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sábado, 23 de março de 2024

Livro: Relações diplomáticas entre Portugal e Marrocos entre 1774 e 1912 - Mohammed Nadir (Editora UFABC)


AS RELAÇÕES DIPLOMÁTICAS ENTRE PORTUGAL E MARROCOS   DO TRATADO DE PAZ (1774) AO PROTECTORADO (1912)                                                     

Mohammed Nadir

Santo André: Editora UFABC, 2023


Resumo:

 

O cerne da nossa tese partiu de uma questão: como interpretar o Tratado luso-marroquino assinado em 1774. As interpretações variaram historicamente: teria marcado algo de novo nas relações entre os dois países, isto é, se -tal como a tese historiográfica colonial quis demonstrar- as relações entre o norte e o sul do Mediterrâneo apenas se teriam pautado pela luta mortal entre dois blocos civilizacionais geneticamente inconciliáveis; teria resultado apenas de um simples pragmatismo e constituiria uma estranha inovação; teria significado a partir do século XVIII um novo clima de relações transnacionais numa dimensão planetária. 

A nossa tese é outra, as relações luso-marroquinas e por extensão euro-marroquinas não eram uma simples inovação, muito menos se definem por mero pragmatismo, isto é, circunstancial. É indubitavelmente uma renovação dum secularismo que encontra suas raízes numa herança mediterrânica e num processo histórico linear no seu aspecto quer de confronto quer de contacto. E é também uma relação com uma componente fortemente estratégica. Portugal e Marrocos, dois países da finis terrae, com uma história binacional, encarnam um aspecto belo e épico desse contacto entre o Norte e o Sul do Mediterrâneo. Durante este período cronológico de cento e quarenta anos, que vai desde a assinatura do Tratado de paz e de comércio (1774) até à instalação do protectorado francês (1912), as relações diplomáticas luso marroquinas foram pautadas por uma linha continua que oscilou entre momentos altos e/ou relativa e forçada estagnação, e na qual as conjunturas adversas vieram ainda fortalecer e consolidar. 

As características variavam em diplomacia humanitária, económica, solidaria, cordial e por vezes de incidentes sem chegar e/ou regressar ao conflito. Em todos estes aspectos, recorria-se ao argumento de secular aliança e antiga amizade para superar e aprofundar as relações bilaterais. Se por norma imediata algumas análises tendem a perspetivar as relações bilaterais pelo lado material e estatístico (decerto fundamental) há e haverá o outro lado nas relações internacionais que é de natureza histórica, sociocultural e geoestratégico.

Nesse sentido as relações luso-marroquinas congregam este lado quase transcendental que existe nas relações diplomáticas em sentido lato entre estados e nações. Mais do que nunca, a diplomacia e as relações diplomáticas na sua dimensão ampla, isto é, multissectorial, e sobretudo uma diplomacia que apela a um humanismo diplomático prático é incrivelmente se não mesmo messianicamente desejada no momento em que estruturas e valores que até há pouco eram vistas como universais e eternas, se estejam a desmoronar e com elas, todas as aquisições dos últimos cinquenta anos.

Com efeito, o grande debate que hoje em dia decorre nas altas instâncias internacionais põe a tónica na trilogia da paz no mundo, da segurança de pessoas, bens, espaços e, como estamos vivendo na era da informação tecnológica, preocupa-se com um novo elemento que é a segurança eletrónica que pode afectar tudo e todos. A terceira componente é o comércio entre as nações que se deseja seja justo, seguro e sustentável.   A trilogia da paz, segurança e comércio inclui geneticamente uma característica dialéctica, isto é, sem uma parte não funcionam as outras. 

Dito isto, há precisamente 240 anos que esta consciência pela imperiosa necessidade de estabelecer a Paz entre Portugal e Marrocos estava presente nas tomadas de decisões dos políticos da época. O objectivo era o mesmo, criar condições de segurança marítima e terrestre para que o comércio pudesse prosperar entre os dois países. Nesse sentido, as questões que se autoimpuseram como as mais pertinentes e orientadoras ao longo desta investigação são as seguintes.

O que representava Marrocos para os interesses de Lisboa da segunda metade de

Setecentos e toda a centúria oitocentista? Suscitavam ou não ao império de Marrocos

uma certa importância? Que tipo de importância? Maior ou menor? Táctica ou

estratégica? Como era seguida pelo governo português e pelos amplos sectores públicos

e com que interesse eram seguidos os acontecimentos em Marrocos e no Norte de

África? Quais os interesses políticos e económicos que estavam em jogo? Até que ponto a diplomacia funcionou ou serviu como instrumento para aprofundar e estreitar esses laços de amizade que se constatam em várias cartas,embaixadas, missões especiais trocadas entre ambas as partes? E como é que o makhzan/estado marroquino olhava e encarava a sua relação para com o vizinho Portugal? Com indiferença? Com diferenciação? São estesenigmas da política externa que oscilam entre a coerência e a ambivalência que iremos procurar descobrir ao longo deste trabalho.

De qualquer modo deve salientar dum lado que se a posição geográfica de Marrocos predestinou o país, desde a antiguidade, a ter relações comerciais com o mundo africano e europeu, sendo charneira entre dois mundos e actor activo na elaboração da civilização do mundo mediterrânico, o contexto da segunda metade de Setecentos e as novas exigências políticas e económicas forçaram uma nova aproximação. Muito mais do que uma relação táctica ou circunstancial, era urgente dar um salto estratégico e de longa duração ao novo quadro de relações com o mundo europeu, renovando as seculares relações na bacia mediterrânica.

De outro lado e sendo Portugal uma pequena metrópole com um vasto espaço ultramarino disperso por todo o Mundo e que sofreu desde o seu nascimento as ameaças externas (Castela, Inglaterra e França), até que ponto o querer defender a joia da coroa, o Brasil, dos ataques dos europeus (ingleses, holandeses, franceses) foi um elemento a ter em consideração no tratado de Paz entre Marrocos e Portugal? Se essa hipótese vier a se confirmar, teremos aqui mais do que relação de Portugal com Marrocos, mas também o fator Brasil como elemento determinante. O que apenas confirma a ideia do triangulo estratégico de Marrocos, Portugal e Brasil.


MOHAMMED NADIR, professor Visitante na Universidade Federal do ABC. Graduado em história pela Universidade Mohammed V- Rabat Marrocos, Mestrado e Doutor em História pela Universidade de Coimbra, pósgraduado em Relações Internacionais, Diplomacia pelaEscola Diplomática de MadridAtua principalmente nas áreas do Oriente Médio e Norte de África e as relações com Europa e América Latina.

É pesquisador integrado no Centro de História da Sociedade e da Cultura da Universidade de Coimbra e no Centro de Estudos Africanos da Universidade do Porto CEAUP-UP. Dirige o Centro de Estudos Árabes e Islâmicos da UFABC.

Foi Prémio Calouste Gulbenkian pela Academia Portuguesa de História em 2008.





Por que o Plano Real funcionou? - Tony Volpon (Valor)

 

Por que o Plano Real funcionou? 

Nunca houve na história saída tão indolor de um processo de quase hiperinflação crônica.

Por Tony Volpon*

Como já defendi várias vezes nas redes sociais, os idealizadores e gestores do Plano Real merecem um prêmio Nobel de Economia e, se não fosse o viés americano/europeu nas escolhas, não duvido que ganhariam. Nunca houve uma saída tão indolor de um processo de quase hiperinflação crônica na história econômica.

Acho que não deve haver dúvidas ou questionamentos que o plano também teve enorme importância social, dado que o acesso a "tecnologias de indexação" dependia do nível de renda, com os mais ricos ganhando - e bastante - com a "ciranda financeira" e os mais pobres pagando a conta. Realmente nunca houve, de uma vez só, um ato que distribuiu tanta renda.

Também não devemos debater (como aconteceu nas redes) "quem merece" os louros do sucesso do plano. Houve personagens centrais - como obviamente Fernando Henrique Cardoso e Itamar Franco - e personagens mais periféricas, mas que deram sua contribuição, como Marcílio Marques Moreira. Também tivemos vários que lutaram contra o plano. O Real foi uma obra coletiva.

Queria aqui endereçar um ponto consensual na narrativa sobre o Plano Real que eu acho exatamente ao contrário da verdade: que o Real elegeu FHC presidente.

A tese parece óbvia: o Real foi um sucesso, houve um "boom" inicial de consumo (não tão intenso ou insustentável como no Cruzado, mas ainda assim um "boom"), e assim FHC facilmente venceu Lula.

Enquanto cronologicamente isso foi verdade, olhando a lógica econômica do plano, vemos que foi exatamente o contrário.

O ponto chave - e mais crítico e frágil - do Plano Real era a passagem do "inflacionado" indexador URV para o que se desejava, uma estável nova moeda.

A instituição da URV resolvia um dos grandes problemas dos planos de estabilização anteriores: o desequilíbrio de preços relativos quando se tentou congelar os preços para frear a inflação inercial.

Se, por exemplo, no momento do congelamento o valor dos salários estivesse "no pico", quando houvesse o eventual descongelamento haveria uma inflação "residual" para ajustar a relação salários/preços. Apesar de ser um ajuste de preços relativos, o ajuste apareceria como inflação, recomeçando tudo de novo (com novo agravante: as remarcações preventivas devido aos temores de futuros congelamentos).

A URV permitiu a negociação e coordenação via mecanismo de mercado (e não "tablitas" e outros mecanismos de controle central) dos preços relativos. Esse problema já era reconhecido em uma publicação conjunta de 1986 de Pérsio Arida e André Lara Resende, a contribuição teórica mais importante para o Plano.

Mas a URV não resolvia o problema do "lastro" da nova moeda, um problema grave, especialmente quando era óbvio que a arrecadação do governo deveria cair com o fim do imposto inflacionário (a despeito do "Fundo Social de Emergência"), piorando o déficit fiscal, o que de fato aconteceu - até o segundo mandato o governo FHC teve déficits primários.

Enquanto hoje muitos lembram as críticas ao plano pela esquerda (por exemplo, Maria da Conceição Tavares), houve várias críticas ortodoxas antevendo o fracasso do Real pela falta de um ajuste fiscal estrutural prévio. Exemplo: Sérgio Werlang e Rubens Cysne publicaram artigo na "Folha de S. Paulo", em janeiro de 1994, intitulado "Esqueçam a URV", no qual escreveram: "O governo errou... por ter desperdiçado os últimos sete meses sem o necessário detalhamento dessas reformas...se o governo não foi capaz de conter a inflação com uma moeda, como poderia combatê-la com duas?".

A equipe econômica sabia disso. Foi a razão para que no lançamento do Real houvesse a tentativa de impor várias âncoras ao mesmo tempo: alta de juros com apreciação cambial (o Real nasceu flutuante) e metas de crescimento da oferta monetária.

Mas é óbvio que, como se viu em planos anteriores, tais âncoras "nominais" deveriam fracassar se não houvesse mudanças estruturais na política econômica.

Como vimos, grande parte do debate foi sobre a natureza dessas mudanças. Muitos - até aqueles da equipe econômica - argumentaram que elas deveriam acontecer antes do lançamento do Real - que sem um ajuste fiscal/estrutural prévio, a inflação voltaria. O que FHC apostou foi que a expectativa de mudanças em um momento de desordem política pós-impeachment seria o suficiente para lastrear o Real.

Veja o que FHC disse em 1998: "Ninguém acreditava que fosse possível acabar com a inflação num governo de transição... Só eu achava... Começou a discussão, entre nós, e a equipe achava que não dava... Diziam que era preciso ter controle sobre o Banco do Brasil, a Caixa Econômica... eu achava o contrário.... Dizia: "vocês estão rigorosamente equivocados. A única possibilidade de pôr ordem no orçamento é aproveitar que o Congresso está uma desordem... Portanto, só pode passar numa situação caótica, em que não haja força política organizada".

FHC, estudante de Maquiavel, entendeu que não era nenhum utópico "pacto político" - muito defendido na época pela esquerda - que levaria à estabilização, mas sim a rápida implementação do plano em um momento de desordem do establishment político, gerando a expectativa de eleição de um governo reformista dando lastro ao Real.

E a aposta - genial e perigosa - deu certo! A perspectiva de reformas lastreou o Real, o que levou a um "boom" inicial, que ajudou a eleger FHC. O Plano Real foi um perfeito exemplo de uma "profecia autorrealizável".

 

*Tony Volpon foi diretor do Banco Central do Brasil e é atualmente professor-visitante da George Washington University, em Washington D.C.

 

O que falta ao Brasil para ser um país desenvolvido? - Paulo Roberto de Almeida (revista Crusoé)

Meu mais recente artigo publicado: 

4595. “O que falta para o Brasil ser um país desenvolvido? (2)”, Brasília, 7 março 2024, 3 p. Continuidade da série sobre o desenvolvimento brasileiro, a partir do trabalho n. 4530, focando nos elementos de políticas macroeconômicas e setoriais para um processo de desenvolvimento sustentado. Revista Crusoé (n. 307, 22/03/2024). Relação de Publicados n. 1553. 

Paulo R. de Almeida na Crusoé: 

O que falta ao Brasil para ser um país desenvolvido?

Não é seguro que as lideranças políticas e econômicas do Brasil atual consigam concertar um consenso básico sobre um amplo programa de reformas,.


O que falta ao Brasil para ser um país desenvolvido? (2) 

Paulo Roberto de Almeida, diplomata, professor.

Quarto e último artigo da série “desenvolvimento” para a revista Crusoé

 

Em três artigos anteriores discutimos as razões pelas quais o Brasil continua, ainda, um país persistentemente em desenvolvimento – 4509. “Por que o Brasil ainda não é um país desenvolvido? (1); 4510. Por que o Brasil ainda não é um país desenvolvido? (2) – e, o terceiro da série: “O que falta para o Brasil ser um país desenvolvido? (1). Vamos encerrar o ciclo, desta vez, discutindo o caminho pelo qual o Brasil poderia, finalmente, alçar-se à condição de país desenvolvido. Os argumentos, em cada um dos quatro artigos, são necessariamente sintéticos, dada a amplitude das questões, mas eles estão baseados num largo conhecimento da literatura especializada – economia e sociologia do desenvolvimento –, mais a experiência adquirida em décadas (como diplomata e acadêmico) de viagens pelo mundo, de atenta observação da trajetória de países fracassados e exitosos na trilha do crescimento econômico e do desenvolvimento social sustentado e sustentável, assim como em reflexões ponderadas sobre como o Brasil pode dar, finalmente, a sua arrancada final.

Se o Brasil cresce pouco, a razão está simplesmente na baixa taxa de investimento, a partir de percentuais irrisórios de poupança do setor privado, quando não da despoupança estatal. É notório que o Estado extrai recursos em demasia da sociedade, diminuindo, assim, a capacidade do setor privado de se expandir e de criar empregos, renda e riqueza. Não se pode acreditar que o Estado passe a criar riquezas a serem distribuídas à sociedade, ou pelo menos aos mais pobres, apenas pela via da extração de uma parte da renda gerada no setor privado. A OCDE costuma justamente insistir em que os Estados devem normalmente se concentrar naquilo que eles podem fazer melhor: prestar serviços coletivos e contribuir para a criação de um bom ambiente de negócios, capaz de, justamente, gerar ainda mais renda e riqueza pela via de mercados livres. Ora, se o Estado se apropria de uma parte desproporcionalmente elevada da renda gerada na sociedade, como ocorre tradicionalmente no país, ele diminui proporcionalmente o volume de investimentos necessários à expansão da oferta agregada (para empregar termos que os adoradores do Estado compreendem bem). Ora, o Brasil possui uma carga fiscal próxima da média dos países da OCDE para uma renda per capita cinco vezes menor: algo, portanto, está profundamente equivocado no plano da tributação.

(...)


Não é seguro que as lideranças políticas e econômicas do Brasil atual consigam concertar, entre si, um consenso básico a respeito de um amplo programa e um processo de reformas estruturais e setoriais em torno dos cinco conjuntos de medidas sintetizadas nos parágrafos anteriores. Observando-se, contudo, os poucos países que saltaram a barreira do não desenvolvimento para uma situação de “classe média confortável” – quase todos na franja asiática do Pacífico –, constatamos que aqueles que o fizeram acumularam mais sucessos nas reformas indicadas do que fracassos temporários na direção de um projeto nacional exequível. 

“Ficar rico é glorioso” disse, na distante década de 1980, o líder chinês pós-maoísta Deng Xiaoping, dando início à reconstrução de uma nação miserável, então dotada de uma renda per capita inferior à metade da do Brasil. O preconceito contra a riqueza, a inveja dos ricos, a obsessão contra as desigualdades (inerentes às sociedades, em toda a história da humanidade) talvez sejam um dos principais defeitos da nacionalidade no caminho do desenvolvimento sustentado. Mas o Brasil tem condições de superar seu atraso delongado...

 

Brasília, 4595, 9 março 2024.


Venezuela aprova 'criação' de estado em Essequibo; Guiana protesta AFP

 Venezuela aprova 'criação' de estado em Essequibo; Guiana protesta https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2024/03/venezuela-aprova-criacao-de-estado-em-essequibo-guiana-protesta.shtml?utm_source=twitter&utm_medium=social&utm_campaign=comptw - Maduro avança nas suas pretensões expansionistas, sabendo que Lula permanecerá calado quanto ao projeto de usurpação da soberania da Guiana. A diplomacia corporativa nem ousa  pronunciar-se a respeito desse absurdo.

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Venezuela aprova criação de estado no disputado Essequibo; Guiana protesta

Disputa centenária pelo Essequibo se intensificou em 2015 após a descoberta de jazidas de petróleo na área pela petrolífera ExxonMobil.

https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2024/03/venezuela-aprova-criacao-de-estado-em-essequibo-guiana-protesta.shtml

O moderno Príncipe e os principados da atualidade: Maquiavel aplicado à política contemporânea - Paulo Roberto de Almeida


 2275. “O moderno Príncipe e os principados da atualidade: Maquiavel aplicado à política contemporânea”, Brasília, 25 maio 2011, 9 p. Adaptação dos capítulos 1, 3 e 4 do livro O Moderno Príncipe: Maquiavel revisitado (Brasília: Senado Federal, 2010). Revista Espaço Acadêmico (ano 11, n. 121, junho 2011, p. 67-73; link: http://www.periodicos.uem.br/ojs/index.php/EspacoAcademico/article/view/13530/7062). Relação de Publicados n. 1035.

O moderno Príncipe e os principados da atualidade:

Maquiavel aplicado à política contemporânea

 

Paulo Roberto de Almeida *

 

Resumo: Releitura da obra clássica de Maquiavel, adaptando seus argumentos sobre os tipos de regimes e sobre a natureza da dominação política às características dos Estados modernos, divididos em democracias e simulacros de democracia. A despeito da aparente similaridade entre as modernas democracias de mercado, cada um dos Estados capitalistas contemporâneos apresentam peculiaridades próprias, assim como são distintos os regimes existentes na América Latina.

Palavras-chave: Tipos de dominação. Maquiavel. Estados modernos. América Latina.

 

Dos regimes políticos: os democráticos e os outros

Maquiavel pretendia, em um curto capítulo inicial ao seu De Principatibus, que todos os estados e todos os governos que tinham exercido ou que ainda exerciam certo poder sobre a vida dos homens fossem apenas de dois tipos: ou eram repúblicas ou principados. Estes últimos seriam do tipo hereditário, ou seja, descendente de antigas linhagens, ou novos, isto é, adquiridos pela via das armas, fossem estas armas alheias ou as do próprio príncipe, devendo este a sua posse à sua boa sorte (fortuna) ou ao seu próprio mérito (virtù).

Modernamente, pode-se dizer que todos os estados ou governos existentes, que têm ou pretendem ter autoridade sobre os homens, são, única e exclusivamente, de dois tipos: ou são democracias ou são simulacros de democracia; estes últimos se distinguem entre, de um lado, os despotismos abertos, reconhecidos como tais, e, de outro lado, modalidades variadas de ditadura, algumas disfarçadas de “repúblicas populares”, outras consistindo simplesmente de ditaduras “constitucionais”. 

As verdadeiras democracias são ainda em número restrito, mas sua presença e sua importância no mundo atual vêm aumentando, ainda que progressivamente. Em tempos recuados, existiram “democracias políticas”, mas elas conviviam com regimes de servidão humana e a exclusão das mulheres, como na Grécia antiga, ou se tratava de uma democracia unicamente para os patrícios, como na Roma republicana. Nos tempos modernos, as democracias assumiram a forma representativa parlamentar, incorporando progressivamente todos os estratos da sociedade, como no exemplo britânico, a mais longeva democracia conhecida na era moderna.

Houve um tempo, até meados do século 20, em que as democracias conformavam um arquipélago muito reduzido de países, quase todos no hemisfério norte, praticamente submergido num mar de autoritarismos (quando não de totalitarismos abertos). Impulsos autoritários, em países vivendo crises econômicas ou políticas, podiam transmutar-se em golpes ou em assaltos revolucionários ao poder – como no famoso caso da revolução francesa –, transformando sociedades por si estruturalmente antiliberais – geralmente devido à fragilidade da sociedade civil – em ditaduras abertas ou em estados totalitários. 

A prática das ditaduras contemporâneas começou com Lênin, que liderou, não uma revolução, mas um simples golpe militar. A tomada do Palácio de Inverno, em 1917, foi um putsch e não um “assalto ao Céu” feito pelo proletariado russo. Mussolini aprendeu com Lênin, e realizou, em 1922, uma marcha sobre Roma que levou depois ao stato totale. Hitler tentou seguir seu exemplo em 1923, mas falhou miseravelmente e passou algum tempo na cadeia, quando concebeu um sistema de propaganda viciosa e de milícias armadas que facilitou sua ascensão ao poder dez anos depois. Enquanto isso, Portugal salazarista inaugurava o gênero na península ibérica, seguido alguns anos depois pela Espanha franquista, ao mesmo tempo em que Getúlio Vargas também instalava o seu “Estado Novo” no Brasil.

Os políticos, e mesmo os cidadãos comuns, dos poucos sistemas liberais então existentes, consideravam que a democracia não era um regime adequado para beduínos ou camponeses ignorantes, mas ainda assim procuraram, em alguns casos, inculcar alguns rudimentos de democracia nos sistemas por eles dominados. Foi assim que a Índia colonial aprendeu o rule of law e algumas regras de representação política que depois seriam seguidas pelo país tornado independente. A Inglaterra imperial fez provavelmente mais pelo progresso ulterior da Índia do que Ghandi com todos os seus ensinamentos pacifistas, que finalmente serviram muito pouco na construção da Índia moderna: a despeito de enormes problemas de pobreza e de divisão étnica da sociedade, a Índia permanece uma grande democracia. A maior parte dos demais países da África e da Ásia, no entanto, não teve tanta sorte assim, e a inexistência de estruturas políticas representativas, ao serem liberados do “jugo colonial”, mergulhou-os numa sucessão de lutas intertribais e raciais que conduziram à falência dos novos estados.

Na América Latina, a evolução foi diferente, mas nem por isso mais feliz: a maior parte dos países, independentes a partir do início do século 19, degenerou para o caudilhismo anárquico, passando a conhecer a instabilidade como regra; alguns novos estados tentaram o sistema das monarquias “ilustradas”, mas nem por isso eram menos oligárquicos ou plutocráticos. Já no século 20, a fragilidade ou mesmo a raridade de um verdadeiro sistema representativo na experiência política brasileira levou um famoso brasilianista – Thomas Skidmore – a intitular o seu primeiro livro sobre o Brasil moderno de Politics in Brazil, 1930-1964: an experiment in democracy, ou seja, uma tentativa de democracia, pois lhe pareceu que tínhamos tido apenas alguns breves interregnos liberais num continuum autoritário.

Em que pese dispor hoje de um regime democrático aparentemente estável, o Brasil ostentou simulacros de democracia durante muito tempo, seja ao tempo da monarquia ilustrada – que fazia de conta que reproduzia o parlamentarismo inglês, mas sustentava o mais tenebroso escravismo –, seja nas cinco ou seis repúblicas que se seguiram, várias tuteladas pelos militares, cingidas na representação política e excludentes do ponto de vista social. Pela fortuna ou pela virtude, o Brasil alcançou uma democracia que pode ser chamada de plena, tendo atravessado uma transição política exemplar nas eleições de 2002, tendo assistido à passagem do poder político de um sistema de “cabresto” das elites “ilustradas” para as mãos de um representante dos extratos populares.

 

Da variedade de estados capitalistas

É nos principados novos que residem as principais dificuldades políticas para a boa administração da coisa pública, como já reconhecia Maquiavel. Dentre os novos principados, nos interessamos, especialmente, por aqueles que forneceram material empírico a vários teóricos das ditaduras e dos modelos de transição para as democracias, pois são os protótipos de regimes mistos (isto é, compostos) que devemos discutir.

Comparados às velhas monarquias europeias, dotadas em sua maior parte de parlamentos que têm raízes nos tempos medievais, os países do continente americano ganharam sua autonomia política há cerca de dois séculos apenas, em média, e neles são ainda mais recentes, com exceção da grande república do norte do hemisfério, os arranjos governativos baseados na liberdade partidária e em uma representação parlamentar verdadeiramente popular. Em face da secular monarquia inglesa, cujos princípios constitucionais foram forjados ainda antes dos invasores bretões, esses principados das Américas apresentam uma experiência constitucional relativamente confusa, engendrada pela superposição ou eliminação de várias cartas magnas, quase sempre o fruto de tempos turbulentos e de aventuras militares.

Alguns conselheiros dos príncipes modernos podem pensar que países instáveis como os principados latino-americanos são mistos, isto é, heterogêneos, entendendo eles que, por um lado, essas formações ainda são pouco desenvolvidas, econômica e politicamente, e que, por outro lado, apenas as democracias capitalistas avançadas seriam homogêneas e uniformes em seus regimes políticos e formas de governar. Quão errados estão esses ideólogos, porque se há um traço que caracteriza os estados do capitalismo avançado, isto é, os regimes de mercado e as democracias burguesas, é precisamente sua diversidade política nas formas de regime e nos sistemas constitucionais. O fato de se pensar a modernização capitalista em termos de tendências convergentes de organização e de evolução da economia, da sociedade e do estado em todos os principados modernos implica a aceitação de um modelo considerado “ideal” de desenvolvimento histórico e sua elevação ulterior à categoria de “paradigma” para a abordagem analítica dos casos particulares.

Não obstante os traços comuns e, portanto, uniformes, esses principados capitalistas resultam em tipos distintos, isto é, mistos, de organização política e social. Suas tendências de organização são extremamente diversificadas e únicas em cada um dos principados, tomados individualmente. As estruturas e relações de classes — senhores, burgueses livres, membros do clero, arraia miúda, etc. — assim que os sistemas de poder e os tipos de autoridade dos príncipes diferem enormemente nesses principados e não são assimiláveis entre si senão em relação a um mesmo quadro de referência global tomado em sua mais ampla generalidade: economia de mercado (isto é, capitalismo avançado) e democracia formal (isto é, burguesa). 

De fato, qualquer conselheiro do príncipe trabalhando em perspectiva comparada sobre os sistemas econômicos, sociais e políticos desses principados modernos saberia ultrapassar a aparente uniformidade das estruturas e das tendências de desenvolvimento para identificar os traços distintivos na evolução de cada um deles: tradição liberal, consenso social, tendências latentes ao self-government e papel restrito do estado central nas experiências britânica e americana; polarizações sociais e políticas, capitalismo “difícil” e estado centralizado no caso francês; tradição elitista e burocrática, capitalismo concentrado, estado dominador na versão alemã; sociedade hierarquizada, capitalismo altamente organizado e estado “instrumental” na experiência japonesa.

O fato de que esses principados modernos apareçam hoje como ‘uniformemente’ democráticos, não afasta o elemento estrutural de que eles são, na verdade, mistos, no passado e atualmente, tendo percorrido um longo itinerário histórico de revoluções políticas e sociais para consolidar, não um modelo único, mas regimes diversos de governança política que permanecem o que eles sempre foram: principados mistos. 

O que representa, de certo modo, a mais poderosa democracia imperial de nossa época senão um regime de poder caracterizado pelo presidencialismo congressual, levando em conta os enormes poderes que detêm ambos, o príncipe eleito e o congresso do povo naquela grande democracia setentrional? O que constitui, por outro lado, o regime misto do modelo francês, que tem um presidente responsável pela política externa e pela defesa, mas que escolhe um primeiro ministro que depende, por sua vez, da confiança do parlamento? E o sistema imperial japonês e o monárquico espanhol, que têm presidentes de conselho apontados pelo príncipe, mas de fato dependentes do voto popular e de uma maioria parlamentar bastante clara? Regimes unitários se alternam a sistemas federais, com eleições diretas ou indiretas dos chefes de estado ou de governo sem que fique abalada a característica básica desses principados: sua natureza democrática e sua base econômica capitalista. 

Os principados mistos da América Latina também parecem prontos a empreender a aventura da tolerância e estabilidade. Talvez os cidadãos devam ainda eleger príncipes virtuosos que os façam mais facilmente atravessar o purgatório da acumulação primitiva do capitalismo, a anarquia dos mercados e a selva selvaggia dos especuladores e usurários, que nada mais são senão aventureiros dotados da sede desenfreada do lucro, o que por si só é garantia de circulação de riqueza e de crescimento da renda (na medida em que eles atiçam o espírito inovador dos agentes privados).

O mais provável é que eles não tenham vivido tempo suficiente em liberdade para começar a praticar eles mesmos aqueles modelos de self-government que distinguem os principados de linhagem anglo-saxã dos demais. E o principal costume de liberdade que eles devem ainda conhecer mais de perto parece ser o da liberdade econômica. Porque o que qualquer conselheiro do príncipe mais avisado e atento terá deduzido por si mesmo é que o que mais que tudo separa os principados daquela linhagem dos de tradição ibérica — isto é, centralizadora — é esta regra simples da vida econômica: tudo o que não estiver expressamente proibido nas leis saxãs está ipso facto permitido; o súdito ou cidadão pode empreender por sua própria conta e risco tal atividade econômica; inversamente, tudo o que não estiver amparado num alvará régio ou num decreto do príncipe ibérico está ipso facto proibido e depende, por conseguinte, de um decreto do parlamento para poder ser transferido, ao cabo de ingentes esforços e outras tantas acrobacias burocráticas (e pagamento de propinas), ao domínio da iniciativa privada.

Em qualquer hipótese, nem tudo está perdido quando a fortuna e a virtude se combinam para criar circunstâncias favoráveis ao desenvolvimento político e econômico de um principado novo. Se os príncipes que governam esses imensos territórios forem avisados para não mudar muito as leis e não se aumentarem os impostos, o território conquistado pode ser a base de um principado ativo e feliz. 

E um dos maiores e mais eficientes remédios seria aquele do príncipe conhecer os hábitos dos seus governados e corresponder aos seus desejos de liberdade econômica e de autonomia política. Os súditos ficam satisfeitos porque o recurso ao príncipe se torna mais fácil, donde têm mais razões para amá-lo, querendo ser bons, e para temê-lo, caso queiram ou pretendam desrespeitar as leis do principado. Os súditos ou cidadãos de tal principado não precisam, desse modo, temer a ofensa do príncipe, pois que ele já não precisa expedir tantos alvarás como antigamente, posto que a liberdade econômica é a regra e não a exceção. 

Disso se extrai um princípio geral que nunca ou raramente falha: a verdadeira causa do poderio e do progresso de algum principado é liberdade econômica que, combinada à liberdade política, assegura longa vida ao príncipe e sucesso nos seus empreendimentos.

 

Do governo pelos homens e do governo pelas leis

Os principados que se conservam na memória, e que entraram na História, seja como sucesso ou como fracasso, têm sido governados de duas formas. A primeira, por algum príncipe despótico e por seus barões e auxiliares. A segunda, por um príncipe que estabelece a lei nos territórios conquistados e faz dos antigos servos, vassalos e outros súditos homens livres; estes, então, passam a decidir sobre os seus negócios com base nos seus próprios contratos e nos códigos do príncipe, que regulam a designação e o trabalho dos ministros, por graça e concessão dele, mas também inspirados no costume e na lei; com isso, esses homens livres ajudam a governar o estado. 

Ainda podem ser encontrados exemplos dessas duas formas de governo, nos dias que correm. Os homens dos principados baseados nos códigos e nos contratos têm sido mais felizes e ditosos, pois que não precisam amar ou temer a seus senhores, e sim apenas respeitar as leis que eles mesmos fizeram e votaram ou que lhes foram outorgadas por seus pais e avós. Ainda que possam dedicar natural afeição aos seus senhores, eles assim se conduzem também por interesse próprio, não porque a isso tenham sido obrigados pelo arbítrio do príncipe ou de seus barões. Eles entregam de bom grado uma parte de suas colheitas aos coletores do príncipe, pois sabem que uma parte dela será empregada na construção de pontes e diques, ou no pagamento de soldados que não virão roubar suas filhas e levar suas galinhas e cabras.

Mas naqueles principados onde a autoridade emana unicamente do príncipe, a incerteza é a regra e o temor a condição normal, ao passo que nas províncias distantes do centro sempre pode surgir um concorrente do soberano, que a ele poderá se opor pela força das armas ou pela traição pura, com a ajuda de cortesãos pouco escrupulosos. Nessas terras, os homens levam vida atribulada, pois não sabem a que senhor devem servir, se ao príncipe da capital ou aos barões das províncias ou em quem confiar nas conversas dos albergues ou das feiras. Ali pode estar um espião a serviço do príncipe ou do senhor local, sem que o trabalhador honesto tenha qualquer segurança quanto à posse dos seus bens ou sobre quando será a próxima derrama. Mercenários trabalhando para uma ou outra parte e, nas horas vagas, para si mesmos, trazem insegurança constante nas aldeias, sem que os pais de família e os donos de oficinas tenham a quem apelar em caso de abusos. 

Aqui pode ser retomado o argumento inicial, o de que os estados modernos, que têm ou pretendem ter autoridade sobre os homens, são democracias ou simulacros de democracia. A mesma situação pode ser encontrada nas províncias ou nos reinos menores e dependentes de algum príncipe distante, sendo que algumas dessas províncias possuem baronatos antigos ou modernos que muito diferem no modo de governar os cidadãos ou súditos, segundo o caso, podendo ser verdadeiros estados ou, então, os simulacros já referidos. Os anais e crônicas desses baronatos registram casos escabrosos, de barões que se mantiveram a despeito da sucessão de príncipes que foram sendo alijados do poder, ora se aliando com uma causa, ora com a causa oposta. 

Até bem pouco, eram muito mais numerosos os principados da segunda categoria do que da primeira, porque sendo os homens mais facilmente corruptíveis e subornáveis nos regimes instáveis, algum senhor mais esperto podia assaltar o poder e, a partir daí, exercer o seu comando brutal sobre os homens assim assustados. Sendo esperto o novo senhor, ele pronto adquiria prestígio, e mais poder, à custa de presentes aos cortesãos e promessas aos demais. O contrário ocorre geralmente nos principados mais esclarecidos, com cidadãos educados e, portanto, providos de estabilidade de administração e com oficiais menos corruptos, onde em consequência o regime é dotado de maior longevidade. 

Não há uma razão única de porque isso ocorre antes em alguns principados do que em outros, mas, por vezes, isso tem a ver com a qualidade dos príncipes. Mais frequentemente isso se deve à qualidade das instituições, ou da própria civilização, onde foi forjado e educado o príncipe (e também seus barões aliados). De onde se conclui que muito depende da educação do povo, de onde podem sair, e se sobressair, conselheiros do príncipe, ministros, chefes de província e capitães de guerra, que todos concorrem para a felicidade geral da nação, e não para sua infelicidade, como algumas vezes ocorre em territórios de outra forma bem dotados de meios e recursos em que lhes pode ter sido pródiga a natureza. 

Mas não é o bastante para o sucesso de um reino, que o príncipe seja probo ou bem intencionado, pois é preciso, também, que as leis naturais e aquelas fabricadas pelos homens estejam em conformidade com os desejos da maioria. Do contrário, aquele reino poderia viver em revoluções constantes e outros motins. E não convém, tampouco, que as poucas ou muitas riquezas do reino – não importa muito destacar aqui sua quantidade, que é sempre relativa – sejam desigualmente repartidas entre os homens, pois pode acontecer que, por cobiça ou desestímulo, o príncipe passe a ser mal servido pelos seus súditos e cidadãos, que em silêncio começam a subtrair a parte do fisco, por mais justos que sejam os motivos alegados para a coleta oficial. 

Consideradas, pois, todas estas coisas, ninguém se maravilhará de que as únicas garantias seguras para um principado estável e longevo sejam a boa qualidade dos homens públicos e, antes de tudo, a condição de homens livres dos governados, bem como sua maior ou menor capacidade de estabelecer eles mesmos as leis que os irão governar. Isto não resulta da muita ou pouca virtude dos príncipes, mas da forma como príncipes, barões e comuns assumem as instituições legadas pelos ancestrais ou criadas pela História.



* O presente artigo constitui uma adaptação dos capítulos 1, 3 e 4 de meu livro O Moderno Príncipe (Maquiavel revisitado). Brasília: Senado Federal, 2010.




sexta-feira, 22 de março de 2024

O que aguardava o Brasil em 2024? Escrito em dezembro de 2023. Mudou alguma coisa?

Quatro meses atrás, eu escrevi o artigo abaixo, publicado no começo deste ano.
O que se manteve, o que mudou? 

O que aguarda o Brasil em 2024?
Paulo Roberto de Almeida. Prognósticos para o novo ano. Revista Crusoé (n. 297, 12/01/2024, link: https://crusoe.com.br/edicoes/297/o-que-aguarda-o-brasil-em-2024/). Relação de Originais n. 4531.
Quatro meses depois, o que ficou, o que mudou?
Cabe reler, e corrigir...


1543. O que aguarda o Brasil em 2024?”, revista Crusoé (n. 297, 12/01/2024, link: https://crusoe.com.br/edicoes/297/o-que-aguarda-o-brasil-em-2024/). Relação de Originais n. 4531. 

 

 

Os prognósticos eram quase todos promissores ao início de 2023, quando Lula iniciou seu terceiro mandato. Logo em seguida ocorreu o 8 de janeiro, a tentativa golpista dos adeptos do ex-presidente fugido, o que chocou o Brasil e o mundo, inclusive vários dirigentes estrangeiros que tinham vindo para a posse. Os economistas, por sua vez, faziam estimativas sombrias para o crescimento econômico, menos de 1% do PIB, com inflação e juros ainda nas alturas. A maioria conservadora do Congresso, do seu lado, se encarregou de reduzir as expectativas do governo quanto às grandes mudanças propostas pelo presidente eleito. A grande revelação foi o ministro da Fazenda, que conseguiu arrancar, a trancos e barrancos, algumas das medidas econômicas mais relevantes para o futuro do Brasil. 

O ano de 1924 será, portanto, dominado pela regulamentação da reforma tributária e pelo continuado esforço do ministro da Fazenda de fazer cumprir sua meta de déficit zero, a despeito das intenções do presidente de continuar gastando – ou “investindo”, como ele prefere – como se o Brasil estivesse ainda navegando na bonança econômica do início do século (metade pelas reformas “neoliberais” do tucanato, a outra metade pela demanda da China por nossos produtos de exportação). O crescimento pode voltar a surpreender, apesar das estimativas modestas dos economistas e dos organismos internacionais. Em todo caso, os principais desafios do Brasil não estão principalmente na economia.

A política doméstica continuará dominada pela divisão do país, mesmo quando o próprio governo optou pelo slogan “união e reconstrução”. A luta política, voltada em 2024 para as eleições locais, parece cristalizar uma polarização que só interessa aos dois blocos opositores nas eleições de 2022. A “solução”, para o governo, parece situar-se nos mesmos métodos empregados nos dois primeiros mandatos, isto é, a mobilização, pela via de cargos e recursos, de partidos e parlamentares individuais para cada uma das medidas a serem votadas. Com uma diferença, porém: o poder do parlamento cresceu de modo significativo, no modelo completamente distorcido das emendas individuais, de bancada e de comissão, que passaram a desfigurar completamente a noção de aplicação racional dos recursos disponíveis. 

O grande ativo do terceiro mandato, no plano interno e no externo, deveria ser a política ambiental, mais proclamada do que efetivamente implementada, sobretudo se as promessas de preservação do meio ambiente e de transição energética se chocarem com os projetos e veleidades petrolíferas do presidente, inclusive na região amazônica. Durante a conferência das partes sobre mudanças climáticas em 2023, o governo resolveu associar o Brasil ao cartel dos produtores de petróleo, como se Lula pudesse cumprir sua promessa de convencer os líderes da OPEP a dar início à conversão para energias renováveis. Esse tipo de contradição também está presente em outras posturas de política externa do governo, nas quais pretende intermediar negociações de paz entre partes em confronto, ao mesmo tempo em que coloca num mesmo plano agressores e agredidos (em função das simpatias ideológicas do partido do poder). Nessa vertente, o Brics não é tanto um ativo diplomático como se pretende, quanto é um passivo geopolítico, sobretudo em função de sua recente ampliação a novos membros peculiares. Enquanto isso, a OCDE permanece no limbo.

Os mais relevantes problemas brasileiros – além e à margem dos quase eternos desequilíbrios regionais e desigualdades sociais – estão na educação e na segurança cidadã, áreas na quais o governo ainda não apresentou propostas abrangentes e integradas para reduzir deficiências notórias, que se agravaram nos últimos anos. A criminalidade tornou-se igualmente abrangente, nas grandes metrópoles e nas regiões recuadas, assim como mais sofisticada, alcançando as novas tecnologias de informação e de comunicação. Um dos grandes problemas econômicos é justamente a falta de competitividade da produção manufatureira do Brasil, resultado dos níveis medíocres de produtividade do capital humano, o que deriva da baixa qualidade da educação brasileira (como refletida nos exames do PISA).

A miséria residual e a pobreza mais extensiva poderão ser reduzidas por meio dos canais existentes de distribuição de renda e de auxílio focalizado, mas não parece haver hipótese de mudança estrutural nesse perfil iníquo da sociedade brasileira apenas através de programas governamentais. O subsídio ao consumo dos mais pobres deveria ter como objetivo principal a redução dos beneficiários pela via do mercado de trabalho, não o aumento quantitativo da população assistida. A reforma tributária ficou concentrada apenas no consumo, não na renda e no patrimônio, sendo que a regressividade impositiva poderá ainda ser agravada por um nível anormalmente alto da taxação pelo valor agregado (dados os subsídios remanescentes ou as exclusões e regimes preferenciais criados). Os novos poderes do parlamento, assim como do mandarinato estatal (a começar pela aristocracia do judiciário) não facilitarão a correção das principais desigualdades distributivas. 

Alguns dos principais desafios do terceiro mandato de Lula se situam no âmbito da política externa, uma vez que o Brasil estará, em 2004, no comando do G20, com propostas até bem-vindas no campo social e ambiental, mas também com a ilusória pretensão de uma grande reforma na estrutura da governança global, o que parece impossível, dado o aumento das tensões mundiais já identificadas a uma nova “Guerra Fria”. Nesse terreno, as opções de Lula se chocam com o seu tratamento leniente dos grandes violadores da paz e da segurança internacionais, por acaso proponentes de uma “ordem global não ocidental”, pela qual o presidente já manifestou diversas vezes sua predileção. Mais adiante virá a organização da conferência sobre aquecimento global na própria Amazônia, onde estarão em curso os novos projetos da Petrobras de exploração dos recursos eventualmente detectados in e off shore. No intervalo, continuarão as discussões com os parceiros do Mercosul e da União Europeia em torno dos projetos de reforma do bloco – no qual o Brasil estará relativamente isolado, em face de governos bem mais liberais – e da possibilidade de concluir um acordo que se arrasta penosamente em face dos protecionistas dos dois lados há mais de duas décadas. 

Surpresas certamente advirão no decorrer de 2024, tanto no plano interno, quando no cenário externo, para as quais o presidente e seu governo precisam estar preparados, pois sucessos e insucessos de alternarão ao longo dos próximos meses. Ainda não se tem um documento de governo claramente definido em função dos seus grandes objetivos, inclusive porque, tanto na arena da política doméstica quanto no teatro da política externa, o Executivo não dispõe de comandos suficientes para controlar a marcha e o conteúdo de suas propostas e reações aos desafios que inevitavelmente surgirão. O personalismo no ambiente interno e a diplomacia excessivamente presidencial no cenário internacional podem não ser as alavancas adequadas para uma governança efetiva em face da complexidade dos problemas que marcam o Brasil e o mundo na presente conjuntura histórica de transformação geopolítica. 

Os paradoxos de uma globalização fragmentada – crescimento, crise e concentração ao mesmo tempo – afetaram o funcionamento do multilateralismo contemporâneo e os grandes Estados (com a possível exceção da União Europeia) apresentam visível tendência a atuar unilateralmente, inclusive porque suas políticas internas também se encontram divididas em grupos ou lideranças mais radicais que disputam o poder. A atmosfera política e econômica do mundo é mais de névoa e de sombras do que de céu claro e caminhos desimpedidos. Lula terá algumas difíceis escolhas a fazer, num e noutro ambiente, daí a importância de se cercar de boas assessorias: econômicas, políticas e diplomáticas.

 

Paulo Roberto de Almeida

 

Brasília, 4531, 26 dezembro 2023, 3 p.

Publicado na revista Crusoé (n. 297; 12/01/2024; link: https://crusoe.com.br/edicoes/297/o-que-aguarda-o-brasil-em-2024/). Relação de Publicados n. 1543.