altos propósitos irrealizáveis e amparados por uma
retórica latino-americanista de grande ressonância, mas escassos resultados. O
que não evitou que o TA registrasse excessos (ou “liberdades poéticas”, como os
qualifiquei em meu livro “Duas Décadas de Mercosul”, de 2011), no estilo do que
se buscava evitar. Tanto nos seus consideranda,
como em seu artigo 1º, que estipula que o “mercado comum” estaria concluído até
31 de dezembro de 1994, e que, nesse prazo, seriam implantadas a “livre
circulação de bens, serviços e fatores produtivos”, “a tarifa externa comum e a
adoção de uma política comercial comum”, “a coordenação de posições em foros
econômico-comerciais”, bem como a “coordenação de políticas macroeconômicas e
setoriais entre os Estados Partes – de comércio, exterior, agrícola,
industrial, fiscal, monetária, cambial e de capitais, de serviços,
alfandegária, de transportes e comunicações...” – objetivos demasiado
ambiciosos mesmo hoje, passados 25 anos!
Na prática, o TA resgatou os critérios automáticos
de abertura de mercados, adaptou-os à nova dimensão quadrilateral e consagrou
mecanismos adequados ao livre-cambismo apregoados por todos seus integrantes.
Natural assim que adotasse conceitos novos e superadores dos cacoetes típicos
dos convênios da ALALC/ALADI, como os “tratamentos diferenciados” em favor de
“países de menor desenvolvimento econômico relativo”. Paraguai e Uruguai
desfrutaram, excepcionalmente, de “diferenças pontuais de ritmo” para a
desgravação de seus produtos, mas não mais como regra ou como seu direito
natural. Além disso, o TA estabeleceu, como princípio, a “reciprocidade de
direitos e obrigações”, o que gerou amplas críticas dos fundamentalistas da
integração, para quem o acordo estava calcado em um “conceito equivocado de uma
igualdade inexistente”. As negociações para a definição da Tarifa Externa Comum
(TEC), concluídas durante o Conselho de Ouro Preto, em 1994, foram complexas,
dada a disparidade de estruturas produtivas entre os Quatro e os interesses daí
resultantes. Não surpreende assim que a TEC ainda sofra inúmeras “perfurações”,
como decorrência de “listas de exceções” e outras formas de descumprir sua
aplicação. É de se destacar, entretanto, que a definição da TEC, em Ouro Preto,
era ansiosamente esperada pelo setor produtivo nacional, dado seu receio de que
o Mercosul se restringisse a uma zona de livre comércio, o que permitiria a
importação de bens de capital, matérias primas e outros insumos de extra-zona, com
tarifa zero, e a internação posterior do produto final no mercado brasileiro,
valendo-se de baixos custos de produção.
O descrito acima reflete basicamente a
agenda do Mercosul que prevaleceu até pelo menos 2003, apesar dos altos e baixos em sua implementação e do
persistente contencioso comercial, sobretudo entre Brasil e Argentina. Com a
mudança de paradigma introduzida pelo Governo Lula, o Mercosul progressivamente
abandonou sua vocação econômica e comercial (nunca plenamente realizada) e se
transformou em um (também incompleto) experimento político e social. Nessa nova
roupagem, o Mercosul suspendeu o Paraguai, invocando a “cláusula democrática” (em
desrespeito à normativa constitucional vigente naquele país), e facilitou o
ingresso da Venezuela bolivariana, sem o cumprimento de todos os critérios
requeridos para sua adesão. A polêmica em torno à presidência pro-tempore rotativa venezuelana neste
segundo semestre é, assim, um subcapítulo inevitável dos vícios legais
perpetrados no primeiro episódio.
Ajuste aos novos tempos
Apesar desses desenvolvimentos, o Mercosul
permanece, como toda construção humana, uma obra em aberto, passível de
aperfeiçoamento e correções de rumo. Não creio que esteja na mente de seus
críticos mais severos a hipótese de um Braxit,
seja porque é um instrumento válido de coordenação de posições em nosso entorno
imediato (o que lhe confere um importante peso diplomático); seja por suas
inegáveis realizações em diversos campos, sobretudo o comercial; seja porque
organismos regionais latino-americanos são como o diamante - para sempre
(alguns sobrevivem em estado letárgico, outros beirando a catalepsia, mas não
morrem jamais).
Caberia assim um esforço de ajuste aos
novos tempos. A propalada intenção de permitir a cada um dos sócios a
celebração de acordos individuais de livre comércio, via emenda da Decisão 32, ocupa
o primeiro lugar na pauta. Desde logo, visa a objetivos coerentes com o
interesse nacional brasileiro (e, provavelmente, também com o dos demais, à
exceção da Venezuela). Apesar disso, do ponto de vista estritamente formal, não
há como escapar à conclusão de que uma emenda nesse sentido, se aprovada,
tornará virtualmente letra morta o instituto da união aduaneira (qualquer que
seja o eufemismo – ou ausência dele - que se venha a adotar para sua vendagem
externa). Daí a precedência e a importância que adquire na agenda. Outras
medidas mereceriam igualmente ser revistas. Uma delas é o FOCEM, de forma a não
insistir em políticas onerosas, que não vingaram sequer na origem, como
comprova o insucesso dos sucessivos planos de apoio da UE ao Mezzogiorno italiano. O alto custo político
da iniciativa recairia sobre o Brasil, na condição de principal contribuinte
para o Fundo.
No mesmo diapasão, seria aconselhável
rever os critérios de intervenção regional do BNDES, que vinha financiando
projetos alheios ao interesse nacional (caso do porto de Mariel, em Cuba) e
contrários ao interesse nacional (caso de um porto em águas profundas em Rocha,
no Uruguai, que desviará cargas do porto de Rio Grande, sem que este ao menos
seja objeto dos mesmos mimos pelo Banco). Em um plano mais abrangente, caberia
descontinuar – sem jamais perder a ternura, é claro – o elevado quinhão de
“generosidade” implícito na política externa do período petista, que – diga-se
a bem da verdade - transcendeu as fronteiras do Mercosul e provavelmente esteve
a serviço de uma causa perdida (a obtenção de uma cadeira permanente no
Conselho de Segurança das Nações Unidas). Essa medida depende apenas da vontade
soberana nacional e não necessariamente configura incumprimento de pactos, pois
não decorre de compromissos pré-acordados nem dispõe de um campo pré-definido
de aplicação, tendo constituído mais bem um ethos
político e ideológico do partido então no poder.
Reforma do Mercosul
Outro ponto importante diz respeito à
preservação da intergovernabilidade e do sistema de decisão por consenso, que
constituem verdadeiras “cláusulas pétreas” no âmbito do Mercosul. Esses pilares
do TA correm o risco de serem afetados pela proliferação de novas instituições
e foros, que criam novos espaços decisórios, ampliam a forma e conteúdo do
bloco e pressionam em favor da internalização coercitiva de normas, sob o manto
da “legitimidade” e da “governança”. Ocorre assim uma nova institucionalização,
de geração quase espontânea, que não se submete a uma estratégia de longo
prazo, desenhada - como corresponderia – ao nível da política de Estado. O
Mercosul assume, inadvertidamente, uma feição institucional cada vez mais
próxima de um mercado comum em estágio avançado, nos moldes europeus, o que
sobrecarrega seu orçamento e estimula a proliferação de cargos destituídos de
materialidade, dada a natureza intergovernamental do bloco. Além disso, o
inchaço institucional que acompanhou a expansão da pauta política e social está
em descompasso com seu crescente insucesso comercial (só nos primeiros sete
meses do corrente ano, registra-se uma contração de 14% nas nossas vendas,
índice que inclui a redução de 63% nas exportações para a Venezuela). Iniciativas
na área institucional tenderão, entretanto, a provocar reações adversas em
todos os sócios do Mercosul (Brasil incluído), na medida em que contrariariam
vários interesses corporativos e pessoais.
Tudo somado, não será tarefa fácil a
reforma do Mercosul. Sem perder esse objetivo de vista, seria sensato dar
andamento simultâneo a iniciativas urgentes
e práticas, como a adaptação casuística de nosso regime em matéria de
proteção de investimentos, de propriedade intelectual, serviços e compras
governamentais a padrões aceitáveis em escala mundial, como forma de criar as
pré-condições para uma inserção efetiva nas grandes cadeias globais de produção
e de intercâmbio. Afinal, o clima para as negociações de novos acordos comerciais
tenderá a retomar seu curso, passadas as turbulências típicas da campanha
eleitoral nos EUA. Trump – se eleito - deverá
(como Reagan antes dele) aterrissar sua retórica no mundo real (onde atuam
importantes contrapesos, no Capitólio e na Suprema Corte) e se adaptar aos
imperativos impostos pela geopolítica e pelas relações internacionais. Hillary
conhece bem os meandros da máquina administrativa de Washington e das forças
atuantes no cenário externo, o que faz supor que seu programa refletirá mais de
perto o pensamento estratégico da cúpula militar e os interesses dos círculos econômicos
e financeiros, próximos do Partido Democrata. O que não significa dizer que a
retórica antiliberal predominante não afetará a diplomacia comercial futura. Na
UE, a tendência será que - uma vez consolidada a incipiente recuperação da zona
do Euro - se restabeleça a busca de novos acordos, com uma equação custo-benefício
não muito distante da prevalecente no período anterior (ou seja, com suas
propostas de abertura no campo industrial e resistências no setor agrícola). As
perspectivas de crescimento das exportações para a China - empenhada em aumentar
o poder de compra de sua nova classe média – são uma boa notícia, apesar de
acentuar a concentração de nossa pauta em bens primários.
Políticas internas
Em suma, a recuperação da competitividade
de nossos setores produtivos (e a consequente diversificação de nossa pauta de
exportações) só será alcançada através da restauração dos fundamentos da
economia brasileira. O que implica
recuperar nossas contas públicas e criar um ambiente propício à retomada dos
investimentos. Resultados que dependem da aprovação das propostas de ajuste (vistas
como impopulares por políticos cujo horizonte é, em geral, a próxima eleição) e
outras reformas indispensáveis, mas que vão no sentido contrário do apego de
parcela considerável dos brasileiros ao Estado assistencialista (sentimento que
não parece fadado a desaparecer do nosso universo político). No cenário
internacional, não é provável que sejam atendidos os apelos do último
comunicado do G-20, do início de setembro, contra “toda forma de protecionismo
no comércio exterior e nos investimentos”. Os países terão assim que concentrar
suas iniciativas em políticas internas que coloquem em ordem suas economias e
que confiram competitividade ao seu parque produtivo, sem o que as empresas não
desfrutarão de condições realísticas de inserção nas grandes cadeias globais. A
celebração de novos acordos comerciais, pelo Governo, pode coadjuvar esse
esforço, mas estes, sozinhos, não serão capazes de assegurar os resultados que
todos esperamos, tanto em âmbito regional como global.
Renato
Marques é embaixador aposentado. Durante sua carreira, serviu nas
Representações do Brasil na Alalc, Aladi, Comunidades Europeias, e Embaixada em
Washington. Secretário do Comércio Exterior (dez/1992-fev/1994). Chefe do
Departamento de Integração do Itamaraty (1994-1999).